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CAOS E ALÉM

variedades de Hine

Phil Hine
tradução
Maíra Mendes Galvão
revisão da tradução
Douglas Mattos e Rogério Bettoni
Copyright © 2019 Phil Hine
Copyright da tradução © 2023 Maíra Mendes Galvão
Copyright des ta edição © 2023 Oficina Palim ps es tus

A reprodução de trechos sem fins lucrativos desta obra, em qualquer meio impresso ou
digital, poderá ser feita desde que citada a fonte completa, incluindo créditos de tradução.
Para qualquer outro uso, é necessária autorização da Editora.
Embora esta obra siga o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, há
transgressões. Consideramos a linguagem um devir, uma atividade viva cujas limitações
institucionais muitas vezes tolhem a atividade criativa e a própria dinâmica do pensamento e
do fazer literário.

Os direitos de tradução e publicação em língua portuguesa foram adquiridos mundialmente


com exclusividade pela Oficina Palimpsestus.

Título original: Hine's Varieties: Chaos & Beyond


Editor-geral: Rogério Bettoni
Editor-adjunto: Eduardo Valmobida
Produção editorial: Marina Jordá
Assistência geral: Gabriel Nogueira, Anthony Tko
Tradução: Maíra Mendes Galvão
Revisão da tradução: Rogério Bettoni, Douglas Mattos
Preparação de texto: Douglas Mattos
Diagramação: Michel LuCont
Ilustração de capa: Lucas Fier
Concepção de capa: Tamara Dumke
E-book: Eduardo Valmobida
Este e-book foi produzido pela Oficina Palimpsestus como agradecimento a todas as
pessoas que apoiaram o projeto de financiamento coletivo realizado entre 2021 e 2022 para a
publicação da obra de Phil Hine no Brasil. A campanha não previa o lançamento de e-books,
que só está sendo feito como agradecimento e consideração pelo longo tempo de espera.
Os custos de produção de qualquer livro são altos, e a Palimpsestus trabalha
incansavelmente para difundir material de qualidade, buscando profissionais dos mais
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Escreve & encontra êxtase na escrita!
—Aleister Crowley,
O livro da Lei, 2:66
AGRADECIMENTOS

S
eriam necessárias muitas páginas para agradecer a todos que
já me incentivaram a escrever ou que deram forma às minhas
ideias ao longo dos últimos quarenta anos, mais ou menos, mas
gostaria ao menos de expressar minha gratidão e meu apreço às
seguintes pessoas, pois sem sua amizade, apoio e inspiração este
livro não existiria:
Jenny Alexander, Gavin Brown, Alexander Cummins, Joseph De
Lappe, Gyrus, Amy Hale, Lou Hart, Ben Joffe, Christopher Josiffe,
Patricia MacCormack, Gordon MacLellan, Mike Magee, Christina
Oakley-Harrington, Rodney Orpheus, Estelle Seymour, Michael
Staley, Andrew Stenson, Nicholas Tharcher e Caroline Wise.
Gostaria de agradecer particularmente a Maria Strutz por seu
amor, paciência e habilidade infalível de remover os excessos em
parte do texto, e a David Southwell por sua clareza de pensamento,
pelas conversas inspiradoras (além do delicioso pudim de pão) e por
seu prefácio generoso.
SUMÁRIO

Agradecimentos
Prefácio
Introdução
Primeiros passos na Magia
Introdução
Primeira fase: da wicca a Éris
Segunda fase: Leeds
Terceira fase: Londres
o livro estúpido
Técnicas para analisar situações antes de intervir por meio da
feitiçaria
Usando técnicas oraculares
Nossa própria motivação
A situação ou o acontecimento
Perfil psicológico
Outras abordagens “mágicas”
Intuição
Oráculos
Análise SWOT
Conclusões
Resumo
Mexendo o caldeirão do caos
Sem o rumo de casa
Gnose
Trabalho e diversão
Brincando com o caos
Introdução
Reconsiderações sobre rituais políticos
Fora, demônios! Fora!
Magia de propaganda
Relatório Reachout
Magia no campo
É preciso amar O ramo de ouro?
Introdução
Rituais que dão errado
Por que alguns rituais não funcionam
Magia de resultados
Invocações
Não adotar uma postura adequada
Não se preocupar com banimento
Excesso de confiança
Ser medíocre
Tecer sonhos
Mentoria e professorado na pedagogia mágica
Dissidência em grupos de magia
Introdução
Experiências de saída
Processo de demonização
Bodes expiatórios em grupos
Sinais de transgressão
Reações do grupo à dissidência
A importância do apoio
Conclusão
Reflexões sobre práticas diárias
Introdução
Kundalini: uma abordagem pessoal
O país das maravilhas dos sentidos
Introdução
Admiração
Prática corporificada
Relacionalidade
O país das maravilhas dos sentidos
Início
Reconhecendo gurus
Nyasa
O louvor às flechas dos sentidos
Shakti
Devoção à Shakti-flecha
Conclusão
Tantra, sexo e imaginação transgressora
Introdução
Amor sob vontade
O retorno das deusas
Sexualidade e intimidade
Caminho adiante
Uma cláusula preocupante
Sodomia e realização espiritual
Baphomet queer
Biografia de um beijo
Introdução
O fantástico mundo de Lobsang Rampa
A publicação de The third eye
A reação da academia
Desmascaramento e reação
Rampa como “mistificador”
Rampa como “desmistificador”?
Tradição/modernidade
Rampa sobre a homossexualidade
Romanceando o tibete: The third eye como diário de viagem
A conexão extraterrestre
Algumas considerações finais
Elizabeth Sharpe e The secrets of the kaula circle
The India that is India
The secrets of the kaula circle
Rituais estranhos
Introdução
Sobre ficção e humor
Playmates
Com as duas mãos
Propaganda astral: uma ameaça ocultista moderna?
O fosso
Referências e recomendações de leitura
PREFÁCIO

David Southwell

Londres, abril de 2019

À
medida que fui envelhecendo, comecei a desconfiar de qualquer
alusão a viagens no tempo. Na melhor das hipóteses, aventurar-
se pela própria linha do tempo é um caminho cheio de
tribulações emocionais; na pior, lidar com todos os pontos de virada
hipotéticos, com todas as inevitáveis versões anteriores de nós
mesmos que acabamos encontrando, é a mais dura das angústias.
Isso tende a ser ainda mais perigoso para quem escreve. Voltando
poucas páginas ao passado, nos decepcionamos tanto com o que
vemos que acabamos sentindo uma vontade avassaladora de pôr
fogo em tudo que já escrevemos. Reduzir a cinzas —e aos
paradoxos decorrentes disso— todas as nossas palavras de outrora.
Nada é capaz de derrubar mais rápido os escudos da nostalgia, ou
erodir todo o conforto das memórias equivocadas, do que a
realidade encontrada quando temos de reler nossos trabalhos
antigos.
Poucas pessoas que escrevem têm a coragem de fazer a viagem
pela linha do tempo que Phil faz aqui. E pouquíssimas conseguiriam
voltar ao presente com um material tão bom. Além da praticidade de
reunir textos que normalmente teriam de ser caçados no sótão, em
caixas abarrotadas de revistas velhas de ocultismo e em arquivos
PDF duvidosos espalhados pela internet, este livro é uma narrativa e
uma contextualização. Espero que isto não seja o mais próximo de
uma autobiografia que teremos a oportunidade de ler, mas, se for, o
texto dá conta lindamente de documentar não só a vida de Phil
dentro do paganismo, mas também a evolução do cenário esotérico
em geral ao longo dos últimos quarenta anos.
A obra escrita de Phil sempre foi importante porque ele nunca foi
preguiçoso —sempre evita comentários simplistas e não se satisfaz
com sínteses banais. Ele nunca caiu na armadilha de fazer
guerrinhas de status entre magistas com textos que
presunçosamente dessem a entender que ele sabia mais do que
outras pessoas e que provaria seu valor com um ensaio de 3 mil
palavras. Phil foi sempre muito gentil ao confiar que as pessoas que
o leem são tão inteligentes quanto ele. Transparece em seus textos a
alegria genuína que ele sente ao compartilhar suas observações e
informações. Seu trabalho histórico é erudito e acessível, capaz de
equilibrar clareza intelectual e entretenimento. Fazer um curso sobre
mistérios arcanos raramente será mais divertido do que ler os
ensaios sobre Lobsang Rampa e Elizabeth Sharpe incluídos aqui.
Poucas pessoas oferecem caminhos melhores para a compreensão
do tantra do que Phil oferece nestes ensaios e conversas, caminhos
que podem ser percorridos ao mesmo tempo tanto por pessoas já
estudiosas quanto por quem está começando agora.
Como esta coletânea bem demonstra, ele tem a grande habilidade
de usar o humor para destruir qualquer chance de soar pomposo,
podando qualquer tentativa de projetarem nele um status de guru. A
sagacidade de seu humor também ajuda a criar um material que
propicia saltos de entendimento esclarecedores tanto por meio do
sentir como a partir de fatos. A maioria dos textos sobre ocultismo é
estéril —tem a capacidade de impressionar em nível intelectual, mas
raramente de provocar a mesma comoção que a magia provoca.
Essa capacidade é típica da escrita de Phil Hine, pois oferece um
tecido conjuntivo forte e emocionante.
Muitos dos textos incluídos neste volume foram lançados ao
mundo pela primeira vez em uma época na qual se conectar e
aprender com uma comunidade ocultista ampla era muito mais difícil
do que qualquer pessoa nascida na era da internet pode imaginar,
especialmente para quem se criou em ocupações habitacionais na
periferia. Os zines eram devorados, e cada ponto de tinta era
lavrado em busca de possíveis conhecimentos ou instruções úteis.
Isolado de pessoas capazes de me dar alguma mentoria ou de
amizades que tinham mais conhecimento, eu lia essas publicações
querendo aprender, querendo me conectar com quem entendia os
lugares marginalizados que minha própria prática de magia ocupava
—querendo saber mais de quem realmente entendia não só como a
magia funcionava, mas também qual sensação ela proporcionava.
Phil foi uma das principais vozes que descobri em jornadas diárias
para Londres, quando ia até a livraria Compendium no bairro de
Camden para comprar o maior número de exemplares da Nox ou da
Pagan News que eu pudesse encontrar. Suas palavras vinham das
paisagens maltratadas e arruinadas que eu conhecia; ele fazia piada
da pose classista que me revoltava. Phil construiu lugares
emocionantes e acolhedores para pensar sobre magia e praticá-la,
lugares que pouca gente oferecia. Esta coletânea demonstra com
clareza por que seu trabalho se encaixou na minha vida e na de tanta
gente, por que foi tão importante. Mais do que isso, também prova
que, ao fazer o passado conversar com o presente e abrir os portais
do sublime —assim como tirar sarro de tudo para que mantenhamos
os pés no chão enquanto a realidade se distorce à nossa volta—, a
voz de Phil segue plena e inigualável.
INTRODUÇÃO

E
m 2019 fez quarenta anos que comecei a escrever sobre
ocultismo em geral e os aspectos práticos de várias
abordagens mágicas, e esse me pareceu um bom momento
para comemorar minha trajetória com uma antologia de ensaios
sobre uma gama de assuntos. Embora eu seja mais conhecido por
meus três livros sobre magia do caos (Caos condensado, Caos
primordial e Pseudonomicon, publicados originalmente pela editora
The Original Falcon), todos escritos durante a década de 1990, achei
que essa seria uma oportunidade para dar destaque a alguns dos
escritos que antecederam e sucederam esses livros. Boa parte do
material mais antigo foi publicada em revistas ocultistas de pequena
escala, um tipo de publicação que floresceu nos anos 1980 e que,
em sua maioria, foi suplantado pelo surgimento da internet.
Selecionar ensaios para uma coletânea seria uma tarefa
relativamente fácil, mas eu queria fazer mais que isso. Eu queria
mostrar com esse material como minhas ideias e concepções sobre
assuntos específicos foram mudando ao longo dos anos. Para cada
seção, tentei selecionar ensaios que refletissem, de alguma forma,
mudanças de ideias e do que busquei enfatizar com o passar do
tempo. Também quis aproveitar essa oportunidade para refletir sobre
o que me motivou a escrever cada ensaio —o que estava
acontecendo na minha vida enquanto os escrevia— e oferecer
algumas reflexões autobiográficas sobre minha passagem da wicca à
magia do caos e além.
Passei a enxergar a escrita como um processo mágico importante.
Para mim, ela é um enraizamento —um tipo de ponto-final em
qualquer empreitada mágica—, uma oportunidade de fazer uma
pausa, refletir ou tentar entender algo que finalmente possa ser
articulado de modo a fazer sentido para outras pessoas. Embora a
atividade da escrita possa ser muito frustrante às vezes, também é
reconfortante e, em alguns raros momentos, parece se fazer
sozinha, sem muitas contribuições conscientes da minha parte.
Uma nota sobre o título: “Variedades de Hine” (Hine’s Varieties) é
uma paródia irônica do famoso slogan “Heinz 57 Varieties” da
empresa H. J. Heinz. Por causa da semelhança sonora do meu nome
com o da empresa, durante toda minha infância, outras crianças se
divertiam me comparando a um ou outro produto da Heinz; então,
para mim, me apropriar dessa associação é um pequeno gesto de
provocação.
PRIMEIROS PASSOS NA
MAGIA

P
or que me interessei pelo oculto, para começo de conversa? O
que despertou meu interesse pela prática mágica? Eu não me
sentia nada atraído por essas coisas até os últimos anos da
adolescência, embora a obra de Carl Gustav Jung já me chamasse a
atenção. Um dia, na biblioteca da escola, eu estava folheando
despretensiosamente um exemplar de Man, Myth and Magic
procurando fotos de bruxas nuas (como é de se esperar) e me
deparei com uma obra do artista ocultista Austin Osman Spare.[1] A
imagem me chamou a atenção. Ela me remeteu a algumas ideias de
Jung sobre as quais eu andava lendo, e comecei a me interessar
pelo ocultismo —algo que eu menosprezava até então.
Passei horas na biblioteca local, onde as prateleiras sobre
ocultismo tinham, sobretudo, romances de Dennis Wheatley,
clássicos espiritualistas e uma boa quantidade de literatura teosófica
—os escritos de Madame Blavatsky, Annie Besant e Charles
Webster Leadbeater. O primeiro livro de magia prática que consegui
compreender foi um clássico de David Conway, Magic: An Occult
Primer, de 1972.
Meu primeiro ato de magia foi uma maldição. Na época, eu era
aficionado por jogos de guerra de fantasia e, depois de sofrer uma
derrota particularmente humilhante contra um dos meus amigos, que
ele coroou com alguma zombaria do tipo “Vai fazer o quê, me jogar
um feitiço?”, respondi veementemente que era isso mesmo que eu ia
fazer. Me inspirei em um programa de televisão novo na época, uma
adaptação moderna do conto clássico de M. R. James, “Casting the
Runes” (ITV Playhouse, 1979), numa cena que mostrava uma mulher
ameaçada por uma forma-pensamento de aranha gigante. Fiquei
acordado a noite inteira visualizando uma forma sombria pairando
sobre a cama do meu amigo. Uns dias depois eu o encontrei, e ele
disse que ficou pensando se eu havia “feito alguma coisa”, porque
ele teve pesadelos horríveis naquela noite. Senti certa satisfação ao
ouvir isso, o que diz muito de como andava meu estado mental na
época.
Um tempo depois, naquele mesmo ano, saí da minha cidade natal
e me mudei para Huddersfield, em West Yorkshire, para fazer uma
faculdade de três anos em ciências comportamentais (psicologia,
sociologia e filosofia) na Politécnica de Huddersfield. Foi ao sair de
casa que tive contato com a subcultura ocultista mais ampla no Reino
Unido.
O curso em que me matriculei atraía uma grande quantidade de
pessoas mais velhas, e vim a descobrir que algumas delas se
interessavam por ocultismo. Um dos meus colegas tinha sido, por
pouco tempo, membro da Cubic Stone (Pedra Cúbica), uma ordem
mágica inglesa especializada em magia enoquiana, e ele tinha uma
irmã mais velha que ainda estava envolvida com o grupo. A ordem
tinha um curso por correspondência —um tipo de treinamento básico
que, depois de completo, permitia que a gente se candidatasse a
membro. Fiz o curso em 1980 e logo comecei a praticar o pilar do
meio e o ritual menor de banimento do pentagrama no porão do
alojamento estudantil onde morava.
Já tinha me tornado membro da Sociedade Teosófica a essa altura
e, indo até lá na cidade vizinha de Leeds, comecei a frequentar
assembleias pagãs e a visitar uma das poucas livrarias ocultistas do
país na época, a The Sorcerer’s Apprentice, também em Leeds.
A loja, com suas janelas fumê e porta cortinada, tinha ares de
coisa proibida quando vista de fora, com uma atmosfera de
decadência urbana que na época era associada a sex shops. Logo
me tornei frequentador assíduo e comecei a usar o dinheiro da minha
bolsa estudantil para formar uma biblioteca particular.
Foi por meio da The Sorcerer’s Apprentice que cheguei pela
primeira vez aos dois volumes finos que, alguns anos depois, viriam a
ser considerados os dois textos fundamentais do movimento da
magia do caos: Liber Null, de Peter J. Carroll, e O livro dos
resultados, de Ray Sherwin. Logo comecei a fazer experimentos
com o método de sigilação de Sherwin, o que me rendeu umas
advertências do mentor no curso da Pedra Cúbica, que disse que
esse tipo de magia prática era perigoso e que iniciantes não
deveriam se arriscar. Ele também me deu bronca (por carta, com
caneta vermelha e um monte de pontos de exclamação) por escrever
“magick” em vez de “magic”,[2] dizendo que isso era coisa que só os
thelemitas faziam e que Pedra Cúbica não era thelemita! Continuei
fazendo meus experimentos mesmo assim. Eu não acreditava que
sigilos —ou que a magia em geral, na verdade— pudessem ser algo
perigoso, o que provavelmente era uma crença oriunda dos meus
estudos de psicologia.
A primeira experiência que tive com coisas estranhas na magia
ritualística foi minha tentativa de evocar o Grande Ancião Yog-
Sothoth de cima de um monte. Eu havia descoberto a obra de ficção
de H. P. Lovecraft, e um aspecto de sua escrita com o qual sentia
muita afinidade era o tipo de descrição que ele fazia de áreas rurais
e paisagens. Eu gostava muito de caminhar sozinho naquela época e
decidi aproveitar que morava perto de umas montanhas para evocar
um dos Grandes Anciões. Posso dizer com segurança que eu não
tinha a menor ideia do que eu estava fazendo, e não registrei em
meu diário de magia da época os detalhes exatos daquele ritual
noturno. O que me lembro mesmo é de ter visto um raio de luz
descendo das estrelas e atingindo uma das pedras mais baixas do
pico onde eu estava... Naquele momento, simplesmente saí
correndo. Fragmentos de memória persistem: eu correndo em pânico
morro abaixo, tentando não tropeçar nas pedras. Minha lanterna
balançando e às vezes iluminando o rosto das ovelhas em volta. Fui
parar, balbuciando coisas sem sentido, na casa de um colega que
morava do outro lado da vila. Ele me disse, com ar presunçoso, que
imaginava que acabaria acontecendo alguma coisa do tipo.
Hoje em dia, a magia lovecraftiana tende a ser classificada por
algumas pessoas como um subgênero da magia do caos, mas não
era o que eu pensava na época. Eu ainda não havia absorvido a ideia
de que podiam existir diferentes estilos ou abordagens de magia —
tudo era novo e empolgante demais para entrar nessas distinções.
No início de 1981, depois de terminar o curso de psicologia, voltei
para minha cidade natal. Um dia, folheando revistas de ocultismo,
esbarrei no classificado de um coven wicca recrutando pessoas
interessadas, e tinha um número de telefone. Brincando com a sorte,
liguei para o tal número e fui convidado para uma reunião. Esse
acabou sendo o ponto de virada da minha trajetória no ocultismo,
pois conheci não só a alta sacerdotisa do coven wicca no qual me
iniciei mais tarde, como também Richard Bartle-Bertelli (conhecido
como “O Mago de Dewsbury”), que se tornou, alguns anos depois,
um mentor para mim.
K., a alta sacerdotisa do coven, morava com o marido e os dois
filhos em uma casa grande em uma área isolada. Ao longo daquele
ano, passei a visitá-la várias vezes por semana, e ela começou a me
ensinar magia básica: como montar um altar, como desembainhar
uma espada mágica e como fazer um círculo. Sempre que queria me
ensinar algo especialmente importante, K. me levava para caminhar
pela praia ou pelas dunas no litoral, ou às vezes nos escondíamos
nos arbustos de seu jardim exuberante. Comecei a escrever um livro
das sombras e fiz vários exercícios para desenvolver uma relação
com os elementos. Mostrei a K. tanto o Liber Null quanto o Livro dos
resultados, e ela me incentivou a continuar experimentando com
essas novas abordagens mágicas. Eu havia acabado de ler o
romance O homem dos dados, de Luke Rhinehart, e estava fazendo
experimentos com dados para tomar decisões ou exercitar a magia.
Foi nessa época que escrevi meu primeiro artigo para a revista
The Lamp of Thoth, que era publicada pela livraria The Sorcerer’s
Apprentice. O editor (e dono) Chris Bray me mandou uma carta me
incentivando a escrever mais —minha primeira crítica positiva. O
artigo, chamado “The Dark Night of the Soul” [A noite escura da
alma], era um breve relato de como lidar com crises de
insensibilidade e desânimo espiritual. Esse velho artigo está
espalhado pela internet, apesar de agora —por conta desses
processos estranhos pelos quais textos saltam do papel para o
digital— ser geralmente atribuído a um certo Fra. Apfelmann, que foi
quem o transcreveu ou postou em um fórum pela primeira vez.
Mais tarde, naquele mesmo ano, fui formalmente iniciado no coven.
Relatei esse acontecimento —e a reviravolta subsequente— em
Caos primordial. Basicamente, fui iniciado no coven e, uns dias
depois, me informaram que a iniciação tinha sido um erro, que eu não
tinha o temperamento correto para a prática de magia e que não
deveria tentar fazer qualquer tipo de trabalho mágico dali em diante.
É difícil explicar a sensação de choque e decepção que senti
quando me disseram isso e, não muito depois, acabei saindo da
Inglaterra para trabalhar em um kibutz em Israel. Continuei meus
estudos de magia lá, tanto pelo material introdutório da Pedra Cúbica
quanto pelo Liber MMM, o programa de treinamento do Liber Null, e
encontrei áreas remotas para praticar rituais. Também escrevi alguns
artigos curtos que saíram na revista The Lamp of Thoth.
Estar em Israel naquele momento era algo empolgante e, às
vezes, angustiante —a Guerra das Malvinas entre a Grã-Bretanha e
a Argentina eclodiu enquanto eu estava lá, e uma vez um kibutz que
eu estava visitando perto da fronteira com o Líbano sofreu um
bombardeio. Havia áreas onde era perigoso transitar por causa de
minas não sinalizadas, e me acostumei a ver soldados por todo lado.
Talvez até tivesse passado mais tempo por lá, não fosse pela
invasão do Líbano em 1982, que foi a deixa para eu voltar para a
Inglaterra.
Em 1982, eu estava morando em uma pequena vila em
Lincolnshire. Apesar da minha intenção de dar um tempo de qualquer
coisa relacionada com o ocultismo, foi ali que tive encontros
recorrentes em sonhos com a deusa tântrica Kali (ver a “Introdução”
na seção Tantra deste livro). Passei boa parte do ano visitando
pessoas que não eram ocultistas, pegando carona pela Inglaterra,
mas sentia que os sonhos com Kali estavam me chamando de volta
ao mundo do ocultismo.
De Lincolnshire, me mudei para Nottingham para cursar enfermaria
psiquiátrica. Continuei a escrever e, em 1983, alcancei mais um
marco na minha trajetória: ser pago para escrever —no caso, um
artigo que saiu na revista White Dwarf, da Games Workshop,
intitulado “Sorcerous Symbols” [Símbolos de feitiçaria], no qual juntei
meu interesse pelo ocultismo ao amor pelos RPGs de fantasia. Era
uma tentativa de encaixar a metodologia de sigilos de Austin Osman
Spare na mecânica de jogo de Advanced Dungeons & Dragons.
Enquanto estava em Nottingham, me envolvi com um grupo de teatro
experimental que, em diferentes ocasiões, usava o nome “O Teatro
do Vudu”. Fizemos coisas interessantes com máscaras e possessão,
inspirados pelo livro Impro (1979), de Keith Johnstone, que ainda
considero ser uma referência maravilhosa para qualquer pessoa
interessada em rituais criativos, principalmente quanto ao uso de
máscaras. Apesar de algo do trabalho com esse grupo ter
influenciado minha prática mais tarde, na época eu não entendia de
fato a conexão entre o teatro de improvisação e rituais de magia.
Mais tarde, em 1983, troquei o curso de enfermaria psiquiátrica
por terapia ocupacional em York. Nessa época, eu já estava de novo
em contato com K. e seu coven. Haviam se mudado para
Macclesfield, no norte da Inglaterra. Recebi uma carta de K., do
nada, perguntando se eu queria continuar trabalhando com o grupo.
A minha iniciação “fracassada”, segundo ela, foi um teste proposital
para tentar me tirar um pouco da obsessão que eu tinha na época
por tudo que se relacionasse ao ocultismo. Em retrospecto, não
tenho certeza se essa tentativa foi bem-sucedida, mas é provável
que tenha sido o que eu precisava. Voltei para o coven com muito
mais confiança nas habilidades que eu vinha desenvolvendo e percebi
que havia parado de pensar em magia em termos mais psicológicos
e começado a tomar meu próprio rumo. Comecei a frequentar o
coven regularmente, assim como vários festivais de misticismo na
região. Não eram bem eventos de ocultismo ou paganismo, mas
costumavam ser frequentados por wiccas locais para trocar notícias
e fofocas, e foi nessas ocasiões que comecei a conhecer outras
pessoas paganistas e ocultistas. Isso foi importante porque, ao
ampliar meu círculo social, também encontrei pessoas com
perspectivas diferentes.
Considerando minha associação futura com a magia do caos e
certo grau de notoriedade que ganhei por conta de inovações em
magia (ou pelo menos por contestar “verdades” sagradas), agora
parece estranho eu ter passado os primeiros anos da minha vida
ocultista sem questionar muito o conhecimento que obtive através de
livros e das pessoas que foram minhas professoras. Embora eu
achasse o mundo da magia muito sedutor e empolgante, não tinha
autoconfiança suficiente para dar meus próprios passos. Também
acabava ficando razoavelmente isolado, pois eu tinha um número
limitado de contatos com quem conversar, e a maioria das pessoas
que eu conhecia parecia ser, a meu ver, muito mais experiente e ter
muito mais conhecimento do que eu. Conhecia só uma ou duas
pessoas com quem sentia que podia relaxar e conversar em pé de
igualdade. Mas esse isolamento foi benéfico, de certa forma. Hoje
em dia, qualquer magista iniciante que queira conselhos de colegas
antes de embarcar em seus experimentos mágicos pode fazer isso
pela internet. Quando comecei a participar de discussões em fóruns
de ocultismo como o Barbelith ou o Liminal Nation, várias vezes
percebi que as perguntas levavam a algumas discussões
interessantes sobre ser aconselhável ou não fazer certos rituais. No
entanto, o que me chamou a atenção mais de uma vez foi o fato de
as pessoas que pediam orientação serem desencorajadas a tentar
coisas novas. Se a internet estivesse disponível no início dos anos
1980, provavelmente teriam me convencido a não tentar evocar Yog-
Sothoth nas colinas de West Yorkshire. Como não tinha ninguém
para me dizer que eu não devia tentar, simplesmente fui lá e fiz —
uma iniciativa à experimentação que tem me servido bem desde
aquela época.
PARTE I
CAOS
INTRODUÇÃO

Primeira fase: da wicca a Éris

C
omo mencionei antes, meu primeiro contato com as obras de
Peter J. Carroll e Ray Sherwin foi em 1980, mas na verdade,
desconsiderando uma ou outra experiência com sigilos, só fui
lidar de fato com a magia do caos anos depois. Em 1985, eu estava
morando em uma comunidade punk/hippie nos arredores de York e
estudando terapia ocupacional. Os dois fatos influenciaram
posteriormente, cada uma à sua maneira, o modo como eu viria a
praticar magia do caos. Embora, no geral, eu ainda estivesse
bastante envolvido com a wicca nessa época, estava começando a
me afastar dela.
Em meio aos círculos sociais da comunidade em York, conheci
algumas pessoas envolvidas na cena alternativa do Reino Unido.
Hippies velhos, punks jovens, uma galera “alternativa” com o cabelo
todo colorido e um jeito descontraído de encarar a vida que era
muito diferente de como a encarava a maioria das pessoas que eu
havia conhecido pela wicca —a maior parte era gente da classe
trabalhadora que, apesar do interesse em ocultismo, tinha uma visão
de mundo mais conservadora. O coven que havia me iniciado em
1981 —que me expulsou e depois me readmitiu— se preocupava
demais em manter segredo. Por exemplo, me diziam para não deixar
nenhum dos meus livros de ocultismo à vista. Me proibiam de falar
sobre meu envolvimento com o ocultismo com quem não fosse
praticante, a ponto de dizer que, se outras pessoas perguntassem
pelo meu interesse no assunto, eu deveria negar que sabia qualquer
coisa e evitar falar com elas. Segui essas recomendações por um
tempo, mas comecei a ficar cada vez mais cansado dessas
restrições e descobri, aos poucos, que na verdade eu gostava de
falar com as pessoas sobre ocultismo. Afinal, era uma paixão minha,
tão central para a minha identidade pessoal que, mais cedo ou mais
tarde, não teria como evitar falar do assunto. E, na maioria das
vezes, as pessoas com quem eu falava reagiam de forma bastante
positiva. Podiam até não concordar com as minhas ideias, mas
também não saíam correndo aos gritos.
Foi durante esse período que eu li a trilogia Illuminatus!, de Robert
Anton Wilson e Robert Shea, e parte da obra de não ficção de
Wilson. Isso me levou a comprar um exemplar do Principia
Discordia, e me identifiquei muito com a ideia de uma deusa do caos
zombeteira —Éris. No equinócio de outono de 1985, consegui
convencer o coven a me ajudar a fazer um ritual para invocá-la. No
dia seguinte, enquanto esperava um trem na estação de Stockport,
“canalizei” uma mensagem de Éris, “O livro estúpido”. Pela primeira
vez, comecei a sentir que estava “indo a algum lugar”, embora eu
não tivesse certeza de que lugar era esse e nem de qual era o
caminho até ele. Mais rituais com Éris vieram e, embora eles fossem
quase sempre estruturados no estilo de magia ritualística que eu
havia aprendido no coven, eu estava começando a “experimentar” —
com o tempo, passei a usar um pentagrama feito de curvas (o
“pentagrama espiral” mencionado em Caos primordial) e sequências
de movimentos energéticos do tai chi. Ao mesmo tempo, estava
espalhando a palavra de Éris, por assim dizer, entre as pessoas que
eu conhecia na cena alternativa de York —por mais que a maioria
delas ainda achasse o ocultismo sem graça e entediante, essas
pessoas não tinham problema algum em aceitar a ideia de uma
deusa do caos excêntrica e caprichosa que pode ser invocada por
meio de ações aleatórias meio bobas. Uma vez, a bicicleta de uma
amiga foi roubada na frente do prédio da União Estudantil. Ela
espalhou um cartaz declarando que era uma “bruxa erisiana” e que a
bicicleta era seu familiar. Em uma faculdade com um grupo grande e
forte de cristãos, essa foi uma jogada corajosa, mas a bicicleta
reapareceu rapidinho. Naquele mesmo ano, participei de uma
performance em uma boate de York onde outra amiga foi declarada
a Papisa da Discórdia de York e recebeu um monte de papéis como
comprovação. Eu estava começando a entender outra lição
importante, que mais tarde faria parte do meu modo de lidar com a
magia do caos: a diversão, arte de não levar a magia —e, por
extensão, não me levar— a sério demais.
Quero voltar ao assunto do curso de terapia ocupacional, pois
acredito que os princípios que aprendi a usar no ambiente clínico
também moldaram algumas das minhas ideias sobre magia do caos.
É verdade que meu interesse em dinâmicas de grupo e rituais
criativos foi muito influenciado pela minha bagagem de terapia
ocupacional aplicada a grupos. Durante alguns anos, ministrei
oficinas no Reino Unido, em outras partes da Europa e nos EUA que
se baseavam muito nessa experiência. Basicamente, eu pegava
exercícios de dramatização usados em terapia e adaptava para o
ocultismo, mas não era só isso. A terapia ocupacional usa uma
abordagem multidisciplinar para resolver problemas de pessoas
específicas. Por exemplo, terapeutas podem ter clientes que se dão
melhor com o método psicanalítico, bem como clientes que lidam
melhor com a terapia comportamental. Ambos os métodos de
tratamento têm seus pontos fracos e fortes —o importante é saber
quando aplicar cada um.
Também há uma ênfase importante na avaliação: ser capaz de
avaliar os resultados práticos do tratamento e a efetividade de quem
aplicou esse ou aquele método de terapia.
Acredito que todos esses temas estejam bem aparentes tanto em
Caos condensado quanto em Caos primordial. Embora eu tenha
decidido não seguir carreira em terapia ocupacional depois de
completar os três anos do curso de formação, muito do que aprendi
(o que incluía uma gama ampla de habilidades práticas, desde
marcenaria até o uso de computadores) apareceu mais tarde no meu
trabalho com magia, seja promovendo oficinas ou atividades em
grupo, seja atendendo clientes diretamente como magista.
Foi em novembro de 1985 que certos acontecimentos por fim me
levaram a sair do coven. Foi feito um ritual com o qual a liderança do
coven estava muito envolvida emocionalmente. Na noite anterior,
algumas das pessoas convidadas para a ocasião foram muito
agressivas, verbal e fisicamente, acusando outras pessoas
presentes de “praticarem magia negra” ou de estarem “possuídas
pelo demônio”. Essa atmosfera não era favorável para um bom
trabalho de magia, pelo menos não na minha opinião. Eu realmente
não queria fazer ritual nenhum naquele ambiente, mas senti que não
tinha escolha.
Logo depois do ritual, eu quis fugir do clima de hostilidade que
havia se formado no ambiente. Me deitei em um dos quartos e tentei
me conduzir, via pathworking, a um lugar mais acolhedor. Algum
tempo depois, fui trazido de volta ao presente no susto: uma das
pessoas que participaram do ritual estava sentada acima da minha
cabeça, uma perna de cada lado, movimentando um atame bem na
frente do meu rosto. Aparentemente, haviam entendido o fato de eu
estar deitado sozinho em um quarto, sem atender ao ser chamado,
como sinal de que eu estava “sob ataque de demônios”. Passei o
resto da noite em outra casa, oscilando entre sentimentos de
confusão e fúria.
Isso devia ter sido suficiente, mas não. No dia seguinte, fui embora
para York o mais cedo possível e simplesmente me recusei a
participar de um outro evento que estava planejado. A confiança que
eu havia depositado no coven tinha se despedaçado por completo, e
eu não queria mais saber de dramas ocultistas. Uns dois dias depois,
recebi uma carta dizendo que as outras pessoas do coven haviam
recebido uma mensagem astral de que eu seria atacado de novo por
demônios. Elas tinham inclusive estacionado no meio da estrada e
feito algum tipo de ritual improvisado ali mesmo, pois meu corpo
astral estava em perigo iminente de ser destruído! Também me
deram muitos “conselhos” sobre como meu interesse em caos, Kali
etc. estava me levando a lugares perigosos... Mas eu já havia
parado de escutá-las naquele momento. Felizmente, eu tinha um
amigo —o finado Richard Bartle-Bertelli— que era uma espécie de
mentor para mim, embora sempre que eu demonstrava que ele era
um professor para mim, ele dava de ombros e dizia que éramos só
dois magistas compartilhando pensamentos e ideias. Richard era
gentil, pé no chão e não padecia do mal de se levar a sério demais.
Além disso, ele conhecia a maioria das pessoas envolvidas naquela
série de acontecimentos. Depois de explicar a situação, o que eu
estava sentindo e a carta esquisita, ele basicamente disse: “Essas
pessoas são malucas. Você não precisa disso. Fique longe delas”. E
foi isso o que eu fiz.

Segunda fase: Leeds

Em 1986, me mudei para a cidade de Leeds, no norte da Inglaterra.


Em meados da década de 1980, Leeds era um caldeirão de
possibilidades para a magia. Além da “cena caoista” que se expandia
na cidade, mesmo que de forma decentralizada, também estavam
por lá pessoas que participavam de grupos como a Arcane and
Magickal Order of the Knights of Shambhala, a Esoteric Order of
Dagon e a Typhonian Ordo Templis Orientis. Boa parte dessas
atividades giravam em torno da Sociedade Ocultista da Universidade
de Leeds. Esses vários grupos também não se isolavam entre si, e
eu me joguei na animada vida social do lugar.
Leeds também tinha uma cena alternativa: havia várias ocupações
por lá e toda uma rede de pessoas envolvidas em organizar espaços
comunitários. Anarcopunks andavam com pessoas góticas, ativistas
do veganismo ou que faziam parte da cena musical independente, e
como muita gente estava desempregada, havia uma rede ampla de
pessoas prontas para ajudar iniciantes como eu a navegar por essa
dinâmica que mais parecia os labirintos da burocracia governamental.
Mas devo admitir que tudo isso também era meio assustador. Alguns
dias depois que me mudei para a cidade, as bandas Chumbawamba
e Conflict fizeram um show na universidade que acabou em tumulto,
e passei minha primeira noite em Leeds no porão da casa de um
amigo, enquanto várias pessoas trocavam relatos de conflitos com a
polícia envolvendo tijolos e garrafas, e eu não estava muito
preparado para isso. O que me impressionou muito no pessoal das
ocupações, no entanto, foi o fato de as pessoas fazerem tudo
acontecer e também de haver muita gente desenvolvendo coisas
interessantes com teatro de rua e paródias. Por mais que eu
estivesse no meio de uma cena ocultista intensa, eu também vivia à
margem dela, pois fazia parte dessa cena livre e anarcopunk das
ocupações, e havia certo intercâmbio entre as duas comunidades.
Nessa época, mais três livros foram lançados por nomes que
haviam se tornado sinônimos de magia do caos: Psiconauta (1982),
de Peter J. Carroll, The Theatre of Magick (1982), de Ray Sherwin,
e Cardinal Rites of Chaos (1984), de Paula Pagani. Também
começaram a circular mais revistas ocultistas de pequena tiragem,
como Chaos International, Formaos, Nuit-Isis e Nox, além dos zines
já estabelecidos como The Lamp of Thoth, nos quais os parâmetros
da magia do caos, como uma corrente de magia ciente de ser
“nova”, estavam sendo explorados, debatidos e, em alguns casos,
contestados. Muita gente que escrevia parecia ficar chocada com a
simples palavra “caos”. William Gray, por exemplo, em seu livro
Between Good & Evil: Polarities of Power, de 1989, disse que a
magia do caos era o equivalente espiritual da aids e uma “imundície
nuclear”.
Outras pessoas encrencavam com a ideia de que era possível
fazer magia com divindades e figuras tiradas da ficção, em vez de
mitologias “verdadeiras”, ou pareciam preocupadas que a “meninada
do caos” estivesse abandonando a moralidade tradicional. Rodavam
boatos misteriosos sobre a influência de um grupo que chamaram de
“Adeptos Sombrios da Atlântida”, e de alguns grupos que não haviam
sido “devidamente contatados” por eles. Não era muito diferente do
que acontecera na cena dos jogos de guerra quando apareceram as
miniaturas de fantasia. Quem jogava esse tipo de jogo nos anos
1970 costumava se ver como praticante de um hobby sério de
reconstrução histórica, e não —como acreditava o público geral—
como “homens adultos brincando de soldadinho”. Imagine só o
quanto eles ficaram horrorizados quando, no final dos anos 1970,
veio uma onda de garotos, em sua maioria adolescentes, que
começaram a frequentar os clubes de jogos de guerra munidos de
caixas de elfos, orcs e dragões. Dentro da “cena” ocultista, parecia
que, de repente, as pessoas tinham começado a brincar com muitas
“verdades” sagradas.
Uma das primeiras manifestações dessa nova onda de
pensamento do caos em que esbarrei foi The Chaochamber, de P.
D. Brown e Rodney Orpheus (com quem mais tarde fundei o Pagan
News). The Chaochamber —que tinha o pomposo subtítulo A
Quantum Sorcery Pathworking for Manipulative Magicks
[Pathworking de feitiçaria quântica para magia manipulativa]— era
uma abordagem de ficção científica à noção de templo astral. Em
vez usar o método comum pós-Golden Dawn de construir templos
astrais, a pessoa se deslocava pelos éteres em uma nave espacial
bizarra, meio steampunk, sugando potência caótica pura para dentro
de si. Era uma coisa criativa, inteligente e descolada, e tinha um
jeitão de do it yourself. Mais uma vez, isso me mostrou as
potencialidades de incorporar no meu universo mágico elementos que
estavam além do horizonte imediato do que se consideraria
“propriamente” ocultista.
Minha porta de entrada para o mundo “editorial” caoista apareceu
mais tarde, em 1986, com uma colaboração em grupo: Apikorsus:
An Essay on the Diverse Practices of Chaos Magick from the
Lincoln Order of Neuromancers (L.O.O.N.). Pelo menos parte do
impulso para fazer o Apikorsus veio de um grimório da satânica
Order of the Nine Angles, que vinha com o severo aviso de que
qualquer pessoa que tentasse fazer uma cópia do manuscrito seria
automaticamente atingida por uma maldição mortal. Decidimos
inverter essa ideia e publicar um “livro-corrente” de livre circulação:
quem gostasse do conteúdo deveria acrescentar alguma coisa à
obra e passar adiante. É claro que, diferentemente da maioria das
mensagens em corrente, não havia qualquer consequência negativa
para quem não fizesse isso; só pensamos que seria um jeito bem-
humorado de espalhar informação e nos divertir ao mesmo tempo.
Também tivemos a ideia de fazer uma ordem de magia do caos, a
Lincoln Order of Neuromancers, e logo surgiu uma enxurrada de
artigos, em várias revistas, escritos sob uma série de pseudônimos
de supostos membros desse grupo. Isso aconteceu na época em
que começamos a mandar exemplares do Apikorsus para várias
pessoas em localidades distantes e exóticas, como Londres. É difícil
dizer quanto isso tudo foi influenciado por nosso livro, mas acho até
pitoresco o fato de a Lincoln Order of Neuromancers agora aparecer
em pelo menos dois relatos históricos sobre o surgimento da magia
do caos —o livro de Nevill Drury, Stealing Fire from Heaven (2011),
e o livro de Gary Lachman, Estrela negra a pairar: ocultismo e poder
na era de Trump (2018). Essa ideia de “fazer por conta própria”, de
tornar as obras acessíveis, com baixo custo, foi outro elemento-
chave no desenvolvimento das minhas ideias sobre magia do caos.
Apesar de agora eu achar exageradas as comparações que faziam
entre a magia do caos e a cena punk do Reino Unido, havia na época
uma atmosfera de “qualquer pessoa pode fazer isso”.
Também foi em Leeds que comecei a escrever o projeto que
acabou se tornando —depois de várias versões— Caos primordial,
assim como a primeira versão de Caos condensado (originalmente
um livreto), embora eu estivesse tão pobre na época que nem sequer
tinha como pagar por uma publicação independente de baixo custo,
como fiz com a maior parte das minhas primeiras obras.

Terceira fase: Londres

Em 1991, me mudei de Leeds para Londres, o que impulsionou a


fase final do meu envolvimento com a magia do caos. Londres
também tinha uma cena de magia do caos agitada e promissora, e
naquela época eu já conhecia um número razoável de pessoas que
podiam me ajudar a me habituar na cidade. Me envolvi com
organizações de magia como a Fellowship of Isis (FOI), o Temple of
Psychic Youth (TOPY) e os Illuminates of Thanateros (IOT). Foi por
meio deste último que pude dar oficinas na Europa e, mais tarde, nos
Estados Unidos. Foi em grande parte graças ao finado Robert “Bob”
Williams, antigo coordenador regional da IOT nos Estados Unidos,
que acabei sendo publicado pela Falcon Press e tendo a
oportunidade de passar uma tarde na companhia de William S.
Burroughs. Já lia a obra de Burroughs desde o fim da adolescência e
havia escrito um ou outro artigo sobre suas ideias de magia, e a
chance de encontrá-lo era ao mesmo tempo motivo de empolgação e
ansiedade. Não ajudava o fato de Bob ficar cantarolando “Phil vai ver
o Will-IAM” repetidamente enquanto dirigia do aeroporto para a casa
de Burroughs em Lawrence, Kansas. Eu estava tão nervoso que,
quando Burroughs falou diretamente comigo pela primeira vez, não
consegui pôr para fora nada além de uma resposta gaguejada.
Depois de um tempo, acabei relaxando e deixei a conversa fluir —
embora tenha passado rápido, foi uma tarde inesquecível.
Ao longo dos anos 1990, porém, fui ficando cada vez mais crítico
em relação a algumas propostas da magia do caos que eu aceitava
antes. Meu interesse renovado no tantra me levou a questionar a
noção de que todas as técnicas de magia são universais, o que
implica que o contexto histórico ou cultural não faz diferença de fato.
Além disso, depois de escrever dois livros sobre o assunto, e mais
um livreto examinando abordagens de magia lovecraftiana a partir de
uma perspectiva caoista (Pseudonomicon), eu realmente entendi que
já tinha dito tudo o que queria dizer sobre os assuntos da magia do
caos, e que era hora de me afastar e fazer outra coisa.
O LIVRO ESTÚPIDO

“O livro estúpido” é uma mensagem que “canalizei” enquanto esperava um


trem na estação de Stockport, na Inglaterra, em 22 de setembro de 1985.
Foi na manhã seguinte a um dos meus primeiros rituais mais elaborados,
dedicado a invocar o poder da deusa Éris. Em retrospecto, é gritante a
influência de O livro da Lei, de Aleister Crowley, e de outros “escritos
canalizados” desse tipo. Apesar de eu ter considerado essa mensagem
pessoalmente significativa por alguns anos, relutei em revelar minha
autoria até agora.

E
ste Livro Burro é a Enunciação de Éris. Não me leia em voz
alta, pois é só nos silêncios entre os espaços que posso ser
ouvida.
Meu sacerdote é mudo, pois está arrebatado por meus beijos. Meus
lábios são gelo, o fogo (glifo de Shin) das minhas línguas queima em
sua fronte.
O passado não me conhece. Cada momento é um novo início. O
futuro está escrito nas dobras de minha toga. E dela me despi; as
possibilidades de todas as coisas ainda não nascidas.
Em todas as coisas, adore a mim. O jogo amoroso de agonias e
êxtases. Esteja aqui comigo. Agora. Para sempre.
A matéria é meu parque de diversões. Eu faço e desfaço sem
pensar. Ria e venha a mim.
Meu sacerdote sabe meu nome secreto.
Deseje, digo-lhe, mas não buscando resultado, pois a ele estaria
preso. Venho a você despida. Meu corpo é delineado nas estrelas.
Não me procure fora, não me procure dentro.
Ao mesmo tempo sou a dançarina e a dança. Deixe que todas as
coisas se unam no nada.
O encenar da paixão entre visão e som: todas as coisas vão a
você pois nada recuso!
Sou o todo e o nenhum. Todas as cabalas são iguais. Não pense
em me vincular a uma só; pois eu sou nenhuma.
Não pense em idolatrar, pois lhe arrancarei todo peso. Você não
passa de uma pena de pavão no meu cabelo —entenda isso!
Sou a raiz de tudo que está por vir!
Você é a pupila dos meus olhos; ouro e prata.
O tolo já é meu. Que o Mago se torne um malabarista nas ruas.
Isso é mais honesto.
Que minha sacerdotisa seja a puta das sarjetas.
Não há mensagem neste livro!
Minhas árvores carregam um fruto estranho: partilhe, e partilhe em
igualdade.
Tudo é revelado em meu nome secreto.
TÉCNICAS PARA
ANALISAR SITUAÇÕES
ANTES DE INTERVIR
POR MEIO DA
FEITIÇARIA

Este ensaio foi escrito em 1996 e, pelo que me lembro, só veio a público
em uma das versões iniciais do meu primeiro site. As raízes deste texto
estão no trabalho mágico que realizei no final dos anos 1980 e início dos
anos 1990 com amigos em Leeds, depois em Londres, para encontrar
ferramentas que ajudassem magistas a pensar melhor no uso de feitiçaria
em suas intervenções, especialmente quando o trabalho envolve
problemas e questões alheias. Acho que hoje já se reconhece bastante a
importância desse tipo de abordagem, mas, na época em que discutimos
o assunto, havia pouco material disponível.

À
s vezes acho que a tentativa de influenciar uma situação por
meio da feitiçaria é algo semelhante à acupuntura —se
acertamos o ponto exato, obtemos o resultado desejado. O
problema, no entanto, é que esse “ponto exato” nem sempre é
evidente de imediato, pode mudar de um momento para outro, e é
bem improvável que seja o mesmo ponto quando tentarmos fazer
algo parecido de novo.
Quando diante de uma situação que parece favorável a
intervenções com feitiçaria, nossa tendência enquanto magistas é
basicamente agir por impulso. Por isso, podemos acabar nos
precipitando e tentando alterar a situação sem conhecê-la tanto
quanto deveríamos. Como uma pessoa prevenida vale por duas,
acredito que usar uma variedade de técnicas analíticas para chegar
à imagem mais completa possível da situação ajuda muito no
resultado de atos de magia —pode ser a diferença entre “atirar a
esmo” e mirar exatamente no que se quer alcançar.
Alguns anos atrás, uma pessoa me procurou pedindo ajuda mágica
para um indivíduo que seria julgado por uma série de acusações. Ela
descreveu brevemente a situação e pediu que o objetivo “ideal” da
magia fosse o indeferimento de todas as acusações. Sentindo que
ela não estava me contando a história toda, pedi a um excelente
oraculista amigo meu para fazer uma leitura de tarô sobre a
situação, na esperança de descobrir algumas “variáveis ocultas”.
Tudo que descobrimos nas cartas foi confirmado depois pela pessoa
que havia me procurado, e, na minha opinião, indicavam uma
probabilidade imensa de que todas as acusações não fossem
“indeferidas”. Com isso, mirei em um resultado que julguei ser mais
razoável, dadas as circunstâncias do caso.
O que estou querendo dizer é que as situações normalmente são
bem mais complexas e menos delineadas do que costumamos crer,
principalmente quando começamos a preparar o altar. Acredito que
um dos segredos da feitiçaria eficaz não é tanto aplicar “magia” a
uma situação, mas sim saber quando e como lançar mão do nosso
poder.
Uma amiga que eu e Frater GosaA temos em comum entrou em
depressão depois do término de um relacionamento de alguns anos.
Ela parou de sair, e sua autoconfiança parecia ter sido muito
afetada. Achamos que seria bom para ela conhecer pessoas novas e
interessantes e decidimos fazer um feitiço buscando esse resultado.
Se a pessoa não está saindo e socializando, a probabilidade de
conhecer “gente interessante” vai ser muito pequena. Além disso,
quando alguém se sente emocionalmente vulnerável e pouco
autoconfiante, é improvável que aproveite bem as oportunidades de
causar uma boa impressão. Então priorizamos um feitiço progressivo
que primeiro “daria um empurrãozinho” na autoestima dela e depois,
quando sua autoconfiança estivesse mais fortalecida, começaria a
operar em outros sentidos, se desdobrando em diversas variáveis da
situação de uma só vez.
Usando técnicas oraculares

Sistemas oraculares podem ser extremamente úteis na preparação


para uma intervenção ou para influenciar uma situação através da
feitiçaria. As áreas em que vale mais a pena considerar o uso
desses sistemas são:

Nossa própria motivação


Pode ser muito útil examinar o que nos motiva a fazer uma
intervenção, particularmente se houver outras pessoas envolvidas na
situação —se estivermos fazendo um trabalho em nome de alguém,
por exemplo. Já descobri algumas vezes, ao consultar uma série de
oráculos para questionar minha própria perspectiva sobre alguma
situação, que o resultado que eu desejava na verdade fechava meus
olhos para possibilidades alternativas, tanto em termos da
abordagem específica que eu havia escolhido para a situação,
quanto ser ou não apropriado eu me envolver nela.
Eu me lembro de uma vez ter recebido uma ligação muito
angustiada de uma pessoa com quem já havia me envolvido no
passado dizendo ter recebido pelo correio uma “maldição rúnica”,
enviada por outra pessoa com quem ela já havia se relacionado. Eu
estava tão imerso nas possibilidades de uso da Chave menor de
Salomão na época que lancei um bando de demônios na direção da
suposta fonte da maldição rúnica, sem parar para avaliar a situação
com mais profundidade. Só mais tarde fui descobrir que os fatos da
situação não batiam exatamente com o que me disseram nem com
as minhas conclusões precipitadas!

A situação ou o acontecimento
A consulta oracular pode expandir as informações sobre uma
situação de diferentes maneiras. Você pode, por exemplo, usar o
tarô para sondar “aspectos ocultos” e depois fazer outras leituras
sobre o que tiver surgido. Você pode descobrir como diferentes
aspectos de uma situação se relacionam de maneiras nada óbvias, e
quais podem ser os resultados da situação em diferentes cenários.
Se você se sentir uma pessoa particularmente corajosa, pode
sempre perguntar se sua intervenção mágica será capaz de
influenciar o resultado favoravelmente.

Perfil psicológico
Se você só dispõe de poucos detalhes sobre as principais pessoas
envolvidas em uma situação, pode construir um “perfil psicológico”
usando sistemas oraculares (astrologia natal pode ser bem útil
nesses casos) e usá-lo para investigar o comportamento, a atitude e
outros aspectos dessas pessoas. Esse tipo de perfil pode ser muito
útil quando buscamos pontos psíquicos fracos.

Outras abordagens “mágicas”

Além de sistemas oraculares como tarô, runas ou I Ching, existem


outras técnicas que podem nos ajudar a investigar as situações.

Intuição
Ao longo dos anos, me dei conta de que minha intuição é
razoavelmente bem desenvolvida, e que desconsiderá-la é arriscar
com a minha sorte. Por outro lado, se apoiar demais na intuição
pode ser algo perigoso. Não devemos deixar de considerar outras
perspectivas e possibilidades só porque intuímos qual seria a melhor
abordagem para uma situação específica. Além disso —e, como boa
parte das práticas de magia, esta é uma questão pessoal—, gosto
de tentar descobrir (às vezes com a sabedoria da experiência) a
“razão” do que foi concluído a partir da intuição. É possível treinar a
nossa intuição para que ela funcione mais efetivamente a nosso
favor, e nos afastarmos um pouco da situação para examiná-la mais
friamente (em vez de permanecermos envolvidos nela) pode ser um
bom começo.

Oráculos
Podemos recorrer a diversas formas de oráculo, desde
metaprogramar nossos sonhos usando sigilos e servidores a falar
com espíritos em visões ou questionar uma entidade por meios
astrais ou via agentes humanos. Já recebi (porém muito raramente,
admito) “pistas” de um familiar espiritual sobre como poderia
conduzir um trabalho específico, mas não gostaria de me apoiar só
nesse tipo de fonte.

Análise SWOT
A análise SWOT, também conhecida em português pela sigla FOFA,
se refere a forças, oportunidades, fraquezas e ameaças. Pode ser
útil analisar uma situação sob esses quatro aspectos.

Pontos fortes
A questão aqui é olhar para os pontos fortes da sua posição em
relação ao resultado —qualquer coisa presente na situação que
possa ajudar a manifestar a sua “declaração de intento”.
Informações específicas nas quais você pode se concentrar nesse
sentido incluem tudo aquilo que você souber ou inferir sobre
emoções, comportamentos e/ou pré-disposições das pessoas
envolvidas; como o tempo pode influenciar a situação (por exemplo,
deixar a situação de lado por um mês pode ser mais eficaz do que
começar imediatamente); ou como eventos relacionados
indiretamente à situação podem ajudar.
Outro ponto que deve ser considerado: dada a sua declaração de
intento, quais são os possíveis caminhos de manifestação do
resultado? Se você está prestes a provocar o colapso de uma
corporação multinacional que pretende transformar o seu local
sagrado em um estacionamento, você já identificou os possíveis
pontos fracos na estrutura corporativa que, se levemente
“cutucados”, poderiam levar à sua derrubada? Ou, em uma outra
perspectiva, se quer fazer um feitiço para encontrar o rapaz/a
moça/o pinguim dos seus sonhos, você está fazendo algo para
permitir que esse modelo ideal saia dos seus sonhos e entre na sua
vida?

Pontos fracos
Você deve considerar como pontos fracos quaisquer coisas que
diminuam a probabilidade de o resultado almejado se realizar. Esse é
um bom momento, quem sabe, para examinar o que você deseja e
considerar se não estaria mirando longe demais, ainda que só
inicialmente. Por exemplo: o que você está tentando fazer não vai
muito além do que se pode esperar? É plausível esperar por um
resultado instantâneo se os limites da situação apontam na direção
de um resultado progressivo e lento? Será que é razoável tentar
influenciar outra pessoa de uma maneira que difere muito daquilo que
você sabe sobre a personalidade dela? A própria forma como você
definiu sua declaração de intento pode muito bem ser um ponto
fraco.

Oportunidades
Considere como oportunidades quaisquer estratégias que possam
ajudar com as especificidades do feitiço ou que possam abrir uma
“janela de oportunidade” para você. Talvez o alvo de seu
descontentamento esteja prestes a entrar no hospital para uma
“cirurgia simples”; ou talvez a pessoa que você está ajudando a se
livrar da heroína via magia pode estar prestes a ser internada em
uma cínica de reabilitação. Quem sabe você tenha uma ligação
material com a pessoa que está tentando curar, ou uma fotografia
que pode ajudar outra pessoa a te ajudar nessa empreitada?

Ameaças
Aqui você deve considerar as possíveis consequências de um
fracasso no trabalho mágico. Além disso, o que pode acontecer se a
situação mudar de repente de uma forma que você não considerou
antes?
Você certamente perceberá que é muito raro conseguir prever
algum cenário de “ameaça”, mas esse ponto tem sua utilidade, por
exemplo, em magias maléficas. Conheci um magista que considerou
seriamente lançar uma maldição mortal contra um parente, mas
desistiu quando ficou sabendo que a probabilidade de o resultado ser
um “rápido acidente de carro” era baixa, e que seria muito mais
provável, dado o histórico de saúde do alvo, que o resultado
desejado se desse através de um câncer terminal. A “ameaça” nesse
caso foi que o magista se deu conta de que não conseguiria conviver
com as consequências de causar câncer terminal em um parente!

Conclusões

Independentemente das técnicas usadas para expandir o que você


sabe sobre uma situação —para se concentrar em um ponto de
influência específico (ou em vários, se for o caso)—, talvez você
descubra que sua declaração de intento muda consideravelmente à
luz dessas descobertas.
Costumo considerar o levantamento de informações como algo
sempre útil e que, comparativamente, são poucas as situações que
não podem esperar um ou dois dias para que sejam averiguadas sob
todos os ângulos. Pedir conselhos a outras pessoas pode ser útil,
assim como bancar o advogado do diabo consigo mesmo, se não
houver mais ninguém para fazer esse papel. Percebi que há uma
tendência entre ocultistas (tanto quanto com qualquer outra pessoa)
de cair em pontos de vista muito simplistas sobre uma situação que
supostamente “dominam” (porque são magistas, é claro). É uma
tendência humana comum simplificar a situação alheia mais do que a
nossa, então acredito que é particularmente importante abordar cada
possível intervenção mágica como uma situação complexa e única.
Afinal, se alguém por aí estiver pensando em usar magia para
reorganizar por você o seu estilo de vida, você vai querer que a
pessoa faça isso direito, não é mesmo?

Resumo

• Pense antes de lançar o feitiço!


• Faça perguntas.
• Colete informações.
• Analise a situação a partir de diferentes ângulos e perspectivas.
• Reformule sua declaração de intento se necessário.
• Busque clareza.
• E, só então, aja.
MEXENDO O CALDEIRÃO
DO CAOS

Este ensaio foi escrito em 1997 e publicado pela primeira vez no n. 15 da


revista Chaos International. Embora boa parte dos meus escritos sobre
magia do caos seja sobre técnicas específicas e explorações pessoais,
este ensaio é mais reflexivo. Naquela época, acho que quase todo meu
entusiasmo inicial pela magia do caos começava a se esvair. O
comentário sobre mundos mágicos não terem sido “pintados de preto e
dispostos em volta de uma caosfera” é uma referência ao fato de que a
estrela de oito raios do caos vinha sendo cada vez mais usada como a
Árvore da Vida da cabala, ou como a noção geral dos sete chacras: uma
forma de organizar e ordenar fenômenos. Meu argumento básico aqui é
que a magia e o misticismo são complementares, não opostos binários, e
que muito da prática de magia contemporânea se enquadra bastante
naquilo que eu viria a entender depois como a ética protestante do
trabalho. Neste ensaio, pendo muito mais para uma abordagem lúdica ao
caos, em vez de instrumentalista.

F
alta à cultura do caos uma visão geral de progresso rumo a um
futuro comum. O progresso civilizacional está perdendo gás,
enquanto o pluralismo e a divergência estão virando a cena
contemporânea do avesso e a transformando em uma superfície
fractal, vibrando com novas possibilidades. Fragmentos do passado
e do presente são reorganizados pelas mãos cegas dos novos
deuses —moda, estilo, entretenimento—, pilhando o passado para
dar suporte a um agora imediato. Essa é a dança estonteante de
maya. Tudo é permitido porque nada é verdadeiro. Reflita sobre isso
por um momento.

Sem o rumo de casa


A crítica à magia do caos já indicou que ela não trabalha em prol de
objetivo algum. Diferente de outras filosofias mágicas, que giram em
torno de “novos éons”, sonhos futuros, ou ainda se agarram a
estruturas criptotranscendentalistas, o caos não tem— pelo menos
aparentemente— qualquer objetivo geral. Outras filosofias mágicas
costumam ter objetivos, sejam eles o desenvolvimento “espiritual” ou
um ideal mais humanista para motivar as pessoas. No caos perdura
apenas o constante aperfeiçoamento de técnicas e habilidades, a
recriação e recuperação de novos paradigmas, a testagem
“empírica” de novas ideias e as intenções ocultas de cada caoista,
sejam elas quais forem.
Pode-se argumentar que, ao descartar o conceito de um futuro
generalizado, ficamos livres para sonhar e arquitetar uma infinidade
de futuros possíveis. Por isso o pandemônio: um futuro caos que, em
grande medida, já aconteceu —e o problema, claro, é que não temos
os sistemas cognitivos necessários para nos adaptar a ele da melhor
forma. Essa ideia em si põe em evidência a questão de um
“direcionamento” na magia do caos. Nossos modos de fazer
projeções futuras são determinados tendo em vista nosso
conhecimento presente, nossos pontos de vista atuais e nossos
padrões de estruturação de informações.
Ao tentar desvencilhar a magia contemporânea das armadilhas da
religiosidade ou do transcendentalismo, as pessoas que defendem a
corrente do caos adotaram uma posição consideravelmente rígida
quanto ao misticismo. Basicamente, elas se recusam até a tocar no
assunto. Então, embora não vejam problema em aplaudir a magia
prática de Aleister Crowley, caoistas linha-dura provavelmente
desprezam seus escritos místicos. É claro, também deve haver
quem considere Crowley um péssimo magista, porém um místico
magnífico.
Mas chega de misticismo. Pelo menos por enquanto.

Gnose
A experiência peculiar da consciência conhecida como gnose é a
chave para todo ritual mágico. Boa parte da magia prática gira em
torno de desenvolver a habilidade de entrar em gnose e talvez, em
alguns casos, de reconhecer a gnose, que costuma ser entendida
como o momento culminante de qualquer exercício que induz ao
transe, no qual o desejo pode ser fenomenizado com sucesso. Mas
será que a gnose é só aquilo que se alcança depois de meia hora
girando, recitando ou se masturbando em cima de um sigilo? Essa
dança toda só por aquele momento ínfimo e breve de deslocamento
para um outro lugar?
A gnose também pode ser entendida como “conhecimento do
coração” —o conhecimento difícil de expressar diretamente com
palavras; uma projeção gestáltica que pode levar anos para decantar
através das camadas de conectividade antes de emergir como
palavras em uma tela. O universo mágico é, necessariamente, um
espaço finito. A gnose pode muito bem nos jogar, por um instante,
para além dessa finitude. E, como diz William Burroughs, não dá
para levar palavras para o espaço.
A gnose, tal como geralmente se usa esse termo em magia do
caos, é simplesmente a ponta visível de uma vasta gama de
experiências numinosas que se costuma ver como domínio de
pessoas místicas, com a rara exceção de psiconautas. Embora seja
possível argumentar que as práticas místicas podem levar a todo
tipo de vírus verbais (como a religião), também vale considerar que
entender a gnose só como aquilo em que penetramos brevemente
para fenomenizar um desejo é subestimar as potencialidades mais
amplas dessa experiência.

Trabalho e atividade lúdica

Ofereço aqui uma distinção simples entre magia e misticismo.


Magia tem a ver com trabalho, enquanto misticismo tem a ver com
o lúdico. Esses estados não são “opostos”, mas sim experiências
complementares. Como? Tomemos como exemplo dois atos de
magia sexual. No primeiro caso, vemos um casal envolvidos numa
transa feroz, com a mente tomada por um sigilo, o corpo suado no
esforço para atingir o todo-poderoso desprendimento —o orgasmo—
que arremessa o desejo sigilizado ao vazio. No segundo caso, um
casal passa horas se enroscando um no outro, sentindo
vagarosamente os sabores, os toques, até fazendo piadas, sem
qualquer urgência de chegar ao orgasmo, sem preocupação se de
fato vão atingi-lo, porque isso não é particularmente importante. Qual
das duas cenas você acha mais mágica?
A primeira reflete a abordagem geral da magia sexual na cultura
ocidental. Trabalho: fazer algo para conseguir algo. A segunda cena
está mais próxima de uma visão mística do sexo: descontraído,
sensual, centrado no prazer. Uma atividade lúdica.
Na magia, temos de trabalhar. Fazer programas de treinamento,
aprender os símbolos e linguagens, aprender novas habilidades —
analisando, refinando, ritualizando: tudo isso é trabalho. Tudo isso é
muito necessário, porque temos de aprender o trabalho antes de
aprender o lúdico, pelo menos no caso do tema em questão. Aqui,
trabalho e o lúdico são experiências do mundo e uma complementa a
outra.
Vou dar mais um exemplo simples e de novo envolvendo sexo.
Flertar, se relacionar com sua cara-metade, trepar —o nome que
preferir. Uma forma de alcançar esse desejo é pelo trabalho: nesse
caso, pode ser praticando cantadas no espelho, ou talvez invocando
Jontrav-Olta como espírito patrono daquelas pessoas que são
verdadeiras máquinas sexuais cheias de lábia para projetar o
encanto adequado à conquista. Isso é trabalho, e espero que quem
lê esse texto tenha pelo menos um pouco de familiaridade (ainda que
em teoria) com esse tipo de situação.
O modo lúdico, nesse caso, é simples em certa medida, mas
muito complexo em outra. É quando simplesmente fazemos um breve
contato visual com alguém e, de repente, temos a certeza de que,
em algum ponto do que se desdobra da situação, dois caminhos vão
convergir e as duas pessoas vão acordar na mesma cama no dia
seguinte. O que é maravilhoso nessa experiência é que, quando essa
certeza atravessa nossa mente, sentimos uma confiança tão grande
quanto ao que virá depois daquele momento inicial que não
precisamos mais trabalhar para fazer a coisa acontecer. Podemos
nos dar ao luxo do lúdico. E quem se entrega ao lúdico se liberta do
apego à realização do desejo, e assim pode se arriscar mais do que
a pessoa que pisa em ovos e morre de medo de perder sua máscara
e ser vista como idiota.
Essas são duas experiências de mundo distintas, mas não
dicotômicas. Podemos tanto trabalhar e fazer as coisas acontecerem
quanto sermos lúdicos e deixarmos as coisas acontecerem. Mas
infelizmente não é tão simples. Ao praticar magia como trabalho, nos
preparamos para o lúdico. E o fator-chave que conecta o trabalho e
o lúdico é a gnose.
Cada tentativa de fenomenizar o desejo demanda uma explosão de
consciência-gnose. A gnose pode durar um átimo de segundo ou
pode catapultar a pessoa a um estado de percepção alterada que
pode durar dias, semanas ou até meses, e seus efeitos são
cumulativos. Quando ganhamos ímpeto suficiente, ela começa a nos
afetar de várias formas: iluminações, sonhos despertos, alucinações,
vozes, clarividência, o despertar de habilidades que ninguém nos
ensinou (que não vieram dos livros e, mesmo assim, estão ao nosso
alcance). E tem mais: percepção expandida de nós mesmos, da
conexão entre experiências e conceitos distintos, novas gestalts. O
conteúdo superficial desses estados alterados não é tão significativo,
talvez, quanto o que ocorre no sistema nervoso central. Os picos de
gnose reescrevem os circuitos neurais, atualizando o software da
mente para uma nova versão capaz de processamento em alta
velocidade. Enquanto magistas mantêm, em grande medida, o foco
no modo trabalho, esse processo segue funcionando como uma
intenção oculta. Na verdade, às vezes parece que temos de dedicar
muito trabalho à magia antes de aprender a lidar com o potencial da
atividade lúdica.
Então aqui estou argumentando que o trabalho mágico prepara
para o lúdico místico. A diferença entre as duas coisas pode ser
entendida no que se refere a manipular a realidade para que ela seja
uma coisa ou outra, em vez de curtir a dança em todas as suas
formas.
O problema do misticismo é o fato de o resultado da cognição de
quem se inseriu em um estado altamente acelerado de consciência
poder ser visto como uma grande verdade universal. E também é
preciso que as experiências sejam reintegradas e assimiladas com
sucesso quando, como é inevitável acontecer, a pessoa retorna a
uma percepção mais “estável” da realidade. A gravidade abraça a
nós, psiconautas em voo livre, e nos conduz de volta ao poço da
realidade dominante —ou, ao menos, nos leva a um estado funcional
próximo disso, na medida em que vamos nos transformando em algo
que não é exatamente humano.
É aqui que a experiência do trabalho prévio se torna importante.
Os conteúdos ideacionais do voo místico são inúteis, a menos que
tenham alguma relação com a nossa estrutura mental. Se a
experiência resulta na habilidade de ultrapassar crenças e conceitos
anteriores e produz algo novo, então sua validade é questionável.
Desse modo, as experiências lúdicas induzidas por gnose permitem
que magistas exerçam um trabalho mágico mais efetivo —
similarmente, para explorar o valor do lúdico, é preciso que se tenha
certa experiência com o trabalho mágico.

Brincando com o caos

A abordagem mágica caoista inverteu a ideia geral de que


habilidades mágicas são apenas subprodutos da jornada mística.
Coloca-se a ênfase, em vez disso, no trabalho mágico, na
manipulação de maya. De certa forma, a ideia de que o objetivo final
do misticismo é superar ou transcender maya é uma visão ocidental
errônea de um processo que afirma que “nada é verdadeiro, tudo é
permitido”. Pode até ser muito fácil ter sucesso a partir da
experiência lúdica, mas o fracasso certamente acontece com a
mesma facilidade.
Eu sugeriria, ainda, que a experiência lúdica nos leva a novos
universos mágicos. Quer dizer, é provável que eles sejam bem
antigos, só que ainda não foram pintados de preto e dispostos em
volta de uma caosfera. É nesse ponto que encontramos os mistérios
de nossos próprios ciclos internos de mudança, ciclos que ficaram
enterrados longe das chamas da percepção, hábitos de pensamento
e respostas emocionais —demônios, se preferir, que até agora se
esgueiraram em silêncio pelos porões da individualidade. Aqui
poderíamos voltar nossa atenção para esses “deuses ocultos” nos
quais muitas das nossas experiências interpessoais se baseiam:
amor, fidelidade, possessão, curiosidade —as palavras indefiníveis
de repente são postas em evidência e podem ser vistas a partir de
novos ângulos. Sim, o estado lúdico pode ser usado para fazer
rituais e coisas afins, mas só de forma efêmera, pois, nos estados
lúdicos intensos, o apego a qualquer desejo em particular
provavelmente será, na melhor das hipóteses, passageiro. Quando
se faz esse tipo de magia, ela parte de uma condição de facilidade
(vide Burroughs).[3]
Um dos melhores usos do estado lúdico que encontrei até agora é
a conexão e a análise criativas de ideias. A relação é simples, seja
no que se refere a variadas práticas de trabalho (mágico ou não) ou
até a áreas menos delimitadas da experiência —desejo, habilidades
cognitivas, linguagem—: uma quantidade suficiente de trabalho gera
o ímpeto para o lúdico. O lúdico, por sua vez, nos catapulta a um
estado em que podemos modificar radicalmente nossa experiência
de trabalho. No entanto, o trabalho de base nos ajuda a entender a
dinâmica do lúdico, além de abrir novas áreas para exploração.
Voltando à questão de um objetivo geral para a magia do caos, eu
diria que ele existe, embora ainda oculto. A magia do caos é um
processo de mutação. A gnose cumulativa que remapeia os circuitos
neurais: mutação. A desconstrução da identidade que parte do ego
sitiado até a legião de si-mesmos que requer somente o amor-de-si:
mutação. A busca pelas técnicas mais efetivas e adaptáveis de
trabalho para que a realidade se torne efetivamente um parque de
diversões: mutação. Semear a cultura com novas ideias, estilos,
modas; substituir a verdade pela permissão para agir: mutação. Mas
mutação para o quê?
Bem, essa é outra história.
PARTE II
PAGANISMO
INTRODUÇÃO

S
e eu tivesse de me descrever usando um só rótulo, seria
“paganista”. Independentemente do tipo de magia que tenha
feito em dado momento —wicca, xamanismo urbano, magia do
caos ou tantra—, sinto que “paganista” é minha definição-padrão.
Meu envolvimento com o ativismo paganista só começou de
verdade depois de meados dos anos 1980, quando me mudei para
Leeds e me envolvi com a Paganlink, que era um tipo de rede
independente com o objetivo de reunir paganistas do Reino Unido,
organizar assembleias paganistas locais, se envolver em ações
políticas, e por aí vai. Hoje várias pessoas são consideradas
“fundadoras” do Paganlink, mas meu contato foi com o finado Rich
Westwood, que era o dono de uma livraria de ocultismo em
Birmingham, a Prince Elric’s. Eu havia conhecido Rich em um festival
místico em Manchester, onde conversamos sobre a Paganlink. Ele
era um homem amigável e engajado que acreditava muito que se
declarar paganista era uma ação política, e que parte dessa
sensibilidade política se dava pela construção de uma comunidade
local e regional por meio de parcerias. Na época, eu queria muito
conhecer mais gente e estava muito aberto a ajudar Rich a viabilizar
seu sonho.
Quando me mudei para Leeds, me tornei o coordenador regional
da Paganlink de West Yorkshire, o que era só um título pomposo
para quem se dispunha a dar o próprio endereço para ajudar
paganistas da área a fazer contato entre si. Uma maneira simples de
fazer isso foi ressuscitar a assembleia paganista de Leeds, que
esteve na ativa no final da década de 1970 e chegou a produzir um
zine chamado The Griffin, batizado em homenagem ao Hotel Griffin,
local onde acontecia a assembleia. Eu ajudei tanto a ressuscitá-la
quanto a divulgá-la nas várias revistas que começavam a aparecer
pelo país. Outras assembleias locais acabaram surgindo disso.
E então veio o Heal the Earth [Cure a Terra], um ritual em massa
com o objetivo de mobilizar paganistas de diferentes regiões a fazer
um ritual ou ato mágico (não especificamos o formato) no dia do
solstício de verão, em 1987, entre meio-dia e quatorze horas, para
conscientizar as pessoas sobre a crise ecológica mundial. Discutimos
a ideia de abordar questões políticas específicas, mas, no fim,
decidimos que nosso objetivo seria mais geral: “uma onda
perpassando a mente planetária humana”, como alguém propôs. Eu
realmente aprendi algumas lições muito importantes ao ajudar a
organizar o evento, e a principal foi que o entusiasmo das outras
pessoas era essencial para fortalecer o ímpeto de realização. O
simples fato de trocar ideias com outras pessoas em um grupo já era
uma experiência excelente, e depois levar essas ideias a outros
grupos —e conseguir entusiasmá-los— também foi maravilhoso. Eu
havia passado tanto tempo em um grupo fechado que proibia discutir
abertamente tópicos e ideias de ocultismo que essa foi uma
experiência realmente libertadora.
Sheila Broun, uma artista-magista e professora, deixou que
usássemos como ponto focal uma imagem que ela havia criado do
Ás de Copas, e escrevemos um panfleto da forma mais sucinta
possível. Esses panfletos foram colocados em murais de lojas,
escondidos dentro de livros e revistas e distribuídos em festivais no
país inteiro. Só o grupo de Leeds chegou a distribuir cerca de sete
mil panfletos —nada mau para pessoas, em sua maioria, de baixa
renda—, e depois descobrimos que foram distribuídos cerca de vinte
mil. O ritual foi bem-sucedido? Não sei. O que importa para mim,
olhando para trás, foi ter percebido como o entusiasmo
compartilhado pode rapidamente se tornar uma força para gerar
mudanças.
Uma das pessoas que conheci na época em que ajudava a
organizar o Heal the Earth foi Rodney Orpheus, um músico de Leeds
que adorava computadores. Foi por meio de Rodney que tive meu
primeiro contato com os fóruns precursores da internet, e também foi
por meio dele que montei um boletim gratuito local para o Paganlink:
o Northern Paganlink News (NPLN). A primeira edição do NPLN saiu
em março de 1988, contendo quatro páginas. Imprimimos 25
exemplares, que distribuímos em eventos locais de paganismo e em
lojas amigas. Quando chegou maio daquele ano, já estávamos em
duzentas cópias por edição, e em junho o boletim já chegava a seis
páginas. Além disso, tínhamos comprado um software de editoração
e uma impressora a laser de ponta. Enviávamos as edições e
incentivávamos outras pessoas a fazer e distribuir suas próprias
cópias. O boletim anunciava assembleias locais, notícias sobre
eventos relacionados ao Paganlink e outros eventos do interesse de
paganistas. Mas nessa época outra coisa surgiu e começou a ocupar
cada vez mais espaço em nossas páginas: o pânico satânico
relacionado a abuso infantil.
Esse pânico moral durou, pelo menos no Reino Unido, de 1987 a
1992. Em 1988, sua fase inicial acabou se manifestando
principalmente na publicação de artigos antiocultistas na imprensa
popular e no surgimento de especialistas na mídia expressando
preocupação com a popularidade cada vez maior do ocultismo na
sociedade. Por exemplo, um artigo publicado no jornal The Sunday
Express (15 de maio de 1988) mencionava a Ordo Templis Orientis
como uma organização que “levou desgraça e degradação a
centenas de crianças”, e exortava o secretário do Interior a investigar
“cultos malignos”. Também se discutiu na imprensa popular e no
Parlamento a possibilidade de restabelecer as leis do Reino Unido
contra bruxaria.
Em setembro de 1988, Rodney e eu tomamos em boa hora a
decisão de cortar o Northern e o Link do título do boletim (já que a
distribuição nessa época havia ido além do norte da Inglaterra, e
materiais relacionados à Paganlink não eram mais o único foco). Foi
assim que surgiu o Pagan News, “o jornal mensal de magia e
ocultismo”, um volume de oito a doze páginas que custava trinta
pence. A impressão era feita pela AGIT Press, de Leeds,
comandada por integrantes da banda Chumbawamba. Conseguimos
manter a publicação do Pagan News, primeiro mensalmente e depois
bimestralmente, até 1991. Tivemos imensa contribuição de várias
pessoas que se voluntariaram para distribuir o zine por lojas locais,
bem como das poucas lojas voltadas para o ocultismo que nos
pagavam para publicar propagandas (nossa principal fonte de renda)
e das várias pessoas que aceitaram escrever para o jornal. O etos
editorial do Pagan News era ser o mais eclético possível.
Publicávamos artigos sobre qualquer aspecto do espectro
ocultista/paganista desde que cumprissem, em seções específicas,
nossas diretrizes em relação ao limite de palavras e à nossa linha
editorial. Partíamos do princípio de que o paganismo incluía uma
grande variedade de crenças, e isso era algo que expressávamos
com frequência sob a ótica da filosofia vulcana: “diversidade infinita
em infinita combinação” (éramos ambos fãs de Star Trek). De vez em
quando, recebíamos alguma crítica por tirar sarro de um monte de
“verdades sagradas” ou por publicar material do “caminho da mão
esquerda”.
Também éramos totalmente contra dar qualquer credibilidade ao
pânico satânico, e também por isso recebíamos críticas e perdíamos
assinantes de vez em quando. Nas novas comunidades de
paganismo e ocultismo havia algumas pessoas que queriam distância
de tudo aquilo de que desconfiavam, como, por exemplo, qualquer
coisa relacionada a Aleister Crowley, thelema ou o que mais
coubesse no “caminho da mão esquerda” —um termo generalista até
demais.
Nesse período, era razoavelmente comum encontrar pessoas que
se proclamavam “bruxas de magia branca”, ávidas por quinze
minutos de fama na mídia, alegando que, apesar de a maioria das
pessoas paganistas serem cidadãs de bem e fazerem tudo dentro da
lei, havia alguns “círculos secretos” que tinham de ser eliminados.
Hoje, quando converso com outras pessoas sobre como era ser
abertamente paganista durante esse período de pânico satânico, é
comum admitir que esse período na história do paganismo britânico
foi sombrio e horripilante, um período em que quase nada vinha a
público e as pessoas andavam de cabeça baixa. Mas a minha
experiência não foi essa. Afinal, foi nesse período que as primeiras
grandes conferências paganistas aconteceram. Um evento de dois
dias na Universidade de Leicester em 1988 recebeu 5 mil pessoas,
por exemplo. Houve exposições de arte ocultista em bibliotecas
públicas. As pessoas estavam se revelando mais como paganistas, e
infelizmente uma parte do governo conservador da época entendeu
isso como uma ameaça aos valores cristãos “tradicionais”, o que, em
parte, criou algumas das ansiedades que surgiram durante o pânico
satânico.
Também nesse período, em parte graças ao desenvolvimento dos
computadores pessoais de custo relativamente baixo e aos
aplicativos de editoração, houve uma expansão de revistas
independentes de paganismo e ocultismo no Reino Unido, desde
zines generalistas voltados para notícias, como o Pagan News, até
aqueles dedicados a tradições ocultistas específicas. Na medida em
que fui ganhando confiança em meus textos, comecei a escrever
para uma gama variada de publicações que ia de Moonshine, revista
de Rich Westwood voltada para o paganismo, até o Nox, periódico
do “caminho da mão esquerda” para ocultistas “hardcore”. Em uma
ocasião memorável, escrevi uma curta “biografia” de Satã que
pretendia mandar para o Nox, mas decidi ver o que aconteceria se a
enviasse para a Moonshine, e ao mesmo tempo mandei para o Nox
um texto sobre práticas xamânicas que havia escrito originalmente
para a Moonshine. O editor do Nox ficou bem satisfeito com o
ensaio sobre xamanismo, e a Moonshine acabou usando o texto
sobre Satã, embora depois eu tenha ouvido boatos de que os
editores não ficaram muito entusiasmados com ele, para dizer o
mínimo, e que não aceitariam mais qualquer coisa parecida. Um
amigo também me contou que haviam lhe perguntado se existia dois
“Phil Hines”, pois algumas pessoas acharam difícil acreditar que
alguém pudesse escrever sobre xamanismo e questões paganistas
e, ao mesmo tempo, sobre outras áreas mais excêntricas do
ocultismo.
Rótulos são coisas estranhas. Ao longo dos últimos quarenta anos
da minha vida no ocultismo, eu adotei —e em alguns casos me
deram— vários rótulos: wicca, paganista, magista do caos,
praticante de tantra, xamã urbano, pesquisador independente, só
para citar alguns. Rótulos podem sinalizar ou ajudar a entender os
parâmetros que orientam ou moldam nossa prática, mas também
costumam ser restritivos. Eu vejo o paganismo muito como um
espaço tolerante pelo qual várias ideias e posturas —algumas
conflitantes— podem fluir.
RECONSIDERAÇÕES
SOBRE RITUAIS
POLÍTICOS

Este ensaio foi publicado pela primeira vez no n. 8 da revista Moonshine,


no solstício de inverno de 1987. Eu o escrevi numa época em que a ideia
de promover rituais em massa ganhava fôlego nos círculos paganistas do
Reino Unido. Talvez não surpreenda que, na opinião de algumas pessoas,
era possível fazer esse tipo de ritual com segurança entre quatro paredes
(ou “no espaço astral”). Trata-se de um chamado direto para a ação, tanto
para organizar eventos comunitários e teatros de rua, quanto para que se
levasse a sério a ideia de que a intervenção mágica em uma situação pode
ser eficaz.

A
inserção de uma dimensão política no universo da magia
ocidental teve uma série de efeitos colaterais animadores,
sobre os quais podemos dizer:
1. Rituais em massa criam um espírito comunitário e abrem o
campo para outras ações coletivas.
2. Eles ajudam a reunir pessoas de diferentes orientações em
nome do compromisso de promover mudanças.
3. São empoderadores: renovam a certeza interior de que somos
capazes de agir e fazer diferença.
4. O que se ganha em troca ao participar desse tipo de ritual é
diretamente proporcional à energia usada para fortalecer o ritual ou
para construir sua estrutura organizacional.
Dados esses pontos positivos sobre nossa empreitada, é
necessário lançar um olhar crítico sobre o processo e procurar
caminhos e meios para ampliar a politização da atividade mágica. A
primeira consideração é entender a importância do tipo de técnica
usada para gerar a energia do ritual. A meditação solo é a técnica
mais conveniente de energização, mas não é a mais eficaz; para
gerar a força necessária para executar o ritual, é preferível fazer uso
de técnicas mais vigorosas, como percussão, dança, canto ou
hiperventilação, especialmente se forem feitas por duas ou três
pessoas.
O local do ritual também é importante. O quartinho dos fundos
pode até ser o lugar mais prático, mas vale repetir que a facilidade
não é o que mais importa aqui. Estar ao ar livre é preferível, mais
ainda em lugares altos, de onde se pode enxergar uma grande
extensão de terra ao redor.
Obviamente, quanto mais nos empenhamos para organizar algo,
escolher um lugar, juntar as pessoas e decidir o que será feito, mais
especial se torna o evento, e ele precisa ser especial para ser
eficaz. Lembre-se de que você vai desempenhar um ato sagrado, o
que não significa que ele tenha de ser totalmente formal, mas sim
que não deve ser feito com indiferença e sem nenhum entusiasmo.
Como o alvo de um ritual político é a consciência de grupo, tendo
como foco o mundo em geral ou parcelas específicas da população,
o resultado desses trabalhos vai ser sutil e vai se desenrolar no
longo prazo. Não há motivo algum para nos contentarmos com isso,
então é necessário procurar outras formas de intervir por meio de
atos mágicos.
Nossos irmãos e irmãs cristãos estão bem mais à frente do que
nós nesse aspecto. Quando as comunidades cristãs mais militantes
se dão conta de algo que consideram moralmente repreensível, logo
organizam uma vigília para barrá-lo. Um grupo pequeno, se movido
por ousadia e vontade (e algum conhecimento), consegue colocar
umas boas “pedras no sapato” das maquinações do Estado e dos
“deuses idiotas” do mundo corporativo.

Fora, demônios! Fora!

Eis a ponta de lança do ritual político: o terror psíquico seletivo


direcionado às instituições e aos dogmas que alimentam os níveis
atuais de poluição física e psíquica.
É de suma importância se concentrar nesses ritos de resistência,
de preferência em uma área que vá trazer algum tipo de resultado.
Tentar “destruir” figuras individuais raramente traz algum benefício.
Usando a analogia do “monstro”: se você corta uma cabeça, outras
cinco crescem no lugar. Então pode jogar fora os alfinetes e o
bonequinho do seu alvo político, seja Ronald Reagan ou outro
qualquer.
Amaldiçoar instituições em vez de indivíduos pode ser mais útil. Já
se demonstrou que redes de dados sensíveis e complexos são
altamente suscetíveis a interferências mágicas, e há uma grande
variedade de eletroelementais e duendes que podem facilmente ser
convencidos a ir brincar com o hardware de alguma empresa que
esteja nos dando dor de cabeça.

Magia de propaganda

As formas mais sutis de oposição são as que não são reconhecidas


de imediato: não são voltadas para a percepção consciente, mas
para a mente profunda. O melhor exemplo desse tipo de
encantamento são os meios de propaganda. Sua própria banalidade
nos deixa aconchegados em uma falsa sensação de segurança,
enquanto a verdadeira mensagem nos é inculcada
despercebidamente. Para deter esse mecanismo, magistas com
motivações políticas precisam ter uma esperteza igual ou maior. O
menor esforço pelo maior efeito, usando armas secretas —humor,
superstição e caos— para neutralizar a estupidez e a tacanhice
mental.
Supondo que você tenha algum tipo de código ou ideais
identificáveis, imprima-os em um panfleto e distribua pelo comércio
local. Nunca se sabe —talvez suas palavras podem esclarecer a
mente de alguém.
Este é o papel do xamã: injetar o caos na ordem e estilhaçar a
realidade por um instante, abrindo os portais da libertação. Em
outras palavras, aja de modo sorrateiro. Assine com um nome falso,
proclame uma nova era de esclarecimento, não para pessoas que
você conhece, mas para completos estranhos. Torne-se uma lenda
do seu mundo. Não se demore demais, saia pela tangente ou à
francesa! Mas, acima de tudo, não se deixe pegar no flagra.
RELATÓRIO REACHOUT

Este texto foi publicado na edição de maio de 1990 da Pagan News. Este
artigo de opinião foi escrito dois anos depois do início do pânico satânico
que tomou conta do Reino Unido. Eu queria chamar atenção para a
questão de que os ataques midiáticos liderados por fundamentalistas
cristãos contra paganistas e ocultistas deveriam ser vistos como
elementos de uma campanha muito mais ampla para reestabelecer os
“valores familiares” conservadores no Reino Unido.

H
á dois anos, a campanha antiocultista inspirada por grupos
fundamentalistas deu início à histeria midiática liderada pelo
intrépido membro do parlamento Geoffrey Dickens e pela
imprensa sensacionalista. Essa histeria não parou e exibe todos os
sinais de estar piorando. Grupos como o Reachout Trust e o
Christian Response to the Occult orquestraram uma campanha em
todo o país para “informar” a imprensa nacional e local sobre os
“perigos” do ocultismo usando ganchos emocionais poderosos: a
ideia de que a família e as crianças estavam “em perigo”. Houve
quem fizesse pouco caso desses ataques, dizendo que vinham de
umas poucas pessoas fanáticas e extremistas, mas a coisa não é
tão simples.
Não são só paganistas e ocultistas que estão sob ataque. Nos
últimos anos tem acontecido um cerceamento constante de
liberdades civis no Reino Unido. A Grã-Bretanha tem sua própria
“maioria moral”: uma coleção de aristocratas e sirs, além de
jornalistas e gente dos ministérios, da academia e de outras
profissões. Essas pessoas exercem influência sobre a indústria e o
governo, e a imprensa lhes dá ouvidos. Organizações como Family
and Youth Concern, Conservative Family Campaign, Family Forum e
National Family Trust acreditam que “a família tem de estar no centro
de todo pensamento político”. Essas são as pessoas que inspiraram
a Seção 28 e conseguiram pressionar o governo central a abandonar
a campanha contra a aids. A dama Jill Knight, cujo comitê
parlamentar “não-oficial” dedicado ao “abuso satânico de crianças”
está neste momento juntando informações, é uma das pessoas que
ajudaram a promover o vídeo feito pela Family and Youth Concern
chamado “A verdade sobre a aids”, cuja exibição deveria ser
obrigatória em todas as escolas. A Campaign for Real Education
enviou propostas detalhadas à Secretaria de Educação, e algumas
delas acabaram sendo inseridas no novo programa curricular. Isso já
dá uma ideia de quanta influência esses grupos exercem e do quanto
são capazes de conquistar.
Grupos como o Reachout agora estão instruindo seus membros a
fazer campanha para retirar a revista Prediction das prateleiras de
grandes distribuidoras como W. H. Smith & Sons e Menzies. Eles
pelo menos aprenderam que recitar a Bíblia e levantar bandeiras
tende a afastar as pessoas. Em vez disso, estão usando a imagem
de “pais preocupados”. Ao usar recrutas para reclamar no comércio
local e com a Evangelical Alliance fazendo pressão nas diretorias,
essa abordagem de repente não parece mais tão absurda, não é? O
Reachout agora alega que conseguiu pressionar a W. H. Smith a
adotar uma diretriz interna determinando que a Prediction seja
disposta nas prateleiras superiores, onde normalmente se colocam
as revistas pornográficas. Também estão reclamando com o diretor
de educação sobre temas com “elementos ocultistas” e já
perseguiram docentes que têm alguma conexão com o paganismo.
Essas pessoas dominam a arte de manipular a imprensa enviando
reclamações a emissoras de televisão e jornais. Em um vídeo
chamado “Como lidar com o ocultismo em sua área”, Maureen
Davies se gaba de ter feito piquete em encontros de meditação
transcendental (MT) e de ter argumentado com a diretoria de um
hospital para convencê-los de que a MT é perigosa à saúde. A MT e
outras técnicas semelhantes são amplamente usadas pelo National
Health Service como parte do treinamento em relaxamento para
pessoas com uma variedade enorme de problemas; mas, na opinião
do fundamentalismo, ela é um portal para o satanismo. Qualquer
pessoa que ensine a técnica, portanto, é suspeita. Só que, como
todos sabemos, a MT é uma prática completamente inofensiva,
então temos de nos perguntar: que chance as abordagens mais
aprofundadas terão de sobreviver a essa avalanche fundamentalista?
Maureen Davies instrui quem a acompanha a reclamar sempre
com a diretoria, pois “no topo” estão as pessoas que se preocupam
com a ameaça de repercussões negativas na imprensa, e por isso
podem acabar cancelando eventos e reuniões ou tomando outras
atitudes alinhadas às demandas fundamentalistas. Fora algumas
exceções notáveis, a resposta mais forte que a comunidade
paganista conseguiu oferecer foi algo como “a culpa não é nossa, é
dos outros” —o que não convence muito nem ajuda.
Vou continuar repetindo até que a mensagem seja entendida: o
que essas pessoas querem é suprimir todas as crenças e práticas
minoritárias vistas como uma ameaça à sua concepção de como a
sociedade deveria ser. Temos de construir pontes com outras
minorias em risco, e não tentar nos esconder atrás das barreiras na
esperança de que essas pessoas procurem outras para incomodar.
Elas não vão fazer isso e possuem recursos para seguir com uma
campanha longa e cada vez mais forte. Como reportamos na edição
anterior, elas estão comprando revistas como a Pagan News para
descobrir nomes, endereços e telefones de contatos locais. Em seu
boletim, o Reachout recentemente pediu aos assinantes que
“rezassem” pela “iluminação” das pessoas desviadas, como eu e o
corpo editorial da revista Occult Response to Christian Response to
the Occult —um tipo de maldição, talvez?
Até agora, mensurar o sucesso da campanha antiocultista é difícil.
Embora ainda seja verdade que o público geral costuma não se
preocupar nem com uma coisa nem com outra, o fundamentalismo
conseguiu o que queria na medida em que criou a repercussão na
imprensa e a histeria propícias para pressionar órgãos
governamentais, onde já estão muitos de seus aliados, pessoas
influentes que têm a atenção dos ministros e mandarins do governo
inglês. A questão é que grupos fundamentalistas e de direita estão
“conduzindo” a elaboração de políticas do governo central, e já há
funcionários do Departamento de Saúde reclamando que não têm
como controlar a influência de grupos desse tipo. Mas eles têm
tantas conexões influentes que não podem ser ignorados. A prova de
seu poder, no que se refere a paganistas, será o surgimento de leis
contra nós inspiradas pelo fundamentalismo. Vamos ficar sentados
esperando pisarem na nossa cabeça? Provavelmente sim.
Em uma carta recente para a Pagan News, alguém disse que
“bons magistas não têm o que temer”. Belo “espírito coletivo”, hein?
Não é só uma questão de “direitos paganistas”, mas do cerceamento
dos direitos humanos. Qual a facilidade de organizar um encontro ao
ar livre hoje em dia? Quantas feiras místicas foram sujeitadas a
cancelamentos de última hora? Sejamos honestos: até o momento,
paganistas e ocultistas foram alvo fácil para fundamentalistas; um
bom assunto para a imprensa sensacionalista; uma boa isca para
atrair grupos respeitados como a National Society for the Prevention
of Cruelty to Children; são facilmente colocados uns contra os outros;
não têm capacidade de fazer lobby ou organizar um movimento de
contrainformação; e mais, têm a tendência inata de ignorar questões
“materiais” e políticas. Fundamentalistas não nos veem enquanto
indivíduos, só como um grupo homogêneo e malfeitor que se
esconde atrás de vários disfarces.
Há uns dois anos, alguns senadores dos EUA tentaram passar um
projeto de lei no Congresso que “definia” o que era bruxaria, para
que pudessem aprovar uma legislação antiocultismo. Graças à
Declaração dos Direitos dos Estados Unidos e a um lobby bem-
organizado, o projeto foi descartado, mas esse tipo de proteção não
existe aqui. Nosso governo reconhece só o cristianismo como religião
legítima, e os “direitos” individuais não têm qualquer garantia.
Então, que caminho devemos tomar? Ficar calados e esperar que
a coisa passe? Nem todo mundo tem essa opção, e com este artigo
eu provavelmente estou dando mais informações para um arquivo em
algum tipo de base de dados fascista obscura. Até agora, a única
resposta organizada está sendo feita pelo Sorcerer’s Apprentice
Fighting Fund e pela Pagan Federation, que estão envolvidos
ativamente na resistência e no lobby contra as ações
fundamentalistas. Nos unirmos a outros grupos cuja liberdade
também está sendo cerceada ajudaria: a ética fundamentalista quer
acorrentar as mulheres à pia, empurrar lésbicas e gays de volta ao
armário e suprimir qualquer pessoa que tenha tendências
“alternativas”.
Se alguém aí tiver uma boa ideia, por favor me conte. Um princípio
básico da filosofia paganista é que moralidade e responsabilidade
ética vêm de dentro, mas, se não tomarmos cuidado e não nos
atentarmos ao que está acontecendo, vamos acabar amarrados por
uma definição imposta daquilo que somos aos olhos das autoridades.
Claro, ninguém tem o poder de roubar nossas crenças e valores,
mas essas pessoas podem dificultar a nossa vida. A vida pode se
tornar muito difícil para qualquer pessoa dona de um pequeno
negócio relacionado ao ocultismo. Algumas famílias paganistas já
estão enfrentando problemas por terem sido denunciadas à
assistência social e à polícia. A liberdade de nos reunirmos está
sendo restringida. Até onde a coisa tem de chegar?
É fácil cair na apatia ou na frustração, mas temos de perseverar.
Use suas habilidades mágicas não para revidar, mas para se
enraizar, criar bases para agir —com calma e persistência. Esse tipo
de contratempo pode ser uma grande oportunidade para
procurarmos uns aos outros (apesar das diferenças de caminho ou
estilo de vida) e nos apoiarmos quando necessário. Se a única coisa
que mobiliza nossa união é o desejo de preservar a liberdade de
viver como quisermos, sem interferências, então que este seja nosso
chamado para a ação!
MAGIA NO CAMPO

Este ensaio foi escrito em 1994 e apresentado como palestra na London


Eco-magic Conference do mesmo ano. Trata-se de uma série de reflexões
sobre como paganistas e ocultistas se relacionam com a natureza de
maneiras diferentes —desde uma perspectiva romântica idealizada até o
entendimento de que espaços ao ar livre são basicamente uma versão
ampliada de um templo com paredes— e mantêm uma abertura tanto para
reconhecer quanto descartar ideias preconcebidas.

P
athworkings e visualizações guiadas são formas muito
populares de magia. Mas você já percebeu que, quando nos
deixamos guiar por um caminho em uma floresta sagrada,
nunca pisamos em bosta de vaca? Que quando nos sentamos ao
lado de uma nascente sagrada para escutar a sabedoria de qualquer
guia do plano interior, nunca uma formiga ou um marimbondo vem
nos perturbar? Esse é um exemplo do que acredito ser uma
tendência a idealizar a natureza, algo que pode ser visto em
elementos do paganismo e do ocultismo contemporâneos.
Trata-se de algo tão sutil que, em geral, nem percebemos. Me
parece que, embora se escreva muito sobre elementos, fadas,
espíritos e locais sagrados, muitas vezes vemos a natureza de forma
romantizada; e os aspectos mais sujos, desajeitados e às vezes pura
e simplesmente perigosos da natureza são omitidos, ou pelo menos
ignorados, o que é compreensível, de certa maneira. Muitos de nós
moramos em centros urbanos e temos um desejo forte de fugir e
experimentar a natureza de forma mais direta. Mas, ao mesmo
tempo, é fácil subestimar o seu poder.
Como cresci em uma cidade litorânea, fui impactado
profundamente pelo poder impressionante do mar desde bem cedo.
Uma cena que nunca sairá da minha memória é de quando me
levaram para ver um barco de arrasto que tinha sido literalmente
arremessado contra um paredão em uma tempestade. Aprendi a
nadar no mar e achava que dava conta do recado até quase morrer
umas duas vezes, e não eram raras as temporadas de veraneio
marcadas por uma ou duas mortes de banhistas que não
consideraram o quanto o mar pode ser imprevisível, o que me é
confirmado toda vez que nos embrenhamos na natureza selvagem.
Há uns dois anos, uma simples trilha pelas encostas de Snowdonia
guiada por dois montanhistas experientes de repente se tornou, para
mim, uma experiência de quase morte. Considerando situações que
vivi, tudo pode acontecer —e de fato acontece— no mato,
especialmente quando pensamos que estamos “seguros”. A própria
questão da segurança pode ser bem complexa, ainda mais quando
fazemos magia com outras pessoas e quando estamos ao ar livre.
Na minha própria experiência, até visualizações guiadas tendo a
natureza como cenário podem ter resultados imprevisíveis. Em
meados da década de 1980, eu estudava terapia ocupacional e
trabalhava em um hospital psiquiátrico em York. Uma vez, prestei
assistência em uma sessão de terapia de grupo em que o facilitador
usou uma técnica de visualização guiada para ajudar as pessoas a
explorar o que sentiam sobre estar umas com as outras. Parte da
jornada envolvia o grupo se embrenhar por uma floresta até não
conseguir mais perceber ninguém em meio às árvores. De repente,
um dos participantes pulou da cadeira e saiu correndo da sala. Fui
atrás dele para ver o que havia acontecido: a última vez que ele
esteve numa floresta foi quando a Inglaterra se retirou da França, na
Segunda Guerra Mundial, pouco antes da batalha de Dunquerque.
Ele havia se separado de sua unidade, mas conseguia ouvir o grito
dos colegas sendo perseguidos e executados pelo inimigo. Talvez
esse seja um exemplo extremo, mas é algo a se ter em mente.
Voltando à magia, nunca gostei da ideia de fazer rituais “formais”
ao ar livre. Rituais que funcionam bem em um templo, porão ou
quarto vazio não parecem se encaixar direito no meio de uma clareira
na floresta. Aquela coisa toda de fazer um círculo ou “banimento” —
que basicamente tem a ver com estabelecer limites— parece errada
demais. Muitas vezes eu percebo certa tendência, especialmente
entre magistas atuais, de pegar um ritual “interno” e fazê-lo ao ar
livre sem tomar consciência nenhuma de que estar ali pode exigir
uma outra abordagem e um respeito básico a esse espaço diferente
que a pessoa adentrou. Algumas vezes, isso levou a situações
absurdas. Há alguns anos, durante um seminário de três dias na
Áustria, participei de uma sessão guiada por outro facilitador que nos
pediu para visualizar uma floresta. Nada de errado com isso em si,
mas o lugar onde o evento estava acontecendo, um castelo de
antigos cavaleiros templários, era rodeado por cerca de seis
hectares de floresta virgem! Em outra ocasião, eu estava ao ar livre
com um grupo, e um dos rituais que havíamos combinado de fazer
pedia que as pessoas se escondessem atrás de árvores e arbustos:
o problema era que, onde estávamos, não tinha árvore nem arbusto.
Mas, em vez de cancelar o ritual, o grupo seguiu em frente, e me
lembro de ter achado aquilo meio curioso. Olhando para trás, vejo
isso como exemplo de um grupo que impôs suas ideias
preconcebidas a um espaço natural em vez de tentar trabalhar com
as características do lugar.
Há alguns anos, um amigo e eu decidimos nos embrenhar pelas
profundezas de um dos maiores parques de Leeds para ver se
conseguíamos estabelecer contato com os espíritos locais: os genii
loci, digamos assim. Em vez de seguir o caminho comum de realizar
algum tipo de ritual, simplesmente entramos na floresta, achamos um
lugarzinho ao lado de um riacho e ficamos sentados em silêncio,
tentando ampliar nossa percepção para sentir algum contato, por
mais sutil que fosse. Depois de algumas horas, nós dois começamos
a sentir que alguma coisa estava tentando fazer contato.
Gradualmente, começamos a distinguir uma forma —enorme,
despenteada e cheia de musgo—, não um elemental da água ou da
terra, nem mesmo um espírito arborícola (esses são, afinal, termos
que impomos ao mundo), mas algo que era uma síntese do lugar
onde estávamos. O contato foi efêmero, temeroso, mas repleto de
uma sensação de tristeza e anseio, algo que nós dois tivemos
dificuldade de descrever com palavras, mas que nos tocou
profundamente. Essa, para mim, foi uma experiência importante, que
nos mostrou o valor de “jogar fora” o manual, por assim dizer, e
aprender a confiar no que sentimos intuitivamente em contatos com
“espíritos”.
Nossa forma de encarar os espíritos é em si uma questão-chave.
Há muita coisa escrita sobre “espíritos da natureza” —elementais,
devas, fadas etc.—, mas muitas vezes são pintados como
bonzinhos, pelo menos controláveis, ou abertos ao contato conosco.
Há duas questões aí. Uma é que, embora paganistas da atualidade
tenham aceitado os espíritos da “natureza”, me parece que existe um
bloqueio quanto a aceitar que podem existir outros tipos de espíritos,
como os tipos travessos que ficam à espreita nas tomadas elétricas
sobrecarregadas, os vingativos que escondem nossas chaves de
casa, ou os que ficam perambulando pelo metrô de madrugada.
Caminhamos pela floresta ansiosos para encontrar dríades ou fadas,
mas será que esperamos encontrar um troll nas ruazinhas da
cidade? Estamos aprendendo a lidar com os genii loci de espaços
ao ar livre, mas talvez não estejamos dando atenção suficiente às
“almas” das cidades onde vivemos, que, no entanto, merecem
igualmente nossa atenção.
A outra questão é essa coisa de que “os espíritos são bonzinhos”.
Na minha experiência, muitos espíritos da “natureza” estão
simplesmente com raiva. Raiva do que os humanos fizeram com seus
lugares, raiva da nossa invasão impensada de seus espaços,
irritados com nosso menosprezo em relação a eles, por terem sido
ignorados por tanto tempo ou até mesmo “convidados” por
paganistas e magistas a adentrar espaços que eles já consideravam
como de seu domínio, muito obrigado! Assim como nós, alguns estão
numa boa, outros não e, se tiverem a oportunidade, vão comunicar o
que quer que estejam sentindo de forma bem direta.
Depois desse sermão, não quero ditar como as pessoas devem ou
não praticar magia ao ar livre, mas digo o seguinte: tudo tem a ver
com respeito. Se, como paganistas, dizemos que respeitamos a
Terra e seus habitantes, temos de agir de acordo com essa
premissa a todo momento. Para mim, isso exige esquecer muito do
“conhecimento” adquirido ao longo dos anos em livros sobre
espíritos, locais sagrados etc., e experienciar a natureza como ela é,
e não como gostaríamos que fosse. Reconhecer que estamos em
território alheio sempre que adentramos a natureza com intenções
mágicas —um território onde o que queremos fazer não é
necessariamente importante— e estarmos prontos para o caso de
seus habitantes preferirem que estivéssemos em outro lugar. Ou
estarmos cientes de que um lugar que parece acolhedor durante o
dia pode ser completamente hostil na calada da noite, e de que seja
lá qual for a nossa visão sobre nós como magistas “experientes” ou
competentes, isso pode não significar nada para eles.
É PRECISO AMAR O
RAMO DE OURO?

Este ensaio foi escrito em 2010 e publicado no meu blog, enfolding.org.


Trata-se de uma reflexão sobre a popularidade do clássico O ramo de
ouro, de James G. Frazer,[4] e sobre a tendência de quem escreve sobre
ocultismo (inclusive eu) a recair em generalizações amplas demais e
teorias verticais que não têm fundamentação empírica nem são baseadas
em evidência.

O
que paganistas veem em O ramo de ouro? Toda vez que abro
uma obra escrita por paganistas ou magistas, tenho a
sensação de ver a sombra inevitável desse livro projetada
sobre o texto, como o monólito de 2001: uma odisseia no espaço.
Recentemente, ao analisar uma citação que parafraseava parte dos
“dados” oferecidos por James G. Frazer, e ao mergulhar em
algumas das fontes secundárias que ele usa, me peguei refletindo (e
não foi a primeira vez) sobre o que leva essa obra —da qual
especialistas atuais da antropologia, do folclore e dos mitos fizeram
questão de se distanciar— a continuar sendo popular entre
paganistas e ocultistas. De certa forma, não me surpreende,
considerando a influência que o trabalho descomunal de Frazer
exerceu no século XX. A propósito, Robert Brockway afirma que
“não é exagero dizer que toda pessoa interessada em mitologia,
desde a virada para o século XX até a Segunda Guerra Mundial, se
inspirou inicialmente pela leitura de O ramo de ouro ou foi
influenciada por ela”.[5]
A obra de Frazer influenciou diretamente W. B. Yeats e Margaret
Murray, só para citar dois nomes proeminentes na história do
ocultismo moderno, e ainda Sigmund Freud, Carl G. Jung, Mircea
Eliade e Joseph Campbell. Chas S. Clifton, em sua contribuição à
antologia de ensaios Researching Paganisms, lamenta a presença
persistente de Frazer (e outros) na escrita paganista
contemporânea:

Antropólogos que a academia da contemporaneidade vê como peças do museu das


ideias, como Frazer e Bachofen, ou a historiadora de bruxaria Margaret Murray, ainda têm
ampla presença na escrita paganista contemporânea, apesar das críticas feitas por
paganistas da academia. Por exemplo, a parca bibliografia de uma nova obra bastante
superficial chamada Philosophy of Wicca cita O ramo de ouro, de Frazer, A deusa branca,
de Robert Graves, e é claro, Margaret Murray, mas não cita Ronald Hutton, Carlo Ginzburg
ou qualquer outra pessoa contemporânea, na área da história, que tenha uma base mais
aprofundada. Essa autora [Amber Laine Fisher] não é uma exceção, infelizmente, e é fácil
perceber que o que está em jogo é uma atitude do tipo “não me confunda com novas
ideias”.[6]

Embora eu concorde, até certo ponto, com o que Clifton diz, não
acho que a coisa é tão simples quanto a conclusão que ele oferece.
Não quero fazer uma crítica abrangente de Frazer, algo que já foi
muito bem feito por pessoas mais bem fundamentadas que eu, mas
meu problema, em princípio, com O ramo de ouro é a linha de
separação feita por Frazer, de modo leviano e acrítico, entre
aspectos da cultura e os contextos históricos e sociais que lhe dão
significado, como destacou Ruth Benedict:

As práticas de acasalamento ou morte são exemplificadas mediante pedacinhos de


comportamento escolhidos indiscriminadamente das mais diversas culturas, de modo que
o estudo constrói uma espécie de monstro de Frankenstein mecânico com um olho direito
das Fiji, um esquerdo da Europa, uma perna da Terra do Fogo e outra do Taiti, e ainda
todos os dedos e artelhos de diferentes regiões. A figura assim obtida não corresponde a
realidade alguma atual nem do passado.[7]

No entanto, ao mesmo tempo, eu diria que é precisamente isso


que torna a obra de Frazer atraente para paganistas e ocultistas, e
que uma boa parte dos escritos sobre ocultismo têm estilo
marcadamente frazeriano (embora muitas vezes não o citem, o que
dificulta procurar as fontes). Frazer é frequentemente criticado por
ser um “antropólogo de gabinete” —aquele que escreve do alto de
sua torre de marfim, sem se preocupar em lidar com pessoas reais e
vivas. Me parece que boa parte dos escritos ocultistas (e aí incluo
minha própria obra) usa uma estratégia parecida, fazendo
generalizações amplas (sem reconhecer a própria parcialidade,
como faz Frazer), usando a perspectiva panóptica da “verdade
oculta”. O que também nos atrai na obra desse autor é que ele tira
das costas de quem lê o peso daquilo que pode ser visto como as
complicações desnecessárias da antropologia moderna; as
discussões teóricas; a linguagem opaca, que é comum até demais;
as constantes referências a outros escritos que se espera serem
conhecidos para que se entenda a leitura em questão. É fácil
dissociar os “dados” apresentados por Frazer das opiniões dele e
usá-los como evidências transparentes na nossa própria
argumentação.
Uma ideia central subjacente à escrita de Frazer é a de que todos
os “povos selvagens” são basicamente iguais. Sua motivação para
escrever O ramo de ouro foi documentar as crenças de povos
antigos antes que desaparecessem em meio à marcha triunfante da
civilização. Grande parte da antropologia do século XIX é voltada
pragmaticamente para as preocupações da administração colonial,
que se encarregou de povos primitivos e precisa compreender suas
crenças prosaicas para administrá-los (e civilizá-los) com maior
eficácia. Para Frazer e seus colegas, como seu mentor Edward B.
Tylor, a noção de interagir de forma aberta e compreensiva com o
arcabouço conceitual de uma cultura diferente —uma cultura em que
as pessoas acreditam em magia, espíritos etc.— era-lhes alheia e,
para eles, uma impossibilidade.
A obra de Frazer também é bastante simbólica, demonstrando a
influência da afirmação de Herbert Spencer de que a realidade da
natureza é radicalmente inacessível ao intelecto humano. Só
podemos conhecer do mundo as “sensações” que ele, de alguma
forma, gera em nosso aparato perceptivo; a percepção, portanto,
nada tem em comum com aquilo que a provoca: “as sensações que
as coisas à nossa volta produzem em nós não são nada mais que
símbolos de ações externas a nós, cuja natureza não somos sequer
capazes de conceber”.[8] Para Frazer, a vida social é um tipo de
expressão institucionalizada do simbolismo, uma representação de
alguma outra coisa, e a missão dele é decodificar ou interpretar. O
ramo de ouro é como uma casa de espelhos infinita, com símbolos
ligados a outros símbolos por analogia —um prolongamento contínuo
de significações. Um símbolo é sempre explicado em termos de
outros símbolos, que não têm relação com qualquer referencial no
mundo real.
Frazer assume abertamente que as explicações que ele oferece
nunca serão definitivas, que sempre serão conjecturais, parciais:
“todas as nossas teorias que dizem respeito a ele [homem primitivo]
e seus modos de agir devem, portanto, estar muito aquém da
certeza; o máximo a que podemos aspirar nessas questões é um
grau razoável de probabilidade”.[9] Isso lembra a velha piada que diz
que, se todas as pessoas do mundo que são sociólogas fossem
enfileiradas uma atrás da outra, a fila nunca chegaria ao fim, o que
certamente se aplica a expoentes do relativismo cultural da atual
cultura do ocultismo —um relativismo que muitas vezes se expressa,
como me disseram em uma carta no ano passado, nos termos: “tudo
o que podemos fazer é especular”. Esse modo analógico é usado em
muitos escritos ocultistas de forma semelhante à de Frazer —
Kenneth Grant é um entre tantos exemplos, com seus saltos
fantásticos entre gematria, ficção, mitologia, simbolismo e
comentários ocultistas de “iniciado”.
O que há de estranho nos desdobramentos paganistas
contemporâneos de Frazer é o fato de ele geralmente ser antitético
à magia, embora, mais uma vez, a coisa não seja tão simples assim.
Em seu prefácio à segunda edição de O ramo de ouro (1900), ele
apresenta sua posição de que a magia é fundamentalmente distinta
da religião e contrária a ela, e mais: “acredito que, na evolução do
pensamento, a magia como representante de um estrato intelectual
mais baixo provavelmente precedeu a religião em toda parte”.[10] Ele
também destaca que magia e ciência compartilham uma visão de
mundo parecida: “em ambas, a sucessão de eventos é perfeitamente
regular e certeira, determinada por leis imutáveis cuja operação pode
ser prevista e calculada precisamente; os elementos de acaso e
acidente são excluídos do curso da natureza”.[11] Como muita gente
de sua época, ele acreditava que a “civilização” europeia era superior
a todas as outras culturas, particularmente as “selvagens”. Ele
enxergava a magia como uma “ciência selvagem” equivocada e
afirmava que todas as culturas progrediram de uma visão de mundo
mágica para a religiosa, por fim chegando a uma mentalidade
racional e científica. Percebo que a oposição diametral que Frazer
cria entre magia e religião é atraente para paganistas e ocultistas
que se interessam por manter uma distinção entre esses domínios; o
mesmo vale para sua afirmação de que magia e ciência
compartilham uma visão de mundo parecida (embora ele de fato
pensasse em magia fundamentalmente como um entendimento
equivocado das leis científicas e acreditasse que povos selvagens
não têm ideia alguma sobre como a magia “funciona”).
Mencionei no início do texto que estive procurando algumas das
fontes do autor, em especial do grupo de antropólogos russos cujos
relatos de xamanismo, assim como Frazer, são amplamente
referenciados e citados, principalmente em textos que procuram
estabelecer os antecedentes globais da prática xamânica.
De novo, embora essas citações sejam feitas apenas de
passagem, se de fato lermos seus relatos, teremos uma ideia bem
diferente de suas perspectivas sobre o xamanismo. Imagine este
cenário: um grupo de antropologistas faz uma visita casual à sua
comunidade paganista e depois publica algo mais ou menos nestas
linhas: “Bem, existem pessoas que se dizem bruxas. Várias delas
são neuróticas e histéricas e têm fantasias estranhas; e algumas
são, digamos, pervertidas sexuais. Elas acreditam em magia e
espíritos, mas não dá para levá-las a sério, então temos de concluir
que qualquer efeito gerado por esse tipo de mágica é basicamente
truque ou fraude”. Por algum motivo, não consigo imaginar esse tipo
de análise sendo citado em textos ocultistas contemporâneos e, no
entanto, esse é basicamente o tom que percebo em antropólogos
como Vladimir Bogoraz.
Então, vamos lá, será que ainda estamos hipnotizados pelos
estonteantes desenhos de luz que aparecem no monólito ou
podemos —sem deixar de reconhecer sua influência— olhar adiante
para as complexidades vertiginosas do mundo à nossa volta?
Celebramos a diferença e a diversidade, ou as abafamos em prol da
relativa segurança das comparações superficiais? É muito fácil
descartar as ideias de Frazer, mas é igualmente fácil só continuar a
reciclá-las. Me vêm à mente as sagazes palavras de Peter Carroll:
“Cansei dessas ideias do ocultismo que passam de um livro para
outro sem a menor intervenção de um pensamento crítico”.
PARTE III
PRÁTICA
INTRODUÇÃO

D
ediquei boa parte da minha produção escrita ao longo dos
últimos trinta e poucos anos a explorar e refletir sobre vários
aspectos da prática de magia. A primeira pessoa que me
incentivou a escrever sobre isso foi uma das altas sacerdotisas da
wicca com quem fiz um treinamento. Segundo ela, escrever sobre
uma prática é uma excelente maneira de verificarmos se a
entendemos o suficiente para comunicá-la com eficiência a outra
pessoa. É claro, há também a vantagem de que o material escrito
pode ser passado para outras pessoas que estão começando a
praticar. Escrevi muita coisa do tipo “como fazer esta ou aquela
prática” no início da década de 1980, mas não guardei a maioria.
O que constitui uma prática? Quando comecei a ler manuais de
ocultismo no fim da década de 1970, as práticas eram abordadas
como algo separado da vida cotidiana e que exigia um tempo
específico de dedicação. Escolhíamos (ou recebíamos) atividades
regularmente, cumpríamos as tarefas e registrávamos os resultados
no diário mágico. Simples —ou nem tanto.
Para mim, escrever sobre práticas costuma me levar a refletir
sobre a natureza delas. Uma coisa que me interessou desde o início
é a relação entre prática e teoria —particularmente o fato de serem
vistas como coisas opostas. Geralmente se concebe “teoria” como
algo abstrato e impessoal, que tem a ver com explicar o mundo em
vez de agir nele ou sobre ele. Das teorias se derivam as “regras” que
podem ser aplicadas a situações práticas. No entanto, existe uma
visão generalizada de que há uma lacuna entre teoria e prática, algo
que muitas vezes leva estudantes a acreditar que a teoria ensinada
em universidades e outras instituições não têm relevância direta para
sua prática. Igualmente, em disciplinas voltadas para a prática, às
vezes há certa desconfiança por parte de quem parece dar
importância demais ao “teórico”. Em alguns dos meus textos iniciais
sobre magia do caos, escrevi que o que me atraiu em seu etos foi a
ênfase na prática —a ideia de que era mais importante agir e “fazer”
magia—, e que não era preciso engolir tratados “teóricos” enormes
antes de pôr as mãos na massa. Claro, essa desconfiança em
relação à teoria é generalizada na cultura contemporânea. Mas,
pouco a pouco, fui me acostumando à ideia de que a teoria instrui e
molda a prática.
Acredito que esse tenha sido um efeito colateral do meu
envolvimento com assuntos indianos. Eu tinha pouco interesse numa
abordagem “teórica” da religiosidade indiana por causa das minhas
primeiras leituras teosóficas e, depois, dos livros de sir John
Woodroffe. Uma coisa que me marcou desde cedo, quando comecei
a ler traduções e relatos etnográficos de práticas religiosas e
mágicas indianas, foi que algumas coisas que costumamos encarar
como fatos incontestáveis no Ocidente —como a ideia de que há
uma divisão precisa entre mente e corpo, ou de que imaginar uma
coisa é inferior à coisa estar ali de fato— simplesmente não parecem
funcionar da mesma forma segundo a visão indiana. Me dei conta de
que eu estava encarando o tantra a partir de uma mentalidade
ocidental, acreditando que suas premissas básicas fossem
semelhantes às ideias ocidentais com as quais cresci, e sequer
considerando que a filosofia que fundamenta as práticas poderia ser
bem diferente. Uma das coisas que volta e meia se repetem em
obras populares sobre o tantra é que ele é voltado à prática — não é
de natureza teórica ou filosófica.
Embora seja verdade, de forma geral, que textos tântricos falem
mais sobre rituais do que sobre minúcias filosóficas, isso não
significa que o tantra não tenha uma base teórica ou que praticantes
da Índia não tenham escrito obras filosóficas, pois escreveram
muitas.
Isso também me levou a refletir sobre a relação entre teoria e
prática nas minhas experiências iniciais com wicca, magia cerimonial
e magia do caos.
Passei muito tempo escrevendo sobre as chamadas —às vezes
em tom derrogatório— “práticas básicas”. Passei a criticar bastante
a noção de que existe uma distinção clara entre “práticas básicas” e
“práticas avançadas”. Conheci pessoas que fizeram cursos de
“práticas básicas” e depois nunca mais as revisitaram, ou que
pularam essas práticas entediantes e foram direto para o que
consideram as práticas “avançadas” de uma tradição. Hoje em dia,
tendo a considerar mais a expressão “práticas centrais” em vez de
“básicas”. Práticas centrais são fundamentais —sempre retornamos
a seus usos.
Outro aspecto importante da prática para mim é a experiência de
estar em um grupo mágico. Já estive envolvido —algumas vezes
como facilitador— com uma variedade grande de grupos, desde
aqueles estruturados de modo formal e hierárquico, como nas ordens
mágicas, até grupos fluidos e informais de amigos que realizam
trabalhos juntos. É muito comum assumir que magistas competentes
também serão líderes competentes, mas descobri que isso
raramente acontece e que liderança é uma competência que
demanda trabalho árduo e uma visão clara e atenta em constante
desenvolvimento. Embora grupos mágicos compartilhem certos
processos dinâmicos com outros tipos de grupo, cada um tem suas
características peculiares, como podemos esperar ao acrescentar
magia à mistura às vezes volátil de quando pessoas se juntam para
fazer alguma tarefa.
RITUAIS QUE DÃO
ERRADO

Escrito em 1992 e apresentado como palestra ao grupo de discussão


Philos-o-forum de Londres, este ensaio é basicamente uma série de
casos e comentários bem-humorados sobre a ideia de que a magia, ao
contrário do que se costuma escrever, às vezes dá errado mesmo —ou
nos surpreende de variadas formas (algumas assustadoras)—, e de que
erros rituais podem ser muito instrutivos.

E
stou em dívida com o indômito Reg por sugerir o tema da minha
fala de hoje. Magistas sempre se animam para comentar sobre
rituais que funcionaram —as invocações incríveis, as evocações
poderosas e a nota de dez encontrada no meio da rua logo após
fazerem um encantamento para chamar dinheiro. Mas e os rituais
que não saem como o esperado —as invocações em que a deidade
não se manifesta, a magia de resultados que não dá em nada e os
trabalhos que nos deixam com uma sensação de “é só isso?” Aqui,
vou abordar algumas das minhas experiências com “tropeços”
mágicos e discutir como elas mudaram minha vida —ou talvez como
não mudaram—, e vou comentar alguns dos “erros” vividos por
colegas. Relendo meu texto, percebo que está parecendo mais um
pretexto que encontrei para contar vários casos —mas e daí, né?

Por que alguns rituais não funcionam

Lendo a exegese matemática da magia feita por Peter Carroll, fico


às vezes com a impressão de que, segundo ele, se um ritual dá
errado, é porque alguém errou um pontinho decimal em algum lugar.
As explicações que muitas vezes usamos para descrever como a
magia funciona —vocês sabem, campos mórficos, borboletas
batendo as asas, e por aí vai— são muito legais, mas ao ler sobre
elas, a impressão que fica é de que a magia, se bem planejada, não
deveria errar o alvo. Em alguns círculos, ocultistas recorrem a
argumentos do tipo “ah, esse trabalho foi meio contra a maré” ou
“não era meu carma esse encantamento dar certo”. Perceberam a
evasiva? Se a gente levar em conta esses argumentos, quando um
ritual funciona, temos motivo para massagear o ego; quando não
funciona, então a culpa é de algum tipo de agenciamento cósmico.
Seja como for, o que quero dizer com “rituais que não funcionam”?
No caso da magia de resultados (feitiçaria), isso se refere a
encantamentos para fazer acontecer alguma situação específica que
ainda não se manifestou. Nesse caso, posso argumentar e dizer que
“o universo ainda está trabalhando para manifestar a coisa”, ou seja,
o cheque está no correio. Nas invocações, “dar errado” pode ser a
situação em que a deidade invocada não aparece. Mas vou chegar
nesse exemplo depois. Claro, tem muita coisa na magia que não
demanda resultados explícitos: coisas sutis como desenvolvimento
pessoal e por aí vai, situações em que só se pode julgar o
“resultado” ao longo do tempo.

Magia de resultados

A magia de resultados, ou feitiçaria, é praticada quando se busca


provocar mudanças específicas na situação de quem a pratica. Uma
das abordagens mais simples de feitiçaria é o uso de sigilos. Acho
importante destacar que, ao usá-los, é essencial que o intento seja o
mais exato possível; “desejos” vagos costumam gerar resultados
vagos, pela minha experiência. No entanto, existem também outros
fatores a se considerar.
Pois bem: sexo.
Levanta a mão quem já fez sigilo para transar!
Eu também.
Funciona, não é? Bom, na maioria das vezes.
Um tempo atrás, fiz um sigilo pelo método da Temple of Psychic
Youth com a intenção de realizar uma fantasia sexual que eu
desejava muito, e não, não vou contar os detalhes. Nem preciso dizer
que não funcionou... ainda. Mas, se fizer alguma diferença, vou
presentear vocês com o meu raciocínio sobre o porquê disso. Uma
parte crucial do processo de sigilação é deixar o desejo se tornar
latente; isto é, você não deixa que ele volte à consciência.
Considerando que o sigilo havia sido feito para realizar um desejo
muito potente —uma obsessão, na verdade—, é provável que eu
esteja apegado demais a esse cenário específico para conseguir
deixar que se torne “latente” e então se manifeste. Para fazer isso,
eu provavelmente teria de retrabalhar alguns dos meus complexos
relacionados a desejos. Se eu fizesse isso e depois surgisse uma
oportunidade de “manifestar” o resultado, pode ser que eu já nem
tivesse mais interesse. Todavia...
Uma frase “tradicional” na magia é que não se deve forçar demais
o Universo. Há o velho caso do magista que faz um encantamento
para ganhar dinheiro e espera que o multiverso (como se fosse o
Papai Noel) o realize. Ele não faz nada para “ajudar” o desejo a se
manifestar, e o resultado se concretiza na forma de uma
compensação paga pela seguradora por ele ter quebrado as duas
pernas ao tropeçar no carpete solto de uma escada na agência de
seguro-desemprego. Um resultado que deu certo, mas não como a
pessoa queria —o que pelo menos demonstra que o multiverso tem
um senso de humor meio babaca.

Invocações

Já estive em muitos rituais em grupo nos quais a deidade invocada


baixou não na sacerdotisa ou no sacerdote, mas em outra pessoa.
Isso pode ser desconcertante para todo mundo, ainda mais
considerando que, na maioria dos rituais em que vi isso acontecer, a
coisa toda seguiu em frente como se nada tivesse acontecido,
enquanto uma pessoa estava parada lá totalmente aturdida. Só
depois é que se ouve os cochichos de “Kali estava em mim, não no
fulano” etc. A outra coisa que devo mencionar é que, depois de uma
invocação, nem todas as entidades vão embora, obedientes.
Algumas simplesmente se recusam e têm de ser convencidas,
ameaçadas ou enchidas de bebida alcoólica.
Mas isso não é tanto uma “falha”, é mais um nível inesperado de
sucesso. Magistas têm de tomar cuidado com o inesperado. Um
amigo uma vez conjurou “deuses das trevas” em seu apartamento.
Como bom magista do caos que ele era, fez o banimento com
gargalhadas. No entanto, “alguma coisa” continuou por ali e, fosse o
que fosse, literalmente chutou meu amigo para fora da cama. Vá
gargalhar disso.
York, 1985: eu estava invocando Baphomet com a alta sacerdotisa
do coven para o qual eu estava entrando. Igualmente, “alguma coisa”
no recinto se opôs àquilo. Fosse o que fosse, essa coisa arrancou
um cartaz pesado da parede —não, o cartaz não se soltou e
escorregou; todo mundo o viu se despregando da parede como se
alguém o arrancasse em ângulo reto. Depois disso, o pedestal da
minha caixa de som começou a balançar. Nós entendemos a
mensagem, fizemos um banimento e fomos para o bar.
Houve algumas vezes em que pensei que um ritual tinha dado
errado quando, na verdade, não foi o que aconteceu. Dois casos me
vêm à mente. O primeiro foi quando um colega e eu tentamos nos
comunicar com o mago Amalantrah —um dos contatos de plano
interior feitos por Aleister Crowley. Estávamos montando um novo
grupo mágico na época (Dark Star) e, indo totalmente contra as
discussões nos zines sobre Sagrados Anjos Guardiões etc.,
decidimos colocar um ou dois adeptos dos planos interiores como
líderes da Ordem. Tenho lembranças muito afetuosas do ritual, havia
um gracioso círculo de luzinhas e um ovo de Páscoa de chocolate
como parte dos acessórios do templo. Para resumir, conseguimos
nos comunicar com o dito cujo, mas ele não estava interessado em
apadrinhar o nosso templo, por assim dizer.
O segundo caso foi uma invocação de Thoth —de novo, durante
um ataque de thelema. A coisa toda correu tranquilamente, com o
porém de Thoth não ter se manifestado de uma forma identificável:
nada de “vozes interiores” ou visões —necas. Que decepção!
Todavia, na noite seguinte, me pediram para tirar um tarô com o
baralho de Thoth. A leitura foi se estendendo —por umas cinco horas
—, e eu me dei conta de que havia entendido muitas coisas sobre as
cartas etc. De novo, o inesperado.
Falando em “resultados inesperados”, não podemos deixar de
mencionar Éris. O senso de humor dela é esquisito pra caramba.
Uma vez, fizemos um trabalho em nome de outra pessoa tendo Éris
como a corrente de energia. O ritual funcionou para a pessoa em
questão, que, no entanto, ganhou junto com o resultado mais um
monte de merda para resolver. Quanto a mim, no dia seguinte me
tranquei para fora do meu apartamento, no último andar, o que me
obrigou a subir no telhado (estava chovendo) para voltar para dentro;
o monitor do meu computador “morreu” de repente; e uma camisinha
furou, o que trouxe alguns dias de ansiedade para mim e para a
outra pessoa envolvida. Salve, Éris!
Hoje em dia, quando faço um trabalho, tendo mais ou menos a crer
que ele vai funcionar sim senhor! Dito isso, tomo o cuidado de só
tentar fazer coisas que têm boa chance de dar frutos, para não
forçar demais as estruturas da coisa toda.
Me lembro de, muitos anos atrás, fazer um ritual com pentagramas
e me dar conta: “puta merda... acabei de fazer os pentagramas
todos errados... mas passou desapercebido”. E se não passou, não
tive nenhuma sequela bizarra —pelo menos ainda. No primeiro grupo
decente de que fiz parte, fui levado a acreditar que se cruzássemos
um círculo ritual depois de traçado, tomávamos uns coices. Um
tempo depois, fiquei um tanto surpreso quando visitei outro grupo e
as pessoas entravam e saíam do círculo como se fossem ioiôs.
Ainda assim, acho bom disciplinar as pessoas a irem ao banheiro
antes do ritual, e não no meio das invocações... mas leve em conta
que essa é a ideia de ritual para algumas pessoas.
Mas nada disso responde à pergunta “Por que rituais dão
errado?”. Acredito que dinâmicas de grupo —ou talvez a falta de
consciência sobre elas— podem explicar algumas gafes ocultistas.
Um exemplo típico é a situação em que ninguém de fato sabe o que
está fazendo, mas ou sente nervosismo demais para comunicar o
fato ou não quer pagar de idiota na frente das pessoas. Para manter
a máscara da reputação mágica, não costuma ser visto com bons
olhos dizer “então... não entendi o porquê dessa parte”. Veja bem, se
no fim das contas ninguém estiver entendendo, isso pode causar
problema para todo mundo.

Não adotar uma postura adequada

A falta de uma postura adequada provavelmente é a origem de


algumas gafes. Uma vez, estávamos fazendo um ritual de Mercúrio
—um cabra complicado (mas todos são, não é?). Havia um casal
que não estava levando nada a sério e provavelmente ainda tinha a
esperança de que depois do ritual fosse de fato acontecer uma
orgia. Todas as outras pessoas tiveram seus desejos realizados; a
casa da dupla foi arrombada. Então, qual é a “postura adequada”?
É difícil dizer, mas acho que seriedade descontraída é o que
define a coisa para mim. Se levamos a sério demais, acabamos
ficando pretensiosos. Mas levar tudo na brincadeira vai irritar as
outras pessoas, talvez até as entidades com quem estivermos
trabalhando.

Não se preocupar com banimento

Não se importar com banimento é sempre bom para quem quer


entrar numa enrascada. Tudo bem, às vezes o banimento não é
mesmo necessário, mas é preciso desenvolver um faro para isso, e
conheci muita gente que já começava dizendo que nunca “se dá ao
trabalho” de fazer banimento e acabou perdendo a cabeça. Um
conhecido queimou todos os livros de magia, riscou um pentagrama
no próprio peito e, na última vez que foi visto, estava sendo
imobilizado por enfermeiros parrudos.
Este é um bom momento para mencionar a galera doida. Sim, é
provável que a maioria de vocês já tenha conhecido uma pessoa
doida na magia. A cena está cheia delas. Os grandes magos;
reencarnações de Aleister Crowley; pessoas que participam de
guerras astrais contra egrégoras imaginárias das trevas; pessoas
que se acham deusas. Para mim, entrar numa dessas é errar na
magia. Afinal, o propósito é se tornar uma pessoa melhor, não?
Então se você acaba enchendo o saco de outrem, é porque fez
merda em algum momento. Uma diretriz simples: se você endoida e
depois se recupera, o que aconteceu foi uma “iniciação”. Se você
endoida e não volta, então foi um erro. Você pode acreditar que
cruzou o abismo, sentou a porrada em Satã e descobriu toda uma
série de novos títulos de iniciação para si, mas se todas as outras
pessoas acham que você é idiota, então deu merda. É fácil perder a
cabeça com magia. Se você sempre invoca a mesma deidade, é
bem possível que acabe obcecado por ela. Claro, pode fazer
invocações com frequência, mas varie, por favor.
Um dos magistas de Leeds, há uns anos, exagerou nas invocações
de Pã e, na última vez que se ouviu falar nele, andava perambulando
pelo centro de Newcastle exibindo uma imponente ereção,
declarando-se a personificação do princípio masculino e querendo
saber onde estava sua sacerdotisa... O que ele acabou evocando foi
uma manifestação de espíritos vestidos de uniforme acompanhados
de uma sirene.

Excesso de confiança

Em magia, cultivar um sentimento de confiança gera resultados: se


você não tiver certeza do que está fazendo, pode acabar estragando
um trabalho. Mas confiança demais pode virar um problema. Se nos
sentimos totalmente confiantes de que uma coisa vai funcionar do
nosso jeito, acaba se tornando difícil nos adaptarmos rapidamente
caso as coisas não saiam como esperado.
Em 1981, eu estava com um grupo observando uma sacerdotisa
entrar em transe. Postura deitada, relaxamento, murmura isso,
murmura aquilo. Certo. Nada fora do esperado. De repente, ela
começou a se contorcer, grunhir e fazer umas coisas que ninguém
imaginava que fosse acontecer. Alguém joga água benta nela. Outra
pessoa desenha um pentagrama acima dela —a coisa só piora.
Nesse ponto, as pessoas já estão em pânico, e quem vai se oferecer
pra sair e chamar uma ambulância? Consternação geral. O que
poderíamos fazer? Por fim, ela voltou ao normal e não estava nada
feliz. Ninguém percebeu que ela estava lutando contra um demônio e
que nossos esforços bem-intencionados estavam atrapalhando?
Menos 10 milhões de pontos cármicos e castigo no cantinho do
templo até memorizar as leis da bruxaria.
Da mesma forma, o que fazer quando a pessoa não sai do transe?
Deixar pra lá? Chamar a pessoa gentilmente? Fazer cócegas nos
pés dela? Jogar um balde de água ou dar uns tapinhas no rosto? Os
manuais práticos de magia não costumam mencionar esse tipo de
ocorrência —damos licença para que a entidade se retire e lá vai ela
de volta para o lugar de onde veio. Assim esperamos.
Às vezes os rituais dão errado porque alguma coisa que parecia
plausível durante o planejamento não funcionou de fato na prática.
Uns amigos certa vez planejaram um trabalho com Odin. Já não me
lembro dos detalhes, mas envolvia pendurar alguém numa árvore. O
arranjo das cordas provocou um efeito terrível na circulação do
voluntário, e tiveram de tirá-lo de lá. O ritual foi interrompido.
De forma semelhante, o problema em nos apoiarmos demais nos
roteiros de outrem é que é difícil improvisar se não tivermos
costume. Uma vez, um grupo do qual participei estava realizando um
dos rituais favoritos da wicca, “a incorporação da Deusa pela
sacerdotisa”, e ao final a sacerdotisa declamaria os Encargos da
Deusa. Pelo menos, esse era o plano. No entanto, depois de ela
tropeçar nas duas primeiras frases, ouvimos um “puta merda, me
esqueci do resto” e um ataque de riso. Tudo bem, todo mundo
esquece o “script” de vez em quando, mas se você não é capaz de
improvisar nesses momentos, isso pode levar a um “esvaziamento”
abrupto de qualquer atmosfera ritualística que tenha sido construída
cuidadosamente.

Ser medíocre
Se tivermos de fazer um ritual, acho fundamental que seja com certo
ânimo ou estilo. Imagine que você esteja atuando em cima de um
palco e dê um pouco de vida ao processo. Você pode não acreditar
que os deuses invocados são reais, mas imagine: se você estivesse
em um plano espiritual superelevado, se daria ao trabalho de fazer
todo o percurso até o astral inferior por causa de uma pessoa idiota
que declamou sua invocação errada, de um jeito vacilante —“é...
hum...”—, com a mesma empolgação de quando estamos
declarando imposto de renda e que ainda tem a ousadia de dizer que
aqueles rabiscos são pentagramas?
A magia funciona muito sob o princípio de que se nada entra, nada
sai. Se você é capaz de pelo menos fingir que está chamando forças
poderosas para além do espaço e do tempo, pode ser que consiga
chegar em algum lugar. Se você se interessa minimamente por
rituais, então é bem possível que alguém na sua legião de eus seja
uma diva dramática berrando por reconhecimento. Então seja
extravagante. Dê um show, e os deuses vão te recompensar, fazer
críticas positivas, voltar para outros espetáculos e contar para os
amigos sobre você.
E isso nos leva a outra coisa: pedir aos deuses para fazer algo por
você, o que pode ser complicado. Pedir a Kali para dar uma sova no
vizinho que está ouvindo música muito alto enquanto você tenta
meditar quase equivale a usar uma arma nuclear tática para matar
uma mosca. Há quem diga que as divindades têm uma noção de
tempo diferente da nossa, e que o “agora” que percebemos é muito
diferente do delas. Quando fiz uns trabalhos com Ísis há uns anos,
tive a impressão de que ela só começaria a fazer alguma coisa dali a
pelo menos uns mil anos. Elementais são bem mais fáceis. Porém,
vale lembrar, eles podem ser travessos. Para mim, a culpa disso é
dessa coisa toda de psicologia mágica. Ela diminui o impacto das
entidades e, para ser honesto, se alguém dissesse “você não passa
de uma subpersonalidade minha, então agora faça isso aqui,
espertinho”, você obedeceria? Não, você responderia com um tapa
na cara (espero), e acho que, na maioria das vezes, as entidades se
sentem assim em relação à presunção de magistas que dizem “faça
isso, faça aquilo” sem nem um “por favor”, um “obrigado” ou um
sacrifício decente.
Se em encontros da patota ocultista você de fato admitir que
algum trabalho deu errado, sempre terá uma pessoa babaca e
espertinha para apontar uma falha na sua pesquisa. “Ah, você não
invocou o fulaninho pelos portais corretos, não usou as cores certas
nas bandeiras do templo e nem fez a dança no sentido anti-horário”,
esse tipo de coisa. Depois de conversar com um membro de certo
grupo da OTO sobre nosso trabalho malogrado com Amalantrah,
recebi a seguinte dica: “olha, é o seguinte, os mestres do astral
estão fazendo silêncio no momento”, o que, presume-se, significa
que eles estavam todos no “horário de almoço” ou tirando uma
soneca. Logo, concluiu-se que a entidade com quem nos
comunicamos e que se disse Amalantrah não era ele coisa nenhuma;
era alguma outra coisa se passando por mestre do plano interior. Foi
o ovo de Páscoa de chocolate que bagunçou tudo, tenho certeza.
Sem contar que eu mencionei que tínhamos usado todos os artifícios
de sempre para testar a validade da entidade. O fato de termos feito
isso sem uma Mulher Escarlate chapada de éter fez alguma
diferença? Fim de papo.
Eu não sou muito fã desse tipo de explicação. A maioria dos
“sistemas” parece ter contradições enormes e gritantes. Por
exemplo, ninguém jamais foi capaz de me dar uma boa explicação do
porquê de a esfera de Hod na cabala ter associação elemental com
a água. Nunca tinha me dado conta desse fato até fazermos uma
série de trabalhos com Hod no ano passado, e ninguém me deu uma
explicação satisfatória desde então. Mas enfim, estou desviando do
assunto.
Seja como for, parece que existem algumas regras básicas em
certos tipos de operações mágicas. Tomemos a goécia como
exemplo. Ui, goécia! Sim, conjurar demônios. Uns dois anos atrás,
fizemos uma série de evocações da Chave menor de Salomão. Para
o primeiro trabalho, pensamos: “para que fazer círculo e triângulo no
chão, vamos apenas visualizá-los”. O resultado principal foi uma
náusea constante e uma sensação de “esgotamento” por uns dois
dias depois do trabalho —um tipo de ressaca escura da alma, eu
diria. E o demônio não se mostrou muito claramente. Pelo visto, os
demônios da goécia têm ideias razoavelmente “tradicionais” sobre
como gostam de ser invocados. Eles não querem saber de
modismos. Ou a gente fazia a coisa do jeito certo ou teríamos uma
greve de demônios.

Tecer sonhos

Esse é um nome metido a descolado para uma coisa que não vai
muito além de fantasiar intensamente para continuar a sonhar com
aquilo em que estávamos pensando antes de cair no sono. O que
acontece muitas vezes é cairmos no sono de qualquer jeito. Isso
pode acontecer com os pathworkings também. Você está guiando
um pathworking com o grupo todo deitado à sua frente, está usando
sua melhor “voz de meditação guiada”, até que, de repente, escuta
um ronco. Me lembro de capotar em um pathworking uma vez. Todo
mundo depois contou que teve visões incríveis. Aí chegou a minha
vez de dizer: “Então, na verdade eu estava tão exausto de dirigir até
aqui que simplesmente caí no sono”. Pronto, todo mundo ficou me
olhando com um ar de desprezo ou superioridade. Eu costumava me
preocupar com minha tendência de cair no sono enquanto praticava
banimentos “astrais” na cama. Não era problema nenhum, pelo que
vim a constatar.
Isso parece ser parte do aprendizado em magia. Enquanto nos
classificamos como neófitos, de certa forma “esperamos” que as
coisas deem errado e sempre exageramos ao pensar nas
consequências horrendas que vão acontecer se fizermos algo
errado. Depois que ganhamos um pouco de experiência, no entanto,
ficamos mais confiantes e temos menos expectativas de que algo
possa desandar. Hoje tento encontrar um meio-termo: se eu fizer
esse trabalho, alguma coisa vai acontecer, mas não tenho 100% de
certeza do que vai ser. A magia envolve riscos. Na pior das
hipóteses, se meter em uma enrascada dá uma nova perspectiva
sobre as coisas.
Em 1979, eu estudava psicologia em Huddersfield e fiz alguns
trabalhos com as cartas de tattva e os elementais. A magia é só uma
extensão da psicologia, pensava eu. Há, há, há! Um dia acordei de
madrugada e havia uma bruma vermelha no quarto, e senti como se
alguém tivesse despejado uma mala cheia de concreto em cima de
mim... Que merda!
Eu não conseguia me mexer nem falar. O que eu devia fazer?
Que peso!
Acabou que projetei para fora um pentagrama de banimento. A
sensação de peso se esvaiu, a bruma também, e eu logo entrei no
modo tagarelice. Por cerca de dois dias. Certo, então o que
aconteceu foi que passei por uma dessas experiências em que
achamos que estamos acordados, mas não estamos. Na época, no
entanto, a coisa realmente me assustou e me fez ter um respeito
mais profundo pela magia. Então, no fim das contas, foi tudo bem
passar por aquilo. Ah, nada como a ingenuidade juvenil!
Não muito tempo depois, fiz minha primeira tentativa de evocar
Yog-Sothoth. Sabem quem é, né, um dos mais horrendos dos
horrendos Grandes Anciões em Lovecraft. Como eu estava nos
limites do Peak District, tinha umas boas opções de montanhas e
escolhi a mais alta do distrito. Além disso, estava nevando. Levei
uma lanterna e ainda me lembro dos olhos vermelhos dos carneiros
ao refletir a luz. Era de dar medo. Não me lembro bem dos detalhes,
mas sei que vi um facho de luz descendo do céu sobre as pedras
onde eu estava sentado. Depois disso, só sei que saí correndo num
pânico alucinado e fui parar na casa de um amigo. Mais tagarelice.
Não sei se foi um fracasso ou um sucesso, só sei que passei por
mais um cagaço. Vai ver era disso mesmo que eu precisava na
época.
Pode ser que a gente aprenda muito mais sobre magia e sobre
nós mesmos quando as coisas não acontecem exatamente como
planejamos. Se a magia fosse tão fácil quanto dizem por aí, a gente
provavelmente acharia a coisa toda muito banal e seria um grupinho
secreto de cristãos planejando a queda da Era Pagã ou algo assim.
Não. A magia, assim como a vida, é uma doideira, uma bizarrice e
uma maravilha. Nunca deixei de ficar impressionado com o fato de
que é possível, só ficando de pé numa sala, balançando os braços e
recitando uns versos horríveis, mudar o ambiente, mudar como nos
sentimos e possivelmente engatilhar um processo aleatório que vai
dar (mais ou menos) naquilo que queríamos que acontecesse.
Podemos teorizar, discutir e palestrar pedantemente o quanto
quisermos, mas eu acho que o cerne do mistério jamais será
explicado.
Acho extremamente difícil julgar resultados mágicos só em termos
de sucesso e fracasso. As minhas experiências com sigilos mágicos,
por exemplo, me mostraram que acontece muito de os resultados
não se manifestarem de jeito nenhum até que eu pense “ah, que se
dane, isso é perda de tempo” —aí eles aparecem. Algumas
abordagens mágicas chegam mesmo a recomendar que façamos
trabalhos por um resultado negativo de vez em quando —e o
contrário vai acontecer depois de um tempo. Todo ato mágico deve
ser instrutivo, especialmente quando não funciona como planejado.
Vou fechar então com alguns axiomas da magia que devemos ter
em mente:
1. Faça invocações com frequência.
2. Faça banimentos com frequência.
3. Faça tudo com estilo.
4. Mantenha certa perspectiva sobre as coisas.
5. Quando se enrolar, improvise.
MENTORIA E
PROFESSORADO NA
PEDAGOGIA MÁGICA

Este ensaio foi escrito em 1997 e publicado pela primeira vez em uma
antiga encarnação do meu primeiro site. É uma análise do papel de
orientação na pedagogia esotérica em contraste com as formas mais
tradicionais das relações de ensino e aprendizagem.

É
possível aprender sobre magia de formas muito variadas. Para
a maioria de nós, provavelmente os livros são a fonte primária.
Outros caminhos de aprendizado incluem cursos à distância,
oficinas, treinamentos em grupo e aulas particulares. Quando
informações sobre magia eram relativamente raras, as pessoas que
a ensinavam eram muito requisitadas como detentoras de
conhecimentos difíceis de adquirir de outra forma. Hoje em dia, é
claro, as coisas mudaram, porque há uma grande variedade de livros
e revistas de ocultismo, além da internet. Aliás, há quem diga que,
por conta disso, não há necessidade de procurar ninguém para nos
ensinar, já que a disponibilidade de informações sobre técnicas e
práticas mágicas é relativamente ampla.
Há também uma discussão recorrente sobre quais pessoas entre
as que se proclamam professoras, mestras espirituais e gurus estão
preocupadas apenas em inflar o próprio ego à custa de estudantes,
que por sua vez só se fodem com elas (muitas vezes literalmente!). É
comum desconfiar de pessoas que parecem querer ser vistas por
outrem como professoras. Dito isso, os classificados do ocultismo
estão cheios de gente procurando quem lhes ensine algo. Por quê?
Um fator que é preciso compreender envolve as crenças comuns
ligadas à iniciação. Muitos livros que falam sobre formas ocidentais
de magia sugerem, em graus variados, que estudantes só podem se
tornar proficientes e se iniciar nos “mistérios” se encontrarem alguém
proficiente que lhes ensine. Em alguns círculos, passar por uma
iniciação com uma pessoa reconhecida é algo que dá status, quando
comparado a uma simples autoiniciação —isto é, quando alguém é
autodidata. Me lembro que, na minha época de coven wicca, era
comum se referir a uma ou outra pessoa como autoiniciada, deixando
implícito que elas eram consideradas uma espécie de cidadãs de
segunda categoria em relação a quem havia se iniciado em um
coven. Ainda persiste a ideia de que, para ser magista, xamã ou
praticar bruxaria “de verdade”, temos de passar por uma iniciação
conduzida por alguém ou estudar com uma pessoa que seja mestra.
Isso está relacionado também à popularidade de sistemas
esotéricos não ocidentais, sejam oriundos da Ásia, da África ou das
Américas. Quando olhamos para os sistemas de magia
pseudoétnicos, tais como os vários tipos de prática xamânica, as
tradições pan-africanas ou os vários sistemas esotéricos orientais, a
conexão entre progresso pessoal e ter passado por uma iniciação ou
encontrado alguém que nos guie fica ainda mais explícita. O que
devemos lembrar aqui é que, nas culturas das quais esses sistemas
são tirados, as visões sobre esoterismo, ensino etc. podem muito
bem ser radicalmente diferentes das perspectivas ocidentais.
As pessoas ocidentais, dedicadas que são em se apropriar de
sistemas mágicos não ocidentais (ou pré-industriais), facilmente
esquecem ou ignoram a cultura que está por trás desses sistemas.
Por exemplo, na Índia se associa o termo “guru” a uma relação filial
entre quem ensina e quem estuda que é um pouco estranha para os
olhos ocidentais modernos, para quem a rebelião contra a geração
anterior (isto é, o movimento em direção ao individualismo) é um
imperativo cultural muito mais forte do que obediência e reverência a
pessoas mais velhas, e, por extensão, mais forte também do que
uma tradição histórica recebida.
A relação entre a pessoa que ensina e a tradição é importante, e
de fato muita gente no ocultismo contemporâneo busca um senso
sólido de tradição, um sentimento de continuidade entre prática
moderna e o que se fazia antigamente. Também é preciso
reconhecer que as pessoas que ensinam podem ser algo mais do
que detentoras de conhecimentos. Em nossa cultura da abundância
de informação, o papel de quem ensina não é mais o de quem
transmite conhecimento, e sim de alguém que pode nos ajudar a
trilhar um caminho no meio dele, nos ajudando a fazer uma triagem
daquilo que é relevante para nós e a entender o significado desse
caminho em nossa vida.
Me lembro de um magista veterano que eu costumava visitar para
conversar sobre magia. Eu o via como um professor, mas ele
sempre me dizia: “somos iguais, compartilhamos informação”. Certa
vez, pedi-lhe um conselho sobre como usar um pentagrama feito de
curvas, algo que eu havia imaginado, mas sobre o qual me sentia
inseguro. Ele disse algo como: “Interessante. Experimenta, depois
me conta o que aconteceu.” Isso me deu confiança para testar
minhas ideias sozinho, coisas que não estavam em livros —minhas
únicas fontes na época. É esse tipo de relação que torna a pessoa
que ensina valiosa para magistas aprendizes, algo profundamente
diferente da ideia comum de que as pessoas que ensinam magia, por
terem uma “iniciação superior”, têm autorização para vomitar
baboseiras pretensiosas em troca de adulação e obediência servil.
Acredito que magistas que já estão há uns bons anos mergulhando
em atividades mágicas às vezes se esquecem da sensação estranha
de dar os primeiros passos no mundo mágico. É bastante
compreensível que, ao tomar um rumo novo e relativamente
desconhecido, procuremos outras pessoas que possam nos ajudar, e
isso vale também para o aprendizado em magia. A sensação de
incerteza e de estar correndo riscos diminui muito quando contamos
com alguém que sabemos que dará apoio tanto para nos incentivar
quanto ajudar, especialmente quando as coisas ficam complicadas ou
estranhas. Lidar com incertezas é algo que cada pessoa faz de
forma diferente. É provável que haja diferenças claras entre alguém
que só teve contato com o ocultismo por meio dos livros e que, por
causa deles, passou a ter convicção da necessidade de encontrar
uma pessoa que ensina, e alguém cujas opiniões sobre o ensino da
magia em geral tenham sido ampliadas pelo contato com a cena do
ocultismo através de revistas, grupos de discussão ou da internet.
Então, em geral, sou a favor de que se tenham relações de
aprendizado, desde que —é claro— todas as pessoas envolvidas
estejam cientes do propósito da relação e do que está acontecendo.
Para esclarecer essas questões, vou explorar um pouco o papel da
mentoria.
A origem da palavra “mentor” está na Odisseia, de Homero.
Mentor era o professor de Telêmaco, o filho de Odisseu. A figura do
mentor é uma imagem central na mitologia grega, vista, por exemplo,
na relação iniciática entre Aquiles e o centauro Quíron. Ao longo das
eras, a palavra “mentor” se tornou sinônimo de amigo, conselheiro de
confiança, guia, terapeuta, professor e iniciador. Existem também
numerosos exemplos de relações mentor-estudante na história, como
Freud e Jung, Sócrates e Platão, e talvez Aleister Crowley e Alan
Bennett.
O que há de especial no Mentor, da Odisseia? Sua tarefa original
não era somente criar e educar Telêmaco, mas prepará-lo e
desenvolvê-lo para as responsabilidades que ele teria de encarar
como herdeiro de um reino. A mentoria, portanto, é mais do que um
mero lecionar: é oferecer conhecimentos, percepções ou
perspectivas que são especialmente úteis para a outra pessoa. A
essência da mentoria é difícil de precisar, pois é parte intuição, parte
sentimento, surge do momento em questão e é feita a partir dos
materiais disponíveis. Ser uma pessoa mentora exige a capacidade
de ser flexível. A relação de mentoria é algo que vai além de outras
relações formais.
Ajudar alguém a dar conta de um problema pessoal não é
necessariamente prestar mentoria. Mas um comentário casual, por
exemplo, se despertar novos entendimentos ou perspectivas sobre
um problema e revelar aspectos antes desconhecidos, pode ser
considerado um exemplo de mentoria. A história da magia está
repleta de exemplos de insights repentinos, desde as lendas dos
sábios zen, tântricos e taoístas, até o encontro entre Crowley e
Theodore Reuss, quando Crowley intuiu os segredos da magia
sexual. Portanto, uma das tarefas da mentoria mágica é esclarecer
estudantes. Para mim, a diferença central entre mentoria e
professorado é que neste se diz “faça isto”, mas naquela é mais
provável que se pergunte “o que você quer fazer?”. Quem professa
tende a despejar regras e assumir a interpretação de metáforas no
lugar de quem estuda. Na mentoria, no entanto, somos ajudados a
recapitular conscientemente nossas experiências para que deixemos
de seguir irrefletidamente as regras de outrem, ou de comprimir o
mundo dentro de metáforas que já perderam a validade há muito
tempo.
O foco central da mentoria é capacitar estudantes através do
desenvolvimento de suas habilidades. Fazer isso de forma efetiva
exige que a pessoa responsável pela mentoria respeite a
singularidade de cada estudante. Podemos ver os resultados de
ensinamentos disfuncionais quando encontramos pseudomagistas
que parecem ser pouco mais que o reflexo de quem lhes ensinou,
que não têm voz própria e tentam controlar o mundo com seus
sistemas de crenças que, parafraseando um comentário sardônico
de Peter Carroll, não funcionam nem como muletas para as pessoas
fracas, apenas como pernas quebradas para quem é incapaz. O
costume de ensinar magia no estilo “livro de receitas” não incentiva
ninguém a moldar as técnicas e teorias para que sejam relevantes à
sua experiência de vida imediata, apenas reforça o pensamento
opaco e estreito da maioria de ocultistas da atualidade. Desconfio
que isso aconteça porque muitas pessoas que professam têm certo
status ao qual se aferram, e isso envolve manter estudantes à sua
volta em vez de deixar que corram atrás de seus próprios interesses.
Já as melhores mentorias, ao contrário, são realizadas por pessoas
que enxergam o processo como uma experiência de aprendizado
para si.
A ideia de uma sabedoria imutável —que não fica obsoleta—
passada de magista experiente para iniciante é sedutora, mas
imprecisa em um mundo de mudanças constantes e aceleradas. A
mentoria exige trabalho e responsabilidade das duas partes
envolvidas. É uma parceria entre quem mentoreia e quem estuda,
baseada em respeito mútuo. As duas pessoas contribuem e se
beneficiam igualmente na relação.
No entanto, dito isso, também é preciso reconhecer que tanto
estudantes quanto mentores e mentoras em potencial precisam ter
clareza sobre as expectativas que trazem à relação. Para que a
mentoria seja efetiva, essas expectativas precisam estar explícitas.
A mentoria é baseada em uma relação amigável e informal, e
qualquer tentativa de extrair promessas firmes de qualquer um dos
lados provavelmente vai terminar mal. Mas isso não quer dizer que
algum tipo de acordo entre as partes seja inútil. Se as duas pessoas
tiverem deixado claras suas expectativas, então um acordo pode
servir para lembrá-las dos objetivos específicos que surgiram desse
trabalho conjunto e às vezes pode servir também de referência para
esclarecer os limites da relação.
Esse último ponto é particularmente útil na mentoria mágica, em
que a influência de quem mentoreia tende a se estender para além
dos limites da relação mágica propriamente dita —o que acontece
com frequência, sob uma variedade de roupagens e justificativas. O
desejo de que isso aconteça pode vir de uma ou de outra pessoa, ou
pode surgir inesperadamente a partir do compartilhamento de
experiências mágicas intensas. Problemas desse tipo não são
incomuns entre terapeutas e clientes, tampouco entre profissionais
da enfermagem e pacientes ou docentes e estudantes.
Ao longo dos anos, servi muitas vezes como mentor de magia.
Gradualmente, desenvolvi um acordo a ser usado nessas relações
que é algo como: “Esse é um encontro da minha experiência
passada com magia com a sua inexperiência e percepção (que me
desafia a fazer coisas que nunca fiz antes) e vai resultar em algo
novo e de valor para nós dois. O que eu quero dessa relação é que,
em algum momento no futuro, quando você alcançar excelência em
um aspecto da magia que está além das minhas habilidades, você
volte e me ensine sobre isso”. Muito me alegra relatar que, no geral,
isso aconteceu em nove de cada dez ocasiões.
Esse tipo de código pode ser visto como um acordo geral, algo
que a pessoa responsável pela mentoria pode deixar explícito desde
o início e mencionar de novo só quando a situação pedir. Também há
acordos mais específicos relacionados a objetivos e metas
determinados pelas duas pessoas na relação de mentoria —acordos
que podem ser ajustados, periodicamente avaliados, e que estão, é
claro, sujeitos a modificações.
Um tema central para entender o valor da mentoria é a habilidade
de lidar com mudanças. Mudanças acontecem em um ambiente
pessoal e social que está em constante transformação. Abandonar
crenças, comportamentos e, às vezes, relacionamentos familiares e
confortáveis é algo que costuma provocar uma sensação de perda.
Também é preciso lidar com o medo do desconhecido e a
possibilidade de fracasso. Mudanças são, é claro, centrais para a
magia. Frequentemente, a coisa mais difícil de se resolver é nossa
resistência a elas, ou a recusa de admitir que tanto nós quanto nossa
vida passamos por mudanças quase diariamente.
A chave para esse processo é a alteração de contexto —que pode
ser entendida como auxiliar ou complementar à alteração de crença.
Se você consegue imaginar com clareza como você e seu mundo
serão quando a mudança desejada for alcançada, vai começar a
fazer coisas que impulsionam suas ações em direção a essa meta.
Esse ajuste contextual tem de ser pensado em termos positivos.
Aqui, o desafio da mentoria é preparar quem estuda para
transformar a perspectiva dos problemas de hoje no sucesso de
amanhã. Deve-se reconhecer que mudanças não são instantâneas.
As pessoas esperam que a magia funcione, é claro, de uma hora
para a outra, como um processo positivo sem qualquer estresse ou
consequências desagradáveis. Assim, outro aspecto importante para
ajudar estudantes a lidar com mudanças é indicar estratégias de
manejo do estresse.
É importante lembrar que a relação de mentoria envolve confiança
e respeito mútuos, que, se bem fundamentados, vão se manter
apesar de discordâncias e diferenças interpessoais. Para a pessoa
que se assume como mentora de magia, sucesso é ver estudantes
desenvolverem o poder mágico à sua própria maneira, adquirindo
excelência e maestria em áreas da magia que podem ir além dos
interesses e das capacidades atuais da pessoa que mentoreia. Essa
forma poderosa de criar laços não deveria ser menosprezada,
especialmente em uma disciplina tão propensa a disputas sobre
diferenças mágicas e choques de personalidade como é a magia do
caos. A mentoria não tem a ver só com a transferência de
habilidades, teorias ou opiniões, mas é um processo pelo qual uma
pessoa incentiva outra a descobrir o que funciona para ela, da
maneira mais efetiva possível, por meio da aplicação de
conhecimentos e habilidades às suas próprias circunstâncias
singulares.
Em vários aspectos, encontrar uma pessoa que seja boa mentora
é muito mais difícil do que se aproximar de uma que seja professora.
Relações de mentoria tendem a aparecer informalmente e exigem
(para mim, pelo menos) uma interação cara a cara. Não consigo
fazer esse trabalho por carta ou e-mail. Assim como em uma
amizade, a relação se desenvolve devagar e (risos) caoticamente. E
ainda, algo que acho muito significativo, a relação de mentoria não é
totalmente focada em magia, pelo menos no sentido de discutir os
aspectos técnicos de magia prática, mas tem mais a ver com a
forma pela qual a magia adentra nossa vida. Então não caia na
armadilha de procurar uma pessoa para ser sua mentora da mesma
forma que se procura um professor ou uma professora. Busque uma
amizade.
DISSIDÊNCIA EM
GRUPOS DE MAGIA

Este ensaio foi escrito em 1998 e publicado na revista Talking Stick.


Baseando-me em algumas das minhas experiências, busco refletir sobre
as dinâmicas que se desenrolam quando uma pessoa sai (ou é expulsa)
de grupo de magia, sobre como lidar com isso e por que pode ser algo
traumático para todas as pessoas envolvidas.

Introdução

A
dinâmica de organizações e de grupos mágicos é uma área que
desperta meu interesse há alguns anos. Neste ensaio, quero
explorar o que muitas vezes é uma questão turbulenta: os
processos ligados à saída de uma pessoa de um grupo mágico
depois de alguns anos de parceria e de intensa exploração mágica.
A meu ver, nem sempre é algo simples como escrever um
comunicado de saída e se afastar do grupo, e talvez se tenha que
lidar com diferentes formas de “sequelas” psicológicas e emocionais,
tanto em nível pessoal quanto, às vezes, interpessoal. Também vou
discutir alguns processos de grupo que identificam pessoas como
transgressoras, e como se costuma lidar com isso.

Experiências de saída

Em 1980, passados alguns anos como magista solitário, entrei em


contato com um coven wicca na minha cidade. Como só havia
conhecido dois outros magistas praticantes antes disso, dá para
imaginar minha alegria ao finalmente conhecer uma galera que levava
o ocultismo a sério como eu. Comecei a trabalhar com esse grupo
uma vez por semana (às vezes mais), fazendo o treinamento de “um
ano e um dia”. Como relatei em meu livro Caos primordial, logo
depois da minha iniciação no coven, fui sumariamente afastado (e
isso era, como descobri muito depois, parte da iniciação!). Para lidar
com o baque desse acontecimento, fui passar oito meses no exterior.
Mas meus sonhos foram comigo até o outro lado do oceano —
sonhava que fazia rituais com as pessoas do grupo e que conversava
com elas—, e também tive de processar a ferida e a raiva que
ficaram por ter sido rejeitado depois do laço tão intenso que
havíamos criado. Foi essa experiência que pela primeira vez me fez
pensar muito sobre as consequências psíquicas e emocionais de
“sair” de um grupo mágico. Para resumir, depois disso, voltei ao
coven e trabalhei com o grupo por mais três anos antes de sair de
novo (agora por iniciativa própria) em circunstâncias bastante
amarguradas. Dessa vez, não senti as sequelas psicológicas tão
intensamente. Olhando para trás, entendo o porquê.
Naquele momento, o grupo já não era mais a minha rede primária
de amizades e relacionamentos no entorno da magia, nem minha
base principal nas formas de praticá-la. Eu não só já havia conhecido
mais magistas nessa época, como também havia começado a trilhar
genuinamente meu próprio caminho. Além disso, por causa tanto do
meu trabalho quanto da distância geográfica entre nós, eu passava
meses sem ver o grupo, e o único contato social que mantínhamos
era uma ou outra conversa pelo telefone com alguém. Depois de um
curto período, acabei descobrindo outro grupo que não tinha
qualquer ligação com o anterior.
Uns dez anos se passaram, e me vi de novo em circunstâncias
parecidas. Pouco depois de me mudar para Londres em 1991, fui
iniciado em uma ordem mágica internacional de grande porte. Na
época, cerca de dois terços das pessoas envolvidas com magia que
eu conhecia em Londres eram associados a essa ordem. Então,
além de frequentar encontros formais, também socializei muito com
essas pessoas. Apesar de eu participar de dois ou três outros
grupos, essa ordem em particular logo se tornou meu foco “primário”
de atenção. Conheci minha companheira nesse grupo e comecei a
me envolver em vários projetos com muita energia e entusiasmo.
Pela minha posição razoavelmente “privilegiada”, eu estava por
dentro das várias manobras “políticas” dentro da organização, e
geralmente tratava essas dinâmicas como simples jogos —um mal
necessário, talvez, para conseguir realizar determinadas coisas. Na
minha empolgação, recomendei a amigos e amigas que se juntassem
à organização e comecei a diminuir o contato que eu mantinha com
pessoas sem nenhum envolvimento ou interesse naquilo —meu
raciocínio (com meus botões) era que eu não tinha mais tempo, pois
estava dedicando quase toda minha atenção a esse grupo. No
entanto, a coisa não era bem um mar de rosas.
Revendo meus diários, percebo que eu criticava (muitas vezes
abertamente) um monte de coisas dentro da organização e estive
prestes a sair em várias ocasiões; mas nunca ia tão longe, sempre
decidia “dar mais uns seis meses”. Havia também uma complicação
a mais: eu estava envolvido em vários projetos editoriais com
colegas que também participavam da ordem e com quem eu havia
desenvolvido amizades sólidas, tanto no Reino Unido quanto em
outros países.
Ao final de 1995, decidi que era hora de sair da organização, e me
afastei oficialmente uns meses depois —primeiro pedi uma licença
formal e depois deixei claro que não tinha intenção de retornar. Minha
companheira saiu uns meses depois. De novo, notei que meu
imaginário onírico passou a refletir o momento: nos sonhos, eu fazia
rituais ou conversava com várias pessoas da ordem, e cheguei a
sonhar que faziam rituais focados em mim, embora eu não estivesse
presente. Não estou sugerindo de forma alguma que estavam me
“atacando magicamente”. Meus sonhos estavam apenas
esclarecendo e trabalhando as várias emoções e sentimentos que
tive em relação a essa organização e às pessoas que faziam parte
dela, especialmente as que eu via como amigas e colegas na magia.
Parte do problema da minha saída é ainda ser amigo de várias
pessoas envolvidas com a ordem, em diferentes instâncias, então
tem sido difícil evitar discussões sobre o que as pessoas andam
fazendo ou as “fofocas” do momento sobre as várias politicagens
internas. Além disso, percebi que, sempre que me encontro com
alguém que também saiu do grupo, é difícil não rememorar ou
revisitar antigas brigas e discussões, especialmente depois de duas
ou três rodadas de bebida. Chegou uma hora em que passei a
enxergar isso como uma atitude de autossabotagem, que só servia
para manter “vivos” os vários sentimentos e emoções que eu tinha
pelo grupo e por algumas pessoas. O resultado foi que acabei sendo
“envolvido” em algumas das tramas novelescas atuais da
organização —mais uma coisa que reconheço como minha própria
tendência a ficar remoendo rancores pessoais. Então, apesar de ter
“saído”, para todos os efeitos, desse grupo específico, até certo
ponto (talvez inconscientemente) acabei mantendo minha ligação com
ele.
Acredito que isso seja natural e até esperado. Olhando
retrospectivamente, quando saí de outras organizações mágicas em
que não tinha amizades próximas nem havia feito trabalhos intensos
(ou mesmo criado inimizades), não houve “sequelas”. Em geral, no
entanto, quando um grupo chega a ser nosso “foco principal”, como
nos exemplos que dei, pode levar tempo para trabalhar todas as
questões pessoais e interpessoais que surgem. É natural nos
preocuparmos com o que um grupo (ou integrantes que conhecemos)
está fazendo, ou nos indagarmos sobre como nos veem (“o que será
que falam sobre mim?”). O contrário também acontece. É comum as
pessoas saírem de grupos mágicos em circunstâncias amargas e
depois gastarem energia falando mal dele, seja em periódicos de
magia ou na internet, como é mais comum hoje em dia. É natural que
grupos se incomodem com críticas vindas de ex-integrantes, mas o
incômodo excessivo com a crítica também pode ser
contraproducente. Ao longo dos anos, testemunhei vários grupos e
ordens publicando longas “declarações” sobre coisas ditas sobre
eles por ex-integrantes. Isso, algumas vezes, descambou em trocas
de correspondência intermináveis nas páginas de periódicos de
magia. Digo e repito que, para mim, isso não ajuda em nada.
O silêncio é melhor que a negação, que só dá motivos para
especulação por parte de pessoas não envolvidas. Seria melhor
reconhecer que, quando as pessoas saem de uma organização em
circunstâncias um pouco infelizes, elas podem muito bem se sentir no
direito de compartilhar suas queixas como parte do processo de
elaboração.

Processo de demonização

Outra questão que está mais relacionada ao grupo do que à pessoa


que sai é a demonização de ex-integrantes, o que é uma reação
comum quando alguém se desliga do grupo. Alguns anos atrás, uma
amiga se envolveu com um grupo na região norte de Yorkshire. Ela
ficou ressabiada quando soube pela liderança que ex-integrantes
haviam se juntado para fazer um ataque mágico contra o grupo!
Minha amiga entendeu aquilo como uma paranoia enraizada e saiu, e
depois descobriu que o grupo havia achado que ela também estava
promovendo ataques. Parece que alguns grupos precisam ter
inimizades para manter um senso de coesão, sejam ex-integrantes,
grupos inimigos ou o Estado. Volta e meia ouvi as pessoas dizerem
que as inimizades estavam dentro do grupo; uma alternativa
preferível a ter de lidar com conflitos internos, aparentemente, é
fazer referências imprecisas a inimizades que ainda não foram
identificadas no grupo.
A demonização pode ser um processo muito sutil. Pessoas que
abandonaram o grupo podem ser feitas de bode expiatório e
responsabilizadas por uma variedade de problemas não resolvidos, o
que fica ainda mais fácil por elas não estarem presentes para se
defender, fosse essa a vontade delas. É claro que isso pode ser
problemático se a pessoa em questão ainda mantiver amizades
dentro do grupo. Nesse tipo de situação, as pessoas que são amigas
da que saiu têm de fazer a escolha ingrata entre ficar quietas
enquanto a dissidente leva paulada ou interferir e, obviamente, correr
o risco de elas mesmas serem criticadas. Como sabemos pelos
estudos de dinâmicas de grupo, existe muita pressão entre colegas
para agir de acordo com o comportamento coletivo, mais ainda
quando se trata do tipo de regra de conduta ou crença que fica por
baixo dos panos, sobre o qual muitas vezes não se fala ou que é
visto como algo que vale para todo mundo. Um problema relacionado
a isso é que, se o grupo tiver investido pesado na crença de que são
o “melhor” grupo que existe (e já estive em vários nos quais esse tipo
de crença fica subentendido, particularmente quando o álcool
começa a bater), então, é claro, as pessoas dissidentes se tornam
de “segunda categoria”. E sem dúvida, como o grupo em questão é
“o melhor”, quem faz parte dele não tem de assumir qualquer tipo de
responsabilidade pelas circunstâncias que levaram a pessoa a sair.
Parece que os grupos de fato têm a expectativa de que dissidentes
jamais conquistarão alguma coisa (pelo menos “magicamente”)
depois de sair.

Bodes expiatórios em grupos

Esse processo de “demonização” de ex-integrantes parece ter


relação com o fenômeno comum de fazer alguém de bode expiatório,
um recurso utilizado para culpar pessoas específicas por algo que
está acontecendo no grupo. Quando se identifica um bode expiatório,
há integrantes que tendem a sentir alívio; afinal, encontraram a
origem do ressentimento, das desconfianças, da raiva etc. que o
grupo está vivenciando. Como afirma Tom Douglas, esse processo
parece surgir “sem esforço aparente ou consciente” por parte das
pessoas no grupo.[12]
Ao que parece, grupos recorrem a um bode expiatório quando há
falta de coesão, como uma forma “segura” de resolver conflitos. É
importante notar, no entanto, que, embora esse processo pareça se
desenvolver “inconscientemente”, o bode expiatório é de fato
escolhido. Costumam ocupar essa posição pessoas que:

são vistas como se tivessem muito poder social dentro


do grupo ou, às vezes, poder demais;
têm características chamativas que desagradem outras
pessoas (aparência, por exemplo, ou não-conformidade
às normas do grupo);
são associadas a conflitos anteriores no grupo (por
exemplo, pessoas que ainda são amigas de dissidentes
que saíram em circunstâncias conflituosas);
parecem ter dúvidas quanto a integrantes dominantes
do grupo (isto é, pessoas que são vistas como críticas
demais ou que não apoiam a liderança); e
demonstram forte tendência à passividade ou que não
têm autoconfiança suficiente para se defender.

Uma vez identificado um bode expiatório (pelo grupo como um todo


ou, como é mais comum, pela liderança ou por integrantes
dominantes), o grupo começa a espalhar internamente o conflito,
criticando a pessoa. Isso pode ir desde “audiências formais”, nas
quais a pessoa é colocada diante de um tribunal, até procedimentos
sem a presença dela. Em uma notável ocasião, como o bode
expiatório se recusou a comparecer a um encontro do grupo, a alta
sacerdotisa mandou que integrantes convocassem a pessoa
“astralmente”.
O bode expiatório é fortemente pressionado a aceitar e se
adequar ao papel que lhe foi imposto. A pessoa às vezes se recusa
a ser enquadrada dessa forma, o que resulta em mais conflito, e é
muito difícil se desvencilhar do rótulo depois de atribuído. Embora o
objetivo inicial do grupo possa ser colocar a pessoa à margem até
que ela “se arrependa” do comportamento desviante, se ela gera
mais algum conflito ou o prolonga (se recusando a pedir desculpas,
por exemplo), pode acabar sendo forçada a sair do grupo ou ser
consideravelmente marginalizada (talvez deixem de lhe dar apoio
socialmente ou de convidá-la para eventos, por exemplo).
Como nessas situações se busca evitar conflitos abertos no grupo,
costuma ser difícil para os bodes expiatórios conseguirem apoio das
outras pessoas, principalmente quando elas são mais passivas e
obedientes aos mandos de integrantes dominantes. O bode
expiatório geralmente é visto como uma ameaça à existência do
grupo, não só no que se refere à sua coesão social, mas talvez
também em relação a suas crenças mágicas estruturais. Já vi casos
de pessoas serem criticadas porque seu comportamento estaria
“colocando a egrégora do grupo em risco”. Sempre que as fontes de
conflitos grupais são elevadas ao status de questões mágicas ou
espirituais, a sensação de estar sob ameaça por parte de outras
pessoas do grupo tende a aumentar consideravelmente.

Sinais de transgressão

Uma atitude comum ao processo de demonizar uma pessoa ou


apontá-la como bode expiatório é identificar transgressões
cometidas por ela. Aqui, qualquer comportamento visto como
antissocial (por mais que seja trivial), incluindo situações não
relacionadas diretamente ao grupo, é reinterpretado como “sinal” de
deslealdade. Vistos objetivamente, esses “sinais” podem parecer
insignificantes, mas são muito convenientes para quem usa o bode
expiatório ou a pessoa demonizada como alvo para projetar
emoções intensas. Comportamentos transgressores são vistos como
um reforço ao caráter dissidente da pessoa, desconsiderando todo o
contexto histórico da situação, a opinião de outras pessoas sobre o
ocorrido. Não é incomum que a pessoa transgressora seja
condenada por conflitos anteriores dentro do grupo, especialmente
se não foram resolvidos ou se ainda há dúvida sobre as razões que
os desencadearam. Desdém ou prejulgamentos em relação à pessoa
transgressora também são interpretados como evidência de sua
natureza desviante.

Reações do grupo à dissidência

Assim como a pessoa que sai passa por um processo de elaboração


pessoal relacionado ao grupo, também o grupo, por sua vez, tem de
passar por um processo parecido. Um termo útil que vem dos
estudos sobre ambientes de trabalho é “cura organizacional”, que se
refere a como uma empresa lida com mudanças grandes como
demissões em massa, por exemplo. Já observei que, quando a
pessoa que sai ocupa uma posição de destaque ou é responsável
por tarefas importantes dentro de grupos mágicos, ou quando uma
cisma interna leva à saída de uma grande quantidade de pessoas de
uma vez só, o grupo precisa de tempo para se “curar” dessas
situações.
É possível que mecanismos de defesa como a demonização de
integrantes dissidentes —mecanismos nem sempre viáveis,
dependendo do status que se atribui à pessoa em questão— sejam
medidas pontuais —embora possam se tornar habituais se o grupo
tem uma cultura de paranoia.[13] O problema com esses mecanismos
de defesa é que eles só adiam a resolução de conflitos e questões
interpessoais. Assim como a “demonização” de dissidentes parece
não fazer muito mais do que reciclar os sentimentos da pessoa em
relação ao grupo, eu diria que o mesmo acontece com toda
demonização de quem permanece no grupo. Claro que é difícil
comprovar esse tipo de suposição, pois é pouco provável que
qualquer grupo mágico vá admitir que usa essa estratégia de
demonização, e menos ainda que a saída de alguém —mesmo
depois de anos de envolvimento— seja problemática, tanto individual
quanto coletivamente. Aliás, pela minha própria experiência com
grupos mágicos, parece ser tendência geral explicar a saída de
integrantes como resultado de suas próprias dificuldades e limitações
pessoais, e quaisquer insatisfações que a pessoa tenha expressado
quanto ao grupo são ignoradas ou, na melhor das hipóteses, não são
levadas a sério. É importante notar que o histórico recente do grupo
—quanto a conflitos anteriores— provavelmente vai influenciar
situações futuras de natureza semelhante. Por exemplo, um grupo
ainda se recuperando de uma confusão recente tem menor
probabilidade de tolerar qualquer comportamento individual que
pareça divergir das regras e dos valores do grupo.
Uma estratégia de “cura” comumente usada por grupos mágicos é
recorrer a um ritual para recuperar o “equilíbrio do grupo”. Isso pode
ser de fato eficaz no curto prazo, aproximando as pessoas em torno
de um mesmo objetivo e despertando um sentimento compartilhado
de união, mas tende a ser uma forma de “encerrar” um período de
conflito sem lidar com as questões mais profundas relacionadas às
insatisfações e à raiva das pessoas. Isso pode até aliviar
temporariamente as tensões dentro do grupo como se estivessem de
fato sendo banidas, mas questões mal resolvidas costumam retornar
de modo sorrateiro, e muitas vezes reaparecem quando as causas
originais de insatisfação são reiteradas.
Para resumir o que discutimos até agora, portanto, eu diria, com
base nas minhas experiências e observações, que uma pessoa pode
ter problemas ao sair de um grupo quando:

o grupo em questão era seu principal foco de atenção;


ela estabeleceu amizades que podem ficar
estremecidas com sua saída;
ela continua tendo algumas conexões pessoais
relacionadas ao grupo;
o grupo tem grandes expectativas quanto às pessoas
que fazem parte dele, o que pode levar a sentimentos
de culpa ou de que ela falhou com alguém de alguma
forma (note: valores de grupo podem rapidamente se
tornar valores pessoais);
ela foi identificada pelo grupo como bode expiatório, ou
é vista como aliada de outra pessoa tomada bode
expiatório ou demonizada;
o grupo foi até então sua principal fonte de contato com
magistas e ocultistas; e/ou
o grupo foi sua fonte primária de “formação em magia”.

Esses últimos dois pontos são importantes porque as pessoas às


vezes hesitam em sair de um grupo quando ele é sua principal fonte
de contato com ocultistas —especialmente se tiverem os mesmos
interesses. Parece que uma das razões mais comuns que levam as
pessoas a entrar em grupos, segundo elas próprias relatam, é
conhecer alguém com mentalidade parecida.

A importância do apoio
A tensão vivida quando se sai de um grupo também pode ser
intensificada se a pessoa dissidente não tiver outra rede de apoio.
Ocultistas costumam achar difícil discutir essas questões com
amigos e amigas não ocultistas. Na minha experiência, percebi que
ajuda muito conhecer pessoas envolvidas com magia que, embora
não participem dos mesmos grupos que eu, têm experiência
suficiente para entender meus sentimentos.
Ter alguém com quem conversar sobre nossos sentimentos faz
muito bem para qualquer processo de elaboração. É claro, nos
casos em que o grupo é a fonte principal de relações naquela área
(como no exemplo que dei sobre a minha primeira saída de um
coven), é difícil conseguir isso. Já conheci magistas que, embora
expressassem muita insatisfação com o grupo de que faziam parte,
pareciam sentir que não havia “nenhum outro lugar para onde ir”. De
fato, parece que o forte senso de inclusão em grupos mágicos (essa
ideia de um “nós”), que funciona como um estreitador de laços
(interesses em comum, crenças e experiências compartilhadas),
pode acabar isolando as pessoas e as impedindo de fazer contato
com outros grupos e magistas. Outros fatores que podem influenciar
esse tipo de situação são a localização geográfica (por exemplo, é
mais difícil diversificar contatos sociais em uma cidadezinha do que
em uma metrópole) e a desconfiança que costuma existir entre
grupos mágicos —particularmente quando um indivíduo “passa” de
um sistema de crenças para outro, ou vai para um grupo “rival”
dentro do mesmo sistema. A diversidade de crenças e abordagens
que caracteriza o paganismo e outras vertentes de magia costuma
ser vista como um ponto forte; no entanto, também pode dificultar a
transição entre grupos e redes de diferentes inclinações, em
particular se a pessoa em questão já estiver se sentindo isolada e
temerosa por causa do rompimento anterior com um grupo.

Conclusão

Ao se juntar a qualquer grupo, a pessoa está assumindo riscos


pessoais. Embora grupos mágicos tenham algumas características
peculiares que os distinguem de outros tipos de grupo, é claro que
não deixam de estar sujeitos às dinâmicas gerais que se observam
em todo tipo de organização social. Como ocorre com outros tipos
de grupo, é importante ter a capacidade de identificar os processos
subjacentes a situações e acontecimentos, e muitas vezes é difícil
alcançar essa compreensão.
Um motivo dessa dificuldade é que quanto mais emocionalmente
apegada a pessoa está a uma situação, mais difícil é dar um passo
para trás e perceber as dinâmicas subjacentes ao caso. Outro é que
grupos mágicos em geral não têm consciência sobre os processos
de grupo (pelo menos na minha experiência; uma exceção notável
são os grupos formados quase exclusivamente por profissionais da
educação ou da saúde), além da falta de consciência de que integrar
um grupo requer o exercício de certas habilidades interpessoais e
observacionais.
De fato, parece que normalmente se assume que ser parte de um
grupo é fácil e não exige muito esforço. Essa falta de consciência é
gritante quando ocorre algum conflito; na verdade, alguns grupos
com os quais já me envolvi sequer parecem reconhecer que o conflito
é uma característica inerente a qualquer organização social. O
resultado disso é essa tendência a culpabilizar alguém em vez de
buscar outras formas de lidar com as desavenças. O problema da
busca por bodes expiatórios e da demonização é que elas logo se
tornam padrões comportamentais do grupo e são muito
desgastantes para as pessoas envolvidas. Isso, por sua vez, nutre a
“cultura de paranoia” tanto dentro do grupo quanto na sua maneira
de enxergar o ambiente externo, de novo diminuindo a probabilidade
de explorar outros caminhos para resolver conflitos.
REFLEXÕES SOBRE
PRÁTICAS DIÁRIAS

Este ensaio foi escrito em 2009 e publicado no meu blog enfolding.org.


Trata-se de uma curta reflexão sobre incorporar práticas esotéricas no
cotidiano, se abrir a surpresas e aproveitar momentos oportunos para
desenvolver habilidades e sensibilidades.

U
m tema central na minha perspectiva sobre o tantra é a
“consciência desperta”. Uma forma de explicar esse conceito é:
estar consciente do que acontece à nossa volta no momento
presente, em vez de se prender a fantasias sobre o futuro ou remoer
eventos passados. Muitas de nossas práticas têm o objetivo de
ampliar a capacidade de estarmos “conscientes-despertos” e podem
ser feitas em qualquer lugar, em meio à correria da vida cotidiana,
diferentemente das práticas para as quais temos de tirar um tempo.
Isso se relaciona ao fato de que, no tantra, não se faz a distinção
vista em muitas vertentes de magia ocidental entre o mágico e o
mundano, o espírito e a matéria, o inferior e o superior etc. —no
tantra, os diferentes aspectos da vida não são compartimentalizados
dessa forma. Embora se incentive as pessoas a experimentar vários
tipos de práticas diárias, também se sabe que muitas pessoas que
têm uma vida mais corrida nem sempre podem fazer isso. O tantra
tem menos a ver com um conjunto distinto de práticas, e mais com
viver a vida de uma maneira específica.
A ideia de consciência desperta está relacionada à prática de nos
localizarmos no presente imediato: não sermos levados de um lado
para o outro pelas preocupações do passado e do presente ou pelas
ansiedades sobre o que o futuro pode trazer. É claro que isso é
difícil, já que tendemos a recair em todo tipo de turbulência mental.
Isso é algo natural. Para mim, é importante não me cobrar demais
quando me pego fazendo isso, mas sim tentar relaxar e tomar
consciência do que está em meu ambiente imediato. Quando nada
funciona, tento me concentrar em como sinto meu corpo: como estou
sentado, como estou respirando, qual a sensação da roupa tocando
minha pele. Fechar os olhos por um momento pode ajudar. Nesse
sentido, nosso corpo é o melhor professor, por isso é comum se
referir a esse tipo de prática como uma forma de prestar atenção à
sabedoria do próprio corpo.
Outra coisa central para mim é a ideia de que o mais perto que
chegamos de sentir a presença divina é quando experimentamos
admiração, alegria, surpresa. Qualquer atividade que promove essas
emoções deve ser abraçada, desde as aparentemente simples até
as mais profundas. Em certo sentido, o tantra é um modo de vida
que nos permite fazer da alegria e da admiração o nosso estado-
base de existência.
A alegria pode ser algo muito simples. Muitas vezes encontro
momentos de alegria ao simplesmente caminhar até o trabalho pela
margem do rio Tâmisa. No efeito da luz do sol ao bater numa poça
d’água, no sorriso de uma pessoa estranha que cruza meu caminho,
ao sentir uma rajada de vento, ao olhar um gráfico que acabei de
levar uma hora ou mais para refazer e sentir uma tranquila
satisfação. Eu diria que, para mim, parte da consciência desperta
tem a ver com estar aberto à alegria, à admiração e à surpresa que
surgem de qualquer direção. Vale repetir: desenvolver isso leva
tempo.
Há muitos anos, eu costumava ensinar exercícios de relaxamento
em um hospital. Um dos primeiros choques com que tive de lidar foi
que muitas pessoas simplesmente não sabiam “relaxar” —tinham de
se esforçar para isso— e não tinham qualquer experiência consciente
da sensação corporal do relaxamento.
Na cultura moderna, o relaxamento se tornou um tipo de “trabalho”.
É muito difícil só “não fazer nada” —mesmo quando o corpo não está
ocupado, a mente está um turbilhão. Então, aprender a não fazer
nada pode ser por si só um “exercício”. Já passei horas sentado
debaixo de uma árvore, sem pensar em muita coisa. Considerando
que somos freneticamente estimulados o tempo todo a nos ocupar, a
fazer coisas e ir a lugares (seja em termos físicos, emocionais ou de
desenvolvimento pessoal), não fazer coisas pode ser uma prática
mágica. Claro, isso pode ser visto como uma receita para a
preguiça, enquanto muitos livros de magia vão dizer que precisamos
desenvolver autodisciplina e força de vontade —mas por quê?
Sempre vejo na internet várias pessoas reclamando que não estão
fazendo “práticas diárias” tanto quanto sentem que deveriam.
Isso me cheira a “desenvolvimento-espiritual-como-trabalho”. Por
que não adotar uma postura descontraída? No passado, algumas
vezes eu disse que minha prática não era séria, que eu só estava
“me divertindo”.
Além disso, para mim parte da consciência desperta é não me
forçar a um regime artificial. Já lido com regras o suficiente no
trabalho, e não vejo nenhum benefício em replicar isso em qualquer
outra área da minha vida.
É muito fácil cair no ciclo de pensar “tenho de fazer uma prática
diária” e depois, quando o entusiasmo inicial se esvai, simplesmente
parar e ficar se culpando por não manter a rotina. Sei muito bem
como é isso por já ter me comprometido muitas vezes a cumprir
rotinas impossíveis e depois fracassar.
Então, perguntas: por que você tem de fazer uma prática diária? É
algo necessário? O que você espera conseguir com isso?
Pode ser que “prática diária” não seja de fato aquilo de que você
precisa agora. Talvez você precise repensar o que constitui uma
“prática diária” para você. Embora a gente recomende várias
práticas diárias, também acho importante que as pessoas encontrem
seus próprios “inícios”, por assim dizer. Por exemplo, se você acha
difícil se sentar e permanecer na mesma posição seja lá por qual
período, uma prática que envolve muito tempo nessa posição vai ser
difícil. Mais uma vez, muitas de nossas práticas são coisas que você
pode fazer em qualquer lugar, em vez de ter de reservar um tempo e
um local para praticá-las. O objetivo de uma prática pode ser
desenvolver certas atitudes —como se abrir à alegria e ao esplendor
presentes no mundo. Fazer rituais, repetir mantras, meditar etc. são
somente instrumentos para esse processo. É claro que é bom
manter uma prática diária no sentido de fazer um exercício especial,
mas acho que a pessoa tem de estar “pronta” para isso: estar
animada com a prática, deixar que ela estruture o dia.
Algumas coisas que tento fazer todos os dias e que são mais
hábitos mentais do que “exercícios especiais”:

relaxar para entrar no presente imediato quando


percebo que estou me perdendo em um turbilhão
mental;
prestar atenção ao ambiente à minha volta;
observar minha respiração;
me abrir para o deslumbramento e a alegria; e
tomar consciência do meu corpo.
PARTE IV
TANTRA
INTRODUÇÃO

M
eu envolvimento com o tantra começou com um sonho —um
sonho com Kali. Em 1982, eu estava morando na zona rural de
Lincolnshire —por estar afastado das minhas amizades e de
ocultistas que eu conhecia, achei que era uma oportunidade para dar
um tempo nas práticas mágicas. Embora eu achasse que não queria
mais me envolver (naquele momento) com magia, a magia continuava
envolvida comigo. Certa noite, sonhei que conhecia a deusa indiana
Kali em um crematório. Foi um sonho vívido. Acordei com a memória
dos olhos dela cravados em mim. Na noite seguinte, tive o mesmo
sonho, que se repetiu por mais três noites. Não vou dizer que nunca
tinha ouvido falar de Kali, mas, naquela época, eu não tinha interesse
por nada que fosse da Índia. Claro que muitos livros de ocultismo
tinham referências variadas a mantras, chacras e várias divindades
indianas, mas eu jamais imaginaria sonhar com aquilo de modo tão
direto, intenso e recorrente. Ao mesmo tempo, tive a sensação de
que a experiência era significativa, mas não consegui identificar sua
importância.
Como eu não tinha com quem conversar sobre o assunto, anotei o
sonho e o transformei em um tipo de pathworking que eu poderia
executar antes de dormir. Não fiquei surpreso quando o sonho
retornou de modo ainda mais intenso, e foi justamente essa
experiência com Kali que me fisgou. Mas eu não tinha quem me
ajudasse a entender melhor o sonho, então não me concentrei nele.
Mais ou menos um ano depois, me mudei para Nottingham para
fazer um curso de enfermaria psiquiátrica e me envolvi com um grupo
de teatro experimental. Nesse período, pude me reconectar com
várias amizades do ocultismo. Alguns amigos wicca me “explicaram”
que meu recente interesse em Kali teria a ver com alguma vida
passada na Índia, mas eu era cético em relação a afirmações desse
tipo. Foi mais ou menos nessa época que comecei a ler sobre tantra.
Não parecia haver muito material disponível —alguns livros new age,
outros sobre “sexo sagrado”, e um ou dois escritos de ocultistas
ocidentais que tratavam o tantra como uma variante da cabala, mas
nada falava sobre rituais ou sobre como começar algum tipo de
prática, o que obviamente era o que eu queria. Cheguei a ler um
pouco de sir John Woodroffe (vulgo “Arthur Avalon”), mas achei tudo
praticamente incompreensível.
O primeiro grande avanço aconteceu quando me mudei para York
decidido a passar da enfermagem psiquiátrica para a terapia
ocupacional. Essa especialização de três anos acabou exercendo
grande influência na minha abordagem mágica posterior, pois incluía
treinamentos intensivos tanto em dinâmicas de grupo quanto em
dramaterapia, além de ter uma abordagem multidisciplinar de
técnicas terapêuticas que influenciariam minha forma de praticar
magia do caos. Raven, uma das alunas da minha turma, havia
passado uma temporada em um ashram de siddha yoga na Índia.
Ela me pareceu ter muito conhecimento sobre tantra e yoga —além
de ser professora certificada de yoga, ela também se interessava
por wicca. Formamos uma parceria mágica, e ela participou de
alguns encontros dos covens com os quais eu estava envolvido na
época (um em York e outro em Macclesfield). Foi um relacionamento
intenso e um tanto estressante, porque sentíamos que não era
possível compartilhar nossos interesses mútuos em ocultismo com
outras pessoas. Foi por influência dela, no entanto, que consegui
entender minhas experiências com kundalini em 1984.
É difícil escrever sobre kundalini até mesmo nas circunstâncias
mais favoráveis, pois praticamente toda pessoa que escreve sobre
ocultismo parece ter uma opinião própria sobre o assunto e seu
significado enquanto experiência mágica ou espiritual.
No equinócio de outono de 1984, fui iniciado no segundo grau da
wicca. Algumas semanas depois, comecei a ter crises de vertigem, a
sensação de deslocamentos pelo corpo e outras sensações
estranhas na base da coluna. Em mais de uma ocasião, essas
sensações ficavam tão difíceis de suportar que eu quase tinha
ataques —meus dentes batiam, eu sentia calor e frio ao mesmo
tempo e tinha contrações musculares involuntárias. Eu não sabia o
que estava acontecendo, mas Raven me acalmou e disse que se
tratava do despertar da “serpente de fogo”, a kundalini. Essas
experiências intensas pareciam ocorrer com frequência cada vez
maior. Eis um excerto do meu diário mágico da época:
Começou como um grito na minha cabeça —“o grito de Kali”, pensei, que reverberou por
um tempo que parecia interminável até eu não conseguir mais “ouvi-lo”. Eu o vi e o senti
como uma luz branca que desceu pela minha coluna e se enroscou no meu chacra-raiz,
que se abriu com um clarão. Uma sensação de frio começou a se espalhar lentamente
pelo meu corpo, como se todos os meus nervos estivessem acesos, e senti como se a
ponta dos meus dedos brilhasse. Comecei a tremer e ter espasmos, e fui tomado por uma
desorientação, que piorava quando eu fechava os olhos e me dava a sensação de estar
girando em alta velocidade, envolvido por padrões coloridos em espiral. Logo me esqueci
das outras pessoas no quarto, entrei na postura de lótus, que para mim era a melhor
maneira de não sucumbir. Tudo isso durou mais de uma hora, e foi muito difícil manter o
controle.

É difícil expressar o quanto essas experiências foram


assustadoras e desconfortáveis para mim, pois eu não tinha muito
contexto para entendê-las. Eu havia lido alguns livros que falavam
sobre kundalini e chacras e tal, mas tinha entendido que essa
experiência só acontecia com magistas de nível avançado e,
independentemente das minhas pretensões pessoais, eu não me
considerava um praticante avançado. Raven era a única pessoa a
quem eu podia de fato recorrer, e a interpretação dela de que eu
havia passado por uma “experiência com a kundalini” me pareceu
fazer sentido, dado o que eu já tinha lido e minha iniciação recente.
Ela achou que esse marco, juntamente com os trabalhos rituais e
pessoais intensos que eu vinha fazendo, haviam desencadeado o
despertar da serpente.
Isso me levou a repensar a autoridade que eu atribuía a textos
ocultistas. Até aquele momento, eu havia mais ou menos acreditado
no que lia sem questionar muito. Já havia começado a ficar mais
cético quando as pessoas falavam em fatos do ocultismo, mas ainda
tinha certa reverência pelos textos, especialmente aqueles escritos
por pessoas mais velhas. Desde então, passei a ter um senso de
discernimento —e talvez um ceticismo saudável— quanto às
declarações de autoridades no assunto. Em vez de absorver e
internalizar passivamente o que eu lia, comecei a confiar mais nas
minhas próprias opiniões e ideias. Com o passar dos anos, fui
tratando cada vez mais essas experiências como uma coisa estranha
que me aconteceu e que, na época, teve um impacto profundo, mas
não mais do que isso. Teriam sido experiências “autênticas” com a
kundalini? De certa forma, não faz tanta diferença. Uma pessoa que
declare ter tido uma experiência autêntica com a kundalini pode gerar
bastante capital social e espiritual, mas nunca tive muito interesse
nisso. A meu ver, experiências intensas são simplesmente parte do
processo de quem busca uma trajetória ocultista, e não adianta
analisá-las demais nem as interpretar como sinal de que se alcançou
algum grau de proficiência.
Em 1986, me mudei para Leeds, um lugar onde as várias vertentes
ocultistas que despertavam meu interesse se misturavam de uma
maneira nova para mim. Leeds tinha uma cena ocultista robusta, que
havia crescido consideravelmente desde a primeira vez que tive
contato com ela no final da década de 1970. Boa parte dela girava
em torno da Sociedade Ocultista da Universidade de Leeds, onde
depois eu daria minhas primeiras palestras. Na sociedade, não havia
só paganistas, magistas do caos, thelemitas e pessoas interessadas
em fazer magia com entidades lovecraftianas —foi por meio dela que
conheci meu professor de tantra, Vishvanath, que era membro da
AMOOKOS. Eu havia decidido buscar mais informações sobre ele
depois de vê-lo dar uma palestra, pois ele me pareceu não só ter
muito conhecimento sobre o tema, mas também um bom senso de
humor —algo de que eu costumava sentir falta nas pessoas que se
diziam interessadas em vertentes indianas de espiritualidade. Depois
de um ano de conversas intensas e muitas caminhadas noturnas
pelas áreas verdes de Leeds, Vishvanath me iniciou, e comecei a
fazer os testes da AMOOKOS orientado por ele.
A AMOOKOS —ou, para dar o título completo, a Arcane Magical
Order of the Knights of Shambhala [Ordem Arcana e Mágica dos
Cavaleiros de Shambhala]— era um grupo mágico híbrido
influenciado por fontes primárias do tantra e pelos escritos de Sri
Gurudev Mahendranath, conhecido como “Dadaji”. Mahendranath,
cujo nome original era Lawrence Miles, era um “sadhu branco”, um
ocultista inglês que vivera na Índia desde o final da década de 1950,
se tornara asceta, dizia ser iniciado e, ainda mais importante, dizia
ser a autoridade espiritual que transmitia a linhagem da tradição
tântrica uttara kaula. Boa parte do material usado pela AMOOKOS
foi criada por Mike Magee, antigo membro da Typhonian OTO de
Kenneth Grant, que vinha traduzindo fontes primárias do tantra para
o inglês.
Continuei com as práticas que havia aprendido com Vishvanath e a
AMOOKOS ao longo dos anos 1980 até meados da década de
1990. No entanto, comecei a sentir uma insatisfação que crescia aos
poucos. Na época, particularmente na magia do caos, estava em
voga a ideia de que a essência de todos os sistemas mágicos era
parecida, e de que contexto cultural e história não importavam muito.
Eu aceitei esse posicionamento por um bom tempo, até começar a
questioná-lo cada vez mais. Comecei a me dar conta de que por me
concentrar quase sempre nas semelhanças entre as práticas de
magia ocidental com as quais eu lidava, e também no que eu
conhecia sobre práticas tântricas, eu ignorava as diferenças e os
contextos históricos e culturais que as haviam moldado. Tive a
impressão de que, sempre que dava palestras sobre tantra, a noção
geral das pessoas era de que o tantra “só tem a ver com sexo”, e
então comecei a me perguntar de onde vinham essas ideias.
Fiquei fascinado com o quanto as percepções ocidentais do tantra
estavam ligadas a ideias que surgiram no período colonial, e com o
quanto os relatos sobre tantra, no ocultismo ocidental, perpetuavam
e transmitiam antigos preconceitos coloniais sobre a Índia. Ao
mesmo tempo, descobri que havia uma fortuna de informações
disponível em materiais acadêmicos. Estudos tântricos eram agora
uma área reconhecida, e muitos textos sobre o tema estavam
disponíveis em inglês. Conhecer esse material foi uma espécie de
revelação, e fiquei cada vez mais interessado em tentar desvendar
como o tantra, enquanto fenômeno cultural e histórico, se encaixava
mais amplamente na religião e na vida social da Índia. Comecei a
perceber que conhecimentos históricos, culturais e linguísticos, ainda
que incompletos e fragmentados, na verdade eram muito úteis para
entender o tantra e para minha própria prática. Nesse momento,
praticamente parei de ler explicações do ocultismo ocidental sobre o
que supostamente seria o tantra e comecei a buscar materiais
acadêmicos, densos e às vezes confusos, além de traduções das
fontes primárias.
Ao fazer isso, comecei a mudar minha percepção sobre minhas
próprias práticas. Comecei a enxergar que, embora eu tivesse a
tendência de encarar minhas práticas (e das pessoas que eu
conhecia) como verdadeiramente “autênticas”—diferentes, por
exemplo, das práticas neotântricas do new age—, na verdade eu
estava, até certo ponto, sob o véu da autenticidade que é tão comum
entre praticantes ocultistas de qualquer tradição. Eu havia
internalizado e muito essa percepção de mim mesmo, e levei um
tempo para me livrar desse apego. Tive de aceitar que a minha
compreensão do tantra sempre será, em alguma medida,
fragmentada, parcial e inacabada —e tudo bem.
De certa forma, eu havia chegado ao tantra por meio da bruxaria,
e o que juntava as duas correntes, para mim, eram o amor às
deusas e o espaço dedicado à admiração, ao mistério e à epifania,
que eu havia encontrado primeiro na bruxaria, depois no tantra.
Também me sentia intelectualmente estimulado pelos desafios de
estudar a história da Índia e sua filosofia. Havia me acostumado à
ideia de que práticas eram ativas em sua maioria —rituais,
meditações e coisas assim—, e que simplesmente ler um livro sobre
teorias da lírica indiana, por exemplo, não seria tão importante
quanto empunhar uma adaga ou entoar um mantra. No entanto,
comecei a entender como um aspecto alimenta o outro. Se eu
estivesse recitando um hino indiano traduzido em louvor à deusa
Durga durante um ritual, por exemplo, saber que alguns de seus
elementos eram metáforas poéticas de um repertório comum, e que
outros eram reformulações de tradições mais antigas, de fato
aprofundava minha consciência quanto ao significado do hino. Passei
a me ver como praticante de uma abordagem híbrida do tantra,
baseada nos elementos das tradições textuais e orais que eu
considerava estimulantes, e ao mesmo tempo reconhecia que não
me é possível (e nem quero que seja) fugir da minha herança
intelectual e cultural.
KUNDALINI: UMA
ABORDAGEM PESSOAL

Este ensaio foi publicado pela primeira vez no n. 3 da revista Chaos


International em 1987, e escrito a partir de uma palestra dada na
Sociedade Ocultista da Universidade de Leeds no ano anterior —eu o
escrevi como uma tentativa de lidar com minhas próprias “experiências
com a kundalini” enquanto cursava terapia ocupacional. Parte do currículo
do curso era o estudo da neuroquímica cerebral, e isso, junto a estágios
que fiz em unidades hospitalares especializadas em diversos distúrbios
neurológicos, deu mais vida à minha forma de abordar o assunto. O texto
também se aproxima um pouco do modelo dos oito circuitos da
consciência, de Timothy Leary, algo que eu havia me esquecido totalmente
que já foi de meu interesse.

Sou a chama que arde em cada coração do homem, e no âmago de cada


estrela. Sou Vida, e quem dá Vida; e no entanto, assim, o conhecimento de
mim é o conhecimento da morte.
—Aleister Crowley,
O livro da Lei, 2:6

O
despertar da kundalini, ou serpente de fogo, é um elemento
central na magia contemporânea, que assimilou o conceito a
partir de sua fonte original, o tantra. Embora o conceito de
kundalini tenha sido apresentado a ocultistas ocidentais por
teosofistas como Alice Bailey e C. W. Leadbeater, foram os escritos
mais detalhados de Arthur Avalon e Aleister Crowley que levaram
uma quantidade significativa de ocultistas ocidentais a buscar essa
experiência. Foi Crowley especificamente que ofereceu uma síntese
das práticas de magia ocidentais e orientais e legou a ocultistas
posteriores uma abordagem integrada da experiência com a
kundalini, identificando-a como o “poder mágico” central no
organismo humano. Seus experimentos (entusiasmados) tanto com
drogas quanto com magia sexual eram completamente diferentes do
“asceticismo espiritual” pregado por muitas pessoas de sua época.
Enquanto a “espiritualidade” era geralmente associada a filosofias
que rejeitam a experiência corpórea ou somática, Crowley construiu
a fundação de uma abordagem ocidental ao desenvolvimento pessoal
que integra tanto o aspecto psíquico quanto o somático da
experiência. Foi só na década de 1960, e com a chegada da “era
psicodélica”, que essa abordagem recebeu atenção mais ampla (e
séria). Os anos 1960 foram o início do que Timothy Leary chamou de
“tecnologia hedonista”: a descoberta do prazer, no lugar da restrição,
por meio de drogas, sexualidade, dança, música, massagem, yoga e
dieta. A “era psicodélica” também trouxe consigo um grande
“renascer ocultista”, interessado principalmente numa magia de
orientação hedonista, como no tantra e no culto thelêmico de Aleister
Crowley.
Dessa explosão de consciência se desdobraram o pensamento e a
prática de magia dos anos 1970, principalmente com a exposição
das ideias de Crowley, dos preceitos tântricos e dos trabalhos de
Austin Osman Spare feita por Kenneth Grant. Periódicos voltados à
thelema, como SOThIS, Agape e The New Equinox, ofereciam
pontos focais para a evolução de técnicas e considerações em
magia. A natureza fisiológica dos estados intensos de consciência
passou a ser cada vez mais reconhecida, e a magia passou a ser
vista cada vez mais como uma abordagem de desenvolvimento
pessoal que integra tanto a experiência mental e interior quanto a
consciência corporal. A “potência” agora estava dentro de cada
pessoa, e não em uma força externa qualquer.
Desde os anos 1960, o “despertar” da kundalini se tornou uma
experiência muito procurada no Ocidente. A magia é um dos
principais caminhos para isso, o yoga é outro, além de cultos
extáticos liderados por uma variedade de gurus. Muita coisa já foi
dita sobre o assunto, desde os escritos mais técnicos como os de
Kenneth Grant, até trabalhos populares sobre kundalini yoga e
manuais de sexo baseados no tantra.
Assim como acontece com muitos outros temas ocultistas, hoje
existem muitos livros que foram escritos “de tabela”, isto é, por
pessoas que perpetuam uma perspectiva específica sobre o assunto
em vez de escrever a partir da experiência direta. Isso levou a muitas
confusões e equívocos relacionados à natureza geral da kundalini e à
experiência com ela. O poder da experiência em transformar a
consciência em diversos graus parece ser reconhecido quase
universalmente, mas alguns escritos fazem ressalvas à prática de
kundalini yoga, enquanto outros dão a impressão de que, para
experimentar a kundalini, bastam alguns asanas básicos de yoga e
uma pessoa interessada (geralmente) do sexo oposto. É a sua
kundalini que está subindo ou você está feliz de me ver?
Então o que quer dizer “experiência da kundalini”? Kundalini é uma
palavra em sânscrito que pode ser traduzida como “enrolado como
uma cobra”. A kundalini é representada em muitas ilustrações
tântricas como uma serpente adormecida, enrolada três vezes e
meia na base da espinha dorsal. A ideia popular que se tem é de
uma força dormente à espera de ser ativada por meio de diversas
práticas. O “poder da serpente”, uma vez despertado, sobe pelo
canal central da coluna e entra nos chacras (centros de energia
psíquica) até chegar ao chacra da coroa e o yogue atingir a
“iluminação”.
Parece simples, não? Mas a experiência com a kundalini é um
fenômeno muito mais complexo. Ao se aprofundar no assunto, fica
claro que não há um consenso sobre isso. A ciência ocidental e a
mística oriental, a sabedoria antiga e a pesquisa moderna —todas
deram explicações muito variadas sobre como funciona a kundalini.
Assim como em qualquer outro tipo de experiência do “oculto”, o
melhor modo de proceder é a partir da vivência pessoal; e, com
relação à kundalini, a experiência direta mudou minha forma de
encará-la (além de muitas outras coisas) e me fez buscar minhas
próprias respostas. Quando me deparei com o tema da kundalini
pela primeira vez nos escritos de Kenneth Grant e Gopi Krishna, tive
a impressão errônea de que eu certamente deveria evitar o assunto
até que minhas habilidades mágicas e ióguicas fossem “mais
avançadas”. E o que foi que aconteceu? Tive uma experiência com a
kundalini. Que inusitado, não? Isso aconteceu depois de um longo
período de bhakti yoga em devoção à deusa Kali, que culminou em
uma visão de “morte e renascimento” muito intensa —eu era
queimado vivo em uma plataforma de pedra, e depois refeito em uma
nova forma.
A experiência com a kundalini ocorreu sete dias depois. Eu tinha
passado o dia inteiro sentindo um desconforto muito forte, sem
conseguir definir uma causa específica. À noite, enquanto eu
meditava com a sacerdotisa Raven, de repente vivi algo que só
posso descrever como uma crise: espasmos musculares, dentes
batendo, ondas de frio e de calor e, com a coluna arqueada para
trás, comecei a hiperventilar. Raven me segurou e me ajudou a
relaxar e “entrar na onda”. A “crise” continuou por uns vinte minutos
e, conforme foi esmorecendo, me senti fraco e zonzo. Raven, que
tinha mais de vinte anos de experiência como professora de hatha e
raja yoga, disse que poderia ser a “serpente começando a se
mexer”.
Foi um acontecimento abrupto, extremamente físico e totalmente
além da minha vontade consciente. Todas as concepções que eu
tinha sobre kundalini (e sobre estar no controle da experiência) se
desfizeram de uma hora para a outra. Por trás de toda essa
confusão, no entanto, tive a certeza intuitiva de que estava tudo
certo.
Ao longo dos 28 dias seguintes, tanto a sacerdotisa Raven quanto
eu experimentamos uma atividade “aguçada” da kundalini,
caracterizada por espasmos musculares ao redor da base da coluna,
euforia, experiências fora do corpo e alucinações. Transcrevo aqui o
relato de uma das experiências mais desorientadoras que tive (5 de
outubro de 1984, por volta das 23h30):
Começou como um grito na minha cabeça —“o grito de Kali”, pensei, que reverberou por
um tempo que parecia interminável até eu não conseguir mais “ouvi-lo”. Eu o vi e o senti
como uma luz branca que desceu pela minha coluna e se enroscou no meu chacra-raiz,
que se abriu com um clarão. Uma sensação de frio começou a se espalhar lentamente
pelo meu corpo, como se todos os meus nervos estivessem acesos, e senti como se a
ponta dos meus dedos brilhasse. Comecei a tremer e ter espasmos, e fui tomado por uma
desorientação, que piorava quando eu fechava os olhos e me dava a sensação de estar
girando em alta velocidade, envolvido por padrões coloridos em espiral. Logo me esqueci
das outras pessoas no quarto, entrei na postura de lótus, que para mim era a melhor
maneira de não sucumbir. Tudo isso durou mais de uma hora, e foi muito difícil manter o
controle.

Mais ou menos ao mesmo tempo, a sacerdotisa Raven teve uma


visão de Kali, e foi tomada por uma fúria intensa. Ela “ouviu” lobos
uivando. Seu gato ficou tão apavorado que nem chegava perto dela.
◆ ◆ ◆

Quando a atividade intensa da kundalini diminuiu, começamos a


tentar entender o que havia acontecido, o que me levou,
naturalmente, a considerar a kundalini sob uma nova ótica.
O primeiro ponto é que a kundalini não é uma área isolada de
experiência com o oculto —embora muitas vezes os textos deixem
isso subentendido. O fato de que a kundalini pode ser “despertada”
com uma variedade de técnicas (tais como yoga, dança, percussão,
devoção intensa (bhakti), asanas sexuais, meditações variadas e uso
de substâncias psicoativas) indica que ela é uma peça central e
transformadora da experiência mágica. Eu não estava me
preparando para essa primeira experiência intensa com a kundalini,
então ela deve ter sido “disparada” por outros fatores.
Um estudo detalhado dos textos tântricos revela que a kundalini,
ao contrário de uma “potência” latente que fica adormecida até ser
despertada conscientemente, tem mais a ver com um princípio
organizador que mantém sistemas em equilíbrio em todas as escalas
—da subatômica à cósmica. No Sat Chacra Nirupana, a kundalini é
considerada “aquela que atordoa o mundo” ou o “fascina” —a raiz do
mundo físico. Ela é vista como uma forma particular de shakti
(energia) cujo domínio é a matéria. A kundalini “enrolada” muitas
vezes é descrita como “adormecida”, mas adormecida no sentido de
sushupti: o estado mental livre de pensamentos, ou o estado de
“não-mente”. É a kundalini enrolada que sustenta o universo físico. A
atividade da kundalini em sistemas individuais (isto é, seres
orgânicos) é guiada pela jivatman: a faísca vital corporificada. Para
usar uma analogia, a jivatman é uma codificação holográfica dentro
de cada sistema individual para reproduzir o holoverso, ou brahman,
em termos tântricos. É a jivatman que carrega o “programa”
evolutivo de cada ente individual. Então é a jivatman que “rege” a
atividade da kundalini, não o complexo egoico “telúrico”. Isso talvez
explique por que tantas pessoas que buscam experiências de
kundalini pelo yoga e por outros meios não conseguem resultados
espetaculares, enquanto aquela pessoa cética ali da esquina
consegue passar por uma forte experiência de “júbilo” pendurando
roupas no varal.
Muitas pessoas que praticam yoga no mundo oriental de fato
advertem estudantes ocidentais a não tentarem “despertar” a
kundalini conscientemente como uma finalidade específica. O objetivo
do yoga integral de Sri Aurobindo, por exemplo, é “viver
adequadamente” e transformar no mundo físico, em vez de rejeitá-lo.
O yoga integral não está preocupado em buscar a “libertação” da
existência, mas sim a realização dentro do mundo, com o despertar
da kundalini acontecendo “no tempo dela”.
Essa ideia confirma minha experiência. As únicas vezes que usei
exercícios feitos especificamente para interferir na kundalini (como o
“SSS” em Liber HHH, de Crowley) ocorreram em períodos de
atividade intensa dessa energia, quando a experiência acabou se
tornando desorientadora demais. Qualquer tipo de prática ocultista
ou acontecimento transformador intenso vai influenciar a kundalini.
Ela “acorda” quando as condições no sistema que ela organiza se
tornam propícias ao seu despertar.
Muitos modelos que buscam explicar os fenômenos da kundalini
postulam sobre a existência de planos cósmicos interiores e centros
psíquicos, os chacras. O conceito de kundalini, nesses sistemas, é
descrito como um “despertar espiritual”. Até aí tudo bem, mas
escritos ocidentais (como os de C. W. Leadbeater e Alice Bailey), ao
abordar esses modelos, tendem a manter a divisão entre espiritual e
mundano, e entre corpo e mente, exortando estudantes a rejeitar o
mundo material e buscar a vida “espiritual”. Eu acho essa ideia um
tanto suspeita, e prefiro não fazer essas distinções. Quando passei
pela minha primeira experiência com a kundalini, eu estava estudando
neurologia e consequentemente tive vontade de produzir um modelo
neurológico (e, depois, neuromágico) da atividade da kundalini.
Ao descrever a incidência de estados intensos de consciência,
muitas pessoas usam a palavra “gatilho” para tentar descrever como
a experiência surgiu. Fatores-gatilho não causam a experiência no
sentido linear usual, mas a facilitam de alguma maneira. Quando um
acontecimento desse tipo ocorre espontaneamente, a única coisa
que conseguimos fazer é percebê-lo; não temos consciência dos
padrões microscópicos que levaram ao seu ápice. O gatilho para
uma experiência de júbilo ou de kundalini pode ser o estímulo
decisivo que permite que todas as diversas interações microscópicas
no sistema individual cruzem um limiar crítico, levando assim a uma
mudança de consciência.
Nona Coxhead, pesquisadora dos estados de êxtase e júbilo,[14]
investigou fatores-gatilho em experiências transcendentais e delineou
algumas situações em que é comum a ocorrência desses gatilhos:
Ouvir música Estímulo dos sentidos Sentimentos suicidas
Reações à Alívio de pressões Notícia de doença
natureza emocionais terminal
Parto Conquistas Luto ou perda
Esportes Aceleração de movimento Situações de risco de
vida
Devoção e Felicidade Morte clínica
louvor

Podemos acrescentar aí as técnicas de yoga e magia: as várias


formas de alcançar a gnose, exercícios corporais prolongados como
hatha yoga e tai chi, visualizações, magia ritual, contemplação,
meditação, uso de drogas etc. A experiência transformadora (da qual
a kundalini é uma conceitualização) pode ocorrer espontaneamente
ou relacionada a um conjunto sistematizado de práticas.
Estados intensos de excitação emocional, qualquer técnica para
focalizar a consciência em um estímulo e estados fisiológicos
extremos parecem ser fatores-chave. Experiências relacionadas à
kundalini são profundamente ligadas ao corpo, e as pessoas
costumam relatar espasmos musculares, desorientação espacial e a
sensação de serem preenchidas de energia. Muitas pessoas, como
Gopi Krishna, relatam sensações estranhas em volta da base da
coluna —o local do muladhara, o chacra-raiz (ou básico). Muitas
vezes se fala sobre a kundalini em termos poéticos ou místicos,
como se ela subisse pelo canal espinhal, entrando pelos chacras
dorsais um a um. Eu, no entanto, estou mais interessado no que
pode estar acontecendo no sistema nervoso central.
Durante períodos de estimulação intensa da kundalini, experimentei
grandes “ondas” de energia se deslocando coluna acima.
Observando essas ocorrências em termos fisiológicos, dois pontos
me impressionaram: primeiro, meu corpo pareceu demonstrar os
mesmos padrões de contração muscular involuntária que ocorrem no
orgasmo, porém muito mais pronunciados; segundo, uma
estimulação extrema do sistema nervoso autônomo —daí as ondas
de calor e frio, por exemplo. Ter “sensações estranhas” na base da
coluna não significa necessariamente que o que está acontecendo se
origina nessa área. A estimulação da kundalini pode ser um evento
totalmente neurológico que dá vazão a uma variedade de sensações
corporais.
E como essas situações se relacionam a fatores-gatilho? Todos os
tipos de fatores de predisposição delineados anteriormente têm um
efeito poderoso no sistema nervoso humano. É interessante notar
que muitas maneiras de alcançar a gnose também são usadas em
tortura e lavagem cerebral, tais como privação sensorial, privação de
sono, jejum e dor. Aldous Huxley, no livro Céu e Inferno, menciona
como a disciplina espiritual dos místicos afetava seus sistemas
biológicos:

trata-se de uma questão de registro histórico que muitos contemplativos se esforçaram


sistematicamente para modificar a química de seu corpo, buscando criar condições
internas favoráveis a uma introspecção espiritual. Quando não estavam passando fome
com pouca taxa de açúcar no sangue e com deficiência de vitaminas, ou golpeando-se até
chegar a uma intoxicação por histamina, adrenalina e proteína em decomposição, estavam
cultivando a insônia e rezando por longos períodos em posições desconfortáveis, a fim de
criar os sintomas psicofísicos do estresse.[15]
De fato, parece que algumas psicotecnologias (como a magia)
replicam, de forma mais controlada e volitiva, os tipos de estado
intenso de excitação causados por sobrecargas emocionais. A
excitação emocional provoca oscilações nos sistemas endócrino e
nervoso de tal forma que as mudanças podem se tornar um padrão
permanente, com efeitos subsequentes na percepção, nos padrões
de pensamento e no comportamento. Talvez, em termos de
experiências como a da kundalini, os fatores-gatilho estejam
relacionados ao estado neurológico do indivíduo na época do
episódio. O fator-gatilho da minha primeira experiência com a
kundalini foi uma meditação em dupla que fiz com Raven com o
objetivo de esvaziar a mente.
Fatores de predisposição podem ser tanto influências de longo
prazo, como o desenvolvimento geral e mágico, por exemplo, quanto
influências mais “recentes”, como o relacionamento que Raven e eu
vínhamos desenvolvendo, o bhakti prolongado com Kali e a visão de
morte e renascimento, e o estresse no trabalho. Não acredito que
experiências desse tipo aconteçam “por acaso”, mas sim que os
padrões que levam a elas nem sempre sejam imediatamente
evidentes.
Neurocientistas já fizeram muita pesquisa sobre a base neurológica
da meditação e chegaram a alguns resultados intrigantes sobre
como as técnicas meditativas afetam o cérebro. Em particular, há o
fenômeno da “habituação”. Habituação é uma resposta neural à
repetição de um estímulo particular. Voltar a consciência para uma
só fonte de estímulos (seja uma imagem visual ou mental, um som,
um canto ou um padrão de movimento ritualizado) enfraquece
percepções sensoriais e inibe a atividade do córtex cerebral. Um
exemplo simples de habituação ocorre quando entramos em um
recinto onde há um relógio fazendo tique-taque. A princípio, o barulho
é um estímulo novo, então nós o escutamos claramente. Com o
tempo, principalmente se outra coisa tomar nossa atenção, nós
“paramos” de ouvi-lo. Os neurônios acionados em reação ao tique-
taque do relógio ficam efetivamente “entediados”, e o som sai da
nossa percepção consciente.
A inibição da atividade neural no córtex leva a consciência a um
movimento introspectivo. A resposta de habituação é mediada a
partir de um grupo de células no tronco cerebral conhecidas como
sistema ativador reticular ascendente (SARA). Esse grupo de células
atua como um “censor” de estímulos sensoriais, de modo que só os
que forem “significativos” alcançam o córtex cerebral (que está ligado
à percepção consciente). Um estado parecido pode ser induzido por
excitações ou choques emocionais intensos, como se todas as
percepções fossem momentaneamente “congeladas” pelo SARA.
Como mencionado anteriormente, a kundalini desperta em seu
“próprio” tempo: quando o biossistema humano, ou complexo mente-
corpo, atinge certo limiar crítico. Pesquisas atuais da experiência
com a kundalini estão tentando entender esse processo no que se
refere aos níveis fundamentais de acumulação de substâncias
químicas transmissoras (tanto secreções das glândulas endócrinas
quanto substâncias neurotransmissoras) relacionadas a sobrecargas
físicas e emocionais que a pessoa experimenta. Uma teoria
associada a isso é a “coerência neural”. Essa teoria postula que a
experiência consciente é gerada pela atividade altamente complexa
de milhões de neurônios no cérebro e, assim, depende da coerência
e dos padrões dessa atividade. Quanto mais ordenada for a
atividade neural por todo o córtex cerebral, mais forte (mais intensa)
será a experiência consciente.
Sabemos que muito do processamento de informações no cérebro
não chega à mente consciente. Dois fatores que podem mediar essa
seleção de estímulos são o sistema reticular discutido anteriormente
e o nível de “ruído” no cérebro. Ruído, em termos cibernéticos, é a
atividade aleatória em segundo plano, ao contrário dos “sinais”
coerentes. Um alto nível de ruído no córtex significa que o indivíduo
só tem consciência dos sinais mais fortes, tais como informações
sensoriais. Sinais menos fortes ficam mascarados pelo ruído.
Qualquer tipo de situação que “limpa” o córtex do excesso de
estímulo reduz o nível geral de ruído neural. Portanto, qualquer tipo
de atividade caracterizada pela resposta de habituação reduz o ruído
neural. Quando isso ocorre, padrões de atividade neural que
normalmente são mascarados pelo ruído chegam à percepção
consciente. Em outras palavras, tomamos consciência de aspectos
mais sutis da experiência que não necessariamente dependem de
nossos sentidos restritos ao espaço-tempo. Isso inclui percepções
mediúnicas e a experiência mística básica de estarmos enredados
em um “todo” maior —seja isso chamado de Deus, Tao ou Caos.
Também tomamos consciência dos aspectos da experiência
somática que normalmente não cruzam o limiar da consciência.
Um problema de usar modelos “espirituais” com experiências tais
como a da kundalini é que muitas vezes é difícil compreender
experiências espontâneas (como a de Gopi Krishna) e estados
induzidos por substâncias. Basear todas as experiências desse tipo
em um arcabouço neurológico não é um mero reducionismo, mas sim
uma tentativa de oferecer uma base de entendimento que inclua
essas duas situações (além de outras).
Muitas pessoas que se proclamam como especialistas criticam a
ideia de que estados induzidos por substâncias sejam tão potentes
(em termos espirituais) quanto os alcançados por meio de técnicas
de longo prazo. Escritos ocultistas muitas vezes desaconselham o
uso de drogas como “atalho espiritual”. No entanto, pesquisas com
LSD e outras substâncias similares indicam que, como resultado de
experiências induzidas por drogas, os sujeitos de fato passam por
mudanças de vida profundas —mudanças em suas aspirações e o
despertar “espiritual” característico de disciplinas mais ortodoxas ou
eventos traumáticos. No entanto, um pesquisador norte-americano,
Walter Norman Pankhe, afirma que “talvez a parte mais difícil venha
depois da experiência, que pode agir como motivação para
reconhecer e integrar o que se aprendeu com a experiência”.[16]
Isso provavelmente vale para as pessoas que fazem uso de
drogas psicodélicas e que não têm um sistema de crenças coerente
para ajudá-las a entender a experiência —vide a quantidade de
“vítimas do ácido” que acabam se convertendo em evangélicas. E
vale também para quem tem experiências “espontâneas”.
A principal distinção entre a experiência induzida por substâncias e
a abordagem “disciplinada” é que essa última é muito mais lenta, e
geralmente mais controlada. Voltando à hipótese do “limiar crítico”
mencionada no início desta seção, eu diria que psicotecnologias
como a magia ou o yoga, ao longo do tempo, produzem mudanças
no biossistema humano que levam à ativação da experiência com a
kundalini. Essas mudanças estão relacionadas com o
estabelecimento de padrões de coesão neural, de forma que a
pessoa se torna cada vez mais consciente dos aspectos mais sutis
da experiência humana e das mudanças em outros sistemas internos.
A prática de controle da respiração no longo prazo, por exemplo,
baixa o nível de gás carbônico no sangue, o que também “suaviza” a
atividade cerebral por todo o córtex. Embora o maquinário dos
órgãos do corpo não mude, a programação muda: isto é, os padrões
de atividade neural, os mensageiros químicos e o transporte de
substâncias vitais. E, é claro, todos esses fatores podem igualmente
ser afetados pelos estresses da vida, por traumas emocionais e pelo
uso repetido de drogas.
Nesses termos, a kundalini poderia ser um princípio organizador
que mantém a interação harmoniosa entre todos os biossistemas
humanos. Quando tomamos maior consciência dela, estamos nos
tornando mais receptivos às dinâmicas internas de nossos próprios
sistemas e, ao mesmo tempo, abrindo as “portas da percepção”, nas
palavras de Aldous Huxley. É menos o caso de “despertar” a
kundalini, e mais de sermos despertados por ela. A baderna dos
sistemas corporais atingindo níveis extremos de atividade, que
muitas vezes faz parte da experiência dos primeiros “deslocamentos”
da kundalini, talvez seja resultado das mudanças progressivas na
“programação”, como dissemos antes. Talvez represente um “ápice”
da evolução interna do complexo mente-corpo, estabelecendo novos
padrões de organização neural no cérebro. Em termos subjetivos,
isso substitui nossas impressões anteriores do mundo e de nós
mesmos pelo despertar de faculdades intuitivas, percepções
psíquicas, criatividade, novas aspirações e uma sensação de ser
parte de um todo maior.
Eu realmente acredito que minha experiência com a kundalini em
1984 foi o ponto de virada em meu desenvolvimento. Tive de jogar
fora muitas preconcepções e aprender a ouvir e confiar na minha
intuição. Picos agudos de atividade da kundalini desde aquela época
não foram mais tão desorientadores, mas ainda assim liberaram
mais potência para atividades e produção criativa. Aliás, durante
esses períodos de atividade, percebi que a melhor forma de
administrar essa “energia”, para mim, é dirigi-la para algum tipo de
projeto, em vez de deixá-la “engarrafada” com meditação e práticas
yóguicas.
A atividade da kundalini na cosmologia tântrica está relacionada à
evolução das formas físicas, à manutenção do universo físico e à
evolução espiritual de entidades em seu retorno a brahman, a fonte
numenal. É a jivatman, faísca de brahman dentro de cada indivíduo,
que carrega as instruções para a nossa evolução espiritual.
Há cientistas ocidentais que agora veem a estrutura do DNA-RNA
como o equivalente genético da jivatman. Já se sugeriu que a
capacidade de ter experiências com a kundalini e similares esteja
codificada em nível genético. Surpreendentemente, essa hipótese
surgiu em pesquisas sobre a esquizofrenia. Pesquisas nos últimos
dez anos sobre as várias síndromes referidas como esquizofrenia
indicam que os estados subjetivos relatados por quem tem o
transtorno são parecidos, de muitas formas, aos relatados por quem
passa por experiências “místicas”. A probabilidade de uma pessoa
desenvolver essa doença é, em parte, determinada por sua genética.
Já se afirmou que a esquizofrenia é uma arma preparada por fatores
genéticos, carregada pela criação da pessoa e disparada por algum
tipo de experiência-gatilho. O porquê de esses genes terem
sobrevivido é um enigma, mas pode ser que os mesmos genes que
determinam a predisposição ao transtorno também sejam
mediadores da evolução interna da consciência. Autores com
inclinações místicas que também comentaram sobre a esquizofrenia,
tais como Ronald Laing e Carl Jung, chamaram a atenção para as
conexões entre a loucura e a jornada de transformação psíquica. No
entanto, enquanto magistas ou xamãs estão “nadando”, a pessoa
esquizofrênica está “se afogando”. Se essa experiência é de fato um
caso de codificação genética , há milhares de outros fatores que
podem incidir sobre o indivíduo e promover uma evolução
neurológica: “iluminação”, falha dos sistemas neurológicos,
esquizofrenia ou muitas outras nuances entre os extremos.
Muitas pessoas têm acreditado que a próxima etapa evolutiva da
humanidade será a evolução da consciência. Isso está presente em
ideias atuais da magia como a “consciência gestáltica” da corrente
ma’at, e em paradigmas científicos new age como os desenvolvidos
por Rupert Sheldrake (campos morfogenéticos), David Bohm
(holoverso) e Timothy Leary (a fórmula SMI2LE.).
O modelo de evolução neurológica dos oito circuitos de Leary, em
particular, oferece outra forma de interpretar o tipo de processo que
discuti anteriormente. Resumindo, a teoria de Leary afirma que, se a
arquitetura do sistema nervoso é codificada dentro da estrutura do
DNA-RNA, então a evolução dos seres humanos em termos
neurológicos também o é. Na medida em que o indivíduo se
desenvolve, ocorrem períodos críticos nos quais o cérebro grava
certas impressões que passam a ser elementos centrais em todo
aprendizado subsequente. Os primeiros quatro circuitos garantem a
transmissão e a variabilidade genética, estabelecendo a continuidade
da humanidade enquanto espécie. Os quatro circuitos seguintes no
DNA-RNA são as “chaves” genéticas para a evolução e adaptação
da espécie. Esses circuitos “mais elevados” são abertos quando as
condições internas são favoráveis. Eles representam estados de
consciência que são alcançados depois de certa intensidade de
experiência (seja por acesso repetido a eles ou por uma só
experiência muito poderosa) e se tornam programas “estruturais”,
uma nova “realidade” básica a partir da qual o indivíduo age. Uma
vez que o circuito é “aberto” dessa forma, ele se torna um motivador
poderoso para um maior desenvolvimento. Por exemplo, uma vez que
se passa pela experiência de arrebatamento corporal (circuito V),
isso dá à pessoa um vislumbre do que está além dos circuitos
básicos de sobrevivência e seus condicionamentos. Isso pode
estimulá-la a acessar os circuitos “mais elevados” e “gravar” suas
impressões.
Soa parecido com o ciclo da kundalini, não? Com certeza é uma
área que merece investigações mais aprofundadas, e há magistas
que buscam modelos neurológicos para integrar e entender suas
experiências.
Embora muito do que foi apresentado aqui venha de um ponto de
vista científico, boa parte advém de descobertas pequenas; ainda há
um longo caminho a ser percorrido para entender a kundalini em
termos neurológicos. Mas já é um começo. Minha própria postura
quanto à kundalini se resume mais ou menos em “bom, a coisa
acontece, e depois que ela passa eu preciso integrar e avaliar a
experiência”. Ainda não busco ativamente a experiência com a
kundalini, já que a meu ver qualquer tipo de trabalho mágico faz
exatamente isso, e considero mais pertinente correr atrás de
projetos e objetivos específicos. Picos de atividade da kundalini e as
mudanças de consciência subsequentes de fato geram o tipo de
novas impressões cerebrais de que fala Leary. Com frequência
percebi que, seja qual for o “mapa” em que tentemos encaixar essa
experiência —o modelo de Leary, as zonas de poder da cabala, os
chacras hinduístas, as zonas de chi taoistas—, ela vai se ajustar a
ele. Isso me leva a crer ainda mais que o cérebro é a área central da
experiência com a kundalini.
A kundalini é, de fato, a raiz da força mágica, pois é a potência
que pode nos levar, quando tomamos consciência dela, para além
das limitações do condicionamento cultural e do espaço-tempo.
O PAÍS DAS
MARAVILHAS DOS
SENTIDOS
Reflexões sobre uma prática híbrida do tantra

Este ensaio foi escrito em 2010 e publicado na antologia Pathways in


Modern Western Magic (Concrescent, 2012), editada pelo falecido Nevill
Drury. Foi a primeira vez que publiquei algo sobre o tantra depois de um
longo período. Eu queria explicar minha forma de pensar sobre a prática na
época e, além disso, algumas das complexidades culturais e históricas
que a meu ver devem ser levadas em consideração quando se tenta lidar
com a prática do tantra. Sinto que o ensaio consegue muito bem descrever
não só aspectos da minha prática, mas também meus sentimentos sobre
ela como um todo, o que me leva a praticá-la, como ela me beneficia e me
entusiasma. O ritual que descrevo e comento é algo que tenho praticado,
de várias formas, há bem mais de uma década.

Introdução

O
tantra, como afirma Herbert Günther, é “um dos conceitos mais
equivocados que a mente ocidental desenvolveu”.[17] A ideia de
que o tantra existe como uma categoria monolítica e separada
de outras formas de práticas religiosas do sul da Ásia é em si um
produto da imaginação acadêmica (e ocultista) ocidental.[18] Tentar
entender a forma como o tantra foi “imaginado” e representado em
discursos acadêmicos, populares e ocultistas também tem sido uma
das preocupações da minha prática.
Dentro da subcultura do ocultismo contemporâneo, isso toma uma
forma específica: o tantra é tratado como essencialmente
semelhante ao esoterismo ocidental tanto na prática como em seus
objetivos —pelo menos a partir da reinterpretação de seu conteúdo.
Geralmente, há uma ênfase no tantra como um conjunto de
“técnicas” ou uma “ciência sagrada” disponível em diversos níveis
para as pessoas. A figura de praticante do tantra é frequentemente
ilustrada como um tipo de super-herói nietzscheano, que se envolve
com práticas “transgressoras” que a levarão a superar os limites da
sociedade convencional.
No entanto, pouquíssima (ou nenhuma) atenção é dada ao tantra
como uma prática social: praticantes como pertencentes a um grupo
particular; a relação desse grupo com a cultura geral; e a relação
entre praticantes do tantra e o Estado (o tantra e a eleição de
governantes, por exemplo, ou instâncias em que o tantra se tornou
uma “religião do Estado”). Frequentemente, escritos ocultistas
ocidentais consideram necessário reinterpretar o tantra para que ele
se torne familiar —por exemplo, comparando-o à cabala—, ou às
vezes reapresentam conceitos tântricos em termos totalmente
ocidentais. Declarações como esta, feita pelo falecido Christopher
Hyatt, não são incomuns:
Assim, não espere uma série de palavras estrangeiras (o que pode chamar de “blá blá blá
hinduísta”) concatenadas como resposta a uma pergunta. Para nós, essas abordagens
são nada mais do que uma recusa de responder à pergunta que torna complexo o que é
simples —em favor do ego de quem escreve. Seria ridículo para nós responder perguntas
usando conceitos esotéricos orientais. Se fizéssemos isso, este livro seria de pouca
utilidade para praticantes ocidentais. Não fingimos ser especialistas na fraseologia,
linguagem, cultura etc. do caminho oriental. Nossa especialidade está na utilização de
suas técnicas para chegar aos objetivos desejados.
Em muitas ocasiões, usaremos métodos e símbolos ocidentais deliberadamente, já que
o inconsciente coletivo ocidental é capaz de os assimilar e integrar com mais facilidade.[19]

Considero essa abordagem do tantra problemática, pois ela o


reduz a um material de apoio exotizado para o entendimento
ocidental da magia e ignora boa parte da rica diversidade cultural e
teológica presente nas formas de religiosidade do sul da Ásia. Além
do mais, ela pressupõe que as “técnicas” podem ser retiradas ou
adaptadas de um contexto cultural para o outro sem considerar como
elas permeiam e refletem práticas e entendimentos culturais
específicos. Ademais, há uma tendência a assumir que os caminhos
“ocidental” e “oriental” são fundamentalmente incomensuráveis, o que
ignora a influência de conceitos orientais sobre o esoterismo
ocidental ao longo dos últimos duzentos anos, mais ou menos, e não
leva em consideração as trocas globais entre culturas.
Minha abordagem é diferente. Parto da premissa de que as
práticas originárias do sul da Ásia e amplamente categorizadas como
“tantra” são muito diferentes do que se pode chamar de magia
ocidental contemporânea, e que para entendê-las e praticá-las é
preciso tentar compreender seu contexto. Isso de fato demanda
compromisso e envolvimento ativos com “fraseologia, linguagem,
cultura” (e muito mais). Normalmente me refiro a essa abordagem
como um tantra “híbrido”: algo que se baseia em uma série de
práticas e textos inter-relacionados e historicamente localizados
(notadamente as correntes sri vidya, kaula e trika do sul da Ásia) e
na filosofia europeia contemporânea (Merleau-Ponty, Deleuze e
Guattari, por exemplo) que questionam as divisões binárias que
acabaram dominando nossa compreensão do mundo. A tendência a
separar a mente e o corpo, o eu e o social, o sujeito e o objeto —tão
central na perspectiva ocidental— simplesmente não está presente
na religiosidade do sul da Ásia.
Em vez de tentar impor uma estrutura linear neste ensaio (isto é,
partir de uma definição e expandi-la), quero discutir alguns temas-
chave que perpassam e atravessam o tantra, temas que considero
importantes e que podem ajudar a entender o exemplo de prática
tântrica apresentado a seguir.

Admiração

O cultivo de um constante senso de admiração é tanto um meio


quanto, até certo ponto, o objetivo da minha prática tântrica. A
admiração geralmente está relacionada à percepção da novidade, do
inesperado, do inexplicável; é algo muitas vezes ligado a um tipo de
busca “espiritual” por maior conexão —o sentimento de
pertencimento, de participação com envolvimento efetivo. Podemos
sentir admiração em um momento ínfimo —de repente estranhar um
objeto qualquer, por exemplo, e como ele veio a existir. Pode ser
uma grande epifania, algo sentido por todo o corpo, algo que
permanece conosco. A admiração é algo que foi deixado de lado em
discussões contemporâneas sobre magia.
De muitas maneiras, a admiração é uma antítese da primazia
utilitarista dos fins, da avidez por ordenar as coisas. Ela nos impele
ao desconhecido, a buscar novas relações, a desfrutar de
complexidade e exuberâncias estonteantes. Ela nos leva para um
mundo além de um horizonte limitado, além da certeza, do familiar,
do possível. Admiração é excesso, e essa qualidade excessiva é
algo que a filosofia ocidental, seguindo os passos de Aristóteles, se
esforçou para tolher e restringir.

Prática corporificada

O tantra é uma prática corporificada: o corpo é o local primário da


prática e o meio pelo qual se colhem seus frutos. Falar sobre “corpo”
no contexto do tantra, no entanto, é mais do que apenas designar a
corporeidade; o discurso tântrico sobre o corpo inclui as capacidades
sensoriais, os sentimentos, os pensamentos, as faculdades morais e
éticas... o senso de individualidade. A conhecida dicotomia entre
corpo e mente não existe aqui. O corpo tântrico é aberto, poroso,
recebe o mundo; um corpo que é multiplicidade de afetos; um corpo
que busca e é buscado —um corpo permeado e produzido por
outros corpos através de relações recíprocas. O corpo tântrico é o
cosmos em vida, e é por meio do corpo que praticantes se
identificam com a fonte transcendental que está simultaneamente
dentro, fora, em toda parte —fazendo ruir toda forma de distinção.

Relacionalidade

Para mim, o tantra é, acima de tudo, uma prática relacional. Em sua


forma mais simples, ele tem a ver com o modo da pessoa se
relacionar consigo, com as outras (corporificadas ou
descorporificadas) e com o mundo em geral. Fazer isso demanda, a
meu ver, tanto atenção quanto cuidado com as nossas relações. A
relacionalidade do tantra é extravagante ao máximo: toda afeição ou
potencialidade pode se tornar —temporariamente— uma pessoa;
uma divindade; um núcleo de interligações para a devoção, a
reflexão, a interação; a alegria do reconhecimento-de-si.
Pense em yantras, mandalas, mantras como estados modais.
Yantras são como redes cintilantes de pontos relacionais não-fixos —
cada ponto é uma shakti com a potencialidade de explodir em seu
próprio yantra, e assim por diante, recursivamente como um fractal.
A consciência como uma flor se desdobrando eternamente em uma
infinita miríade de pétalas... Contemplar essa perspectiva é abrir-se
à possibilidade do envolvimento.
O importante para mim é como levar esses pontos para a prática.
O que talvez seja central nessa abordagem é a negação da
conhecida dicotomia entre “mágico” e “mundano”. Embora eu até
faça rituais especiais, sozinho ou com amigos, boa parte da minha
prática de tantra é feita no dia a dia, momento a momento. Abrir-se à
admiração ou se atentar às relações é algo que se pode fazer em
qualquer lugar, a qualquer hora.

O país das maravilhas dos sentidos

O que segue é um exemplo de uma prática tântrica específica: o rito


de Shakti-Flecha, que vou usar mais ou menos como referência para
discutir como a abordagem que estou desenvolvendo se desenrola
na prática. Esse pequeno ritual utiliza tanto devoção externa
(bahiryaga) quanto devoção interna (antaryaga).
Nesse caso específico, exteriorizamos as shaktis dos sentidos
para enaltecê-las e interagir com elas tal como faríamos com outra
pessoa e, ao final do ritual, recolhemos a Deusa das Flechas (que é
sua forma condensada) ao interior da caverna do coração que, em
algumas tradições tântricas, é a sede do eu. Muitos pujas tântricos
(rituais, devoção) acontecem dessa maneira e utilizam várias práticas
e identificações tais como mantras e nyasa (tocar várias partes do
corpo para “localizar” as forças nelas), e por aí vai.
O puja tântrico tem estrutura modular: cada “bloco” pode ser
desempenhado como uma prática específica, e o puja pode ser
ampliado pela adição de outros blocos. É importante entender os
princípios subjacentes a esse tipo de ritual. Muitos textos reforçam
que a performance sozinha é inútil.
O tema central desse puja é a troca de presentes. Oferendas são
feitas às shaktis dos sentidos como deusas e à Shakti-Flecha
(Lalita), que surge a partir das experiências totais dos sentidos; a
bênção das divindades é recebida em troca —na forma de comida
ou graça (prasada) e por meio da mútua identificação entre
praticante e divindades. Um tema tântrico central no ritual é que,
para louvar uma divindade, a pessoa tem de se “tornar” uma: “para
louvar uma divindade, é preciso se tornar o Eu daquela divindade por
meio de dedicação, concentração e controle da respiração até seu
corpo se tornar o lar da divindade”.[20]
A visualização de divindades é uma característica central da
prática tântrica. Não há uma conotação de que a visualização seja
primariamente imaginativa ou de que seja “menos real” do que as
percepções dos sentidos, ou de que as visualizações sejam algo
separado de um “mundo externo”. A visualização (de divindades,
yantras, chacras etc.) é uma intensificação da experiência: uma
forma de reforçar e corporificar a ordem simbólica de uma prática,
de identificar o corpo vivo com essa ordem. A ideia básica da
meditação em divindades é que, ao enfocar e contemplar a forma de
uma divindade (seja usando uma imagem como ícone ou uma
descrição textual), a pessoa acaba se identificando com ela e, com o
tempo, adquire suas qualidades ou seu ponto de vista. Em termos
gerais, há uma progressão que vai da meditação sobre a imagem
antropomórfica de uma divindade à meditação sobre qualidades mais
abstratas. Na vertente não-dualista trika, diz-se que a visualização —
junto a outras práticas tais como mantra, nyasa etc.— atrai as
divindades para perto de quem pratica, coalescendo seus contornos
ou sua forma a partir da consciência, no que elas passam a residir
no corpo preparado pelo ritual, mais especificamente no coração.
Normalmente se fala de aspectos da prática tântrica em termos de
serem internos ou externos. A devoção interna pode envolver, por
exemplo, a visualização da divindade escolhida passando a residir no
próprio corpo. A devoção externa pode envolver a adoração de uma
imagem dentro da qual residiria a divindade. No entanto, essas
práticas não devem ser tidas como opostas, e sim como práticas
que se apoiam sinergicamente: a prática interna (que pode ser
entendida como “meditação” no ocidente) sustenta e potencializa a
prática externa (ritual).

Início

Eu começo estalando os dedos para oito direções, acima e


abaixo de mim.
As abordagens ocidentais de magia tendem a fazer distinção entre
espaço “sagrado” e “mundano”, e atos ritualísticos muitas vezes são
usados para marcar a transição de um para o outro. Em
contrapartida, esta perspectiva tântrica afirma que todo espaço é o
corpo da deusa; todo espaço é shakti (capacidade, força), e através
do ritual se busca condensar ou coagular ainda mais essa shakti. A
ênfase aqui, portanto, está na intensificação da força existente. A
atenção às direções (de oito a dez) não tem a finalidade de
estabelecer uma fronteira (como geralmente se entende o círculo na
magia ocidental), mas sim de alcançar o exterior e trazê-lo para
dentro.
Tradicionalmente, pode-se ter usado os gestos de estalar os
dedos ou bater palmas (acompanhados dos mantras protetores
adequados) para afastar pessoas indesejadas ou malquistas
(particularmente as descorporificadas) que pudessem atrapalhar o
ritual. No contexto atual, isso é feito para indicar a intensificação do
sentimento e da atenção pela duração do ritual. Bater palmas ou
estalar os dedos também é mais do que só fazer barulho: é um sinal
para si e para outrem —um pedido de atenção ou um convite.
As direções (oito, nove ou dez) são presididas por grupos de
divindades como os lokapalas, as Durgas e as oito formas de
Ganesha (existem muitas outras). Pode-se acrescentar a devoção a
esses grupos em um estágio posterior do puja, como preferir. Note
que não existe correspondência entre elementos e direções, como é
comum no esoterismo ocidental. O oito geralmente é um número
auspicioso no sul da Ásia, e o padrão de oito direções também é
encontrado na arquitetura tanto de templos quanto de cidades, e em
cerimônias relacionadas à realeza (em que o corpo de governantes é
ritualmente transformado no centro das oito direções). As oito
direções são frequentemente internalizadas —por exemplo, como
oito crematórios ou oito chacras.

Reconhecendo gurus

Enalteço meu guru, guru dos gurus; o primeiro guru. Dou atenção
a quem a mim professou.
Esse é um breve momento durante o processo em que reconheço
minha dívida e minha relação com os professores e professoras do
passado (e, muitas vezes, pessoas amigas que morreram). É um
reconhecimento do papel de outras pessoas na minha trajetória até o
momento presente. Um dos aspectos mais complicados do tantra
para praticantes ocidentais contemporâneos é a questão toda de se
ter gurus. Eventualmente, quando dou palestras sobre o tantra,
muitas vezes me perguntam se eu acho “necessário” ter gurus, e
geralmente respondo que não acho que teria adquirido a
compreensão do tantra que acredito ter sem a pessoa a quem me
refiro como “guru”. Para mim, a necessidade de ter um guru reforça
o aspecto relacional da prática tântrica. É uma prática que demanda
a presença e a cooperação de outras pessoas amigas, professoras,
até mesmo (se possível) uma comunidade ou uma rede de
praticantes.
Como se afirma no Kularnava tantram: “experiência e boa
companhia são os dois olhos abertos de quem busca”. Minha relação
com a pessoa que aceitou ser meu guru —me ajudar a desenvolver
minha própria prática e abordagem— é um tipo de amizade. Ela foi
intensa em alguns momentos, particularmente quando morávamos na
mesma cidade e podíamos nos encontrar com razoável frequência.
Agora moramos em diferentes extremos do planeta, e a relação que
temos é inevitavelmente diferente. Não é como se ele me dissesse o
que devo ou não fazer, ou me desse conselhos sobre que práticas
fazer, ou que tivéssemos de concordar quanto à doutrina ou teologia
que adotamos. De modo geral, não concordamos.

Nyasa

Eu saúdo Shiva Shakti no meu coração


Eu saúdo Shiva Shakti no topo da minha cabeça
Eu saúdo Shiva Shakti no alto da minha testa
Eu saúdo Shiva Shakti na minha kavacha
Eu saúdo Shiva Shakti nos meus três olhos
Eu saúdo Shiva Shakti na minha yoni/meu linga
Nyasa (“colocar”, “marcar” ou “imposição”) é um dos elementos
mais importantes da prática tântrica, pelo qual se transforma o corpo
em corpo divino ao tocá-lo em diferentes áreas e visualizar um deus
ou uma deusa em particular (às vezes um par —uma divindade
masculina e Shakti—, às vezes constelações, planetas, as letras do
alfabeto sânscrito, locais sagrados), muitas vezes acompanhado de
mantras. Algumas sequências de nyasa são altamente complexas e
podem ser equiparadas a inscrever um yantra no corpo. Essa prática
pode ser feita como parte do puja ou de forma independente. O que
descrevi aqui a é uma sequência de nyasa muito simples.
Ao “colocar” Shiva-Shakti dentro do corpo, o par divino passa a
residir ali, e lembramos a nós mesmos de que somos Shiva-Shakti —
ou que essa é nossa “origem”. Nos identificamos ou nos
amalgamamos com a presença substancial da divindade na qual o
puja se centra. Nessa forma de puja, nyasa é um dos processos
pelos quais nos identificamos com essa presença, tornando nosso
corpo “divino” e ao mesmo tempo os insuflando com a presença da
divindade. Em seguida ao nyasa, medita-se sobre a divindade
tomando forma dentro do “vazio” do nosso corpo, e então ela é
externalizada (via expiração) em alguma forma para devoção —seja
como uma forma visualizada, seja como imagem, estátua etc.
Nesse nyasa, não nos referimos ao coração como órgão
anatômico, mas como “centro” do corpo —a morada da divindade. O
termo “kavacha” (armadura) se refere a um conjunto de práticas
relacionadas à proteção mágica, às vezes usando amuletos, mantras
e liturgia dedicados a várias divindades.
Quanto aos três olhos, textos e obras iconográficas representam
muitas divindades tântricas como tendo três olhos (em sânscrito,
“tryam-bakam” —literalmente, “três olhos”). Em formas modernas do
tantra, costuma-se associar a isso a noção popular ocultista do
“terceiro olho” e do ajna chacra. No entanto, há de se considerar
outras coisas. Em textos tântricos, existem muitas triplicidades:
conceitos inter-relacionados como os três gunas (qualidades); três
shaktis (Jnana-Iccha-Kriya); três tempos (passado, presente, futuro);
três funções (criação, manutenção, destruição); três luzes (Sol, Lua,
Fogo); e três mundos.
Essas triplicidades geralmente são projetadas no corpo ou
relacionadas a áreas do corpo. De acordo com uma história purânica
popular, Parvati, consorte de Shiva, uma vez se esgueirou por trás
dele numa brincadeira e cobriu-lhe os olhos com as mãos,
mergulhando o universo na escuridão. Para salvar o universo, Shiva
abriu um “terceiro olho” entre as sobrancelhas. Tryam-bakam
significa maestria ou equiparação entre as triplicidades.
Os olhos são extremamente importantes na religiosidade indiana.
Darsan (que pode ser traduzido como “ver com reverência”) é uma
característica central em muitas formas de devoção e ritual. Quando
uma pessoa encontra os olhos de um deus ou uma deusa (seja por
meio de uma estátua ou uma pessoa que seja auspiciosa, devota ou
amante), diz-se que ela recebe a benção daquela divindade. Nos
pujas tradicionais dos templos, nos quais se criam imagens de
divindades, os olhos da figura são pintados por último. Darsan é uma
comunhão: uma troca entre a pessoa devota e a divindade, ou até
um lugar ou objeto.
Yoni e linga, nesse contexto, se referem ao órgão sexual da
pessoa. O par Shiva-Shakti, no contexto deste nyasa, é visto como a
união entre consciência e força. Várias fontes textuais privilegiam ou
Shiva ou Shakti como a causa primária do universo, mas há uma
tendência comum tanto em fontes trika quanto sri vidya de entender
Shiva-Shakti como um contínuo dinâmico, em que as duas divindades
se realizam reciprocamente. Uma não pode existir sem a outra.

O louvor às flechas dos sentidos

Fecho meus olhos, pego uma flor recém-cortada e inalo seu


perfume. Ao inspirar esse aroma, sinto perto de mim a deusa-
flecha do deleite olfativo.
Pego uma uva e a ponho na boca. Enquanto o sumo inunda-me
a boca, deixo que se assome à minha frente a forma da deusa-
flecha do deleite gustativo.
Aperto a ponta dos dedos, uma contra a outra. Concentro-me no
modo das minhas vestes envolverem meu corpo, na sensação do
chão sob os pés. Em meio a essas sensações, deixo que se
assome à minha frente a deusa-flecha do deleite tátil.
Escuto os sons à minha volta, desde a respiração suave das
outras pessoas no recinto até o tique-taque de um relógio, o
zunido grave da eletricidade, o ruído do trânsito lá fora, o latido
distante de um cão. A partir desses sons se forma a deusa-flecha
do deleite auditivo.
Olho em volta, fixando o olhar no máximo de coisas possível:
os objetos e suas sombras, o brilho das luzes, texturas,
superfícies, recôncavos. Enquanto meus olhos se mexem
rapidamente, vislumbro a forma efêmera da deusa-flecha do
deleite visual.
Aqui, os sentidos são personificados e adorados como deusas —
as shaktis-flecha. Vários textos tântricos (particularmente os do
movimento sri vidya) se referem aos sentidos como flechas floridas,
que são lançadas pelo arco de cana-de-açúcar (a mente) e perfuram
os objetos da percepção —lembrando os contos purânicos em que o
deus Kama atira uma flecha que acende Shiva com a chama do
desejo, levando-o a agir no mundo. Todas as experiências sensoriais
são divinas, são oportunidades de vivenciar a admiração, a alegria, o
deleite. Todas as sensações e todos os prazeres são emanações do
divino. O objetivo de cultivar a percepção tântrica é desenvolver uma
sensibilidade à beleza de tudo à nossa volta e, ao fazê-lo, nos
acercar da percepção constante de um elevo da consciência
pulsante que permeia toda a experiência.

Shakti

E comum que se traduza “shakti” como “energia”. No entanto, essa


palavra tem uma variedade ampla de sentidos, tais como
capacidade, força ou poder, habilidade, potencial. Sua raiz verbal é
sak, que, no sentido mais amplo, se refere ao poder de produzir um
efeito. Há uma variedade enorme de usos de shakti. Por exemplo,
nos puranas, shakti é muito usada para denotar tanto um conceito
filosófico quanto uma deusa. Ela é tanto o poder das divindades
quanto a fonte transcendental do universo manifesto, de onde todas
as formas emergem e na qual, ao fim, se dissolvem. Às vezes,
Shakti é apresentada em par com uma divindade masculina, como
sua consorte; outras vezes, diz-se que Shakti criou seu parceiro
masculino a partir do próprio corpo. Shakti pode indicar um
relacionamento entre dois (ou mais) pontos ou processos. Shakti
pode ser transmitida entre pessoas (corporificadas ou
descorporificadas) e pode ser vista como um meio de transação ou
troca. Ela pode ser acumulada por meio de práticas, o que envolve
aspectos morais e éticos. Embora shakti seja intangível, diz-se que o
grau de shakti das pessoas que praticam se reflete no corpo como
prova de sua devoção e de seu autocontrole.[21] Shakti como força
feminina também se relaciona à crença de que mulheres geram mais
calor do que homens.
Pode-se interagir com todos os poderes ou habilidades do nosso
complexo mente-corpo como shaktis. O ato de personificar e adorar
as shaktis dos sentidos neste puja tem um caráter temporário. As
formas das divindades em rituais e na devoção podem ser
abandonadas em fases mais avançadas da prática.

Devoção à shakti-flecha

Sentado com as cinco shaktis dos sentidos à minha frente, elas


cintilam enquanto se fundem e se separam umas das outras,
tornando-se uma única figura —sua unidade.
A Deusa-Flecha, formada pelas outras cinco, que se veste do
espaço, de aparência tão rubra quanto o alvorecer, banhada no
néctar do êxtase, segura cinco flechas e cinco flores nas mãos.
Ela sorri com docilidade, irradiando satisfação e contentamento.
Faço oferendas à deusa das flechas:
Om, isto é água, é para bebericar;
Om, isto é incenso, é para orar;
Om, isto é perfume, é para apreciar;
Om, isto é comida, é para nutrir;
Om, isto é flor, é para experienciar;
Om, isto é fogo, é para sacrificar.
Contemplo essa forma, absorvo-a pela respiração para dentro
do meu coração e medito sobre sua presença nele.
Três palmas para encerrar.

As oferendas nesse ritual são feitas como se fossem a uma


pessoa convidada de honra: são transações. A Shakti-Flecha ou
Deusa-Flecha é uma forma da Grande Deusa Lalita Tripurasundari,
divindade central do si vidya.[22] Ela emerge da totalidade das
percepções sensoriais. Ela é a totalidade das percepções sensoriais:
a fonte transcendente de toda experiência, e toda experiência é
simultaneamente uma dádiva que ela dá e uma oferenda que damos
a ela. Ela é a Rainha Dançante. Ela se deleita com toda experiência,
e experimentar esse deleite —admirar-se dele— é se tornar a
deusa. A devoção à Deusa-Flecha é um lembrete, um convite à
contemplação de que nossos sentidos não são separados uns dos
outros; eles se conversam, brincam entre si. Por mais que pensemos
no mundo como partes, experimentamos o que está à nossa volta de
forma muito diferente.
Depois das oferendas e da contemplação da Deusa-Flecha como
algo fora de nós, ela é conduzida —com uma inspiração— para
dentro, para residir na caverna do coração do eu. Encerra-se o puja,
mas o objetivo, afinal, é alterar a percepção de quem praticou o
ritual, para que a pessoa se torne mais atenta à experiência
cotidiana (e para que a aprecie mais) —para se abrir à admiração
perante o mundo que nos cerca e pelo qual nos movemos.
Que minha conversa à toa seja o sussurro da prece, que todo
movimento manual que eu faça seja a execução de um gesto
ritualístico, que meu andar seja uma circunvolução cerimonial, que
meu ato de comer e outros sejam o rito do sacrifício, que meu deitar
seja a prostração da devoção, que todo prazer que eu sinta seja
desfrutado com toda a dedicação, que qualquer atividade que eu
faça seja alguma forma de devoção a ti.[23]

Conclusão

Me senti atraído pela prática do tantra no início dos anos 1980 por
causa de uma série de sonhos recorrentes em que a deusa Kali
avultava imensa. Naquele momento de vida, eu estava envolvido com
a wicca, e teria sido fácil interpretar meus sonhos com Kali dentro
dessa perspectiva. Mas eu estava procurando outra coisa. Os
relatos ocidentalizados e as apropriações do que supostamente é o
tantra são abundantes. De muitas formas, um dos maiores
obstáculos que tive de contornar ao longo dos últimos trinta anos,
mais ou menos, foi perpassar as representações ocidentais do tantra
(tanto as ocultistas quanto as acadêmicas) e descobrir as
abordagens teológicas ricas e diversas dos próprios textos do sul da
Ásia. Na medida em que aprendi a lidar com esse material, percebi
que, para entendê-lo, eu tinha de abandonar a perspectiva ocidental
(imperialista) de que as práticas de outras culturas podem ser
facilmente assimiladas aos esquemas esotéricos ocidentais
universalizados e, em vez disso, procurar entender como essas
práticas se relacionam com as formações culturais mais amplas da
Índia, tanto historicamente quanto no meio contemporâneo. Ao fazer
isso, acabei não só abandonando muito do que eu pensava sobre
práticas mágicas, como também focando naquilo que para mim eram
temas cada vez mais centrais, em torno dos quais eu queria basear
minha prática: a admiração perante a vida, o ato de viver momento a
momento e as milhares de formas pelas quais podemos ter essa
experiência através das nossas relações com o mundo.
TANTRA, SEXO E
IMAGINAÇÃO
TRANSGRESSORA

Este ensaio foi escrito em 2013 e publicado no meu blog enfolding.org. A


ideia era que fosse a postagem de abertura de uma série muito mais
longa, mas meu interesse se desviou, como acontece frequentemente,
para outras questões. Talvez um dia eu volte a essa série. A transgressão
—e sua relação com o tantra (e mesmo com a magia em geral)— é um
assunto que me prendeu várias vezes ao longo dos anos, começando
com meu envolvimento com a magia do caos, e também durante a maior
parte das minhas primeiras práticas tântricas. Boa parte do que se
escrevia sobre magia nos anos 1980 e 1990 —principalmente nas
vertentes associadas à magia do caos, ao caminho da mão esquerda e ao
tantra ocidentalizado— é permeada pela noção de que se tornar um
indivíduo é um exercício heroico e transgressor.[24] Neste ensaio, usei
vários slogans publicitários propositalmente para destacar que a pressão
para tomarmos posse da nossa individualidade foi normalizada há alguns
anos e até aceita como parte da cultura contemporânea.

Além disso, esmiuçar um texto específico (neste caso, um texto tântrico não-
dualista do budismo) demonstra as nuances e dificuldades da interpretação de
textos e das doutrinas que os fundamentam.

Assim como o conceito de primitivo ou de xamã, o tantra é uma categoria


profundamente ambivalente, como a face de Jano: acusado em alguns períodos
históricos de ser incivilizado ou subumano, e celebrado em outros períodos
(particularmente o nosso) como um estado original pré-civilizado e imaculado,
um tipo de Éden antes da Queda, quando prevalecia a harmonia, o sexo era
livre e sem repressões, e o corpo não tinha sido subjugado ao puritanismo e à
hipocrisia ocidentais do mundo moderno.
—Hugh Urban, Tantra

◆ ◆ ◆

Às vezes é preciso quebrar as regras.


Burger King

P
raticamente desde o início de sua descoberta por europeus na
virada do século XIX, o “tantra” enquanto conceito girou em
torno de dois grandes eixos —sexo e transgressão—, a ponto
de esses dois elementos serem comumente interpretados como
características definidoras do tantra, isto é, como os elementos-
chave da “identidade visual” do tantra. Afinal, a transgressão é
vendável. Os ideais contemporâneos de transgressão movimentam o
mercado; somos incentivados a ser únicos, a “quebrar as regras”, a
nos entender e nos expressar como pessoas autênticas, criativas e
libertas por meio da compra de coisas: de carros a perfumes, de
hambúrgueres a livros. Ao que parece, há todo um gênero de livros,
especialmente de ocultismo, que parecem feitos com o objetivo de
serem declarados transgressores —do contrário, ninguém os
perceberia. Hugh Urban faz uma pergunta pertinente:

A busca por uma libertação radical até mesmo dos limites do eu de fato leva a algum tipo
de liberdade significativa? Ou será que ela simplesmente transformou as próprias ideias de
“libertação” e “transgressão” em mercadorias que podem ser compradas por US$ 19,95
na Amazon.com?[25]

Dadas as ambiguidades das perspectivas contemporâneas


relacionadas à “transgressão”, pensei que seria interessante dar uma
olhada em alguns textos tântricos em que as referências a práticas
sexuais ou transgressoras são, aparentemente, um tanto explícitas
—embora isso não signifique necessariamente que sejam fáceis de
interpretar nem, ouso dizer, que sejam muito úteis para praticantes
da atualidade.
◆ ◆ ◆
Sem fronteiras, faça do dia a dia uma aventura, vá mais longe.
Propaganda da Ford

Vou fazer uma breve análise do Guhyasamaja Tantra (“o tantra da


união secreta”), que é provavelmente um dos tantras budistas mais
famosos (ou infames), surgido entre os séculos VII e X, do qual
somente versões tibetanas sobreviveram. A fama do Guhyasamaja
Tantra advém de passagens como esta (cap. 5: 2-8):

Quem tira vidas, quem se compraz em mentir, quem sempre cobiça a riqueza alheia,
quem gosta de fazer amor, quem consome fezes e urina de propósito, são essas pessoas
as merecedoras desta prática. Yogues que fazem amor com a mãe, a irmã ou a filha
alcançam enorme sucesso na verdade suprema do mahayana.[26]

E esta, do capítulo 7:

Tomando uma moça de posses, dotada de um semblante formoso e muito bela, meditando
sobre a fundação da bênção, ele deve oferecer a devoção da essência, e tomando o
sêmen ele deve comer, de olhos abertos, com a mente tranquila; essa é a devoção do
corpo, do discurso e da mente de todos os mantras. É chamada de executora de todos os
mantras-siddhi, o segredo de quem possui a sabedoria vajra.[27]

São passagens como essas que levaram muitas pessoas que


comentaram o tantra a desconsiderar todos os textos tântricos como
indicadores de uma ampla degeneração cultural e moral, ou, tão
acriticamente quanto, a assumi-los como amorais e “transgressores”.
Se tomarmos a primeira citação como literal, o texto está dizendo
que as pessoas que matam, mentem, são gananciosas, gostam de
sexo, comem merda, bebem mijo e cometem incesto são as que
alcançam sucesso na prática (espiritual). Esses tipos de passagem,
que ocasionalmente aparecem em textos tântricos, causaram
bastante perplexidade e dúvida quanto a serem ou não instruções
literais, passagens “codificadas” ou outra coisa totalmente diferente.
O problema por trás disso é que os textos tântricos costumam se
dirigir a praticantes das tradições. Ao contrário dos manuais de
magia com que estamos acostumados na cultura do ocultismo
ocidental contemporânea, os livros tântricos não estão interessados,
no geral, em explicar as práticas para “outsiders” ou iniciantes —
muitas vezes é exatamente o contrário.
A maioria das interpretações acadêmicas de textos como esses
aconselha consultar a fortuna crítica tradicional que costuma
acompanhá-los. Por exemplo, Christian Wedemeyer, com base em
comentários sobre o Guhyasamaja que chegaram até nós, explica
que as referências a “tirar a vida” sugerem se dissociar da
identificação com a ideia limitada de individualidade; “tomar posse da
fortuna de outrem”, na realidade, significa tomar a sabedoria intuitiva
dos budas aperfeiçoados; e a prescrição de cometer incesto aponta
à “união” não-dualista, que é o objetivo dessa tradição específica do
budismo.[28] Miranda Shaw oferece uma explicação ligeiramente
diferente da preferência do Guhyasamaja pelo incesto: que
“aderentes do tantra formavam grupos voluntários e muito unidos,
vinculados por iniciações e pactos secretos” e que “praticantes se
definiam como familiares em relação uns aos outros”.[29] Para apoiar
esse argumento, ela cita uma passagem do Cakrasamvara Tantra:
Fique somente com mensageiras:
Mães, irmãs, filhas e esposa.
Pratique em um círculo, dessa forma,
E de nenhuma outra.[30]

Na visão de Shaw, a companheira de um guru é equiparada a uma


mãe, uma discípula de um guru é uma irmã, a “própria discípula”
(presumivelmente mulher) de um praticante homem é uma filha, e a
companheira de um praticante é uma esposa ou consorte. Seu
argumento é que as prescrições do tantra para fazer sexo com a
própria mãe ou irmã não devem ser lidas como instruções
“transgressoras” de prática incestuosa, mas sim como referências à
ideia de formação de grupos-clã do tantra, nos quais rituais sexuais
só ocorrem entre quem se iniciou, praticantes que compartilham da
mesma linhagem, iniciação e perspectivas.
Outra coisa que Shaw aponta com relação a textos como o
Guhyasamaja Tantra é que essas instruções aparentemente
“transgressoras” podem ser vistas como meios de espantar pessoas
levianas, por assim dizer —afinal, pessoas de fora, estranhas à
tradição, seriam desencorajadas por essas passagens, enquanto
somente quem estivesse “dentro” da tradição seria capaz de
interpretá-las corretamente. No entanto, isso não significaria que
existe necessariamente um “significado secreto” escondido nesse
tipo de passagem —os textos tântricos costumam ser abertos a
múltiplas interpretações—, e o budismo esotérico, por exemplo, teria
desenvolvido várias estratégias hermenêuticas para que seja assim.
Os textos seriam interpretados —e postos em prática— de acordo
com etapas específicas do grau de realização de quem pratica e
estariam sujeitos à orientação do mentor ou da mentora. Novamente,
essa é uma ideia que se encontra frequentemente em textos
tântricos: certas práticas que seriam degradantes (ou, no contexto
budista, causas para o samsara) para uma pessoa comum (ou
iniciante) seriam fontes de libertação para praticantes de nível
avançado.

◆ ◆ ◆

Quebre as regras. Se destaque. Não perca a cabeça. Siga seu coração.


Propaganda de perfume da Vanderbilt

Mas voltemos ao Guhyasamaja Tantra. Boa parte desse texto está


contextualizada em um discurso entre o Senhor Buda Vajradhara e
um grupo de budas e bodhisattvas. Assim que Vajradhara apresenta
seu programa, digamos, transgressor (o verso sobre mentir, comer
fezes etc. citado anteriormente), irrompe uma confusão entre
bodhisattvas presentes. O texto diz: “Por que o bem-aventurado
mestre de todos os tathagatas diz tais palavras que não deveriam
ser ditas em meio à reunião de todos os tathagatas?” Ao que
Vajradhara responde calmamente que “esta é a pura natureza
dármica dos budas que incorporam a essência da sabedoria”.[31]
A resposta do grupo a esse enunciado de sabedoria não-dualista
vai além da consternação: os bodhisattvas desmaiam de medo e só
são reanimados quando Vajradhara entra no “samadhi chamado
vajra da identidade indivisa com o espaço” no que, tocados pela luz
radiante desse grande samadhi, os bodhisattvas alcançam o
entendimento e, “preenchidos de enlevo e admiração e tomados de
alegria”, começam a cantar uma canção em louvor a Vajradhara e ao
darma não-dualista que foi revelado a eles.
Wedemeyer lê essa sequência de versos como um exemplo de
“discurso motivado”: uma tentativa de destacar a não-dualidade de
categorias binárias como puro e impuro; sagrado e profano;
imanente e transcendente.[32] Como ele aponta, pode-se encontrar o
mesmo padrão no capítulo 9 do Guhyasamaja, no qual são dados
cinco ensinamentos relacionados à visualização de mandalas que “se
tornam” um dos cinco senhores transcendentes. Na primeira prática,
uma “mandala de budas” é transformada no Vajra Asobhya:
“visualizando os budas dos três tempos, esmague-os com o vajra, e
contemple o corpo de júbilo feito de Corpo, Discurso e Mente
destruído e esmagado pelo vajra, essa meditação suprema com que
se alcança o siddhi da Mente”.[33]
Depois, a mandala da roda é transformada em Vairocana: “então,
visualize todas as formas vajra dos budas por meio das cinco joias;
imagine que você está roubando todos esses tesouros e os traz para
dentro do vajra tripartite...” de forma que essas joias roubadas se
tornem “grandes sábios”.
A terceira prática instrui: “visualize a lótus mandalam e transforme-
a em amitayus; preencha-a toda com budas e, pela prática dos
quatro yogas, visualize-as todas em união com as formas das
mulheres, esse é o caminho do vajra supremo”.
A quarta visualização transforma uma mandala de budas em Vajra
Amogha, na qual “as formas de todos os budas” são visualizadas
como “o domicílio vajra do discurso falso” para quem, então, se deve
mentir.
O último ensinamento é uma mandala de Vajra Ratnekatu,
“preenchida com todas as formas de budas” que são, então,
xingados.
Mais uma vez o grupo fica impressionado e chocado com essas
palavras, mas Vajradhara e os senhores transcendentes explicam a
postura adequada para esse darma específico:

Filhos desta família, a fumaça surge e provoca o fogo a partir da fricção de dois pedaços
de madeira e do trabalho das mãos humanas, mas o fogo não mora na madeira que
fricciona, nem na madeira friccionada, nem no trabalho das mãos humanas. É dessa
mesma forma, filhos desta família, que as leis vajra de todos os tathagatas devem ser
entendidas, como um simples ir e vir.[34]

O capítulo termina com a proclamação: “entre os darmas é


proclamada a mais maravilhosa, a verdade, como o espaço, puro,
além do pensamento”.
O interessante aqui é que os ensinamentos aparentemente
“transgressores” são mais do que formas de repudiar e desafiar
aquilo que podemos entender como práticas budistas “normativas”.
Não acredito que esses ensinamentos sejam uma tentativa de
estabelecer uma crítica da ideologia budista ortodoxa, mas sim que
sejam provocações deliberadas, buscando orientar quem lê ou ouve
a considerar a não-dualidade por meio de uma inversão deliberada
—e consciente— da ética budista.

◆ ◆ ◆

Existem muitas formas de usar.


Propaganda da Levi’s

É claro que alguém sempre pode retrucar que esse tipo de


interpretação representa uma forma de apagamento ou “sanitização”
de algo que era originalmente transgressor. Como apontei no início
do texto, tanto escritos acadêmicos quanto populares vêm discutindo
há anos se textos tântricos devem ser lidos de forma figurativa ou
literal. Frequentemente nos deparamos com a ideia de que os
trechos não sexuais estão “escondendo” algum significado sexual
secreto por trás de ambiguidades ou linguagem intencional, enquanto
os trechos explicitamente “sexuais” devem ser lidos literalmente. Os
comentários que acompanham os textos —que inclusive defendem
múltiplas interpretações de certos trechos— foram eles próprios
criticados como tentativas de sanitizar uma camada anterior de
práticas transgressoras “estrangeiras”. Esse é um argumento que
vou revisitar em outro momento.
Wedemeyer, no entanto, comenta que se pode encontrar
declarações aparentemente “transgressoras” em outros textos
budistas (não esotéricos).[35] O Dhammapada, por exemplo, tem um
trecho que afirma: “depois de matar mãe e pai e também o rei e dois
brahmans cultos, e depois de derrotar o reino e seus súditos, pode-
se dizer que esse homem é puro”.[36] Wedemeyer comenta que esse
tipo de excesso hiperbólico costuma ser entendido como referência
aos obstáculos à sadhana, e não como prescrições literais para
matar os próprios pais. Afinal, uma leitura literal do
Samantapasadika budista —texto que Bernard Faure se refere como
um “tipo de ‘Relatório Hite’[37] da sexualidade budista”[38]— pode levar
a pessoa à conclusão de que monges budistas andavam ocupados
demais com atos bestiais altamente criativos com sapos e
centopeias. Em vez disso, é mais um caso do tipo de floreio ou
excesso retórico (no sânscrito, atisa-yokti) característico da literatura
religiosa, didática e poética. Como indica Patrick Olivelle, o uso de
hipérbole em literatura religiosa e didática é diferente de seu uso em
poética, mas “nenhuma das duas pode ser entendida sem uma
interpretação ou lida literalmente”.[39]
PARTE V
SEXUALIDADE
INTRODUÇÃO

M
inhas primeiras experiências com grupos de ocultismo (e com
a leitura de livros sobre o tema), no que diz respeito a
sexualidade, não aconteceram sem que houvesse problemas.
Quando entrei em contato com a cena ocultista do Reino Unido nos
anos 1980, predominava a ideia de que, se a pessoa não fosse
hétero, não poderia ser bruxa ou magista. Essa noção estava
presente em todas as vertentes do ocultismo: bruxaria, magia
cerimonial, tantra. Até o movimento neotantra, ou do sexo sagrado,
que começou a se popularizar no início daquela década, defendia
essa opinião. O best-seller Sexual Secrets (1979), de Nik Douglas e
Penny Slinger, defendia que a “liberdade homossexual” havia levado
ao declínio de impérios e que homens gays deveriam usar técnicas
de yoga para suprimir seus desejos e assim evitar “consequências
cármicas”. Hoje em dia, é fácil ter a impressão de que o mundo do
paganismo e do ocultismo sempre aceitou bem as sexualidades não
normativas. Quando algumas pessoas não acolhem a causa, se vê
isso como anomalias individuais, e não como uma cultura arraigada.
É fácil se esquecer de que nos anos 1980 e 1990 (pelo menos no
Reino Unido) não era incomum encontrar gente vomitando
declarações que agora reconheceríamos como homofóbicas, das
quais, em geral, ninguém reclamava ou contestava.
Para mim, e para a maioria das pessoas da minha geração que se
identificam como queer, a realidade disso é mais complexa. A meu
ver, a aceitação de paganistas e magistas não hétero na cena
mainstream foi resultado de uma longa batalha que, até certo ponto,
ainda não acabou. Em parte, essa batalha tem consistido em
combater declarações tais como a de Gareth Knight de que a
“homossexualidade, assim como as drogas, é uma técnica de magia
negra”,[40] ou teorias ocultistas que dizem que sexualidades não
normativas são produto de “chacras bloqueados”, de “desequilíbrios
de energia yin ou yang” ou de “kundalini invertida”. Também tivemos
de combater explicações de polaridade que se baseiam em
eletromagnetismo e até na boa e velha analogia de “plugues e
tomadas”, além da opinião bizarra de que homossexuais
simplesmente não são seres humanos, mas sim entidades
elementais ou demoníacas que habitam corpos humanos com
objetivos duvidosos —todas são ideias que já encontrei em uma
grande variedade de textos que ainda circulam.
Ler (e ouvir) esse tipo de coisa no início da década de 1980, como
um jovem lutando para entender a própria identidade como homem
gay ou bissexual (eu não tinha certeza e cheguei a me identificar
como gay por alguns anos), era perturbador, para dizer o mínimo.
Passei por fases de confusão, depressão e, finalmente, vim a sentir
raiva da situação.
O sentimento de raiva tomou forma em textos, palestras e longas
discussões com outras pessoas ocultistas e paganistas não hétero
—e não havia muita gente, a princípio. Também comecei a ficar mais
para “fora do armário” em reuniões ocultistas e paganistas: em uma
ocasião memorável, saí desfilando por um descampado cheio de
paganistas em Leicestershire usando calças de couro, uma coleira
de cachorro e um boá de plumas.
No final dos anos 1980, eu estava muito ativo na rede PaganLink,
[41]
e foi por meio dela que conheci Gordon “The Toad” McLellan.
Gordon montou uma rede chamada HOBLink com o objetivo de
conectar gays, bissexuais, lésbicas e trans paganistas. O foco inicial
era em correspondência, apesar de termos tido um ou dois ótimos
encontros. Quando me mudei para Londres, ajudei a montar um
grupo HOBLink por lá, chamado Queerwolf: A Radical Sexuality
Network, que durou algum tempo. Colocamos um anúncio na Gay
Times para tentar atrair pessoas interessadas, mas muitas
responderam associando claramente o paganismo com orgias em
Hampstead Heath, o que não era bem o tipo de encontro que
estávamos procurando na época! Produzi um boletim informativo
chamado Queerwolf, mas só houve uma edição.
Ao longo dos anos 1990, conheci e me correspondi com uma
grande variedade de praticantes de magia que não eram hétero e
seguiam várias tradições e abordagens. Embora de vez em quando
eu ouvisse histórias de pessoas que tiveram de “esconder” sua
sexualidade para serem aceitas em grupos ocultistas, as coisas
estavam mudando aos poucos. A maioria das pessoas que conheci
por meio da Iluminados de Thanateros (IOT) ou da Temple of
Psychic Youth (TOPY) não tinha qualquer problema com praticantes
queer, mas ainda circulava muita homofobia disfarçada de saber
ocultista nos textos de outras tradições e, é claro, sempre tivemos
de lidar com fofocas nesse meio, que às vezes se tornavam públicas.
Até o fim da década de 1990, havia praticantes LGBT/queer que já
estavam criando seus próprios espaços autônomos.
O Queer Pagan Camp (QPC) é um exemplo. Estabelecido em
1998, o QPC foi um espaço queer organizado anualmente (por 13
anos consecutivos, quando houve um breve hiato até que as
atividades fossem retomadas), no estilo do it yourself, montado e
administrado por praticantes queer de paganismo e magia —algo
muito diferente de um evento basicamente heteronormativo que
poderia (mesmo com a maior boa vontade do mundo) ter dificuldade
de ser “inclusivo” para participantes e perspectivas não hétero. Parte
do ímpeto por trás da organização do QPC era oferecer um espaço
seguro para paganistas e magistas queer, mas também se queria
criar algo diferente.
O que significa queer nesse contexto? Me parece que existem
duas formas correlatas, porém divergentes, de pensar a expressão
“paganista queer”. Primeiro, enquanto substantivo, “paganista queer”
pode ser lido como um termo “guarda-chuva”, isto é, algo que abarca
uma variedade de posições identitárias entre as quais talvez o único
ponto comum seja o comprometimento (em diferentes graus) com a
recusa ou resistência à binaridade de gênero heteronormativa.
No entanto, é na segunda forma de usar “paganista queer” que
quero me concentrar no momento, na qual “queer” aparece como
verbo, significando um processo radical de ruptura: o foco passa de
paganista queer como posição identitária para paganismo
“queerizante” enquanto processo.
O que significa “queerizar” algo? Queerizar pode ser entendido
como um processo de ruptura, interferência e questionamento do
normal, das coisas que são “dadas como naturais”. O queer se
aproxima sorrateiramente das identidades e ideologias: qualquer
categoria tomada como atemporal, sólida e fundamental que revele
lacunas, fissuras, resistências, instabilidades, possibilidades
diferentes e surpresas. Parte desse compromisso de confrontar,
desvelar o que está escondido, olhar para os bastidores e descobrir
como as produções são realizadas é o compromisso de manter o
queer difuso e indeterminado —um reconhecimento da importância
de não recair no binarismo “nós vs. eles” que privilegia um sujeito
queer heroico e “transgressor” em contraposição a todo o resto que
ainda se mantém enredado em relações normativas.
Me perguntaram há uns anos se o paganismo queer poderia ser
visto como uma “tradição”. É uma pergunta interessante que, para
mim, destaca o quanto paganistas tendem a conceituar diferentes
categorias de práxis como “tradições”. Isso também suscita um
questionamento sobre como o próprio conceito de “tradição” é usado
no discurso paganista. A palavra “tradição” é utilizada às vezes para
denotar atributos comuns de uma práxis —ou seja, um conjunto não
só de práticas, mas também de ideologias comuns e de alianças
políticas comuns, por exemplo—, e muitas vezes há uma implicação
histórica sobre essa práxis —certa ideia de que as coisas que
fazemos agora eram feitas pelas pessoas que são nossas
ancestrais, ou algo assim. A tradição pode ser pensada
(simplificando bastante) como uma busca pela unidade em variados
graus, e pode funcionar como uma fronteira quando se fazem
distinções entre duas abordagens da práxis. Mas para o paganismo
queer essa busca pela unidade só pode existir, acredito eu,
temporariamente. Uma coisa que vejo como central para o
paganismo queer é o compromisso com a diversidade e a diferença
—o que envolve abrir espaço para discordância— e o entendimento
de que a própria discordância é produtiva, e não um fracasso.
Da mesma forma, defender um paganismo queer histórico é
também complicado. Embora possamos falar (e muito!) sobre
celebrar ancestrais queer e enxergar o queer em diferentes histórias
retrospectivamente, desvelando políticas dissidentes ocultas por trás
de relatos monolíticos sobre o passado, não acredito que isso seja a
mesma coisa que colocar as origens de uma prática de paganismo
queer em um passado distante e indiferenciado. Enxergo o
paganismo queer como algo novo: a teoria e o ativismo queer
surgiram a partir dos anos 1990, e o tipo de paganismo queer
praticado na QPC tem conexões diretas com grupos ativistas como o
Queeruption.
Se for possível falar de “tradição paganista queer”, ela estaria
relacionada a alianças e redes específicas temporárias, produzidas
em espaços não hegemônicos como o Queer Pagan Camp. Talvez
haja um senso de tradição compartilhada quando paganistas queer
se reúnem para dar risadas, celebrar, dançar e discutir, mas, fora
desses espaços, isso retrocede, esvanecendo como o orvalho
matinal.[42]
Em vez de enxergar a tradição como uma fronteira que delimita
práticas específicas (como teologias, rituais etc.), o que me parece
ser motivo de maior preocupação dentro de um espaço paganista
queer é o compromisso com uma ética de cuidado mútuo e
reciprocidade: um convite a jogar com limites e categorias, a
celebrar a diferença. É essa abertura ética —primariamente em
relação a sexualidade e identidade de gênero, mas também a outras
formas de diferença— que vejo como central ao entendimento das
abordagens paganistas queer. O queer não precisa ser uma escolha
entre isto ou aquilo feita em contraste a outras identidades, mas
(dependendo do contexto ou da situação) possivelmente algo como
um “tanto isto como aquilo” ou até mesmo “nem isto nem aquilo”.
Abrir-se para as possibilidades de fluidez implica aceitar múltiplas
orientações e posições que mudam de acordo com contextos e
situações particulares. No QPC, ser “queer” é uma questão de
autoidentificação. Se você se enxerga como queer —
independentemente de como você enquadra e expressa (ou não)
seus desejos—, se você se identifica com os ideais do grupo, você é
“queer”. O queer não é só wicca com purpurina ou xamanismo de
salto alto.
Os ensaios que escolhi para esta seção foram escritos entre 1988
e 2019, e acredito que trazem uma ampla variedade de influências e
perspectivas.
AMOR SOB VONTADE
Sexualidade, magia e libertação

Este ensaio foi escrito em 1988 e publicado pela primeira vez no n. 4 da


Chaos International. É um tipo de “resenha” das diferentes formas com
que o ocultismo entende a magia sexual e as limitações delas segundo
minha perspectiva na época. Há uma forte influência de Starhawk neste
texto, e também ecoam os argumentos de algumas amigas feministas.
Minhas referências a “sexualidade tântrica” são um tanto constrangedoras
agora, visto que minha compreensão do que constitui uma “sexualidade
tântrica” mudou muito ao longo dos últimos trinta anos, mais ou menos. No
entanto, como um apelo ao desenvolvimento de uma abordagem mais
nuançada da magia sexual, ainda acho que este ensaio tem algo a
oferecer.

Sou a chama que arde em cada coração do homem, e no âmago de cada


estrela. Sou Vida, e quem dá Vida; e no entanto, assim, o conhecimento de
mim é o conhecimento da morte.
—Aleister Crowley,
O livro da Lei, 2:6

N
o momento em que a magia está (supostamente) passando por
um renascimento, com ideias e técnicas centrais apresentadas
de forma clara e aberta, a magia sexual continua emaranhada
em falsas aparências e concepções errôneas. Parece haver muito
pouco material publicado que fale claramente sobre o assunto. Em
geral, o que acontece é que a magia sexual fica velada (às vezes
“afogada”) em meio a alusões e comentários simbólicos.
Para começar, o que de fato constitui um ato de magia sexual?
Uma definição ampla seria: o uso da própria sexualidade com
intencionalidade —literalmente “amor sob vontade”— para provocar
mudanças. Isso implica muito mais do que empunhar bastões,
varinhas, taças e rosas. O celibato, enquanto decisão consciente de
não ser uma pessoa sexualmente ativa, pode ser um ato de magia
sexual tanto quanto qualquer cópula ou masturbação ritualizada.
A base da magia sexual é entender e experienciar a sexualidade
como sagrada ou “mágica”. A sexualidade é provavelmente o meio
mais poderoso de transformação, descoberta e conhecimento de
que a humanidade dispõe. É por isso que a sexualidade é
efetivamente guardada “sob sete chaves” por nossa sociedade. A
visão judaico-cristã da sexualidade ficou “cravada” na psique cultural
a tal ponto que muitos de nós acreditam que a expressão sexual vem
com uma carga “natural” de vergonha e culpa. Para o cristianismo
ortodoxo, a sexualidade nunca é totalmente isenta de pecado,
mesmo dentro dos limites do casamento. O advento da “sociedade
permissiva” supostamente nos libertou das amarras e inibições do
passado, mas será que foi isso mesmo?
A sexualidade se tornou mais um produto comercializável, mais
uma fonte de status. Embora costumemos encarar nossa natureza
sexual em termos de privacidade e de “naturalidade”, ela está sujeita
a bastante interferência e manipulação pelas mãos de agentes
externos. Difunde-se na mídia um imperativo cultural de que temos
de ser bons de cama; que o sucesso depende da quantidade de
orgasmos que conseguimos provocar na pessoa parceira; ou, na
verdade, da quantidade de pessoas parceiras que temos. Para muita
gente, a sexualidade é um dos principais meios de conquistar status
e poder egocêntrico, associados com a imposição da própria
vontade a outrem. O fator-chave do estupro, por exemplo, parece
ser a demonstração do poder do macho sobre outra pessoa (uma
mulher ou um homem mais fraco).
A sociedade age de modo a direcionar a energia sexual para
formas aceitáveis: aquelas que mantêm certa alienação, como o
romantismo sentimental e a pornografia. Mais poderosos e invasivos
do que os íncubos medievais são as neuroses, obsessões e atos de
violência que parecem ser o produto inevitável desse niilismo sexual.
Uma característica dessa sexualidade profundamente egocêntrica é
a pessoa parceira ser vista como pouco mais do que um instrumento
de satisfação das próprias necessidades (sejam elas físicas ou de
status). As emoções humanas ficam alienadas nessa corrida por
gratificação consumista: de produtos, riqueza, sucesso e conquista
dos orifícios de outrem.
Esses imperativos culturais —de sermos pessoas bem-sucedidas
e termos objetivos definidos em todas as áreas da vida— estão tão
arraigados que normalmente só percebemos suas manifestações
mais óbvias, como em relação a trabalho, por exemplo. Eles podem
facilmente passar despercebidos no domínio bastante pessoal no
qual colocamos nossa própria sexualidade e, igualmente importante,
nosso senso de “espiritualidade”. Como resultado da ênfase cultural
que se coloca na conquista de objetivos, boa parte do que passa por
ocultismo ocidental também é focada em objetivos. A magia sexual
ocidental não é exceção. Existe uma tendência a encarar a magia
sexual simplesmente como um jeito “melhor” de adquirir produtos,
“poderes” ou riqueza, e se coloca muita ênfase na necessidade de
visualização, inibição do orgasmo e concentração mental em vez de
consciência corporal e prazer. Essa abordagem ao potencial sexual
parece muito fria e limitada; como Zachary Cox disse, é “como usar
um microchip como peso de porta”.[43]
Parte do problema sofrido pela magia sexual ocidental é a
consagração das ideias de Aleister Crowley, muitas vezes visto como
modelo ideal da “nova sexualidade”. No entanto, uma pansexualidade
como a de Crowley não implica necessariamente uma libertação
sexual total. Embora tenha sido um grande inovador e sintetista,
Crowley não foi capaz de se livrar da moral sexual prevalente na
época. Sua filosofia sexual demonstra uma típica (e duradoura)
postura dualista quanto às mulheres, colocando aquelas que ele
“idealizava” em um pedestal, mas continuando aparentemente
incapaz de aceitar as mulheres como iguais. Exemplos desse
egocentrismo não são difíceis de encontrar:

Por volta das 20h45, eu estava na esquina da Rua 35 com a Broadway, procurando uma
alma gêmea, uma noiva predestinada, uma afinidade, um ego congênere etc.; e teria
considerado as condições satisfeitas por qualquer orifício no qual eu pudesse mergulhar
meu pênis por um valor que não excedesse US$ 2,50.[44]
A abordagem de magia sexual adotada por Crowley parece ter
sido quase totalmente voltada para resultados, com suas inúmeras
operações para atrair dinheiro, fascínio, sucesso, juventude e
energia mágica. Ele sugere que a parceira nesses trabalhos é
secundária à vontade do mago, e a seleção de uma pessoa
adequada é deixada para algum capricho inconsciente. Infelizmente,
para ocultistas de hoje, há pouco material disponível sobre o trabalho
e as ideias das mulheres que seguiram o sistema de Crowley. Sem
dúvida boa parte da atração por Crowley enquanto uma espécie de
guru se dá pelos valores sexuais masculinos egocêntricos presentes
em suas atitudes. Todo o material disponível hoje em dia sobre a
“compatibilidade de parceiros” é voltado para homens, e serve para
manter um tipo de desequilíbrio. Por um lado, há a postura de Louis
T. Culling:

Muitas vezes, uma mulher que estudou ocultismo se torna insuportável por ter um excesso
de preconcepções que não estão de acordo com seu papel de parceira boa e cooperativa.
Se há qualquer relação possível, a mulher se torna automaticamente responsiva às
aspirações do varão, e, depois que isso acontece, é muito fácil oferecer a elas uma
explicação e uma compreensão dos aspectos mágicos.[45]

Por outro lado, Kenneth Grant dá a entender que praticar tantra é


quase impossível hoje em dia por conta da falta de pessoas
parceiras adequadas:

Mulheres ocidentais com as características necessárias são raras, e, como elas não têm
a vantagem hereditária da iniciação em técnicas ocultistas —como algumas mulheres
africanas e orientais—, o impacto repentino da energia mágica em suas personalidades
tende a perturbar sua sanidade.[46]

Grant aponta que, de acordo com a prática tântrica, a mulher é a


iniciadora do homem, mas parece sustentar a opinião de que
mulheres assim sejam raridade no Ocidente. Embora a maior parte
de seus escritos busque produzir uma metafísica sexual baseada nas
propriedades “ocultas” da menstruação, eles parecem se distanciar
das mulheres no sentido de conterem muitas referências a mulheres
como a Sacerdotisa ou Suvasini, mas quase nenhum material sobre o
assunto produzido pelas próprias mulheres.
O enfoque nessa questão da “adequação” é todo revestido de
termos da metafísica ocultista. Em nenhum lugar ele menciona que
seria benéfico para todas as pessoas envolvidas trabalhar seus
próprios condicionamentos sexuais e emocionais, ou que uma
sensibilidade empática, ou até mesmo a compreensão das
necessidades e sentimentos da parceira, deveria ser uma prioridade.
São essas qualidades comuns e humanas que se perdem nas vastas
metaestruturas simbólicas erigidas por Grant. A sensação que passa
é a de que as pessoas que não estão por dentro das ramificações
desses “segredos” não são dignas de serem consideradas em
termos de graus de iniciação. A experiência iniciática em áreas da
vida além do ocultismo parece não ter importância. Partindo dessa
visão, não parece provável que as “sacerdotisas”, pelo menos não
da forma como são retratadas por Grant, “ressurgirão”, já que as
mulheres parecem ser tacitamente excluídas da possibilidade de
assumir um papel igualitário ao dos homens —afinal, foram eles que
erigiram o metassistema, para começo de conversa: “a situação é
que só podemos preservar a fórmula, confiantes de que o
renascimento atual da magia revelará genuínas sacerdotisas para
servir em nossa missa”.[47]
Dados os avanços recentes na consciência masculina e feminina, é
mais provável que as “sacerdotisas” já estejam por aí esperando que
nós, homens, tomemos vergonha na cara!
De fato, parece que essa ênfase na construção de metassistemas
altamente intelectuais, separados da “realidade cotidiana”, é uma
característica da magia centrada no masculino. Em contraste, os
“mistérios femininos” costumam girar em torno de aspectos da
experiência diária: nascimento, sexualidade, criação, cuidado,
menstruação e morte. Aparentemente a “alta magia” se preocupa
majoritariamente em atuar dentro de um “espaço interior” abstrato
que tem pouca relação com a consciência da experiência cotidiana.
Acredito que essa distinção deva ser enfatizada, na medida em
que a magia muda inteiramente de caráter. Há um afastamento
desse modelo de desenvolvimento como um processo, entendido
somente em termos de ocultismo, em nada próximo de outras
esferas da vida. Essa postura tradicional está sendo suplantada pela
noção de magia como um processo totalmente integrativo de
transformação-de-si. Vem-se retomando o poder da magia de fazer
conexões: de comunicar, guiar, curar e “buscar” o outro, em vez de
se tratar de uma iniciação interna totalmente pessoal. Na medida em
que a ênfase geral da magia muda, também mudam as posturas
relacionadas à magia sexual.
Pode-se perceber sugestões dessa mudança nos escritos de Dion
Fortune. Sua influência no desenvolvimento da magia sexual ocidental
vem mais de seus romances que de sua obra de não ficção. O tema
subjacente a suas obras, principalmente em A sacerdotisa do mar e
A sacerdotisa da Lua, tem a ver com a intensa consumação de
relações entre homens “machucados” de alguma forma e mulheres
que, para fortalecer sua própria intenção mágica, assumem o papel
de iniciadoras. A sacerdotisa Vivien Morgan escolhe seu parceiro, o
inicia e depois se afasta.
A escrita de Fortune demonstra níveis de sentimento —de intuição
e de ciclos— que não estão presentes nos escritos de seus
contemporâneos homens. Ela demonstra uma compreensão
sofisticada de como o desenvolvimento “mágico” se mistura com a
relação da pessoa às mudanças da vida em geral. A abordagem de
magia sexual adotada por Fortune busca mais uma transformação
interpessoal do que um objetivo ou uma experiência introvertida. A
forma como retrata Pã em The Goat-foot God, por exemplo, tem
mais a ver com a inspiração e a consciência de “um Todo Maior” do
que o Pã falocêntrico e sexualizado que tipifica a forma como
Crowley aborda a sexualidade.

O retorno das deusas

Ao longo das últimas duas décadas, uma das mais antigas


influências culturais da humanidade começou a ser reafirmada com o
retorno das deusas. Dentro da subcultura ocultista, isso se
manifestou no crescimento da wicca e do paganismo telúrico, e na
cultura em geral, é claro, no advento do feminismo e na articulação
da consciência feminina. A wicca dá muita ênfase à magia sexual.
Doreen Valiente, em Witchcraft for Tomorrow, aponta as aparentes
semelhanças entre a bruxaria e o tantra: a ênfase no equilíbrio entre
os sexos e o papel central da sacerdotisa como iniciadora e
representante terrena da Deusa. A wicca é voltada para o exterior —
a natureza e a consciência dos ciclos (tanto intrapsíquicos quanto
dos ritmos naturais)—, em vez de se concentrar em uma
metaestrutura altamente abstrata. A magia sexual aqui dá maior
ênfase aos ritos de fertilidade e à participação nas mudanças de
estações. Alguns escritos wicca entendem a magia sexual em termos
de hieros gamos, ou hierogamia, o casamento sagrado entre as
divindades e a humanidade. Há também a ideia de magia sexual
como um meio de “passar o poder da pessoa que inicia para a nova
pessoa iniciada”.[48] Também isso demonstra uma nova maneira de
usar a sexualidade como ferramenta em um processo de
envolvimento, em vez de mais uma simples técnica para alcançar
resultados.
O advento do feminismo também é um fator muito importante para
considerar a mudança de ênfase da magia sexual. John Rowan
explica da seguinte forma:

as mulheres começaram a perceber que a coisa toda [isto é, a revolução sexual contra a
moral vitoriana] tinha sido organizada por homens, com premissas masculinas e valores
masculinos, que beneficiavam os homens. Esperava-se que as mulheres se
comportassem como os homens em todos os sentidos.[49]

Com a expansão da ideologia feminista, as mulheres passaram a


exigir que fossem definidas em seus próprios termos e que se
reconhecesse que a cultura feminina é tão importante quanto a
masculina. A consciência da necessidade desse processo tem
crescido constantemente, não só no âmbito sociopolítico, mas
também como empreitada espiritual que revela as lacunas gritantes
das “tradições” dos sistemas ocultistas desenvolvidos sob valores do
patriarcado. Vemos agora o ressurgimento de mulheres que estão
redescobrindo e recuperando seus próprios “mistérios”, como nos diz
a obra de Lynn Andrews, Barbara Walker, Monica Sjoo e outras. Um
cruzamento muito importante para o desenvolvimento da magia é a
obra de Starhawk, que oferece uma abordagem feminista de
desenvolvimento espiritual e transpessoal tanto para mulheres quanto
homens. Seu livro Dreaming the Dark conecta os valores da wicca
com uma corrente feminista e terapêutica em desenvolvimento.
Starhawk escreve sobre a ideia dos arquétipos de deusas e do Deus
Cornudo propondo possíveis reavaliações do masculino e do feminino
para além dos limites da cultura patriarcal. Explorar nossa
sexualidade por meio desses arquétipos é uma forma de transcender
os lugares-comuns da moral sobre masculinidade e feminilidade na
nossa cultura. A sexualidade, segundo a autora, é entendida como
uma “profunda força de conexão”.[50]
Isso está bem longe do etos “tradicional” da magia sexual. O
enfoque, antes colocado numa abordagem fragmentária da magia
sexual como um conjunto específico de técnicas, passou para uma
ênfase na sexualidade como somente um aspecto de todo um
processo de transformação. Isso se aproxima muito da ideia de
sexualidade como a forma de “libertação” mencionada anteriormente.
Mas, é claro, essa libertação não é só espiritual —é também sexual,
social e política.

Sexualidade e intimidade

A magia sexual como caminho para a libertação é uma ideia central


na filosofia tântrica, mas não parece ser muito explorada na magia
ocidental. Ela envolve a redefinição de estereótipos de gênero e a
investigação tanto da sexualidade pessoal e quanto das relações
para além dos limites da cultura. A exploração da sexualidade se
torna uma fonte de conhecimento tanto de si quanto de outrem. Essa
gnose (conhecimento do coração) pode nos levar além das normas e
limitações culturais, para nos envolvermos ativamente na realização
do indivíduo pós-patriarcal.
Muito ligado a esse processo está o esforço de restabelecer o
amor da prisão do romantismo-consumista. As ideias ocidentais
sobre o amor gradualmente o distorceram e conectaram ao conceito
de posse egoísta, de tal modo que sua linguagem é equivalente, em
grande medida, à linguagem da posse. O amor restringido por
regras, deveres e moralismos, tal como disseminado pela televisão e
pelo comércio, serve à manutenção da alienação de homens e
mulheres de si mesmos e uns dos outros. Assim, o poder
transformador da energia sexual se torna destrutivo, mantendo a
separação entre o eu e outrem, a mente e o corpo, o ego e o exo.
No entanto, é possível descobrir o amor para além dos
subterfúgios culturais. Essa é a experiência do amor como uma
qualidade espiritual, sentida interiormente. Essa ideia também é
enfatizada no tantra, mas não na magia ocidental (até bem
recentemente). Ela aparece no conceito de amor cortês ou sublime
idealizado pelos trovadores europeus, considerado herético pela
Igreja.
Esse amor sublime é descrito como uma força positiva que se
estende a outras pessoas, conduzindo-as em uma jornada de
expansão. A chave desse amor é a confiança profunda e a
intimidade vivenciadas por pessoas parceiras. E isso também lembra
uma ideia tântrica, de que pessoas envolvidas em atos de magia
sexual devem se amar. Esse reconhecimento, quando declarado
explicitamente em escritos ocidentais sobre magia sexual,
geralmente se restringia à ideia de que esse tipo de magia só é
válido quando praticado por pessoas em relacionamentos estáveis
de longa data (“casadas”) —do contrário, a magia seria “negra”. Isso
se refere, é claro, à magia sexual puramente em termos de atividade
genital.
Porém, quando o foco se distancia de uma visão limitada da
sexualidade e passa para a intimidade (da qual o sexo físico é
somente um aspecto), também se abre a possibilidade de uma
proximidade mais íntima em relações que não aquelas movidas pela
exclusividade convencional. Essa proximidade íntima pode ser
desenvolvida dentro de um grupo mágico “fechado” sem
necessariamente entrar no que chamaríamos de suingue ou sexo
grupal. A intimidade e a confiança profunda em meio a um grupo são
geradores poderosos de uma gestalt coletiva que funciona como uma
tribo ou como um clã para cada participante. Essa conclusão seria
descartada por pessoas mais libidinosas, que diriam se tratar de
uma desculpa para orgias, mas a exploração da intimidade pode
levar a um senso de envolvimento mais forte relacionado tanto ao
grupo quanto a um processo mais amplo de transformação. Desloca-
se a ênfase da prática para um crescimento e desenvolvimento
mútuos, em vez de colocá-la na busca de conquistas sexuais que
parece estar à solta em grupos ocultistas modernos. Aliás, a
exploração da intimidade talvez seja quase uma necessidade para
grupos mágicos, nos quais os efeitos subjacentes da dinâmica sexual
(atração, ansiedade, ciúmes etc.) que se desenvolve quando
participantes sentem atração por pessoas fora de seus
relacionamentos podem rapidamente destruir a união do grupo. O
sexo ritualizado em um cenário coletivo só é destrutivo quando há
falta de confiança e intimidade entre participantes.
Donald L. Mosher, psicólogo americano que estuda a intimidade,
descobriu que “o nível de intimidade vivenciado pela pessoa está
relacionado à medida de expressão, consciência e contato
interpessoal durante o sexo”.[51] De acordo com ele, existem três
níveis de intimidade: egocentrado, superficial e nuclear. O
envolvimento egocentrado só diz respeito à gratificação egocêntrica
—a pessoa parceira, na melhor das hipóteses, é apenas um
instrumento para realizar necessidades físicas ou de status. O
envolvimento superficial está centrado na performance e no prazer
sexual, tanto de si quanto da outra pessoa. Já o envolvimento
nuclear, no entanto, é caracterizado pelo desejo de se abrir
completamente à outra pessoa, ou pela experiência de júbilo e perda
das limitações do ego que acontece no “ápice”. Também se sugere
que, uma vez alcançado certo nível (ou profundidade) de
envolvimento, as experiências futuras que alcançarem os níveis
experimentados anteriormente nunca mais serão totalmente
satisfatórias quanto já foram.
É essa experiência “numinosa” da sexualidade que se aproxima
mais da experiência tântrica de êxtase sexual. Mas, na sociedade
ocidental, tende-se a canalizar a energia liberada por essa
experiência em formas de expressão culturalmente aceitas —aquelas
que mantêm os limites do envolvimento egocêntrico, tais como o
apego possessivo, com todas as ansiedades e neuroses que o
acompanham. Se é possível transcender essas limitações (o que
obviamente demanda muito tempo e esforço), então a intensidade
gerada pode facilitar uma “ruptura” da inércia imposta pela
sociedade. Amantes são capazes de encontrar apoio e energia
suficientes um no outro para rejeitar as limitações culturais e procurar
novas formas de viver, livres para se mover em qualquer direção.
Obviamente, o sexo jubiloso não é capaz, sozinho, de apagar uma
vida inteira de condicionamento, mas pode ser um impulso em
direção ao maior desenvolvimento de todas as áreas da consciência.
O júbilo sexual é uma gnose poderosa para firmar uma nova visão de
realidade, como reconheceu Timothy Leary em sua teoria de circuitos
neurológicos.[52] A primeira experiência do numinoso muitas vezes
marca o “gatilho” para a jornada transformadora da pessoa, e cada
experiência subsequente de júbilo impulsiona ainda mais o processo.
É o “calor” gerado por esses processos alquímicos que move a
psique de uma condição de identificação estática (egocêntrica) para
uma condição de envolvimento e fluidez (exocêntrica). Starhawk
descreve essa alquimia sexual como “uma troca de energia, de
nutrição sutil, entre as pessoas. Pela conexão de umas com as
outras, nos conectamos com todas”.[53]
É importante notar que as estruturas psíquicas não podem ser
completamente “apagadas” pelo processo transformativo, mas
podem ser trabalhadas e substituídas por estruturas mais
adaptáveis, abertas à incerteza e à mudança. Para os homens, isso
envolve renunciar ao ego masculino, e aquilo que John Rowan chama
de “entregar-se à Deusa”. “Vivenciar a Deusa através de nós
completa os homens e os traz para nosso mundo” (Alathea the
Shamoon).
Essa entrega —ou sacrifício voluntário— é o início de um processo
de morte psíquica que leva, por fim, ao renascimento em um mundo
de participação e interação. Para os homens, esse encontro psíquico
com o poder das deusas —na forma da Destruidora das Trevas (por
exemplo, Kali, Hécate ou Morrígan)— tem um potencial
transformador poderoso. A Deusa em seu aspecto sombrio é a porta
de entrada para o submundo, o local de dissecção e reestruturação
psíquica. Esse aspecto aparece na cultura patriarcal como a fantasia
masculina da mulher sexualmente desinibida, também ligada à
imagem aterradora de que a mulher seria castradora e devoradora.
Se a vontade pode ser direcionada para mudanças, então qualquer
processo mágico que envolve reestruturação psíquica pode levar a
mudanças em áreas externas da vida —interpessoal e social. O
poder das deusas (shakti, na terminologia tântrica) vivenciado pelos
homens os abre a uma experiência de empoderamento (poder que
não é estruturado em termos masculinos). Podemos reconhecer que
as possibilidades de transformação estão dentro de nós, o que deve
amenizar a tendência de projetar necessidades egocêntricas nas
mulheres. Uma vez que a realidade dessa experiência com as
deusas se torna direta e comovente, fica difícil negá-la ou explicá-la
em termos racionais. Essa experiência de devi (ou shakti)
certamente começa a soltar nosso condicionamento cultural. Ela faz
parte do processo doloroso de absorção e renascimento —um
renascimento para a participação.

Caminho adiante

Libertação implica a liberdade do ser como um todo, em todos os


níveis e em todas as áreas de ação. É uma mudança fundamental e
total. Não basta ignorar a situação atual ou desejar que ela mude. A
necessidade de “obedecer à consciência” se torna evidente a cada
vez que fazemos um novo mergulho profundo em direção à
destruição-de-si. De muitas maneiras, este ensaio é uma declaração
das minhas opiniões pessoais sobre magia sexual como forma de
desvelar, energizar e realizar nosso potencial de evolução enquanto
seres humanos. As percepções adquiridas pelo processo de
transformação nos dão vislumbres de futuras possibilidades, que
depois podem se tornar alvo de realização. No momento, sabemos
muito pouco sobre o que significa ser homem ou mulher para além
dos limites do patriarcado. Crescer ou evoluir é uma luta difícil e
dolorosa, mas não dá para resistir a isso para sempre. A magia é
um caminho possível para primeiro vislumbrar e depois realizar essas
possibilidades. Essa, para mim, é a natureza essencial de “amor sob
vontade”.
UMA CLÁUSULA
PREOCUPANTE

Este ensaio foi escrito em 1991 e publicado na Moonshine Magazine. Em


1991, o governo conservador do Reino Unido estava discutindo a cláusula
25 do Projeto de Lei de Justiça Criminal, que incluía uma série de
disposições que criminalizariam várias atividades sociais para homens
gays. Graças à campanha feita pela organização de luta pelos direitos
LGBTQIA+ Stonewall e outros grupos ativistas como o Outrage, essas
disposições foram derrubadas em sua maioria. Esse é um dos meus
ensaios exasperados, e acho que é uma espécie de saída do armário para
mim. Eu me identificava como gay na época, embora mais tarde tenha
ficado mais confortável com minha bissexualidade. Talvez algumas
pessoas se surpreendam com o fato de que, no Reino Unido, paganistas
não pensavam necessariamente que o paganismo tivesse qualquer
relação com questões de envolvimento social mais amplo, como política
ou orientação sexual, mas essa postura não era incomum na época.

A
cláusula 25 do Criminal Justice Bill, projeto de uma nova lei
anticrime na Inglaterra, prevê a “criminalização” —para gays e
lésbicas— de uma variedade ampla de atividades sociais que
são naturais para outras pessoas e nunca seriam questionadas:
trocar beijos em público, andar de mãos dadas, marcar algum
encontro intermediado por uma pessoa amiga, passar a noite no
quarto de hóspedes na casa de alguém. “E daí?”, talvez você
pensasse. Afinal, “não é natural”, “é nojento”, “não é problema meu”.
Mas como você se sentiria se toda vez que estivesse na rua e
quisesse dar um beijo na pessoa amada existisse a possibilidade de
você e a outra pessoa serem levadas pela polícia, presas e até
obrigadas a fazer um tratamento médico? Além disso, também
haveria a ameaça muito real de levar porrada por ser uma pessoa
estranha —“queer”. Você acha que isso afetaria sua visão de
mundo? Pois afeta a minha.
Mas por que estou escrevendo sobre isso na Moonshine? O que o
paganismo tem a ver com sexualidade, ou mesmo com política? Para
mim, não há como separar uma coisa da outra. Ser paganista me
ajudou muito a ficar em paz com a minha própria sexualidade.
Quando comecei a sair do armário e me declarar gay, recebi muito
apoio de amigas e amigos paganistas. Vejo muitos cruzamentos
entre as duas coisas. Ser paganista é algo que pode fazer a pessoa
perder amizades, emprego ou até afastá-la da família, da mesma
forma que acontece quando se revela a própria sexualidade. As duas
coisas exigem de nós uma autoanálise —que olhemos para dentro e
digamos “eu sou assim”— e que nos sintamos bem com isso, ainda
que nem sempre nos declaremos para todo mundo.
A cláusula 25, no fim das contas, afeta a todos nós,
independentemente de orientação sexual e política. Ela afeta a todos
nós porque vai efetivamente legitimar a homofobia, uma palavra ou
vírus verbal que diz que homens “de verdade” não podem ser gentis
e afetuosos uns com os outros nem tratar mulheres de modo
diferente de um objeto sexual. A homofobia é um dos códigos
básicos de controle que sustentam o patriarcado, definindo os
contornos da masculinidade de forma tão tacanha que qualquer
homem que der um passo para fora automaticamente será taxado de
faggot [bicha, viado]. Palavra interessante. Faggots são feixes de
gravetos para queima. Essa palavra ofensiva remete à época das
fogueiras, em que os homens gays eram queimados na estaca. Isso
deve ter acontecido com muita gente para essa palavra ser
incorporada ao vocabulário popular. Historicamente, homossexuais e
paganistas são pessoas consideradas “hereges” e compartilham um
histórico de perseguição. Na Alemanha nazista, da mesma forma,
pessoas consideradas ocultistas eram enviadas para os campos de
concentração, e mais de um milhão de lésbicas e gays foram mortos
em câmaras de gás nesses locais.
E a caça às bruxas continua. É interessante que as mesmas
pessoas que agitaram o pânico satânico de abuso infantil[54] são as
que lançam adesivos de para-choque com a mensagem “Kill a queer
for Christ” [Mate uma pessoa queer em nome de Cristo].
Por outro lado, um número cada vez maior de gays e lésbicas está
se interessando por paganismo e magia. Para mim, pelo menos, ser
paganista tem a ver com descobrir meu próprio caminho individual e
explorá-lo em um ambiente em que as pessoas fazem concessões
individuais. É muito melhor do que certas religiões em que ser gay
imediatamente significa estar condenado ou comungar com o Diabo.
Como costumo dizer, de forma geral, fui acolhido e tive apoio de
amigos e amigas paganistas, o que diz mais sobre essas pessoas
como seres humanos do que sobre suas crenças paganistas em si.
Por que digo isso? Porque quase não existe literatura expressando
uma postura positiva a respeito de pessoas gays e lésbicas
envolvidas em caminhos paganistas ou ocultistas. Existe, no entanto,
uma crença muito disseminada de que a homossexualidade
(especialmente masculina) não tem lugar no paganismo ou na magia.
Já ouvi isso de wiccas, paganistas, thelemitas, cabalistas,
praticantes de tantra etc. Algumas pessoas, inclusive, como Dion
Fortune e Gareth Knight, já declararam que a homossexualidade é
uma forma de “magia negra”. Ideias ultrapassadas? Eu diria que sim,
mas o fato é que essas ideias ainda circulam como “verdades
espirituais”, e quando o preconceito é legitimado como “verdade
espiritual”, paganistas que adotam essas crenças não estão tão
longe assim de certas vertentes evangélicas que vociferam que
“todas as bruxas amam o Diabo”.
Talvez agora você diga “por que lésbicas e gays não adaptam o
que foi escrito para a maioria (isto é, heterossexuais) nos livros?”
Bom, é o que nós fazemos. Mas se todos os livros sobre paganismo
fossem escritos por mulheres, como será que os homens se
sentiriam ao ter de “adaptá-los”? Eu gostaria mesmo é de ver gays e
lésbicas tecendo formas próprias de espiritualidade que nos fossem
pertinentes, em vez de nos “encaixarmos” em uma espiritualidade
que não tem lugar claro para nós. Por outro lado, com a cláusula 25
em vista, pode ser difícil produzir essa literatura, especialmente se
quisermos abordar nossa própria sexualidade. Você consegue
imaginar alguma editora ocultista popular lançando um livro que
promove magia gay? Certo, é um assunto minoritário, mas o
mercado editorial ocultista inteiro é centrado em “assuntos
minoritários”.
Um último ponto que gostaria de colocar em jogo é que quem ousa
encarar a opressão, se levantando e dizendo “eu sou isto”, são as
pessoas que agem movidas pela mentalidade de um “poder que vem
de dentro”. Eu sempre lutei contra a classe média, contra pessoas
paganistas presunçosas e cheias de si, e contra magistas que, para
mim, simplesmente compram e propagam a ideia de que a
sociedade atual já é um mar de rosas, e não que poderia ser se
tivéssemos a ousadia de olhar para além de seus muros. A magia
floresce entre as pessoas oprimidas porque todos os meios normais
estão fechados. É a única opção que resta. É difícil ter uma
espiritualidade saudável quando não param de introduzir a golpes na
nossa cabeça (às vezes literalmente!) a ideia de que somos
diferentes, desprezados e anormais.
Não são as expressões “seguras” de espiritualidade que nos
ajudam a crescer, mas a resistência às garras que tentam nos pegar
a todos. Basta olhar para o impacto da magia que surgiu a partir do
feminismo e da espiritualidade feminina: os rituais em Greenham
Common[55] e as obras das deusas. Da mesma forma, o movimento
moderno de libertação gay cresceu a partir da revolta de Stonewall,
quando os “viados” desprezados finalmente encararam os cassetetes
e o gás lacrimogêneo —um ato mágico, por que não? Podemos
escolher a segurança, ou podemos tentar evoluir; é uma empreitada
perigosa, com certeza, mas que vale a pena. Como paganistas, nós
ousamos ser “diferentes”, então qual é o problema de
reconhecermos a ousadia de outras pessoas e de termos empatia
por elas?
Não alimentemos a fera; lutemos contra a cláusula.
SODOMIA E
REALIZAÇÃO
ESPIRITUAL

Este ensaio foi escrito em 1995. Minha intenção era publicá-lo em uma
revista londrina cujos editores haviam me pedido um texto sobre magia
sexual. Eles acabaram concluindo (sem dizer o motivo) que o ensaio era
“hardcore” demais, então acabei publicando-o no n. 11 da Chaos
International. Ao relê-lo agora, sinto nas palavras uma certa rebeldia. Eu
queria fugir completamente de relatos abstratos sobre magia sexual e
escrever diretamente a partir da minha experiência, mas, ao mesmo
tempo, tinha plena consciência de que eu ultrapassaria um limite ao
descrever a sensação de ser penetrado. Há uma clara influência dos
escritos de William S. Burroughs e de Jean Genet, que comecei a ler lá
pelos vinte e poucos anos. A frase sobre sexo anal estimular o chacra
muladhara —algo que não se encontra em trabalhos populares sobre
chacras— provavelmente foi influenciada por uma leitura do livro Gods of
Love and Ecstasy (1992), de Alain Daniélou, em que ele oferece um relato
bastante rebuscado (hoje eu diria “espúrio”) sobre penetração anal como
forma de despertar a kundalini. Nesse ponto, eu ainda me apoiava nesses
relatos sobre práticas sexuais tântricas e não havia de fato começado a
questionar sua validade. Não me lembro se, na época, levei Daniélou ao pé
da letra ou se só tinha sido uma justificativa ocultista satírica para os
benefícios do sexo anal passivo.

E
u me lembro muito bem da primeira vez que fui penetrado.
Exausto e relaxado depois de uma tarde inteira de sexo, me
deitei na cama do meu namorado e disse aquelas palavras
fatídicas: “Faz o que quiser comigo.” De soslaio, vi que ele pegou um
frasco em formato de unicórnio, cheio de um líquido amarelado (óleo
de amêndoas doces) e entendi o que estava prestes a acontecer.
Não tive medo, só uma sensação de relaxamento profundo. Não
doeu, mas, no momento da penetração, um eu morreu e outro
renasceu. Uma “iniciação”, certamente —e uma iniciação que me
trouxe percepções que agora tentarei reunir em um texto coerente.
Que sentimentos se agitam em mim por ter sido penetrado? Duas
palavras talvez sejam as melhores descrições: entrega e possessão.
Ao ser penetrado, estou abandonando minhas defesas do ego, me
abrindo em um nível profundo a outra pessoa, e sou capaz de deixar
de lado as “máscaras” construídas socialmente que eu usava para
lidar com o mundo. Entrego-me completamente ao prazer total e ao
prazer do meu parceiro. Vou e volto entre os limites do êxtase e da
agonia, até gemer e chorar incontrolavelmente; o líquido morno jorra
na minha barriga, e sinto um forte formigamento que me parece mais
intenso na ponta dos dedos. Até hoje, nunca tive um orgasmo só com
a penetração, mas ejaculação e orgasmo são duas experiências
diferentes para mim, na maior parte do tempo, e a ejaculação
peniana me parece sem importância quando comparada às
sensações que parecem despedaçar meu corpo quando um parceiro
está dentro de mim. O orgasmo de um parceiro dentro de mim me
traz uma profunda sensação de paz e satisfação. Sinto-me como se
tivesse sido revitalizado e pudesse sair pelo mundo com um brilho
interno. Lamento profundamente, nessa época de cuidados com a
aids, que eu não possa receber o sêmen de um parceiro dentro de
mim. Ainda assim, ao me entregar ao outro, é como se eu
reafirmasse meu senso de quem sou.
No mesmo momento em que me entrego, também me coloco em
um estado de possessão. É mais difícil escrever sobre isso, mas
acredito que isso esteja ligado a uma percepção errônea comum
sobre o ato sexual: o conceito de “ativo” e “passivo”. Para mim,
prefiro as palavras “doador” e “receptor”. Nosso condicionamento
patriarcal miserável deu origem à concepção de que “ativo” =
masculino e “passivo” = feminino. Passei a rejeitar cada vez mais
esse tipo de pensamento. Só porque uma pessoa (homem ou
mulher) recebe o pênis de um parceiro no corpo não significa
necessariamente que ela seja automaticamente “passiva”. Isso fica
claramente ilustrado nas imagens tântricas de Shiva montado por
Kali. O condicionamento social é forte o suficiente para fazer um
homem gay sentir que qualquer pessoa que toma no cu é, de alguma
forma, menos “macho”, porque se entregar sem amarras ao prazer
não é comportamento másculo que se preze. Por que não? Para
mim, ser penetrado é uma celebração da minha masculinidade.
Quase nunca sinto que abro mão da minha força pessoal em favor
de outra pessoa (a não ser, é claro, que haja um tipo de encenação
de “entrega” como brincadeira sexual).
Muitas vezes, sinto um senso de poder “sobre” o parceiro que me
penetra. O prazer e a ejaculação dele reafirmam meu próprio poder
interior. Em uma passagem de seus diários mágicos, Aleister
Crowley diz que era um gozo (perdão pelo duplo sentido) pensar que
“quando um homem me penetra, é porque sou belo”. Os relatos
exaustivos da ópera sexual de Crowley (como The Paris Working)
demonstram que ele tinha forte preferência por ser o parceiro
receptor quando se tratava de magia sexual gay. No entanto, a
importância de sua magia sexual com parceiros como Victor Neuburg
costuma ser ignorada por quem herdou sua filosofia mágica. Por que
será?
A intensidade desses sentimentos —de se entregar ao prazer e de
possuir outra pessoa, e de ser possuído ao mesmo tempo— eu
também percebi em outra situação: nas nuances de um transe, que
variam de um espírito a ofuscar minha consciência até a possessão
total por um espírito durante um ritual e dança. O transe-possessão
é visto como algo duvidoso pela cultura ocultista ocidental, do mesmo
modo que se deixar penetrar pelo pau de outro cara é um anátema
para muitos homens. De várias maneiras, permitir que minha psique
seja penetrada por um espírito (uma deusa, um deus, seja o que for)
desperta os mesmos sentimentos de quando sou penetrado
fisicamente. A chave parece ser o deslocamento consciente ou
desejado do ego a outra pessoa: o ato de oferecer meu corpo como
veículo para a transmissão de energia. Crowley sugeriu algo assim
em Liber Astarte, seu ensaio sobre magia devocional (bhakti yoga).
O ápice de bhakti é ser penetrado pelo espírito com o qual se está
trabalhando. Durante um beltane, atraí a deusa Éris vinda por cima
de mim e Pã vindo por baixo de mim —as divindades se encontraram
em algum lugar no meio disso, e eu perdi a consciência em seu
clímax.
Em Querelle de Brest, Jean Genet sugere que uma relação
homossexual “obriga” os homens a descobrirem os elementos
“femininos” em sua psique, mas “quem se sai melhor nisso não é
necessariamente o mais fraco ou mais jovem, nem o mais delicado
entre os dois, mas sim o mais hábil, que costuma ser o mais velho ou
o mais forte”. Há um elemento de verdade nisso, mas é igualmente
verdade que os dois parceiros podem se deleitar ao deixarem livres
os aspectos femininos da psique —ao mesmo tempo ou em
momentos diferentes.
Nesse ponto, preciso mencionar também o conceito mágico de
“polaridade”, que, em sua forma mais simplista, diz respeito à ideia
muito citada do deus e da deusa dentro de si. O problema da
“polaridade” ocorre quando se confunde divindade com condição e
com o que supostamente seriam qualidades “masculinas” e
“femininas”. Assim, ouvimos sem parar que o fogo é masculino e a
água é feminina; que a capacidade de demonstrar emoções e a
intuição são femininas, e que a análise intelectual é masculina. Quem
disse? Críticas feministas a esse tipo de condicionamento
argumentam que só sabemos o que é masculinidade e feminilidade
porque foram definidas de modos específicos. Superar essas
limitações certamente é uma tarefa primordial no processo de
desenvolvimento pessoal. Grande parte do que é aceito como “leis
do ocultismo” não passa de justificativas “espiritualizadas” para
preconceitos e condicionamentos sociais. Para homens gays, a
polaridade não precisa ser algo tão simplista como um dos parceiros
assumir um papel feminino —é possível reconhecer o feminino e
ainda assim oferecer o pênis para outro homem. É possível celebrar
os elementos masculinos da psique e ainda assim receber o pau de
outro cara dentro de si. As divindades não estão sujeitas às mesmas
restrições que os humanos: afinal de contas, qual seria o sentido se
deusas e deuses fossem iguais a nós? Impor nossos limites estreitos
às divindades é o mesmo que não compreender todo o exercício de
invocá-las. Faço minhas invocações para que eu vá além das minhas
limitações atuais —para me unir momentaneamente a algo maior, ou
fora do meu ego. Às vezes meu parceiro se torna, para mim, um
deus ou uma deusa —ou isso seria esquisito demais pra você?
Um bloqueio antigo que me foi condicionado e com o qual eu tive
de lidar foi a ideia equivocada de que, do ponto de vista tântrico,
sexo entre dois homens não tem valor. Mas não demorei a me livrar
dessa noção na medida em que fiquei mais confortável com meus
sentimentos e desejos por sexo com homens. Pela minha
experiência, posso dizer que tive vivências tântricas com homens tão
fortes quanto as que havia tido antes com mulheres. Sensações
como de uma “onda de júbilo”, de ver meu parceiro mergulhado em
luz dourada, o orgasmo de corpo inteiro e a sensibilidade aumentada
à atividade da kundalini são tão possíveis em uma parceria
homossexual quanto na heterossexual. A penetração anal é uma
forma muito eficaz de estimular o chacra-raiz, apesar do que diriam
alguns manuais de magia sexual. Pessoalmente, eu diria que minhas
experiências sexuais com outros homens e que deram vazão às
experiências descritas na magia tântrica foram ainda mais potentes
por causa do elemento óbvio da catarse: realizar desejos que
ficaram reprimidos por muito tempo costuma ser uma fonte poderosa
de energia —e uma energia, é claro, que pode ser direcionada para
a magia.
Obras modernas (pós-Crowley) sobre magia sexual parecem lidar
com a homossexualidade de duas maneiras. Existe ou a repreensão
de que é algo errado —que bloqueia os chacras, “reverte” a kundalini
ou “cria um vórtex astral sombrio”—, ou a visão mais positiva de que
o gênero das pessoas não importa, e que a “energia” é a mesma.
Obviamente, eu prefiro a segunda postura, embora sinta que as
coisas não são tão simples. Os escritos que pendem mais para a
segunda visão tendem a reforçar que a magia sexual só funciona
adequadamente dentro de uma relação estabelecida, o que é
verdade até certo ponto, mas excluem solenemente todas as facetas
da cultura sexual gay que a sociedade hétero considera
perturbadoras: sexo casual, sadomasoquismo e especialmente sexo
grupal. No Reino Unido, pelo menos, parece que existe pouquíssima
gente dedicada a escrever de forma inteligente (ou de forma afetiva,
o que é ainda mais importante) sobre as possibilidades de um tantra
afirmativo à cultura gay, e o único grupo que oferece apoio e
abordagens mágicas especificamente customizadas para homens
gays é a rede internacional do vodu. Espero que essa situação mude
na medida em que a questão da espiritualidade ganhe terreno dentro
da comunidade gay e mais ocultistas gays se assumam.
Para concluir, ouso declarar que, para mim, ser penetrado é uma
experiência intensamente sagrada; que a espiritualidade está na
celebração do prazer e não na negação do corpo. Oferecer meu pau
a outro homem também é algo prazeroso, é claro, mas de ordem
diferente, e minhas reflexões sobre isso ficarão guardadas para um
outro momento.
BAPHOMET QUEER

Este ensaio foi escrito em 2010 e foi publicado no meu blog enfolding.org.
Trata-se de um texto bem autobiográfico; um relato do meu relacionamento
—se é que essa é a palavra certa— com Baphomet e de como
compreendi essa divindade em momentos diferentes da vida, começando
com a wicca, passando pela magia do caos e finalmente me aproximando
de uma relação queer com Baphomet, influenciada pela teoria queer e por
nomes da filosofia continental como Gilles Deleuze. O ritual descrito
aconteceu no Queer Pagan Camp de 2004 e ainda é um dos rituais mais
memoráveis de que já participei. Este ensaio vai além do escopo talvez
limitado da magia sexual e se concentra, em vez disso, na possessão e na
“queerização” de divindades.

Todos os deuses morreram de rir quando ouviram um deles se


proclamar único!
—Pierre Klossowski, The Baphomet

Um ser sexual sem gênero definido, em fluxo


constante, que cresce e muda de forma como as
plantas, mais como um habitat em forma corporal;
a corporificação da sensualidade vegetal. Na
minha representação, esse ser aparece como
quase fêmea, mas suas características são
efêmeras e se transformam: os seios estão se
tornando fálicos; o decote, vulvar, e quem é que
sabe o que está acontecendo lá embaixo ou por
detrás? A aparência humanesca é para nos
agradar; uma forma com a qual nos identificamos.
Sendo imortal, a procriação (função
intrinsecamente mortal) é totalmente irrelevante
para aquele cuja senso-sexualidade é absoluta,
mas está longe de ser infértil, muito pelo contrário;
no entanto, essa fertilidade é de abundância
luxuriante e decadente.
—Z*qhyoegm, citado em Lou Hart,
Magic is a Many-Gendered Thing

M
inha relação de idas e vindas com Baphomet começou em
1983, quando me via mais ou menos como um wicca, embora
esse rótulo que eu havia adotado já estivesse meio
desgastado. Eu havia comprado uma estatueta de Baphomet em
uma livraria ocultista e a colocado no meu altar sem saber bem por
quê. Eu costumava meditar imitando a posição da estátua. Nessa
época, eu me entorpecia devorando as obras de Kenneth Grant, com
o auxílio do que conseguisse encontrar sobre Baphomet em textos
ocultistas —Éliphas Lévi, Aleister Crowley... esse tipo de coisa. Mas
não “conhecia” Baphomet de fato.
Eu morava em York quando tentei pela primeira vez fazer um ritual
direcionado a Baphomet. Infelizmente, o registro desse dia no meu
diário (9 de junho de 1983) está incompleto, mas teria sido
estruturado nos moldes da wicca, e minha alta sacerdotisa (que era
de Macclesfield) estava presente, assim como outra mulher. Meu
diário diz:
Baphomet apareceu na beirada do círculo e quis entrar. Nós não deixamos, e ele começou
a fazer bagunça; primeiro, tirou devagar da parede um cartaz enorme (bem a propósito,
uma ilustração de um sabá das bruxas), depois fez um caixote cheio de caixas de leite
balançar para frente e para trás. O ritual foi encerrado (às pressas), e saímos do recinto.

Eu não vi Baphomet claramente fazendo essas coisas; veja bem,


foi mais uma percepção “psíquica” coletiva do que se passou. Nós
havíamos invocado a força de Baphomet, portanto esses eventos
foram causados por ele —como era de esperar. Era basicamente
assim que entendíamos as coisas naquela época.
No início da década de 1990, eu havia voltado a Baphomet, dessa
vez por meio da ordem Iluminados de Thanateros (IOT), para quem
a Missa do Caos B —um ritual minimalista centrado na possessão de
uma pessoa por Baphomet— era um dos rituais favoritos. Ao longo
desse período, vi muitas instâncias da entidade: Baphomets ferozes
que xingavam todas as pessoas presentes; Baphomets proféticos
que falavam em línguas desconhecidas e faziam promessas
absurdas de grandes futuros; Baphomets inspirados que despejavam
sua essência em um cálice para ser compartilhada. A essa altura, eu
começava a pensar em Baphomet como inacabado.
De modo geral, é possível entender as divindades a partir dos
mitos. Se, por exemplo, estivermos interessados em Pã, podemos
entender o que ele é e com o que se relaciona explorando os mitos
gregos ou outros textos em que ele aparece. Essa foi minha principal
abordagem, naquela época, ao trabalhar com divindades para
invocação ou possessão. Mas há um outro elemento aqui: a
possessão por seres “desconhecidos”, algo com que eu havia
entrado em contato por meio da dança narrativa experimental e do
trabalho com máscaras —entidades que só passavam a existir
durante um evento, com “personas sem forma” que só se
desenvolviam ou “cresciam” com o tempo e com as repetições de
uma performance. Diferentemente das divindades “clássicas” de
mitologias conhecidas, elas não tinham papel definido, não faziam
parte de um panteão, nem era fácil lhes atribuir uma “função”. Foi
assim que comecei a entender Baphomet: em termos mágicos, ele
estava além dos caminhos que eu costumava percorrer para
conceber as entidades. Fiquei menos interessado em análises
ocultistas do que Baphomet “simbolizava”, e mais interessado no que
Baphomet podia “sugerir”. Menos máscara, mais mascarada.
Tendo participado de uma boa quantidade de eventos de
possessão por Baphomet —como “cavalo” ou celebrante—,[56]
comecei a pensar sobre como muitos “Baphomets” diferentes se
apresentavam. Me pareceu que o Baphomet que “nos aparecia” em
dado ritual era na verdade um “produto” da própria ocasião. Nessa
época eu havia me afastado de uma perspectiva que enxergava
divindades como singulares e totalmente separadas das pessoas e
dos eventos em que elas “apareciam”, e me aproximado de uma
perspectiva interativa: esses eventos de possessão dariam forma ao
modo de se comportar do foco do ritual —a(s) pessoa(s)
possuída(s) por Baphomet. Na Missa do Caos B, Baphomet é
retratado como um tipo de espírito-padrão —a força motora— ao
longo dos éons:
No primeiro Éon, eu era o Grande Espírito;
No segundo Éon, a humanidade me conhecia como o Deus
Cornudo,
Pangenitor Panófago;[57]
No terceiro Éon, eu era o obscuro, o Diabo;
No quarto Éon, a humanidade não me conhecia, pois sou o
Oculto;
Neste novo Éon, surjo diante de vocês como Baphomet, o Deus
anterior a todos os deuses, que perdurará até o fim da Terra.[58]
A possessão é o principal caminho usado por mim para me
envolver, me fundir e dançar com Baphomet. A possessão —que há
muito tempo é associada ao “primitivo”, às representações populares
do vodu, da santeria e semelhantes, e também a filmes como O
exorcista, com seus excessos de fluidos corporais e sexualidades
proibidas— ocupa uma posição estranha na cultura ocultista
ocidental. Ela é uma prática que se distancia diametralmente do
universo de rituais organizados da magia em direção ao jogo e à
performance, à indefinição de fronteiras e distinções, à renúncia do
controle em favor de uma panóplia de forças que têm seus próprios
desejos e instâncias.
Quando comecei a fazer experimentos com possessão em grupo
no final dos anos 1980, não consegui muito bem despertar o
interesse de magistas que eu conhecia; em vez disso, passei a andar
com um grupo variado de performers de improviso, e nós atuávamos
com máscaras e tecidos, produzindo uma série de performances
para “deuses sem forma” usando transe com máscaras. Na maioria
das vezes, a possessão é um tema de difícil abordagem, já que, por
natureza, ela derruba as fronteiras entre o eu enquanto pessoa que
age e aquele que foi “convidado a entrar”. No ensaio anterior, ao
expor minhas reflexões sobre ser penetrado, equiparei a experiência
à de ser possuído. A possessão, nesse sentido, solapa a posse de
si próprio, o autocontrole. Ela está conectada à condição queer, e,
na cabeça de algumas pessoas, é vista como forma de possessão
demoníaca.
Tive minha primeira experiência queer com Baphomet em um
evento de possessão durante o Queer Pagan Camp em 2004. Isso
me levou a uma perspectiva diferente sobre ele e a uma forma bem
diferente de entender as possessões. Isso aconteceu no contexto de
um ritual facilitado por uns amigos, que me perguntaram se eu me
ofereceria para “carregar” Baphomet. Passei basicamente o dia
inteiro me preparando para a ocasião, invocando as divindades
preliminares (Pã e Éris) com cuja energia eu me preenchi antes de
me oferecer a Baphomet; então, quando os procedimentos formais
do ritual foram abertos, eu já estava bastante entregue a um estado
de semipossessão. Essa foi, sem dúvida, a experiência mais intensa
que já tive com possessões até agora. Foi a primeira vez que fiz
esse tipo de ritual na grama, em vez de no chão de alguma sala ou
no piso de concreto. Essa foi uma das poucas vezes que um amigo
próximo que me servia de âncora —uma pessoa de confiança para
me puxar de volta, por assim dizer— me deixou “ir mais longe” sem
resistir à enxurrada de presenças estranhas. Também havia
monitores cuidando do espaço ritual durante o processo. Levei quase
um dia inteiro para “mergulhar” até alcançar Baphomet —e muitos
dias para voltar à superfície.
Alguns fragmentos de memória persistem: depois do ritual, me
lembrava claramente de estar rodeado por árvores. Pouco a pouco,
essa imagem se tornou mais nítida, e me lembrei de que, em algum
ponto, alguns monitores haviam se aproximado bastante de mim
enquanto “eu/Baphomet” engatinhava pela área do ritual. Também
me vêm à memória alguns “lampejos” de momentos em que fui em
direção ao altar, mas não me lembro de pegar um incensário quente
nem de roçar o braço com uma espada afiada, duas coisas feitas
por “mim/Baphomet”.
Devir-Baphomet, Baphomet-devir. Eu era uma legião que tentava
falar em muitas vozes, que não foi capaz de caminhar nem de se
arrastar, mas cambaleou ou engatinhou pela grama, chorou o tempo
todo, implorou para lhe tirarem as correntes, balbuciando ofensas e
impondo medo. Uma legião atraída por objetos brilhantes que
tremulavam em seus olhos compostos, atordoada pelo impacto
desses olhos que queriam que ela fosse uma coisa só. Uma legião
maravilhada com a lâmina reluzente que abre a carne e faz brotar
sangue quente; terror, foi o que sentimos como legião, pelo
confinamento das árvores ao redor; éramos antiquíssimos e recém-
nascidos. Nenhum de nós queria se separar dos outros; não
queríamos partir, e todos lutávamos contra isso.

O deus deste mundo não é o monoteísta; mas sim Baphomet, o “príncipe das
modificações”. Como explica Klossowski, Baphomet preside um universo instável e
policêntrico, uma anarquia de metamorfoses e metempsicoses. William Burroughs
defende o princípio regulatório de que temos de entender todo evento como produto da
vontade de alguma instância, como a expressão de uma intenção. Klossowski propõe um
princípio complementar: ele sugere que toda intenção é um evento externo, uma
modificação do meu ser e, portanto, um tipo de possessão demoníaca. Cada pensamento
ou desejo é uma alteração do meu estado anterior; é uma intrusão vinda de fora, um
sussurro no meu ouvido, um fôlego que inalo e exalo, um espírito estranho que me chama
detrás do palco ou se insinua dentro de mim. É claro que nem todas as intenções são
levadas a cabo; mas qualquer intenção já é, em si, um tipo de ação, um tributo feito a
Baphomet.[59]

Como, então, “queerizar” Baphomet?

A teoria queer pode ser um lembrete de que estados de desejo que transbordam nossa
capacidade de nomeá-los sempre nos habitam. Cada nome dado a esses desejos —
conflitantes, contraditórios, inconsistentes, indefinidos— só lhes confere uma fronteira
fictícia.[60]

Volto à minha consideração anterior de que Baphomet é


“inacabado”, um devir em termos deleuzianos: Baphomet é um corpo
monstruoso; um agenciamento sem referente no mundo real
(imagens de monstros de um circo de horrores); um excesso de
signos —falo-alado-com-tronco-de-bode-e-chifres-de-fogo; uma
superfície a partir da qual múltiplas formas abjetas —mulher-Satã-
sabá— borbulham e espumam. Entre chifres de bode, um fogo arde
—não o fogo alquímico controlado da ciência, é mais o calor úmido e
fecundo da composteira. A pica com uma serpente enroscada, a
xota escondida. Uma implosão de possibilidades; superfícies;
resistências. Baphomet pulsa —é uma pulsação da vida sem
amarras; o mistério no coração do sabá; uma imagem embaçada no
contorno da chama acesa; uma oferenda para o impronunciável. As
heresias dos templários tornadas temporariamente manifestas. O
“espectro” da sodomia e de todos os atos indizíveis; a caça às
bruxas materializada. Não hermafrodita; definitivamente não o bem-
aceito efebo andrógino da imaginação ocidental; uma multiplicidade
de planos e horizontes movediços; Baphomet como fusão animal-
elemental. Baphomet não significa nada; não pode ser acorrentado
pelos regimes da ordem simbólica.
Baphomet conclama o desejo vira-latas como excesso; a
perversão polimorfa sem objetivo, propósito, produto. Baphomet
veste corpos humanos como uma performance drag; perdura em
vestígios de purpurina e nos rastros viscosos de um caramujo. Em
anseios e gemidos amorfos. Pela escuridão afora, algo emerge...
BIOGRAFIA DE UM BEIJO

Este texto foi escrito em fevereiro de 2019 e publicado no meu blog


enfolding.org. Mais uma vez, trata-se de uma reflexão muito pessoal —um
reavivamento da memória do meu primeiro beijo com outro homem em
público. Às vezes, um ato simples pode ter sua própria magia, e as
repercussões —embora isso talvez não seja percebido na hora— podem
ser imensas.

Q
uando você me beijou, meu mundo virou de ponta-cabeça.
Era 1986. Eu estava saindo de uma reunião do coven, mas não
me lembro do ritual que fizéramos. Só me lembro do beijo.
Você me acompanhou até a estação, mas não me lembro da
conversa. Só me lembro do beijo. Quando ia entrar no trem, você
abriu os braços, me envolveu e me beijou. Nada de lábios no rosto,
mas lábios nos lábios, em cheio. Aquele beijo virou meu mundo de
ponta-cabeça.
Você não teve pressa, como se fosse a coisa mais natural, mais
normal do mundo. Como se as outras pessoas na plataforma, no
trem, não estivessem ali. Ou não importassem. E embora a estação
não estivesse exatamente lotada, também não estava vazia.
Era uma cena comum, vista em milhares de filmes e programas de
TV: uma despedida entre enamorados. Um script do qual nunca
pensei que pudesse fazer parte, pelo menos não com outro homem.
Não namorávamos, mas aquele primeiro beijo público, nós dois
envoltos no calor de um dia de verão, virou meu mundo de ponta-
cabeça.
Me sentei no vagão. O trem saiu da estação. Havia um sujeito
sentado na minha frente, de olhos esbugalhados como se não
acreditasse no que tinha acabado de presenciar. Ele passou toda a
viagem de volta me olhando de soslaio, e eu me diverti com aquele
choque. O engraçado, ao que se revelou, é que esse cara
frequentava a mesma faculdade que eu em York, embora em outro
departamento —no decorrer das semanas seguintes, volta e meia eu
o flagrava me encarando com um fascínio —ou talvez inveja—
horrorizado.
Eu cresci beijando outros meninos. Na escola, quando brincávamos
de imitar a série infantil de ficção científica Stingray, com seus
personagens de marionete, eu geralmente escolhia o papel da sereia
Marina, que não falava, então sobrava muito tempo para ficar só
beijando. Tudo parecia bem natural, até que deixou de ser —os
beijos pararam e os xingamentos começaram. Saí do armário para
os meus pais aos 21 anos, e vi toda a situação ser silenciada, como
se envolta por um manto de pedra. Eu havia dado uns amassos
rápidos nos cantos escuros de boates e becos, explorado os nichos
de prazeres polimorfos, mas ainda não me sentia confiante nem
confortável comigo mesmo e com meus desejos, pois eles sempre
pareciam se esquivar ou perturbar qualquer tentativa de me definir
como este ou aquele tipo de pessoa. Eu definitivamente não tinha
“saído do armário” para a maioria das pessoas que eu considerava
amigas, embora hoje eu desconfie que algumas já soubessem mais
de mim do que eu imaginava. Muitas dessas pessoas na época eram
ocultistas de algum tipo, e eu estava começando a ficar com raiva
das generalizações que estavam em toda parte naquela época:
comentários do tipo “a gente não quer nenhum tarado no nosso
círculo”, ou declarações diretas de que “nenhum gay, lésbica ou
bissexual poderia se envolver com magia”. Eu sabia que havia um
mundo gay à parte do ocultismo, só não me sentia pronto para fazer
parte dele. Me escondi e busquei consolo em obsessões esotéricas
e fantasias de poder.
Mas me lembro do beijo. E esse encontro agora ao acaso, 25
anos depois, trouxe-o de volta. E eu só queria reconhecer isso.
Porque quando você me beijou naquela manhã, meu mundo virou de
ponta-cabeça.
PARTE VI
HISTÓRICOS
INTRODUÇÃO

E
m meados da década de 1990, descobri minha paixão por
história. Antes, eu não me preocupava muito com o assunto,
nem me interessava demais pela origem das ideias. Afinal, eu
escrevia a partir das minhas experiências e considerava isso o
suficiente. Mas meu fascínio por história cresceu, e comecei a
experimentar novos estilos de escrita.
Uma coisa que às vezes me irritava em textos ocultistas era a falta
de atenção às fontes e referências. Claro que, nesse quesito, eu
tinha tanta culpa no cartório quanto meus pares, mas comecei a
enxergar o valor de explicitar as referências ao ler material
acadêmico, já que isso facilita a verificação de uma fonte para ver se
quem escreveu o artigo fez a interpretação correta (assumindo que
se possa acessar o material original). Acredito que essa abordagem
seja melhor do que simplesmente fazer afirmações generalizadas e
declarações vagas. É claro que, na época pré-internet e antes de se
pregar a necessidade de checar fatos e citações, cobrava-se muito
menos de autoras e autores, e por isso generalizações e afirmações
infundadas passavam despercebidas com mais frequência.
Então, comecei a escrever com mais cuidado, prestando mais
atenção a citações, fontes, referências e notas. Comecei a notar
meu interesse em história por conta do meu interesse por uma
variedade de personagens históricas. Embora as pessoas que as
criaram fossem populares em sua própria época e tivessem
trabalhos que haviam influenciado o ocultismo contemporâneo de
diversas formas, aparentemente elas acabaram esquecidas ou
negligenciadas. Os dois ensaios que escolhi para esta seção —uma
passada de olhos por Lobsang Rampa, infame autor tibetano, e
outra por Elizabeth Sharpe, escritora de livros de viagem, tradutora e
romancista— refletem esse interesse. Suas vidas e obras me
influenciaram ou me intrigaram de diversas formas.
Na medida em que vou escavando material histórico, correndo
atrás de textos esquecidos, rastreando referências obscuras e
fazendo longas buscas em repositórios on-line, me dou conta de que
aprecio imensamente esse trabalho de detetive. Mas ele não é mero
exercício intelectual: muitas vezes, o ponto de partida acaba surgindo
de uma meditação ou prática ritual.
Esses ensaios são, em sua maioria, muito mais longos do que os
que costumava escrever no passado, e, como você verá, tento ser
mais cuidadoso quanto a referências e fontes consultadas.
O FANTÁSTICO MUNDO
DE LOBSANG RAMPA

A versão original deste ensaio foi apresentada como uma palestra na


livraria Treadwells, em Londres, e depois publicada no periódico Abraxas
em 2009. Entre dezembro de 2013 e janeiro de 2014, eu o dividi numa
série de postagens no meu blog enfolding.org. Eu havia lido alguns livros
de Lobsang Rampa na década de 1970, e como tinha nas mãos alguns
ensaios acadêmicos sobre o “fenômeno Rampa”, achei que conseguiria
montar uma palestra com rapidez. Acabou que precisei de quase seis
meses e, nesse tempo, li todos os seus 19 livros, ouvi algumas de suas
falas gravadas em áudio e visitei alguns sites de fãs de Lobsang Rampa.

E
m 1956, um livro chamado The Third Eye foi publicado no Reino
Unido e descrito com entusiasmo pelo Times Literary
Supplement como “quase uma obra de arte”, e em The
Observer como “um livro extraordinário e emocionante”.[61]
The Third Eye é a autobiografia de um tal Tuesday Lobsang
Rampa. Ele era filho de um membro proeminente do governo Dalai
Lama e vinha de uma família abastada de Lhasa. Aos sete anos,
astrólogos previram o futuro do menino: ele entraria para um
monastério, seria educado como sacerdote-cirurgião, passaria por
muitas dificuldades, deixaria o Tibete e viveria entre povos estranhos.
Tuesday entrou em um lamastério e, com o tempo, demonstrou ser
um aluno exemplar e foi selecionado para receber os mais esotéricos
ensinamentos. Em seu oitavo aniversário, sacerdotes-cirurgiões
fizeram um furo em seu crânio para criar um “terceiro olho” que o
permitiria enxergar auras. Depois de se recuperar da operação,
Tuesday foi entrevistado por Dalai Lama, que havia investigado as
vidas passadas do menino e o lembrou do papel que ele
desempenharia em breve na preservação da sabedoria do Tibete.
Aos doze anos, Tuesday fez uma prova para se habilitar como
médico-sacerdote. Isso envolvia ficar trancafiado em um cubículo de
pedra e ali receber questões escritas, que ele deveria responder
também por escrito. Essas provas tomavam quatorze horas por dia,
em um total de seis dias. Depois de ser aprovado com as melhores
notas, Tuesday acompanhou seu tutor, o grande lama Mingyar
Dondup, em uma expedição para coletar plantas e ervas medicinais.
Nessa empreitada, visitaram um monastério onde os monges
construíam pipas em forma de caixa, dentro das quais cabia uma
pessoa. Tuesday fez vários voos e também deixou sugestões para
aperfeiçoar o projeto. Em outra expedição, ele e seu professor
encontraram o Yeti e fundaram um paraíso, tal qual o jardim do
Éden, em um vale perdido. Aos dezesseis anos, ele passou por outra
bateria de testes e alcançou o grau de lama.
O livro se encerra com a conquista do grau de abade por Tuesday
—após a cerimônia da “Pequena Morte”— e com sua partida do
Tibete para a China, seguindo instruções do Dalai Lama.

A publicação de The third eye

O manuscrito de The Third Eye foi enviado primeiro para diversas


editoras, como a Robert Hale & Collins, que o recusaram de
imediato. A editora novaiorquina E. P. Dutton mandou o manuscrito
para Hugh Richardson, um ex-oficial encarregado da Missão
Britânica no Tibete que havia passado nove anos lá. Richardson
devolveu o manuscrito com muitas correções acreditando que o livro
fosse uma farsa, que usava outras obras já publicadas como base e
incluía “floreios de uma imaginação fértil”. A Dutton recusou o livro
por recomendação de Richardson.
Em seguida, o manuscrito foi enviado para a Secker and Warburg.
Conta-se que o autor se encontrou com um dos sócios da editora,
Frederick Warburg, e o deixou impressionado ao ler sua mão e
adivinhar corretamente sua idade e que ele tinha se envolvido em um
processo criminal pouco tempo antes. Warburg conseguiu uma cópia
do relatório de Richardson sobre o manuscrito e enviou cópias para
uma série de especialistas no Tibete, incluindo os montanhistas
Heinrich Harrer e Marco Pallis, e acadêmicos respeitados, como
David Snellgrove e Agehananda Bharati. Todos declararam
inequivocamente que o livro era uma fraude.
No prefácio à primeira edição de The Third Eye, os editores
reconheceram essas reservas expressas por especialistas que
haviam lido o livro, mas comentaram que
sobre muitos pontos de sua vida pessoal, ele [o autor] demonstrou uma reserva por vezes
desconcertante. [...] Mas Lobsang Rampa nos garante que, pelo fato de o Tibete ser
ocupado por comunistas, ele se vê obrigado a manter certa reserva de forma a não
comprometer a segurança de sua família. [...] Podemos pensar, por vezes, que ele vai
além dos limites da credulidade ocidental, embora nosso conhecimento nesse campo não
possa ser dado como definitivo. Os editores estão, ainda assim, convencidos de que The
Third Eye é essencialmente um documento autêntico sobre a educação e formação de um
jovem tibetano no seio de sua família e em um lamastério.

The Third Eye rapidamente se tornou um campeão de vendas em


doze países, vendendo cerca de trezentas mil cópias só no Reino
Unido nos primeiros dezoito meses de publicação e, dentro de dois
anos, já tinha sido lançado em nove edições de capa dura. Também
foram lançadas edições em francês e alemão.

A reação da academia

A popularidade de The Third Eye provocou uma grande indignação


entre os acadêmicos que haviam dado um parecer aos editores.
David Snellgrove descreveu o livro como “sem-vergonha”. Marco
Pallis afirmou que aquilo era uma “invenção absurda e uma
difamação tanto do Tibete quanto de sua religião”. A resenha de
Heinrich Harrer foi tão contundente que a editora alemã ameaçou
processá-lo por calúnia. Hugh Richardson publicou uma resenha
crítica do livro no Daily Telegraph e no Morning Post em novembro
de 1956, declarando que “qualquer pessoa que tenha morado no
Tibete sentiria, depois de ler algumas páginas de The Third Eye, que
seu autor, T. Lobsang Rampa, certamente não é tibetano”.
Em 1958, Marco Pallis, em nome de um grupo de acadêmicos
europeus especialistas no Tibete, contratou Clifford Burgess, um
detetive particular, para descobrir a “verdadeira identidade” de
Lobsang Rampa. Depois de um mês de investigações, Burgess
revelou que o autor era um tal Cyril Henry Hoskin, nascido em 1910
em Plympton, no condado de Devon. Seu pai era encanador, e
conhecidos o consideravam uma “criança estranha”. Ele chegou a
trabalhar para uma empresa de fabricação de artigos cirúrgicos e no
escritório de uma empresa londrina que oferecia cursos por
correspondência. Burgess relatou que, nesse período, Hoskin ficou
cada vez mais “peculiar”; assumiu o nome de Kuan-Suo, raspou a
cabeça e levava seu gato para passear de coleira. Depois ele
apareceu em Bayswater em 1954 e se apresentava como dr. Kuan-
Suo. Burgess contou que, até ele se mudar para Dublin, não havia
nenhum sinal de que Hoskin já tivesse saído do Reino Unido.

Desmascaramento e reação

Em fevereiro de 1958, o Scottish Daily Mail publicou uma manchete


que dizia “Third Eye Lama Exposed as a Fake” [Lama de The Third
Eye é desmascarado como impostor]. O Daily Express veio em
seguida com “The Full Truth about the Bogus Lama” [A verdade
sobre o falso lama], junto com um artigo escrito por Frederick
Warburg, que relatou ter pedido a um tibetólogo para fonetizar a
frase “Fez boa viagem, sr. Rampa?”, que ele então leu em voz alta
para o autor. Como ele não respondeu, Warburg lhe disse que aquilo
era tibetano. O autor imediatamente se atirou no chão,
aparentemente tendo um ataque, e explicou a Warburg que havia
sido torturado pelos japoneses e seu conhecimento de tibetano tinha
sido hipnoticamente bloqueado, a ponto de nunca ter recobrado sua
língua nativa. Ele dizia que só ouvir tibetano já lhe causava dor e
pediu a Warburg que não o pressionasse mais.
Ainda em fevereiro de 1958, a revista Time publicou a reportagem
“Private vs. Third Eye” [Particular vs. The Third Eye]. Hoskin não
havia falado com repórteres, segundo a matéria, alegando
problemas de saúde, mas sua esposa afirmou que ele havia escrito o
livro em nome de um dr. Ku’an verdadeiro, cuja família estava fugindo
de comunistas da China. Depois ela declarou que esses comentários
tinham sido inventados por jornalistas.
Quando The Third Eye foi reimpresso, saiu com uma declaração
do autor que dizia: “No Oriente, a maioria das pessoas reconhece
que uma mente mais forte pode tomar posse de outro corpo”. Depois
ele explicava que, no final de 1947, Cyril Hoskin começou a sentir
uma compulsão irresistível a adotar hábitos orientais. Ele mudou seu
nome para Carl Ku’an, pediu demissão e se mudou para um “local
remoto”, onde passou por experiências alucinatórias e teve suas
próprias memórias gradualmente suplantadas pelas de uma
“entidade oriental”. Em 1949, ele sofreu uma concussão ao cair de
uma árvore e, depois disso, perdeu a memória dos primeiros anos
de vida, mas adquiriu a memória completa de um tibetano —inclusive
lembranças de quando este era bebê. Ele alegou ter documentos
que provavam sua identidade, mas que os havia mandado para longe
para que não fossem “maculados” pelas pessoas que duvidavam
dele. Em resposta às opiniões de “especialistas”, disse que não
havia qualquer consenso entre eles sobre alguma falha particular de
Hoskin e que, em todo caso, nenhum deles havia vivido no Tibete
como lama nem entrado para um monastério aos sete anos “como
ele havia feito”. Para fechar, declarou que havia muita literatura
teosófica sobre possessão, e que seus editores tinham uma carta
escrita por um swami da Índia dizendo que possessão é algo muito
comum no Oriente.
A declaração de Hoskin é reforçada por sua esposa, que atestou
que, desde 1949, “todo o seu jeito de ser passou a ser o de um
oriental”, e que “sua aparência e cor de pele também apresentaram
uma mudança notável”. No livro, o autor também declara que jornais
britânicos e alemães estavam fazendo campanha contra ele, e que
ele não tinha como se defender por causa de problemas no coração.
Hoskin afirma de novo que todas as suas declarações são
absolutamente verdadeiras e que não copiou nada de outros livros.
Mas a história não acabou aí. Imune às críticas, ele logo lançou
dois outros livros depois de The Third Eye. Doctor from Lhasa,
publicado originalmente em 1959, continua a história de Lobsang
Rampa na China, começando em 1927. Suas muitas aventuras
relatadas no livro incluem ser recrutado para uma tropa especial de
médicos aviadores do exército de Chiang Kai-Sheng; pilotar uma
ambulância aérea durante a guerra da China contra o Japão; ser
capturado pelos japoneses (duas vezes!) e torturado —apesar de ter
conseguido resistir à tortura por conta de seu treinamento como
lama. Ele também se matriculou em uma faculdade de medicina,
onde impressionou seus professores ao desenhar um campo
magnético que via com seu terceiro olho. Ele esperava que, ao juntar
seus conhecimentos da medicina chinesa com a ocidental, pudesse
reproduzir uma máquina que havia visto uma vez nas ruínas de uma
cidade pré-histórica em um vale escondido em Changthang —um
dispositivo para ler auras e prever a incidência de doenças ou
problemas mentais.
The Rampa Story, de 1960, começa no Tibete, onde os altos
lamas haviam descoberto, por meio de explorações astrais, um
sistema secreto de cavernas que passaram a usar para evitar que
seus artefatos mais sagrados caíssem nas mãos de comunistas. Os
abades, que souberam da iminente invasão chinesa por meio de seus
poderes de clarividência, vinham preparando secretamente essas
cavernas havia anos.
A essa altura, Rampa morava no Canadá. Os lamas entraram em
contato com ele telepaticamente e lhe deram a tarefa de escrever
um livro explicando como uma pessoa pode tomar o corpo de outra
—e com pleno consentimento da pessoa possuída. Relata-se que,
depois de cruzar o mar do Japão (que é onde termina Doctor from
Lhasa), Rampa foi parar na Rússia. Ele é então convocado para o
exército russo, mas depois é preso pela polícia e torturado na prisão
de Lubianka. Ele é solto e deportado para a Polônia, mas, no trajeto,
acontece um acidente com o caminhão no qual Rampa está viajando,
e ele é gravemente ferido. No hospital, ele viaja para o “mundo da luz
dourada” em seu corpo astral, onde encontra seu antigo professor,
que havia sido assassinado pelos comunistas, e Sha-lu, um gato
falante. O décimo terceiro Dalai Lama também o encontra e pede
que ele volte para a Terra e siga com seu trabalho. O problema é
que o corpo de Rampa não está em condições adequadas. O Dalai
Lama diz a Rampa que foi localizado um corpo para ele na
Inglaterra, e que a aura do “dono” atual tem os mesmos
“harmônicos” que a de Rampa. Ele é avisado, no entanto, de que, se
voltar à Terra, terá de enfrentar descrença, ódio e dificuldades
devido à força do mal que tenta impedir a evolução humana.
Outras aventuras levam Rampa através da Europa até as
Américas, e depois para a Índia, onde, com a ajuda de um velho
lama, ele faz uma viagem astral aos registros akáshicos para
investigar as vidas passadas do homem cujo corpo ele deveria
habitar. Rampa encontra o homem no plano astral e obtém
consentimento para habitar seu corpo. Um mês depois, ele visita o
homem no astral novamente e, instruindo-o a cair de uma árvore,
Rampa e três colegas lamas cortam o cordão de prata que liga o
homem ao próprio corpo e conectam em seu lugar o cordão de
Rampa.
Depois disso ele passa por uma série de empregos diferentes na
Inglaterra e, por fim, escreve The Third Eye. Depois de terminar o
livro, ele tem um ataque cardíaco e se muda para a Irlanda —uma
ilha que já foi um dia parte de Atlântida. Seu antigo professor entra
em contato novamente e o instrui a se mudar para “a terra dos
indígenas vermelhos”, onde ele tem uma tarefa final a completar.
Entre os Monges do Tibete termina com a previsão de um ataque
nuclear chinês a ser lançado a partir de Lhasa.
Outros dezesseis livros vieram depois dessa trilogia inicial,
incluindo Living with the Lama, que foi escrito por (sra.) Fifi
Greywhiskers, uma das gatas do lama. Estima-se que as vendas da
série de Lobsang Rampa tenham chegado a cerca de 4 milhões de
cópias em todo o mundo até sua morte em 1981. Seus livros são
impressos até hoje, e existem diversos sites e fóruns de internet
dedicados à discussão e circulação de suas ideias.
Rampa como “mistificador”

O acadêmico Donald Lopez Jr. caracteriza Rampa como um dos


grandes “mistificadores” do Tibete, no sentido de que ele o mistificou
“floreando suas várias realidades dentro de suas próprias fantasias
místicas” e “iludiu as pessoas, brincando com a credulidade do
público”.[62] Agehananda Bharati, que nunca economizou palavras,
adota uma posição semelhante ao escrever para o Tibet Society
Bulletin:

Cada página revela a completa ignorância do autor sobre qualquer coisa relacionada ao
budismo prático e ao budismo enquanto sistema de crença no Tibete e em qualquer outro
lugar. Mas o livro também demonstra uma intuição ferina sobre o que milhões de pessoas
querem ouvir. Monges e neófitos voando junto à brisa misteriosa em pipas gigantes;
imagens douradas em células ocultas, representando encarnações anteriores do homem
que as contempla; cirurgias secretas no crânio para abrir o olho da sabedoria; contos
sobre os perigos do treinamento e da iniciação místicos... Em um mundo ocidental
desesperado em busca do mistério nas coisas quando tudo é tão terrivelmente acessível
às faculdades de inspeção, onde o divino foi censurado ou institucionalizado, onde se
profere o divino usando o jargão de dedo em riste das admoestações moralistas, os
menos resistentes e os mais maleáveis vão buscar algo que seja o contrário de todos
esses aspectos desanimadores.[63]

A maior parte do material acadêmico sobre Lobsang Rampa fala


sobre ele, de forma geral, à luz das idealizações ocidentais do
Tibete, colocando-o junto a outras pessoas “mistificadoras” como
Madame Blavatsky. Lopez, por exemplo, em Prisoners of Shangri-
La, relata que deu The Third Eye a alguns de seus alunos de
primeiro ano de graduação e pediu que o lessem, sem dar nenhuma
dica sobre sua origem. Os alunos, segundo Lopez, foram “unânimes”
nos elogios ao livro, opinando que era “totalmente crível e
convincente”.[64] Lopez se pergunta por que exatamente os livros de
Lobsang Rampa foram tão populares apesar do opróbrio dos
acadêmicos, e estrutura sua resposta em uma discussão sobre
autoridade. A autoridade inicial de Lobsang Rampa vem de ter sido
aceito como lama pelo público. Lopez diz que, uma vez que se revela
que Rampa era Hoskin, sua aceitação como autoridade teria ido por
terra não fosse o fato de Doctor from Lhasa e The Rampa Story
mostrarem como Hoskin se tornou Rampa. Lopez aponta que, na
época que Rampa lançou The Hermit (1971), ele simplesmente
afirmava que seus livros eram verdadeiros e que “algumas pessoas
que estão chafurdando no materialismo podem acreditar que são
ficção”, ao que Rampa acrescenta: “acredite ou desacredite
conforme seu estado evolutivo”.[65]
Ao fechar o capítulo 3 de Prisoners of Shangri-La, que examina o
fenômeno Rampa, Lopez diz ter conhecido muitos tibetólogos e
budólogos que lhe disseram que o fascínio inicial pelo mundo descrito
nos livros de Rampa foi o que os levou posteriormente a se tornarem
acadêmicos profissionais. Alguns ainda disseram que, apesar de o
autor ser uma fraude, ele causava um “bom efeito”.

Rampa como “desmistificador”?

Depois de passar os últimos meses lendo muitos dos livros de


Lobsang Rampa, acho que é possível montar uma boa defesa dele
enquanto desmistificador, tanto do Tibete quanto dos assuntos
esotéricos sobre os quais ele fala. Uma das coisas que me
impressionaram —se é que “impressionar” é o verbo correto aqui—
foi seu estilo de escrita muito “pé no chão”, de certa forma. É fato
que ele descreve uma variedade enorme de experiências estranhas,
mas faz isso de um jeito que as torna aceitáveis. Ele torna amigável
o que é desconhecido, de certa forma. Ele explica conceitos
ocultistas sempre usando analogias comuns e conhecidas do público
ocidental médio, e usa pouquíssimos termos “técnicos”
reconhecidamente ocultistas. Por exemplo, em seu prefácio ao The
Cave of the Ancients, Rampa expressa seu desdém por “conversa
mole” e diz que é um “livro simples, sem ‘palavras estranhas’, sem
sânscrito, nada de línguas mortas”. Isso é algo que, na minha
opinião, explica um pouco seu sucesso.
É notável o quanto a sabedoria oferecida por Rampa é
independente, oferecida “nua e crua”. Ele não respalda suas
declarações com citações de outras autoridades (na realidade, tem-
se a impressão de que não existem outras autoridades além dele) e,
embora fale sobre a importância de aprender a doutrina por meio
das escrituras e de estudar livros esotéricos do Tibete em meio a
suas rememorações autobiográficas, ele não indica referências
bibliográficas nem menciona textos específicos. É raro Rampa
recomendar outros livros ao público.
Ele também expõe suas opiniões sobre uma gama diversa de
assuntos esotéricos, e boa parte das passagens em que faz isso
parece ser uma resposta a cartas que ele recebeu. Ele não aprova
leituras da sorte, curas à distância, nem meditação em grupo, a qual
deve ser evitada, pois pode ocasionar doenças nervosas por meio de
contaminação das vibrações-pensamento de outras pessoas que não
sejam treinadas. Na realidade, ele recomenda que seu público evite
cultos ou grupos esotéricos de qualquer tipo. A astrologia, diz ele, é
algo genuíno, mas a maioria das pessoas que se dizem astrólogas
são impostoras. Da mesma forma, guias espirituais e médiuns são
alvos do repúdio de Rampa: ele comenta sarcasticamente em
Feeding the Flame que, “se fizéssemos uma lista de todo mundo que
alega ter um guia indiano ou tibetano, simplesmente não haveria
indianos ou tibetanos o suficiente para todo mundo”. Em The Saffron
Robe, Rampa ouve de um dos professores que não deve “perder
tempo com yoga”, é só “um exercício físico, nada mais. Nada
espiritual”.
Rampa também menospreza cientistas e “especialistas”. Em uma
rara entrevista de 1958, ele diz: “Não se deve dar muita importância
a ‘especialistas’ nem ‘estudiosos do Tibete’, já que é patente que um
‘especialista’ contradiz o outro quando não concordam sobre o que
está certo e o que está errado”.[66]
Em Chapters of Life, ele afirma que os cientistas têm pouca ou
nenhuma imaginação, e que a investigação de temas como o mundo
da antimatéria deveria ser reservada a ocultistas, pois “ocultistas
competentes são capazes de sair do corpo, se manter fora dele e
também fora da Terra, e uma vez que estão fora da Terra, podem
enxergar como é esse outro mundo —assim como eu o fiz várias e
várias vezes”. Ele revela que o mundo da antimatéria é o responsável
por fenômenos como o Triângulo das Bermudas e o sumiço
misterioso do Voo 19.

Tradição/modernidade

Os livros de Rampa podem ser vistos como exemplos de trabalhos


que glorificam a tradição e ao mesmo tempo condenam a
modernidade. Os anos 1950 foram um período de muitas mudanças
na vida britânica, com o fim da austeridade do pós-guerra e a
ascensão da “sociedade afluente”, que testemunhou o surgimento da
televisão comercial, das revistas impressas a cores, dos livros
baratos em formato paperback,[67] e um aumento na propaganda de
bens de consumo de luxo. Além disso, os valores do establishment
começaram a ser cada vez mais questionados e ridicularizados. A
liberdade e o arbítrio do indivíduo se tornaram uma preocupação
cultural cada vez maior. No entanto, essas novas liberdades também
trouxeram incertezas. Os livros de Rampa, que cobrem um período
desde meados da década de 1950 até 1980 (ele produziu um livro
por ano entre 1963 e 1973), articulam e expressam as tensões entre
tradição e individualismo.
Quando não está relatando suas aventuras autobiográficas no
Tibete ou em outros lugares, ou explicando diversas questões
ocultistas, Rampa faz comentários livres sobre o estado do mundo e
o que deu errado com a sociedade moderna. Daí descobrimos que a
juventude de hoje é “mais burra” do que seus pais, e ele reserva um
desprezo especial pela juventude de “cabelos longos [...] e [que
veste] farrapos desalinhados e puídos”. Ele põe a culpa pela
situação da juventude na televisão, no cinema e no fato de pais e
mães (mas principalmente as mães) trabalharem. Ele é
inexoravelmente contra drogas como o LSD, pois elas podem
danificar o corpo astral de forma irrecuperável. Além disso, Rampa
deixa muito claro em I Believe que não tem tempo para as tais
“women’s libbers”[68] — que não são “mulheres” de verdade.
Na opinião dele, a deterioração começou com a Primeira Guerra
Mundial, quando as mulheres foram trabalhar nas fábricas. Elas
deveriam ficar em casa e ser esposas e mães, como manda a
natureza. Ele relata que nos registros akáshicos há evidências de
uma civilização extinta há muito tempo cujos cidadãos usavam “peles
púrpura” e que foi dominada pelas mulheres. Os homens eram
tratados como escravos ou como garanhões viris, com o único
propósito de fazer bebês. Esse matriarcado era “desequilibrado” e
por isso chegou ao fim. Em Three Lives, o “Velho Autor” (Rampa)
relata um sonho em que uma jovem morta em um acidente descobre
que, por ter sido uma women’s libber, seu destino (assim como o de
pessoas da mídia) era as “regiões infernais”. O inferno, nessa
narrativa, tem “paliçadas” reservadas para editores, agentes,
membros da imprensa, pessoas que frequentaram o colégio
particular Eton e feministas liberacionistas.
Rampa acredita que a sociedade moderna chegou a uma
encruzilhada, e a única coisa que vai garantir estabilidade é a volta a
uma vida religiosa. Essa religião, segundo ele, deveria ser “atual”, já
que as antigas “fracassaram terrivelmente”. Em Candlelight,
respondendo a uma pergunta sobre a violência no mundo, ele diz:
“As pessoas estão recebendo valores falsos. A religião está sendo
demolida. As pessoas não acreditam mais nas coisas simples da
vida. Elas ouvem o rádio, assistem a coisas terríveis na televisão e
leem os detalhes sangrentos na imprensa sensacionalista”.
Embora Rampa critique a ciência ocidental, o progresso e as
“máquinas falíveis”, é notável que a “essência” de The Third Eye —a
“abertura” do terceiro olho de Rampa (capítulo 8)— seja um
procedimento cirúrgico, envolvendo um instrumento que “lembra uma
sovela”, em vez de ser resultado de disciplina espiritual, como seria
de esperar.
Ao longo de seus livros, há um entusiasmo constante por
maquinários estranhos, e o dispositivo de leitura de aura
(mencionado pela primeira vez em Doctor from Lhasa) se torna um
refrão central: ele afirma em várias ocasiões que a razão de ser de
sua escrita é poder financiar sua pesquisa destinada à criação dessa
máquina, para o benefício de toda a humanidade.
Sheelagh Rouse, em seu livro Twenty-Five Years with T. Lobsang
Rampa, explica que, durante as tentativas de Rampa de conduzir a
pesquisa em fotografia áurica na Irlanda, ele afirmava que a aura
feminina tinha “mais brilho” ou cores mais fortes do que a masculina,
e que era necessário encontrar modelos femininas dispostas a posar
nuas.

Rampa sobre a homossexualidade

Rampa usa personagens para desenvolver e validar suas opiniões.


Em The Thirteenth Candle, por exemplo, ele apresenta suas
perspectivas sobre a homossexualidade feminina e a masculina por
meio de casos envolvendo dois pares de personagens: Lotta Bull (“a
epítome da mulher masculina”) e sua amante, Rosie Hipps (“toda
feminina, frufru, fofinha e com a cabeça loura totalmente desprovida
de pensamentos”); e também Dennis Dollywogga e Justin Towne —
que escreve uma carta para Rampa criticando seus comentários
sobre a causa da homossexualidade no livro anterior, Feeding the
Flame, no qual Rampa afirma:
Nascer é uma experiência traumática, é uma ocasião das mais violentas, e um
mecanismo delicado pode facilmente sofrer desvios. Por exemplo: um bebê está prestes a
nascer e, ao longo da gravidez, a mãe não foi cuidadosa com a própria alimentação e suas
atividades, então o bebê não recebeu o que se poderia chamar de insumo químico
equilibrado. Pode faltar ao bebê algum elemento químico, e então o desenvolvimento de
certas glândulas pode ter sido interrompido. Digamos que o bebê iria nascer menina, mas,
pela falta de certos componentes químicos, acaba nascendo menino, um menino com
inclinações de menina. Os pais talvez notem que acabaram com uma pobre criatura
afeminada, e acreditar que isso foi resultado de terem mimado a criança demais, e podem
tentar corrigir com uns croques para ver se ele fica mais másculo, mas isso não funciona.
Se há algo de errado nas glândulas, não interessa que tipo de penduricalho ele tenha na
frente, o garoto vai continuar sendo uma menina no corpo de um menino.
Se uma mulher tem a psique de um homem, então ela não vai se interessar por
homens, mas sim por mulheres, porque sua psique, que está mais próxima do Eu
Superior do que o corpo físico, está mandando mensagens confusas para o Eu Superior, e
o Eu Superior responde com um tipo de comando: “Mão na massa, faça o que tem de
fazer”. A pobre coitada da psique masculina sente repulsa, obviamente, de “fazer o que
tem de fazer” com um homem, então todo interesse se foca em uma mulher, e o resultado
é o espetáculo de uma mulher fazendo amor com outra, e é isso que chamamos de
lésbica, por causa de certa ilha perto da Grécia onde isso era “a coisa a ser feita”.
O importante é que não se deve nunca, jamais, condenar um homossexual, pois não é
culpa dele: está sendo penalizado por algo que não fez, está sendo penalizado por alguma
falha da natureza; talvez a mãe tenha comido os alimentos errados, talvez a mãe e a
criança fossem incompatíveis quimicamente. Mas, seja como for, só se pode ajudar os
homossexuais com verdadeira compreensão e solidariedade, e possivelmente com uma
ponderada administração de medicamentos.

Ao que “Justin Towne” responde:


A maioria dos homos não são os boiolinhas que você vê por aí na rua, não são as pessoas
sobre as quais falam a psiquiatria e a medicina, porque aqueles são os emocionalmente
perturbados. Como sou aventureiro, já trabalhei em cidades, em fazendas, fiz trabalho em
rádio etc. etc., e conheço homos em todas as áreas que são gente normal como todo
mundo, digamos assim. Então eles podem ser muito masculinos, podem pensar e agir
como homens, e NÃO pensar nem agir como mulheres, nem ter as características
femininas que tantos heterossexuais parecem pensar que eles têm.
Quero salientar PARA o homo o papel importante que ele poderia ter neste mundo, se
levantasse o traseiro e parasse de sentir pena de si mesmo. Não acredito nessas coisas
de “libertação gay”; os jovens de hoje acham que precisam fazer disso toda uma questão,
mas só precisam fazer bem a parte deles, com as ferramentas que têm (seus talentos
etc.).

Romanceando o tibete: The third eye como diário de


viagem

Cyril Hoskin/Lobsang Rampa não foi o primeiro caso de autor que se


torna sua personalidade literária. Podemos lembrar de casos
notáveis como T. E. Lawrence ou Richard Burton, que assumiram a
máscara de nativo; ou até mesmo Alexandra David-Néel, que se
passou por tibetana para explorar o reino proibido. Também tem
Archibald Belaney, o “Coruja Cinzenta”, autor de livros de grande
sucesso comercial e palestrante da década de 1930 (agora
considerado um dos fundadores do movimento conservacionista no
Reino Unido) que foi desmascarado após sua morte como sendo
inglês, e não um indígena americano.
Quando a narrativa de Rampa se volta para sua vida no Tibete, ele
claramente se apoia naquilo que hoje reconhecemos como premissas
do primitivismo cultural sobre a natureza exótica da cultura tibetana
—estereótipos que existem na cultura popular europeia, tirados dos
escritos de teosofistas como Madame Blavatsky e Alice Bailey, bem
como de Horizonte perdido, de James Hilton, embora Rampa
sempre negasse ter lido qualquer obra teosófica.
The Third Eye pinta uma imagem bem idealizada do Tibete como
uma utopia idílica, intocada pelo materialismo e pelo progresso do
Ocidente, mas consciente e cautelosa a esse respeito. Os tibetanos
não usam rodas, por exemplo, porque elas representam a velocidade
e a “suposta civilização”. De forma parecida, em Doctor from Lhasa,
Rampa relata com perplexidade seus primeiros encontros com uma
“cama de mola”, água encanada, pessoas fumando e, mais tarde,
com um avião, que ele primeiro acredita ser “um dos deuses do céu”.
Os comentários de Donald Lopez Jr. sobre acadêmicos que se
interessaram pelo Tibete ao ler os livros de Rampa são
interessantes. Durante minhas pesquisas para preparar este texto,
enquanto navegava na internet tentando entender como Rampa era
tratado na rede, descobri várias fundações de auxílio e organizações
tibetanas cujos membros declaram que seu interesse pelo Tibete foi
despertado pela leitura de seus livros. Além disso, descobri que
vários dos grandes “sites de fãs” também tinham informações sobre
eventos atuais no Tibete e continham links para sites como Tibet
Online e a Tibet Foundation do Reino Unido.
The Third Eye foi escrito depois da invasão chinesa do Tibete,
mas antes da insurreição de 1959 e da diáspora subsequente de
líderes religiosos tibetanos para a Índia e para o Ocidente. Até certo
ponto, podemos dizer que a popularidade da obra de Rampa e a
polêmica do final da década de 1950 aumentaram o interesse do
público e o desejo de conhecer o budismo tibetano. Também
poderíamos dizer que Lobsang Rampa ajudou as pessoas a
enxergarem os acontecimentos relacionados à ocupação do Tibete.
Embora Rampa de fato apresente uma imagem romantizada da
vida no Tibete, pelo menos ele não despolitiza a história do país —
The Third Eye menciona tanto a expedição Younghusband de 1904
quanto a tentativa militar chinesa de controlar Lhasa em 1910. The
Rampa Story contém alguns relatos de visões astrais da brutalidade
chinesa contra tibetanos comuns e das execuções de monges, e
conta histórias de freiras que foram estupradas e queimadas vivas.
No entanto, não consegui encontrar qualquer referência aos
movimentos tibetanos de resistência ou à insurreição de 1959 em
seus livros.
Em Feeding the Flame, Rampa abre o capítulo 3 com um relato
de como é a vida em Lhasa sob o “terror” chinês. Ele descreve o
“genocídio” do povo tibetano realizado pelos chineses e também
expressa sua insatisfação com o governo no exílio tibetano. O autor
tinha a esperança de “falar perante as Nações Unidas enquanto
representante do Tibete”, mas acredita que os tibetanos “de alto
escalão”, que agora “vivem confortavelmente na Índia”, têm medo de
lhe dar apoio devido ao modo como ele foi retratado pela mídia. Em
As It Was, há um trecho longo sobre as “previsões” feitas sobre sua
vida por um “grande astrólogo”, que em dado momento exalta as
habilidades preditivas do próprio Rampa, que incluem:
Ele havia previsto que não haveria Dalai Lama verdadeiro depois que o décimo terceiro
passasse ao estado de transição; haveria um outro, mas ele seria escolhido por
conveniência política, em uma tentativa de acalmar as ambições territoriais dos chineses.

O astrólogo também diz (sobre Rampa):

Será considerado benéfico para toda uma população que ele seja renegado, que não seja
apoiado por quem deveria apoiá-lo, por quem poderia apoiá-lo, e digo mais uma vez que
essas são probabilidades, porque é muito possível que nosso povo o apoie e lhe dê a
oportunidade de falar perante as nações do mundo para que, antes de tudo, o Tibete seja
salvo.

Parece que a visível recusa do governo no exílio tibetano de


reconhecer Rampa como porta-voz deixou uma ferida profunda. Em
As It Was, ele comenta que “são principalmente as ordens inferiores
de refugiados que parecem ser contra mim” (ênfase minha). Ele
também alega ter uma carta dizendo que o Dalai Lama reza
diariamente por sua saúde.
As pessoas que o seguem às vezes afirmam que Dalai Lama
mentiu ao negar publicamente que conhecia Lobsang Rampa, porque
ele estaria “fazendo o jogo da política e prostituindo sua religião na
tentativa de aplacar uma grande quantidade de pessoas que não o
apoiariam se ele dissesse a verdade”.

A conexão extraterrestre

Lobsang Rampa também influenciou a cena da ufologia. Em 1966 foi


publicada My Visit to Venus, uma antologia “não autorizada” dos
primeiros escritos de Rampa de meados da década de 1950,
publicada por Gray Barker, que escreveu They Knew Too Much
about Flying Saucers e é agora reconhecido como o responsável por
introduzir os “homens de preto” ao folclore ufológico. Rampa deu a
Barker “permissão” para continuar publicando o livro desde que ele
fizesse pequenas alterações no manuscrito e mandasse 10% do
lucro para a Save a Cat League de Nova York, uma organização
dedicada a cuidar de gatos de rua. A segunda edição de Venus
também tinha uma apresentação de John Keel. Em Venus, Rampa
relata quando ele e mais seis lamas encontraram uma raça de
gigantes telepatas humanoides em uma cidade perdida que eles
descobrem meio congelada em um glaciar. Revela-se que esses
humanoides estariam supervisionando o desenvolvimento da
humanidade, e eles levam Rampa e seus colegas para Vênus, onde
passam por experiências tão maravilhosas que, em comparação, o
planeta Terra fica parecendo um lugar desenxabido e de mau gosto.
Os temas ufológicos continuam nos livros de Rampa ao longo
dos anos 1960. Existem, por exemplo, os “jardineiros”, uma raça de
alienígenas que colonizou a Terra há bilhões de anos e volta
periodicamente para verificar o progresso da humanidade. Os
jardineiros “semearam” a raça humana na Terra e, embora sejam
benignos de forma geral, às vezes abduzem pessoas e fazem
experimentos para “melhorar a raça”. A humanidade os entendia
como “deuses do céu”.
Também há uma raça de seres avançados que mora dentro da
Terra e às vezes explora a superfície usando tecnologia avançada, e
entidades interdimensionais que só podem ser percebidas (por
humanos) como padrões luminosos. Em The Hermit, quando Rampa
relata o que hoje reconheceríamos como uma experiência “clássica”
de abdução —incluindo intercâmbios telepáticos e experimentos
bizarros feitos nele próprio—, também há uma descrição do hoje
conhecido alienígena cinzento:
Lá eu vi uma coisa muito extraordinária, um anão, um gnomo, um corpo muito, muito
pequeno, como se fosse de uma criança de cinco anos, foi o que pensei. Mas a cabeça,
ah, a cabeça era imensa, um grande crânio em forma de domo, e careca também, não se
via nem um fio de cabelo. O queixo era muito pequeno, de fato minúsculo, e a boca não
era como a nossa, mas parecia mais ser um orifício triangular. O nariz era delicado, mais
parecido com uma reentrância do que com uma protuberância. Era evidente que essa era
a pessoa mais importante, porque os outros olhavam em sua direção com respeito e
reverência.

Os livros de Rampa sem dúvida influenciaram a “ciência


alternativa” contemporânea. Temas relacionados a tecnologias
perdidas, cidades subterrâneas, “terras perdidas” como Lemuria e
Ultima Thule, “cápsulas do tempo” e “conspirações” para suprimir ou
impedir que conhecimentos secretos se tornem informações públicas
—tudo isso está presente em seus livros. Embora alguns desses
temas não tenham surgido com Rampa, ele certamente ajudou a
popularizá-los, anos antes da publicação de Eram os deuses
astronautas? (1968) e outros trabalhos de von Däniken. Aliás, obras
contemporâneas de “ciência alternativa”, como a de Graham
Hancock, são vistas por simpatizantes de Lobsang Rampa como
validação e prova de suas ideias.

Algumas considerações finais

Lobsang Rampa é muitas vezes descreditado e visto como fraude,


enquanto as pessoas que seguem seus ensinamentos acreditam que
ele seja o lama descrito nos livros, um sujeito dotado de habilidades
psíquicas, e que a “verdade” de seus textos foi suprimida por várias
forças, como o atual Dalai Lama, governos diversos, o establishment
científico e as “sociedades ocultistas secretas” do Ocidente que não
gostaram das verdades que ele estava revelando. A impressão que
eu tenho de Rampa —pela leitura de seus livros e pelos depoimentos
de quem o conheceu— é que ele genuinamente acreditava ser quem
dizia ser —isto é, o “hospedeiro” do espírito de Lobsang Rampa.
Sheelagh Rouse descreve como o corpo que originalmente
pertencia a Hoskin foi, ao longo do tempo, completamente
substituído pelo corpo de Rampa, e explica que ele sofreu com as
torturas a que foi submetido pelos japoneses. Rouse o vê como um
adepto espiritualista, alguém desinteressado em ter seguidores e
discípulos, mais ou menos recluso por causa da perseguição da
mídia e de quem o criticava, mas aberto a ajudar as pessoas que o
procuravam com seus problemas e questionamentos.
A obra de Rampa data do início da década de 1960, quando a
fascinação ocidental pelo Tibete, pelo “misticismo oriental” e outras
formas de sabedoria esotérica alcançou novos picos de
popularidade. É bastante irônico que seu primeiro livro, The Third
Eye, tenha conquistado certo status icônico enquanto texto central
para entusiastas do misticismo da contracultura dos anos 1960, já
que o autor deixa claro em suas obras posteriores que não queria
nem saber de hippies, da juventude ou das mudanças que se
propagavam pela cultura ocidental de seu tempo.
The Third Eye é até hoje um dos livros mais populares e mais lidos
sobre o Tibete, apesar do constante opróbrio acadêmico. Pelo
menos parte do que chama atenção nos textos de Rampa é sua
habilidade de apresentar a “sabedoria esotérica” de forma
descomplicada e familiar, rejeitando terminologias complexas e
formações conceituais, desenvolvendo tanto as crenças quanto as
práticas por meio de uma abordagem simples que alivia as
incertezas:

O ocultismo não é mais misterioso ou complicado do que as tabelas de multiplicação ou


do que uma incursão à história. É só o aprendizado de coisas diferentes, o aprendizado de
coisas que não são de ordem física. Ninguém fica exaltado só porque de repente se
descobriu como um nervo ativa um músculo ou como somos capazes de mexer o dedão
do pé, são só questões físicas comuns. Então por que deveríamos nos exaltar ao
considerar que os espíritos estão à nossa volta, se sabemos como passar energia etérica
de uma pessoa para a outra? Veja que aqui dizemos “energia etérica”, em linguagem
comum, e não “prana” ou qualquer outro termo oriental; preferimos, ao escrever um curso
em certa língua, nos ater a essa língua.[69]

Quem lê os livros de Rampa só precisa seguir suas orientações —


e acreditar que os exercícios que ele recomenda vão funcionar—
para que também possa começar a acessar as habilidades que o
autor demonstra em seus livros. Suas obras também atraem
pessoas que desconfiam de autoridades —“especialistas” (como
cientistas ou ocultistas) frequentemente despertam o desdém de
Rampa. Ele usa seu grupo de personagens não só para ilustrar sua
visão de mundo (e demonizar os alvos de sua ira, tais como as
women’s libbers e as pessoas da classe alta), mas também para
incluir no texto declarações “independentes” de que ele é um ouvinte
compreensivo, que pode ser útil para quem se sente desconfortável
com seu lugar na sociedade. As trocas entre Lotta Bull e Rosie Hipps
em The Thirteenth Candle atestam que as opiniões de Rampa sobre
a homossexualidade ajudaram Rosie a entender a si mesma, o que
levou Lotta a se perguntar: “Será que ele é... COMO NÓS —homo?”
Rampa não é, claro, mas ainda assim é visto como capaz de dar
conselhos úteis.
Seus livros também funcionam para dar às pessoas “acesso
privilegiado” ao Tibete (e a outros países). O mundo dele não é o
mundo do tibetano comum, mas o vislumbre especial de uma elite
super-humana —ele desvela repetidamente um aspecto da sabedoria
tibetana que é inacessível a pessoas comuns e a
“pseudoespecialistas”—, um Tibete que explicita a imaginação
romântica de um local exótico, mas, no fundo, familiar. Às vezes, as
aventuras autobiográficas de Rampa em diferentes lugares do mundo
ganham proporções épicas; ele poderia ser comparado a James
Bond em termos do seu livre trânsito mundo afora, lutando contra as
várias forças do mal (como japoneses e chineses) e lançando mão
de habilidades e tecnologias especiais. Como Bond, o pano de fundo
das aventuras de Rampa é a Guerra Fria: ambos visitam locais
exóticos e descobrem esquemas e tecnologias secretos. Ambos
pertencem a uma elite que lhes dá acesso privilegiado a segredos e
intrigas. Mas, embora as aventuras turísticas de Bond aconteçam em
locais exóticos como o Caribe e o Mediterrâneo, Rampa oferece um
olhar turístico sobre geografias espirituais —o Tibete oculto, os
registros akáshicos, outros mundos—, lugares muito
convenientemente inacessíveis para viajantes comuns.
Dado o escopo muito amplo das aventuras de Rampa em vários
lugares do mundo, sua eventual chegada na Grã-Bretanha do pós-
guerra —no corpo que antes havia sido ocupado por Cyril Hoskin— é
meio anticlimática. A escrita de The Third Eye parece ter sido uma
“última opção” para o transmigrado Rampa, já que suas aventuras na
Inglaterra são muito menos excitantes do que lutar em guerras,
pilotar aviões e operar milagres da medicina: elas têm mais a ver
com suas tentativas de encontrar um trabalho fixo e seus problemas
com agências de emprego. O Rampa aventureiro internacional é
substituído pelo Rampa autor e professor recluso.
Seria fácil julgar Cyril Hoskin/Lobsang Rampa como um “farsante”.
No entanto, acredito que seria simplista demais. Para começo de
conversa, ele parece ter genuinamente acreditado ser um lama
tibetano habitando o corpo de um inglês. Além do mais, seus livros
eram e seguem sendo populares por motivos mais complexos do que
a mera credulidade por parte de um público supostamente ignorante
e acrítico. O trabalho de Rampa teve um papel central na formação
tanto do movimento new age quanto do ocultismo contemporâneo, e
seu lugar na história do imaginário ocidental sobre o Tibete também
foi garantido. Além disso, suas tentativas de tornar o mundo do
ocultismo explicável em termos cotidianos também merece mais
atenção.
ELIZABETH SHARPE E
THE SECRETS OF THE
KAULA CIRCLE

Este ensaio foi escrito em 2013 e também publicado no meu blog


enfolding.org. Mulher que teve uma vida independente na Índia, Elizabeth
Sharpe foi uma jornalista de sucesso e tradutora de textos em sânscrito, e
acredito ser uma autora que merece mais atenção. Como discuto neste
ensaio, ela é mais conhecida por seu romance de 1936, The Secrets of the
Kaula Circle, que contém o relato de uma “orgia tântrica” focada mais na
ebriedade do que no sexo e um personagem claramente baseado em
Aleister Crowley. O destaque sobre uma orgia ébria, em vez de sexual, é
interessante, pois alguns textos tântricos dão mais atenção aos méritos do
álcool do que à relação sexual.

E
lizabeth Sharpe (1888-1941) faz parte de um grupo de pessoas
“esquecidas” que escreveram sobre a Índia no início do século
XX. Aparentemente, ela passou a maior parte da vida na Índia,
com uma breve viagem à Inglaterra na década de 1930. Escreveu
diversos livros sobre aspectos da vida indiana, incluindo pelo menos
uma obra sobre o tantra; traduziu textos do sânscrito como o Shiva
Sahasranama; e se interessou profundamente pela educação de
mulheres na Índia. Ela é mais conhecida por seu romance de 1936,
The Secrets of the Kaula Circle, uma história de magia e orgias
tântricas de mão esquerda, que inclui um retrato bastante
desfavorável de Aleister Crowley.
Há pouquíssimas informações biográficas disponíveis sobre
Elizabeth Sharpe. Ela nasceu em Bangalore em 1888, e seu nome
completo era Phoebe Elizabeth Lavender. Aos 17 anos, em 1905, se
casou com John Charles Sharpe (1877-1943), um oficial do Royal
Ordnance Corps. De acordo com David Templeman (em sua
introdução à edição recente de The Secrets of the Kaula Circle,
publicada pela Teitan Press), embora o casal nunca tenha se
divorciado oficialmente, os dois levavam vidas bem separadas.
Elizabeth Sharpe foi secretária particular do thakur sahib da
província de Limbdi (agora parte do estado de Gujarate), Sri Sir
Daulat Singh (1868-1940), cuja biografia ela escreveu
posteriormente. Ela também atuou como preceptora particular dos
filhos dele e foi consultora especial do thakur para a educação de
mulheres. Sabe-se que ela se correspondeu com Gandhi,
Rabindranath Tagore (que escreveu o prefácio da biografia do thakur
escrita por Sharpe) e A. C. Benson (diretor da Faculdade
Magdalene, da Universidade de Cambridge), principalmente sobre
questões relacionadas à educação de um dos filhos do thakur.
Sob o Império Britânico, Limbdi foi classificado como um “Estado
principesco” —um privilégio protocolar pelo qual seu regente seria
formalmente recepcionado por uma salva de tiros; o número de tiros
refletia o grau de prestígio dado ao regente de um Estado
principesco. A salva de 21 tiros era a saudação mais alta concedida
a um regente local. O thakur de Limbdi recebia uma salva de 9 tiros.
Sri Daulat Singh era considerado um regente e administrador capaz,
particularmente quanto à educação e à agricultura, e recebeu os
títulos de Cavaleiro Comandante da Ordem do Império Indiano e de
Cavaleiro Comandante da Ordem da Estrela da Índia. Ele
representou a Índia na inauguração do primeiro parlamento da
Commonwealth da Austrália em 1901, e sabe-se que ele foi um
grande apoiador dos britânicos na Grande Guerra, captando
recursos e incentivando seus súditos a entrar para as Forças
Armadas. Seu predecessor, Maharana Sri Sir Jaswantsinhji
Fatehsinhji Sahib (1859-1907), compareceu ao Jubileu de Ouro da
Rainha Vitória em Londres em 1887 e, mais tarde nesse mesmo ano,
fez uma visita aos Estados Unidos. Ele é particularmente notável por
ter influenciado Vivekananda e por tê-lo resgatado, segundo relatos,
quando caiu nas garras de “uma seita degenerada de adoradores do
sexo”. Lord Willingdon, o governador de Bombaim (atual Mumbai),
fez uma visita a Limbdi em 1916, no dia da inauguração formal da
Escola Lady Willingdon para Meninas, embora aparentemente a
instituição tenha sido fundada em 1859.
Elizabeth Sharpe publicou uma série de livros entre 1924 e 1939,
todos por editoras londrinas: Shri Krishna and the Bhagavad Gita
(Arthur H. Stockwell, 1924); The Flame of God: A Mystical
Autobiography (Rider & Co., 1929); Shiva: or, the Past of India
(Luzac & Co., 1930), que incluía traduções de trechos do Shiva
Sahasranama e do Ananda-Lahari; Thakore Sahib Shri Sir Daulat
Singh of Limbdi, Kathiawar (John Murray, 1931), a já mencionada
biografia; The Tantrik Doctrine of Immaculate Conception (Luzac &
Co., 1933); The Philosophy of Yoga: Containing the Mystery of Spirit
and the Way of Eternal Bliss (Luzac & Co., 1933); The India that is
India (Luzac & Co., 1934); The Secrets of the Kaula Circle: A Tale of
Fictitious People Faith Fully Recounting Strange Rites Still Practised
by this Cult (Luzac & Co., 1936), seu romance “semificcional”, que,
entre todos os seus livros, recebeu a maior atenção; An Eight-
Hundred Year Old Book of Indian Medicine and Formulas (Luzac &
Co., 1937); The Great Cremation Ground (Mahasmasana): A
Critical Dissertation on Indian Philosophy (Luzac & Co., 1938); e
Indian Tales (Luzac & Co., 1939), que inclui sua tradução da
biografia de um monge jainista do século XVI.
Ela também escreveu o prefácio de At the Feet of God (1928), de
Swami Ramdas. Até o momento, só consegui adquirir dois livros de
Sharpe: The India that is India e The Secrets of the Kaula Circle.

The India that is India

The India that is India é uma coletânea de ensaios, dos quais a


maior parte havia sido publicada originalmente na India Illustrated
Weekly ou na revista novaiorquina World. O prefácio de Sharpe
relata que
esses artigos foram escritos sobre a Índia e os indianos para evitar que europeus
aplicassem seus próprios padrões de julgamento para resolver problemas que em
essência concernem somente aos povos orientais. O que o próprio mundo ocidental
entende sobre dada questão não é o melhor critério para um julgamento equilibrado.

Muitos dos ensaios do livro refletem o forte interesse de Sharpe


pela vida das mulheres, desde suas descrições da vida das
princesas indianas, das mulheres das zenanas, dos costumes
matrimoniais, até um capítulo sobre “A educação de meninas”.
Também há um ensaio sobre os jainistas e dois capítulos que
discutem faquires e sadhus. Sharpe explica que existem sadhus
bons e maus; que alguns são solitários e vivem vidas simples,
enquanto outros se tornam “bem mundanos” e atuam como se
fossem juízes e advogados. Alguns sadhus, segundo ela, são
simplesmente criminosos disfarçados, e existem aqueles que fazem
“práticas rigorosas repugnantes”. Ela relata um incidente em que 5
mil vairagis se revoltaram em um Kumbha Mela “porque estavam
frustrados com a distribuição de alimentos”. Em seguida ela discute
brevemente diversos tipos de sadhus —por exemplo, os nagas, ou
nagars, que andam com espadas e rifles. Depois, ela se debruça
sobre os ascetas do yoga, incluindo os kanphatas e seu fundador,
Gorakhnath, e os aghoris que, segundo ela, “são os mais temidos
entre os ascetas indianos”, e então descreve um encontro com um
deles.
No capítulo sobre “Religiões e feiras”, ela leva a discussão para os
“vamacharis (adoradores da mão esquerda) de Shiva e Shakti”. Na
opinião dela, “esses adoradores exotéricos contribuíram mais do que
qualquer outra seita indiana para que os tantras tivessem má
reputação”. Ela descreve brevemente o “suposto círculo kaula”, que
culmina com os casais se recolhendo a um quarto privado “onde o
homem [deve adorar] a mulher como ‘mãe’”. Ela diz que, por causa
de escândalos, essa forma de adoração agora “caiu em considerável
descrédito”. Ela cita uma carta de um devoto sri vidya que afirma que
um(a) sri vidya upasaka genuíno(a) [...] precisa ter sempre sua dama ou seu senhor por
perto. Só os realmente iniciados conhecem o uso do outro sexo nessas práticas, que,
embora margeiem o sexo, são na realidade totalmente devocionais, místicas e, acima de
tudo, sagradas. O mínimo traço de maldade ou de desejo sexual sensual transformaria
o(a) sadhaka em um monstro: aliás, existem muitos sadhakas por aí escondendo seu
sensualismo no labirinto de rituais e pujas.
Isso lembra um pouco o Kularnava tantram 5.112: “Quem
experimenta a Bem-aventurança que surge da união da Suprema
Shakti e de seu próprio Atma é o real conhecedor da Copulação. Os
outros são simples desfrutadores de mulheres”.[70]
O capítulo continua com uma discussão sobra a devoção a Krishna
e Radha, os vários templos e mathas dedicados a Krishna e as
várias seitas vaishnava de ascetas. Nessa parte, ela menciona
brevemente os sakhibhavas, que se vestem com roupas do sexo
oposto:
Certos sadhus, chamados sakhi-bavas, saem por aí usando roupas femininas, imitando
Radha, e louvam a Krishna vestidos assim. Eles esperam, engenhosamente, conquistar
as graças de Krishna mais rapidamente ao usar esse método, acreditando que Ele se
sentirá mais atraído por uma devoção vinda de alguém que tomou a forma de Sua amada.
[...] Existem cada vez menos deles; e eles não têm do público o respeito que já tiveram um
dia.

The secrets of the kaula circle

Passemos a The Secrets of the Kaula Circle, reeditado em 2012


pela Teiten Press com apresentação de David Templeman. A edição
traz em apêndice a tradução de um manuscrito de hatha yoga
chamado “The Science of Breath”.[71] Na introdução, Sharpe explica
Secrets da seguinte forma:
uma história de pessoas ficcionais em que muitas coisas são reveladas: há um relato fiel
das orgias praticadas, e a razão pela qual se preservou o xibolete utilizado é para que o
público leitor possa reconhecer os métodos usados para capturar a imaginação dos
incautos. [...] Este livro foi publicado para advertir tanto o mundo ocidental quanto o oriental
de que os caminhos puros de devoção que guardam o bom e o ideal são os melhores.
Ela continua com uma nota explicando que “os editores
consideraram aconselhável omitir certas partes do livro”, algo que
causa “certa desconexão” no texto, ela mesmo admite, mas também
não crê que comprometa a mensagem geral. Sharpe também
comenta que teve de lidar com “alguma atenção indesejável por
parte de sociedades ocultistas diversas” —supõe-se que por causa
de seus escritos anteriores.
É claro que não se sabe exatamente o que foi omitido do livro (a
não ser que o manuscrito original seja descoberto). David
Templeman comenta que “é difícil não especular que o material
excluído possa ter detalhado as atividades sexuais tântricas e a
rodada de oferendas e oblações que sabemos que ocorria nesses
encontros”. Como ele indica, essas omissões não eram incomuns,
especificamente de pontos que os editores temiam que pudessem
resultar em processos sob a Lei de Publicações Obscenas.

Rituais estranhos

Sem querer dar muitos spoilers, a trama de The Secrets of the


Kaula Circle gira em torno de uma mulher chamada Mary de la Mont,
que cai na influência de um “lama [...] um homem de poder sobre-
humano”, com quem ela se casa. Mary relata suas aventuras com o
lama e revela algumas das práticas yóguicas com as quais se
envolveu, além de experiências de vidas passadas. O primeiro
capítulo relata um ritual tirado “de um livro antigo”:
Uma menina jovem e bela foi levada a um altar diante do qual havia um sarcófago em que
repousava um homem muito velho, que se acreditava ter alguns milhares de anos.
A menina se aproximou do homem reclinado e colocou os mamilos de seus seios,
primeiro um depois o outro, na boca dele. A criatura cadavérica, cujos lábios mumificados
não eram capazes, inicialmente, de segurar os firmes mamilos, de repente começaram a
sugar com voracidade e logo rejuvenesceram.
Ele então tentou segurar a frágil menina nos braços; mas ela se esquivou e se pôs a
flutuar acima de um agrupamento de devotos, que entoava.
Finalmente voltando ao solo, ela deixou que ele bebesse de seu corpo de novo.

A descrição da “orgia” do círculo kaula vem no sexto capítulo:


O círculo “kaula” é o círculo de pessoas devotas do caminho da mão esquerda, de cujo
segredo pessoa alguma, a não ser as participantes, jamais soube até agora.
Nesse círculo, a mulher é a “mãe” —mas todos os desejos dela são realizados: essa é
a promessa.
Poucas mulheres passam pela provação puras, imaculadas: pois acredita-se que o
marido nasce da mãe, e a mãe e a esposa são termos intercambiáveis no círculo.
[...] Um homem após o outro, uma mulher após a outra, passaram por mim, cantando,
cambaleando, totalmente bêbados.
Depois, todas seriam forçadas a beber as quarenta e duas garrafas de vinho prescritas
pelas regras da cerimônia: comam, bebam e regozijem-se e morram: pois sua ruína —
pobres idiotas— já se anunciava.
[...] Ainda me lembro do pátio interno: homens e mulheres totalmente nus que, de
quando em quando, aos berros horripilantes, pulavam balançando a cabeça para frente e
para trás, as mulheres com os cabelos soltos caindo desordenados por cima de seus
seios arfantes e balouçantes.
Uma voz então berrava com o mais profundo desdém o sonoro verso tântrico em
sânscrito: “Que seus desejos sejam realizados”.
E começava uma perfeita orgia de bestialidade.

Essa descrição requer uma análise. Ela guarda alguma


semelhança com as descrições populares de orgias tântricas do
século XIX, tais como as de William Ward, ou com o relato feito pelo
francês Abbé Dubois a respeito de um Shakti-puja:

Entre os mistérios abomináveis correntes na Índia, existe um que é conhecido até demais:
a prática chamada shakti-puja [...]. A celebração desses mistérios, invariavelmente
desagradáveis no que diz respeito ao conteúdo, pode variar às vezes em termos de forma.
Em certos casos, os objetos imediatos do sacrifício a Shakti são um recipiente grande
cheio de bebida alcóolica local e uma menina que chegou à puberdade. Esta última,
totalmente nua, fica parada na mais indecente pose. Eles então invocam a deusa Shakti,
que presumem aceitar seu convite ao simultaneamente se assentar no recipiente de álcool
e naquela parte da anatomia da menina que a modéstia me proíbe de nomear. [...]
brahmans, sudras, párias, homens e mulheres se embebedam com o álcool consagrado a
Shakti, que eles bebem do mesmo recipiente, levando-o aos lábios [...]. Os homens e as
mulheres então se jogam na comida, sorvendo tudo com avidez. Um mesmo naco de
comida passa de boca em boca e é mastigado sucessivamente até ser consumido
completamente [...]. Nesse caso, as pessoas estão convencidas de que não são de forma
alguma maculadas por comer e beber de maneira tão revoltante. Quando enfim estão
totalmente intoxicados, homens e mulheres se misturam livremente e passam o resto da
noite juntos [...].[72]

Esses relatos de orgias “tântricas” eram bem comuns durante todo


o período colonial. O que há de particularmente interessante no
relato de Sharpe é a ênfase que ela dá à ebriedade (assim como
Dubois). Pode ser, é claro, que essa passagem originalmente
contivesse detalhes dos ritos sexuais —como sugere Templeman—
que foram removidos pelos editores.
No entanto, eu chamaria a atenção ao trabalho recente de Annette
Wilke sobre textos kaula, particularmente seu ensaio “Negotiating
Tantra and Veda in the Paraśurāma-Kalpa Tradition”, em que ela
afirma que

isolar os ritos sexuais do todo integrado que é o pancamakara pode ser um viés ocidental.
Seja como for, não é por acaso que presumivelmente se chama o álcool de “o primeiro”.
Ele é na verdade a substância ritual mais importante do PKS [Parasurama-Kalpasutra] e
também do KT [Kularṇava-Tantra]. O KT 5.77 equipara o álcool ao deus Bhairava e à
deusa, isto é, à revelação-de-si desses deuses. Beber em excesso era aparentemente
uma forma de transe de possessão. [...] Ao isolar os ritos sexuais, portanto, se colocou
ênfase demais neles. Aliás, também se encontra na tradição doxológica um foco maior no
álcool do que na relação sexual.[73]

É no Kularnava-Tantra, é claro, que podemos encontrar um dos


conjuntos de versos mais conhecidos sobre esses rituais:
67. Intoxicadas de paixão, as mulheres se abrigam com outros homens, tratando-os como
seus. Cada homem também pega uma nova mulher e a trata como sua, quando no estado
de alegria extática avançada.
68. Tomados pelo delírio, os homens abraçam outros homens [...]
71. Ó Shambhavi! Os yogues pegam comida uns dos pratos dos outros e dançam com
seus copos na cabeça [...]
73. As mulheres que não estão de posse dos sentidos normais batem palmas e cantam
canções com letras confusas, e cambaleiam enquanto dançam.
74. Yogues que estão intoxicados pelo álcool se jogam nas mulheres, e as yoguinis
intoxicadas se jogam nos homens, ó Kulanayika! São induzidos a tais ações para realizar
seus desejos mútuos.
75. Quando esse estado de êxtase não é acompanhado de pensamentos corruptos, o
garanhão entre os yogues atinge o estado de divindade (devata-bhava).

Também é interessante o fato de Sharpe atribuir à Mongólia a


origem da devoção kaula, e de a ação do romance se passar no
Tibete, não na Índia. Isso, à primeira vista, parece peculiar, mas
dada a crescente antipatia pelo kaula e pelas práticas tântricas no
período tardio da Índia Colonial, isso pode ser visto como uma forma
de distanciar (geograficamente) da cultura indiana predominante as
práticas degeneradas do círculo kaula —uma preocupação com a
qual Sharpe demonstra, em seus outros escritos, estar
profundamente comprometida. David Templeman, em sua introdução
à reimpressão lançada pela Teitan, aponta que Vivekananda também
dizia que a origem dos “males” do tantra era o Tibete.
Junto ao lama-guru de Mary de la Mont —e à misteriosa figura
identificada pelos números “666” (adivinhe quem)—, o romance nos
apresenta o Marajá de X, sobre o qual o narrador diz:
Essa estranha mistura de dr. Jekyll e sr. Hyde foi, em certa época, o principal assunto das
conversas de mais da metade da população da Índia, tão extraordinárias e variadas eram
as excentricidades dele; e também, em contrapartida, tão perfeitas e cultas eram suas
posturas sobre a vida, inspiradas em provérbios irrepreensíveis.

É possível que essa tenha sido uma referência indireta ao “Marajá”


do escândalo Vallabhacharya de 1862, que foi muito comentado
tanto na Índia quanto na Europa.[74]
É difícil dizer qual foi a influência de The Secrets of the Kaula
Circle. O livro parece ter recebido críticas favoráveis na época da
publicação, e até hoje costuma ser citado como referência em obras
populares sobre sexo tântrico. Um livro muito inspirado nele é Tantra:
The Yoga of Sex, de Omar Garrison, uma obra importante para a
deturpada narrativa criada pelo imaginário ocidental sobre o tantra.
Até onde sei, houve pouco interesse acadêmico em Elizabeth
Sharpe. Hugh Urban discute seu trabalho brevemente,[75] fazendo
referência a The Secrets of the Kaula Circle. Ao comentar o trabalho
de escritoras românticas do período colonial tardio, Urban apresenta
o livro como “uma das descrições mais vívidas dos rituais
depravados dos tantras”.[76] Espera-se que a reimpressão de Secrets
pela Teitan traga mais atenção a essa mulher fascinante, sua vida e
seus escritos.
PARTE VI
FICÇÕES
INTRODUÇÃO

Sobre ficção e humor

S
empre fui fascinado pela capacidade das narrativas mágicas de
tornarem indistintos o aparentemente factual e o fantástico e,
com isso, criarem um espaço que dá asas à nossa imaginação.
A ficção também ajuda a inserir o público leitor em uma situação ou
um local. Quando comecei a me interessar por magia, me pareceu
totalmente natural recorrer a elementos das histórias de ficção que
eu lia na época. Quando descobri as narrativas de terror de H. P.
Lovecraft, eu morava em uma vila nas proximidades de uma
cordilheira e logo percebi que aquelas imagens de uma paisagem
assombrada e viva poderiam facilmente ser transpostas da Nova
Inglaterra para as áreas silvestres da região oeste de Yorkshire. As
imagens medonhas que Lovecraft criou de cidades apinhadas que
eram lar tanto de terrores taciturnos quanto de delícias ocultas
poderiam reverberar em Huddersfield —a primeira vez que morei em
uma cidade com quilômetros de armazéns e fábricas vazios,
testemunhas silenciosas de um passado industrial perdido.
Sentindo certa afinidade com o típico outsider lovecraftiano em
busca de segredos e juntando pistas desconexas, descobri novas
experiências e liberdades nas circunstâncias mais improváveis ou não
intencionais. O que também me atraiu em Lovecraft foi que a
mitologia criada em torno de seus contos era fragmentária e
inacabada. Não era algo que eu achava que pudesse ser
sistematizado ou enfiado na Árvore da Vida cabalística —apesar de
já terem tentado! Em vez disso, essa mitologia foi para mim um
trampolim, um ponto de partida que poderia levar a algo novo.
Ao ler as obras de ficção de Lovecraft, Dion Fortune ou Lord
Dunsany —favoritas desde sempre—, vim a desenvolver uma noção
de magia enquanto jornada, um desdobrar-se em direção a espaços
mais amplos e a uma visão expansiva. Ouvir o audiolivro de The
Beggars, de Lord Dunsany, enquanto caminho por Londres, desperta
em mim uma percepção animista —segredos imemoriais da cidade
se desdobram à minha frente enquanto olho em volta com uma nova
perspectiva. A ficção nos abre para novas possibilidades.
Ao mesmo tempo, ler ficção e trazer temas ficcionais para minha
prática ocultista me levou a perceber a importância do envolvimento
emocional na magia. É isto que dá vida tanto à ficção quanto à
magia: a capacidade de se deixar envolver com algo, temer pela
vítima da série de televisão ou chorar com um filme meloso. Os
fóruns de internet e grupos de Facebook voltados para o ocultismo
estão cheios de discussões sobre a —efetividade e legitimidade—
dessa ou daquela tradição ou abordagem. É claro que a resposta
soberana nesses debates é que “funciona” —um padrão de
qualidade segundo o qual se pode validar qualquer coisa. Mas, no
que diz respeito à magia, qualquer coisa pode funcionar desde que
você tenha feito uma conexão emocional. Seja uma prática com
bagagem histórica, seja algo improvisado numa mesa de bar e
depois envernizado com um linguajar floreado ou marketing, pode-se
dizer que ambos funcionam. Desde que, é claro, alguém tenha uma
reação emocional à coisa, que seja algo que reverbera no interior da
pessoa, algo em que ela possa se encontrar. Faz sentido.
Quase não importa se uma tradição tem base histórica ou não.
Passei cerca de uma década fazendo práticas tântricas que tinham
pouca semelhança com as tradições tais como são descritas em
fontes textuais primárias, mas isso não significou que os rituais ou
práticas não fossem pessoalmente eficazes para mim só porque se
baseavam no imaginário ocidental do tantra em vez de na “coisa em
si”. Se o que eu estava fazendo não tivesse funcionado, eu não teria
continuado a fazer, e foi o ânimo que fui ganhando com isso que me
levou a tentar compreender o material tradicional.
Escrever ficção pode ser uma forma de se revelar ao público
leitor, dar um espaço para a intrusão do diálogo interior, a reflexão
sobre si mesmo e —talvez o mais importante para mim— o senso de
humor. A ficção ou a sátira podem ser uma via útil para tirar sarro de
pretensões ocultistas, especialmente se isso implica admitir as
próprias pretensões. Acredito que a maioria das minhas tentativas de
fazer ficção se baseia no desejo de enfraquecer minhas próprias
fantasias de ser um praticante de magia poderoso. É fácil demais
cair nas garras dessa projeção de si próprio como uma pessoa
poderosa, com acesso a segredos e destacada do resto da
humanidade. Quando comecei a escrever ficção e humor ocultista no
final dos anos 1980, estava me tornando cada vez mais consciente
das armadilhas dessas fantasias e, na contramão delas, quis
explorar as vulnerabilidades e fraquezas da figura do magista. Desse
modo, três dos quatro textos de ficção selecionados para esta seção
trazem um tipo de narrador: o que se esconde de sua própria
conjuração em um armário na despensa, o que tem medo de
vespas[77] (e de hippies), e o que demonstra extremo nervosismo ao
entrar em um bar gay.
A sátira e outros tipos de humor têm seu lugar também nos textos
de ocultismo, e muitas vezes me parece que a sátira,
particularmente, é subestimada como modo de expressão. Tirar um
sarro gentil de teorias e modas ocultistas pode ser um incentivo à
reflexão crítica e um desafio ao status quo tanto quanto qualquer
texto bem embasado e argumentado, e acredito que, de certa forma,
seja mais efetivo. Se quero criticar uma ideia ou perspectiva, pode
ser bem útil usar do humor para trazer as pessoas para o meu lado,
segundo minha experiência. A gargalhada pode construir pontes
entre opiniões, crenças e diferentes status. Rir dessas ideias e com
essas ideias que tomamos por sagradas é em si um ato de magia.
PLAYMATES

Esta foi minha primeira tentativa de escrever ficção de magia. O texto foi
escrito em 1989, enviado a um fanzine de ficção paganista e rejeitado
imediatamente pelo editor por causa da temática “sexual”. Ele saiu na
edição de março/abril de 1990 da Pagan News.

E
stou seguro aqui, acho. Deus, meu coração está a mil! E se ela
ouvir? Preciso me controlar... respirar fundo... pranayama...
isso... agora, sim!
Quase consigo ver pela fresta. É só um feixe de luz, mas talvez eu
consiga ver a sombra dela... Ah! Ela não deve ter sombra. Droga!
De repente se eu abrir a porta só um milímetro... melhor não... se
ela me encontrar, aí... Que cheiro é esse? Cera de sapato? Brasso?
Aqui deve ser o armário da limpeza. Talvez isso a afaste. O que será
que ela vai fazer se não me encontrar? Descontar em algum pobre
coitado? Não. Ela não consegue sair da casa. Essa é a regra, né?
Não poderem sair do lugar para onde foram chamados. Talvez ela
fique entediada e vá embora. Talvez desapareça. Talvez... se eu me
lembrasse de como faz o banimento, daria para fazer daqui mesmo.
O ritual de banimento do armário da limpeza... seria cômico se não
fosse tão patético.
Poderia esperar o Andrew voltar. Ele daria um jeito nela. Mas não,
eu nunca mais conseguiria olhar na cara dele. Seria como ser pego
batendo punheta. E acho que é mesmo, de certa forma. Ele sairia
contando por aí, e em cinco minutos todo mundo já estaria sabendo.
Consigo até imaginar o Brian com aquela pose de gostosão e uma
risadinha estampada no rosto. A maior piada... eu.
Isso foi um estalo? Será que ela está vindo aqui para baixo? Se
bem que ela poderia só se teletransportar ou se projetar para
qualquer lugar —ela não precisa ir andando. Calma lá, o livro não
dizia que o sexo faz com que ganhem alguma solidez —uma certa
personalidade individual? Faz sentido, então, ela estar tão animada.
Por um momento achei que minha cabeça tivesse se soltado. Deus
do céu, que fome! Eu devoraria um bife com fritas agora. E essa
noite era minha vez de cozinhar e tudo mais. Bosta!
Que aconchegante isso aqui. Só eu e o balde. Queria saber onde
ela está. Será que ectoplasma é fácil de limpar? Me engraçar com
demônios. Mamãe teria um troço. Pelo menos não dá para pegar
aids ou engravidar alguém ou sei lá. Ou será que dá? Talvez ela
esteja neste momento parindo um monte de monstrinhos cor-de-rosa
cheios de tentáculos. Vou sair por aí com uma horda de elementais
choramingando e golfando pelos cantos. Bom, não deixa de ser um
jeito de conseguir um familiar.
Deus do céu, estou esfolado. Ela me chupou até o talo. A pior
coisa foi a gargalhada. Era meio que uma brincadeira no começo,
mas eu não achei que fosse ser tão desafiador. Não dei conta da
coisa. Ou dela. Que grande adepto, hein? Aposto que titio Aleister
nunca teve de se esconder das próprias conjurações. Ele jamais se
esconderia no armário se tivesse uma demônia descontrolada lá em
cima com uma vontade infernal de transar a qualquer custo. Mas
também ele não teria brochado depois de meia hora. É isso, chega...
já deu de caminho da mão esquerda. Daqui para frente só Gareth
Knight e os seus branquíssimos rosacruzes. Ou talvez eu vire
evangélico. Até onde sei eles nem sequer fazem sexo.
Que escuro aqui. Onde será que ela está? Eu consigo até imaginá-
la —ela tem uma certa luminosidade, olhos verdes, cabelos
vermelhos. Uma vampira típica. Bem sedutora... quem sabe eu
consiga convencê-la a me deixar descansar um pouco... recuperar as
forças... hummm... ela é realmente bem gata... se eu conseguisse
pelo menos...
Aaaaaaaah!
— A-ha, te achei! Vem brincar, vem...
COM AS DUAS MÃOS

Este texto foi escrito em 1991 e publicado na 3ª edição de Both the Ones,
revista do TOPY. Este é meu texto de ficção mais autobiográfico, pois, na
época em que o escrevi, eu morava no bairro de Headingley, onde se
passa essa história. Eu morava num apartamento de subsolo, e mergulhei
um tempo num estado meio deprimente e solitário que, no conto, é
causado por um feitiço. O personagem Jeff é um híbrido de algumas
pessoas que conheci na cena de magia de Leeds, e muitos dos lugares
mencionados são reais.

J
eff era um ex-cientologista, um xamã questionável —nenhuma
grande novidade. Ele se mostrava ao mundo como um andarilho,
todo alegre e envolvido em sua nuvem de termos técnicos e uma
salada mista de metáforas. Jeff queria ser visto como um homem do
saber, sempre aludindo a segredos, digressões conspiratórias e
lançando olhares contemplativos à sua coleção de livros de
ocultismo. Munia-se de segredos sobre si mesmo como se estivesse
se envolvendo em um manto, costurando-os nas próprias roupas.
Mas às vezes o manto parecia pesar como um fardo que o fazia se
arrastar, atrelado aos espectros de um horror indefinido e distante
que o perseguiam.
Quando veio a primeira onda da Era de Aquário, Jeff procurou
pelos mestres, tanto os mortos como os vivos. Krishnamurti,
Gurdjieff, Alice Bailey. Lançou-se à sorte de estar com todos, desde
um encontro com Aleister Crowley no plano astral até se sentar ao
lado de Kenneth Grant no metrô. Até que um dia, já velho de guerra
com toda aquela sabedoria acumulada, acabou se aventurando na
Mansão de East Grinstead, terra da cientologia, e lá foi solenemente
ignorado à espera de um acontecimento qualquer. E dali, depois de
atravessar anos tortuosos, acabou em Leeds Six. Um rato de porão;
testemunha silenciosa dos sonhos dos anos 1960.
Conheci Jeff numa festa, onde fui parar quase como penetra por
meio daquele amigo do amigo do amigo. Nada de interessante
estava acontecendo e, com preguiça de entrar em alguma conversa
entre os grupinhos fechados, fui para a cozinha. Alguém —Jeff— me
seguiu, atraído feito ímã pelo pentagrama pendurado no meu
pescoço. Observei um sorriso amistoso despontando em seu rosto e
ensaiei mentalmente as possíveis saudações, revisitando minhas
reações costumeiras. Será que vai me oferecer drogas? Valeria a
pena trocar ideia nesse caso. Ou teria algo a ver com religião? Já
fazia um tempo que eu não alimentava meu cinismo cultivado com
tanto carinho. Seria bem diferente se ele fosse cristão ou estudante
de sociologia. Sexo? Disso eu duvidei. Mas naquele momento, já
meio anuviado pelo álcool e estimulado por uma solidão persistente...
bem, a gente sabe como é.
No fim, não era nada disso.
“Então você curte magia?”
Fiz que sim, com um ar gracioso.
“E manda bem?”
Dei de ombros, dando a entender ao mesmo tempo que não
levava essas coisas a sério demais, que não me preocupava em ser
bom... mas que sim, achava que mandava bem.
Jeff me examinou por um tempo e pegou uma caderneta. Arrancou
uma página e colocou no bolso da minha jaqueta.
“Melhor que seja bom mesmo, porque vou te matar.”
Com isso, girou sobre os calcanhares e sumiu de vista.
Fiquei surpreso com a rapidez do diálogo, e um tanto perplexo.
Balancei a cabeça e continuei rumo à cozinha. Para esquecer o
encontro, bebi uma lata quase intocada de cerveja que encontrei
para ver se me livrava dos rápidos calafrios de medo que senti.
“Ele só está doido de ácido”, pensei, no momento exato em que
senti olhos percorrendo minhas costas. Deliberadamente, me virei
como um boneco de filme de terror, acreditando que veria “o cara
doido de ácido”. Em vez dele, me deparei com o brilho de olhos
delineados, um cabelo preto espetado e uma língua cor-de-rosa
deslizando sobre os lábios roxos para umedecê-los. Fui tomado por
uma onda de autoconfiança e, de olhos bem abertos, dei um passo à
frente e cheguei junto.
◆ ◆ ◆

Estou perdido. Confuso, sem saber o que está acontecendo. Tem


uma barreira invisível à minha frente. Estou... preso. O ar está
abafado e pesado. Não adianta, por mais que eu tente, não consigo
sair. Estou preso. Vejo uma luz adiante, mas é forte demais. Formas
imensas e ameaçadoras se avultam ao longe. É como estar do outro
lado de um muro, mas é liso demais. Por mais que eu tente, não
consigo me agarrar a nada; no fim, acabo só escorregando de volta
ao chão.
Uma sensação horrível nos dentes. Minha garganta está muito
seca, e persiste na boca um gosto de madeira mascada. O zumbido
na minha cabeça está tão forte que parecem milhares de
motosserras furiosas sendo ligadas e desligadas. Do outro lado da
barreira, uma forma imensa se inclina na minha direção. Talvez um
deus chegando para arrancar minhas asas? Ouço um estrondo
abafado do outro lado da barreira. É assim que soa a gargalhada
dos deuses? Não consigo sair, não consigo escapar. Preso como
uma vespa num pote. Quando tinha oito anos, prendi uma vespa num
pote. Ela fugiu e me picou, e desde então não posso nem ver uma
vespa. Tento escavar a barreira, mas minhas garras deslizam em vão
pelo vidro. Ao perceber uma imagem tremeluzir à minha frente, olho
de perto para tentar ver meu próprio reflexo. A ficha cai como um
chute na virilha. Eu sou uma vespa. EU SOU UMA VESPA
SOUUMAVESPA SOUUMAVESPANOPOTE AI MEU DEUS EU
ODEIO VESPAS SOU UMA VESPA ODEIO TODAS ODEIO TODAS
EU QUERO SAIR SOU UMA
VESPAVESPVESSSSPVEZSZSZPZPZPZPZZPZZPZZPzzzz...
E acordo num pulo, suando, tremendo, balbuciando, aterrorizado.
Meu deus, que alívio! É bom demais estar acordado. E aí o medo
volta. Aguço os ouvidos esperando o zumbido que vai anunciar a
presença do demônio do meu pesadelo. Talvez estivesse se enfiando
na minha orelha enquanto eu dormia —não, afaste esse pensamento.
Fico esperando, mas o zumbido não vem; nada roça a cortina,
nenhuma silhueta dentro da luminária. Nada.
O pesadelo estragou meu dia, então nem saí de casa. Não tinha
por quê. Não havia nada no correio, não era meu dia de bater ponto,
nenhuma visita urgente a fazer. Fiquei na cama lendo e devaneando.
Ninguém apareceu. Meu quarto ficava no subsolo, então não me
senti invadido pelo mundo. Por um minuto, pensei em ir ao pub, mas
precisava de energia e, francamente, eu não tinha nenhuma.
Naquela noite, quase senti medo de dormir. Tinha certeza de que,
quando acordasse, encontraria um monstro de listras amarelas e
pretas pousado sobre o meu travesseiro.
O dia seguinte nasceu ensolarado em Headingley, e os raios que
entraram no meu quarto pareciam dissipar o medo que pairava no ar.
Ele recuou para os recônditos da minha mente e se enfiou entre
boletos ignorados e extratos bancários. O que não veem os olhos,
não sente o coração. Ou, pelo menos, é convenientemente
esquecido.
A primavera deu lugar ao verão aos trancos e barrancos. No geral,
não dei nenhuma importância às bonanças da natureza. De vez em
quando até andava pelos parques e áreas verdes, mas nunca me
sentia motivado a sair da cidade para visitar as charnecas e os rios
das redondezas. Convites para um festival de Beltane foram
ignorados. Em vez disso, fui para o pub do Royal Park, enchi a cara
e passei um tempo com amigos. Mas não consegui participar das
conversas. Me sentia tão distante. Uma parte de mim ainda estava
presa no pote. Ou talvez eu quisesse que as coisas fossem assim.
Fiquei em casa lendo um livro. Um mesmo livro. Lia e relia. De vez
em quando, a campainha tocava e eu gelava, o coração acelerado, e
não mexia um dedo até a pessoa ir embora. Uma vez a cada duas
semanas, eu vestia um casaco e descia até a cidade para bater o
ponto, acenando com a cabeça para as pessoas —rostos que eu
mal reconhecia, cujos nomes se apagaram da minha memória havia
muito tempo. O centro de Leeds se assomava opressivo à minha
volta, e era sempre um alívio voltar para o meu quarto. Felizmente,
as lojas locais supriam todas as minhas necessidades, então eu mal
precisava sair do bairro.
O quarto se tornou o centro do meu universo. O eixo sobre o qual
girava a roda da vida. Eu estava me tornando invisível —ou, mais
precisamente, desbotado. Os mundos da magia perderam o
mistério, e meus livros de ocultismo acumulavam poeira na estante.
Evitando meticulosamente as pessoas, eu não sentia mais o peso
das necessidades de manter uma fachada social. Ignorava banhos,
cuidado com os dentes, cabelos e alimentação. Agora eu conhecia
bem os méritos de cada samosa indiana do distrito. Torradas com
creme substituíam as refeições caseiras. E eu trepava com todo
mundo que já quis pegar, sozinho toda noite em minha cama.
◆ ◆ ◆

A mudança veio sem aviso prévio. Três ou quatro vezes por semana,
comecei a caminhar até a conveniência do posto 24 horas para um
lanchinho às três da manhã: sanduíches, chocolate e suco. Eu
gostava dessas caminhadas noturnas porque havia menos gente na
rua, o que me permitia sentir uma vaga nostalgia pela companhia dos
outros. Eu deslizava pelas ruas me esquivando de qualquer presença
iminente, mas atraído pelas luzes e cortinas fechadas. Para falar a
verdade, estava começando a apreciar essa posição de forasteiro.
Ou de fantasma.
Numa noite em particular, esperando meu pedido ficar pronto, senti
uma presença atrás de mim. Alguém na fila, provavelmente. Olhos na
minha nuca —talvez um antigo amigo, mas obviamente eu não ia ser
o primeiro a agir. Peguei a sacolinha com minhas besteiras e me virei
para ir embora. Uma mão agarrou meu braço.
“Pensei que você tivesse dito que era bom.”
Me virei para identificar o dono daquela voz. Um típico hippie de
Headingley —definitivamente não me parecia ninguém conhecido.
“Você sabe que eu estou te matando, né? Você está preso na
minha teia.”
“Como assim, você... não entendi...”
Até que, claro, me dei conta.
“Meu nome é Jeff”, disse o hippie. “Nos conhecemos naquela festa
no Ruffle. Não lembra?”
“S-sim. Eu acho. Eu estava bem bêbado aquele dia. Por que
você... está fazendo isso comigo?”
“Você não sabe? Você não é o bonzão da magia?”
“Você me aprisionou, é isso? Agora entendo por que não gosto de
sair dessa área. Tudo... meus pensamentos... está tudo embaçado.
Que horas são?”
Ele riu.
“Você tem sorte de saber que dia é hoje.”
“Vai parar com isso agora?”
“Por que pararia? É bem simples, senhor suposto magista. Ou
você morre, ou você luta pela vida. Você que sabe. Vou ficar
esperando.”
Fiquei petrificado. Não consegui me mexer até ele sumir no breu
da noite. Só então meus pés se libertaram, e corri para casa como
se todos os demônios do inferno estivessem me perseguindo. Na
direção oposta a Jeff.
◆ ◆ ◆

De volta em casa, olhei ao redor, mas olhei de verdade, para o


chiqueiro onde estava vivendo. Vi a poeira, as pilhas de revistas, a
lixeira transbordando e os pratos fedendo na pia. E o edredom
cinza... não era branco? Passei os olhos pelas prateleiras e achei
uns vidrinhos de óleos essenciais. As etiquetas estavam apagadas,
mas o conteúdo foi para uma banheira de água quente mesmo
assim. E eu fui junto. Depois de ficar de molho por um bom tempo
(eu havia começado a evitar a água), saí, encontrei as últimas peças
de roupa limpa e comecei uma mais que necessária faxina geral.
Reorganizei as pilhas de revistas em quadrinhos que haviam se
acumulado no chão. Entre elas encontrei umas revistas de
sacanagem que joguei discretamente, não sem culpa, na lixeira do
vizinho. E mãos à obra.
Vasculhando umas caixas, encontrei velas, incenso, toalha de altar
e outras quinquilharias mágicas. Os discos de carvão estavam
úmidos, então dei uma limpada rápida no meu difusor e inundei o
quarto com aroma de óleo de alecrim —“ele faz banimento onde os
outros incensos não alcançam”. Uma defesa ingênua, eu sei, mas
pelo menos eu começava a voltar, sorridente, para o que lembrava
um pouco meu estado de normalidade. Fiz um banimento com tanta
convicção que meu corpo inteiro ficou tenso enquanto eu rasgava o
ar com pentagramas furiosos, sibilando as palavras entredentes,
inundando o éter com a brancura estonteante de Kether. Agora, sim.
Eu estava vivo de novo, e ia fazer o possível e o impossível para
garantir que continuaria assim.
Jeff estava tentando me manter confinado, longe das pessoas,
então eu fui justamente atrás delas. Caminhei até Woodhouse, que
ficava a poucas quadras da minha casa, mas me senti quase como
um explorador desbravando a selva pela primeira vez. Criei coragem
e me arrastei até a casa de antigos amigos. Fui recebido com afeto
e carinho por pessoas que havia negligenciado por semanas a fio,
que fingi não ter visto na rua, que ignorei quando tocaram minha
campainha. Segundo me disseram, achavam —assim como muitas
outras pessoas— que eu tinha me isolado porque estava viciado em
heroína. Me alimentaram. Me deram sopa, pão, lentilha; mais que
isso, me deram vida. Sentindo o choque do meu estômago ao
receber tanta comida, me dei conta do que eu havia esquecido... do
que o feitiço de Jeff (se é que era isso) tinha me feito esquecer: eu
também tinha fome de atenção e afeto. Conversei por horas, sem
acreditar que havia me deixado afastar desse calor radiante de uma
boa companhia. Fiquei até tarde e passei a noite ali, em vez de voltar
para casa.
E ao dormir, sonhei.
Eu caminhava pela praia —a arrebentação das ondas e o rumor
dos carros ao longe se misturavam nos meus ouvidos. Havia um píer
mais adiante... ao me aproximar das vigas cobertas de crustáceos,
uma figura surgiu, saindo da escuridão.
“Bom, pelo menos você está entrando em forma.” Era Jeff. “Mas
lembre-se de que não dá para se esconder para sempre. Se quer
jogar, tem que jogar para ganhar. Se não, vai morrer.”
“Por que você está fazendo...?”, mas ele já havia desaparecido.
De volta em casa, comecei a organizar as ideias. Indignado com
as páginas em branco no meu diário mágico, instaurei um rígido
regime de banimentos, meditações e yoga. Mas eu ainda não fazia a
menor ideia de por que esse tal Jeff estava tentando me matar. Será
que eu o havia insultado, ou rejeitado um flerte? Ele dizia que
havíamos nos conhecido na festa de aniversário no Ruffle, mas a
minha memória daquela noite era vaga, para dizer o mínimo. Só
conseguia desenterrar umas cenas desconexas, como se fosse um
filme caseiro mal editado. Eu me lembrava de ter transitado por uma
ou outra conversa, tomado uns drinks feitos sabe-se lá com o quê, e
por fim, debaixo da mesa da cozinha, de ter dado uns amassos em
alguém de gênero indeterminado. Eu não tinha sequer uma vaga
lembrança de Jeff. E aí me ocorreu que ele havia me dado uma dica.
Sonhos.
Jeff havia encontrado uma chave para a porta dos fundos da minha
mente e, com ela, podia passear pelos meus sonhos quando bem
quisesse. Quer eu lembrasse, quer não, lá estava ele, interferindo
nos meus pensamentos. Vê-lo fazer isso sem esforço aparente
inspirou em mim um respeito ressentido e certo ódio. Mas Jeff não
era o único capaz de fazer truques com sonhos.
Como eu não me lembrava conscientemente dele, tentei recuperar
a memória com magia. Bastou um sigilo. Depois de seis noites
balbuciando uma frase mágica, sonhei à vera com aquilo que
desejava. Sonhei com Jeff.
Voltei como observador à festa de aniversário no Bar Ruffle. Tudo
estava sépia, em câmera lenta e sem som. Vi a mim mesmo me
embrenhando pelas rodinhas de conversa até ser abordado por um
hippie esfarrapado —Jeff. De repente, eu flagrei o movimento e
mentalmente “pausei” meu videocassete onírico. Voltei a cena e vi
Jeff enfiar um papelzinho amassado no meu bolso. Sucesso!
Agora eu tinha mais uma pista. Comecei outra busca, dessa vez
pelas minhas roupas. Finalmente, consegui localizar a peça: uma
jaqueta jeans preta, ainda sem lavar. Dentro de um dos bolsos de
cima, achei uma pequena bolinha de papel amassada. Era uma
página de agenda telefônica com um endereço escrito em garrancho:
“Jeff Kirby, Terraço Brudenell, 221, Leeds Six”.
O endereço de Jeff.
Isso me dava algumas opções. Eu podia ir até lá confrontá-lo
diretamente; pedir para uma galera mal-encarada que eu conhecia
quebrar os braços dele; ou tentar um contra-ataque.
A única questão era: como? Eu sabia que algumas pessoas como
Crowley já lutaram em guerras mágicas contra legiões de demônios,
mas não fazia ideia de como isso poderia ser feito. Se eu fizesse
algo simples, Jeff provavelmente acabaria comigo só estalando os
dedos. Mas eu tinha que fazer alguma coisa de peso antes que o
feitiço dele corroesse minha determinação a resistir. Eu tinha que
fazer o inesperado. Mas precisava distraí-lo primeiro, o que acabou
sendo simples. Procurei alguém que conhecesse alguém que
morasse no mesmo prédio de Jeff e perguntei se aquele “hippie
esquisito” tinha emprego ou não. E ele não tinha. Provavelmente,
pensei, ele passa o tempo inteiro fazendo coisas esquisitas com
pessoas como eu. Bom, se ele quer mexer com a minha cabeça, eu
vou mexer com a dele.
Na semana seguinte, Jeff recebeu visitas da Receita Federal, da
polícia antidrogas, parou de receber seguro-desemprego e teve de
lidar com gente tocando sua campainha durante madrugadas inteiras.
Vitórias pequenas, mas juntas vão formando algo maior. Minha pièce
de résistance foi quando dei um jeito de entrar no prédio dele, já
tarde da noite, e amarrei um cordão entre a maçaneta da porta dele
e a escadaria.
Duas noites depois disso, Jeff entrou sorrateiramente em meus
sonhos de novo. Eu vinha praticando autodefesa e aprendendo a me
garantir, por assim dizer. No que ele apareceu, saí da posição de
sonhador passivo e virei um participante ativo. Apontando uma
varinha com ponteira de cristal para ele, tentei aniquilá-lo com o
poder destrutivo de Khamael. Funcionou, mas ele não teve a
decência de se dar por vencido.
“Nada mau, nada mau mesmo. Você se protegeu e está
aprendendo a mexer com armas. Aliás, se quiser sobreviver, vai ter
de usar uns truques sujos de vez em quando. É uma pena que não vá
adiantar nada.”
O sonho se interrompeu, e eu acordei num sobressalto. A varinha
que eu havia lixado, entalhado e consagrado com tanto cuidado
estava partida ao meio. Meu primeiro impulso foi pôr a culpa no fato
de que estaria muito próxima do fogão a gás, mas era coincidência
demais para ser só isso. As coisas estavam ficando sérias. Eu
estava lutando pela minha vida, e tinha a certeza nauseante de que,
se não lutasse, eu morreria ou acabaria em uma forma tão pífia de
vida que provavelmente seria pior que morrer. Até então eu havia
encarado a magia como um jogo psicológico. Já tinha sentido uns
baratos interessantes durante meditações e gostava de participar de
pathworkings e jornadas com tambor junto de outras pessoas nos
solstícios, mas nunca tinha me acontecido de alguém me mostrar tão
efetivamente que a magia era real o bastante para ameaçar a
continuidade da minha existência. Nada que eu havia lido ou ouvido
tinha me preparado para isso, então eu estava funcionando à base
de engenhosidade e intuição. Sabe o que mais? Em alguns
momentos, eu estava curtindo isso tudo.
◆ ◆ ◆

“Te peguei, maldito!”, pensei, abaixando uma câmera emprestada.


Uma foto tirada de longe de Jeff entrando pela porta da frente de
seu prédio. Uma foto e uma amostra da caligrafia dele; não era muita
coisa, mas talvez fosse o suficiente.
Comecei a analisar a situação e a me perguntar como eu viraria o
jogo. Jeff obviamente havia estabelecido um elo mágico comigo, um
corredor pelo qual ele conseguia alcançar minha mente. Imaginei que
talvez eu pudesse usar esse mesmo corredor. A caça se tornando o
caçador etc. Eu li o Livro da selva de Kipling, assisti ao filme A
companhia dos lobos e vi em meus devaneios a imagem de Jeff
correndo e correndo pelas ruas de Leeds. Tomado de desespero e
perseguido por lobos. No início, isso talvez não fosse muito mais do
que algo para levantar o meu moral. Impedia que o feitiço de Jeff se
infiltrasse de novo na minha cabeça. Brinquei com mais sigilos, até
que sonhei com a hora dos lobisomens. Os sonhos ficaram mais
fortes e, durante o dia, cachorros começaram a uivar quando eu
passava por eles. Eu tinha a sensação de que algo estava se
aproximando. Eu não sabia o que estava à espreita, mas sabia que
daria de cara com aquilo. Em duas ou quatro patas.
Aos poucos, fui ficando mais forte. Eu sabia que Jeff havia tentado
me confinar a um espaço limitado e minar minha força de vontade.
Eu sabia quais eram os limites. E eu os rompi, um por um. Passei
mais tempo na cidade, mas também fora dela. Visitei amigos e
convidei algumas pessoas para vir à minha casa. Flertei
descaradamente com as pessoas mais improváveis e, de forma
geral, banquei o bobo. Minha arrogância e presunção foram sumindo.
Em resumo, aprendi a ser humilde e, com o passar do tempo, a ser
humano. Comecei a me perguntar até que ponto o feitiço de Jeff já
estaria implantado na minha cabeça, só esperando uma oportunidade
para vir à tona. Será que ele havia me prendido numa teia de
mentiras que eu mesmo teria criado sobre mim? Passei os olhos
pelo apartamento: estava bagunçado, mas não irrecuperável. Eu
ainda não tinha meditado naquele dia, mas ainda dava tempo.
Resumindo, eu não tinha atingido o estado ideal ainda, mas pelo
menos estava me esforçando e sabia que ia chegar a algum lugar.
Esse devaneio foi interrompido por umas batidas na janela. Subi as
escadas e abri a porta da frente. E parei, pasmado. Era Jeff. Meus
pensamentos fervilharam por um momento —uma maldição, um
comentário sarcástico, uma explosão de energia psíquica. Eu podia
até mesmo pular para cima dele que ele cairia para trás rolando pela
escada...
“Quer sair para tomar uma?”
Ele sorriu e levantou as duas mãos, fazendo em gesto de paz.
Olhei para ele, os cabelos longos, a barba rala e o jeans boca de
sino surrado. De repente, ele perdeu o ar assustador. “Jesus”,
pensei, “andei morrendo de medo de um sujeito que usa boca de
sino!” E então:
“Claro, por que não?”
Saímos.
No segundo copo, ele disse:
“Considere-se iniciado.”
“Em quê?” —De repente, fiquei desconfiado de novo.
“Em si mesmo”, ele respondeu. “Você precisava de um empurrão
em direção à morte para começar a prestar atenção à vida. Você
brincava de fazer magia e brincava de estar vivo. Eu só tirei o que
você ainda não tinha aprendido a valorizar, e que ainda achava que
não faria falta na sua vida. Só isso.”
“E agora?”
“Agora é contigo. Vamos conversando. Não posso te ensinar, mas
a gente pode aprender um com o outro. Apareça qualquer hora.”
E apareci. Ele era capaz de ficar horas sentado desfiando histórias
sobre sonhos, drogas e dançarinas dakini. Ele sabia dizer se uma
cartela de ácido era boa ou não só de colocar um quadradinho na
ponta do dedo. Como eu disse no início, ele se rodeava de segredos
sobre si. Ele havia feito a jornada da morte em busca de sabedoria,
o que lhe deu um poder que ele alimentou com a credulidade de
outras pessoas. Ele sabia como fazer a coisa certa com a pessoa
certa na hora certa. Não é que ele soubesse qual seria o resultado,
mas sabia o que era necessário. Ele me mostrou a morte com uma
das mãos e me deu a vida com a outra. Através do Jeff, acabei
conhecendo várias outras pessoas. Mas nunca vou me esquecer da
primeira pessoa a quem ele me apresentou —a mim mesmo.
PROPAGANDA ASTRAL:
UMA AMEAÇA
OCULTISTA MODERNA?

Este texto foi publicado pela primeira vez no volume de janeiro/fevereiro de


1991 da Pagan News. Uma sátira de reportagens jornalísticas, o texto usa
alguns tipos de personagem e frases prontas que outros humoristas da
Pagan News usavam. Escrito muito antes de ideias como o consumismo
espiritual receberem atenção, o texto busca ridicularizar teorias ocultistas
populares.

A
comunidade ocultista está cada vez mais dividida por causa de
uma nova polêmica da magia moderna: as propagandas astrais.
Na recente transmissão de Yule para todas as rainhas bruxas,
magos e gurus, os Superiores Secretos deixaram de lado a habitual
mensagem de harmonia e paz mundial para pedir às lideranças de
todas as ordens mágicas que tomassem a iniciativa de reduzir o nível
de propaganda astral.
Um dos nossos repórteres entrevistou uma “vítima” recente de
correspondência astral abusiva, a alta sacerdotisa da Nova Igreja
Superior Ortodoxa Reformada da Wicca (filial de Wymeswold),
Marjorie Pedrosa.
“É um horror. Olha, na semana passada mesmo nós invocamos a
Deusa e, em vez de receber o conselho que queríamos para curar o
problema de joelho da Sharon, só vinha uma mensagem repetida
para assinar a ‘Gazeta Ocultista’ ou coisa do tipo. A coisa está
ficando tão ruim, que toda vez que eu medito me vêm uns jingles na
cabeça vendendo pacotes de férias dos Éons ou repelentes de
demônio que não ferem a camada de ozônio.”
No mês passado, uma reunião pública de ocultistas no Conway
Hall foi tomada pelo caos quando, logo após uma meditação guiada,
várias pessoas da assembleia reclamaram de ter visto 359 anjos
fazendo uma coreografia como propaganda de um tratado
cabalístico escrito por “Z’em Bang Hafesh Wang”. Visitantes de
Glastonbury também relataram ter sentido um “vazio” estranho ao
subir até o Tor, e a sensação só abrandava ao visitar a Adega Livre
de Orgônio e Bistrô Astral Orgânico de Russell Zonza. O problema
parece se agravar consideravelmente durante os festivais, nas luas
cheias e nos dias que antecedem o Yule.
Mas há ocultistas, sobretudo do setor de negócios, que apoiam
sem reservas a propaganda astral. Conversamos com Angel Dama-
da-Noite, do Centro New Age “Tenha um Ótimo Dia”, em Stow-on-
the-Wold:
“Bom, eu prefiro pensar que isso traz uma dimensão espiritual para
o consumismo. Todos os nossos cristais foram carregados com as
mensagens ‘me compre’ e ‘compre mais um’. Mas a verdade é que
novos cristais nunca são demais. Eu acho que aquele azulzinho ali no
canto gostou de você...”
Depois de um longo e árduo ritual (incluindo interrupções e
intervalos comerciais), conseguimos descobrir quem são os adeptos
do plano interior por trás de toda a iniciativa de propaganda astral no
Reino Unido, a obscura organização A...A... Ltda. Eles estavam em
horário de almoço, mas deixamos uma mensagem com o Guardião
do Limiar. Depois, em uma entrevista canalizada por meio dos
advogados, Shem, Ham & Phorasch, a A...A... disse:
“Isso é só o começo. Em seis meses, conseguimos treinar um bom
neófito para projetar uma imagem com trilha sonora e, graças ao
Efeito Borboleta, ela se mantém consistente no astral por meses. É
claro que, sempre que alguém acessa a propaganda, a energia
desse contato alimenta a forma-pensamento. Nossos primeiros
clientes foram um consórcio de caoistas com uma oferta especial:
‘experimente nossa caosfera no astral por noventa dias antes de
comprar’. E depois a OTTO nos contratou para projetar uma
propaganda de Crowley recomendando um de seus próprios livros.
Qualquer pessoa que faça a Missa Gnóstica nos próximos meses
poderá acessá-la. Essa é a beleza da coisa —além de ser barata,
você também pode atingir um público específico. E não são só
ocultistas que estão aproveitando nossos serviços. Uma importante
fábrica de sopa nos ofereceu uma quantia substancial para divulgar o
‘Macarrão Instantâneo Vai-no-Caldeirão de Olívia Trêmula’,
anunciado por uma simulação de Gerald Gardner e o coven de New
Forest. Nos próximos meses, devemos começar a transmitir uma
série de propagandas de café estreladas por vários membros do
panteão grego. É impressionante o que algumas dessas divindades
antigas estão dispostas a fazer por um pouquinho de atenção
midiática. Estamos particularmente felizes com a propaganda que
Zeus fez com duas ninfas, vários bodes e um pote de Nescafé Gold.”
Questionamos: “Isso não está indo longe demais?”
“De forma alguma. O ocultismo precisa se atualizar com o passar
do tempo, e estamos usando 1% da nossa renda para ajudar na
iluminação espiritual geral com meditações guiadas para semideuses
menores, para publicar avisos de ‘Mantenha os planos limpos’ em
todos os grandes portais, e para digitalizar os registros akáshicos.”
Mas alguns tradicionalistas não estão convencidos. Hercules
Zonza, da Ordem das Nove Lâminas, líder da filial de Surbiton da
campanha “Limpe o astral”, nos disse:
“Isso é uma verdadeira desgraça. Ontem fizemos uma evocação
completa de Asmodeus e suas 99 legiões para uma Unidade Astral
de Transmissão do Canal 4, e todos os diabinhos apareceram
usando camisetas que diziam ‘Turnê do Retorno dos Deuses
Nórdicos’!”
Apesar da polêmica, parece que a propaganda astral veio para
ficar. Desde que fizemos a reclamação em nome das pessoas
afetadas, a A...A... generosamente ofereceu uma meditação simples
que serve como “filtro de ruído” astral. Custa apenas 500 libras e
está disponível diretamente na Mammon Investimentos. É só
visualizar o logo da A...A... —um cifrão dentro de um triângulo— e,
ao ouvir a campainha astral, basta entoar seu nome, endereço e
número do Cartão Carma.
O FOSSO

Esta foi minha única tentativa de escrever um pastiche lovecraftiano


(embora um pastiche bem queer). O texto foi escrito em 1995 e enviado
para os editores da antologia Starry Wisdom, da Creation Press, que o
recusaram, mas aceitaram “A loucura de Cthulhu”. Eu enviava este texto
sempre que me pediam algo para antologias lovecraftianas de temática
mágica, mas, até agora, ninguém o quis.

A
cho que foi a curiosidade que me levou pela primeira vez ao
fosso —ela e um desejo de adentrar territórios proibidos. Eu
me considerava um outsider, um observador da humanidade e
suas falhas mesquinhas. Em vez de baixar a cabeça e aceitar os
trabalhos tediosos que o mundo oferece, procurei aquilo que estava
às margens da sociedade. Coisas proibidas, conhecimento proibido.
Antigamente, passava meu tempo em bibliotecas sombrias e mal
iluminadas, esmiuçando textos arcaicos —livros considerados
nefastos demais para serem retirados de suas tumbas poeirentas e
circularem pelo mundo. Eu lia avidamente sobre coisas que eu
desconfiava que seriam possíveis, coisas que eu só havia
vislumbrado em pesadelos e sonhos febris. Agora, a realidade
desses sonhos se arrastava lentamente em minha direção, enquanto
eu descia vacilante, um passo após o outro, rumo às profundezas do
fosso.
Eu sempre me senti “distante” de meus colegas. Um alienígena
talvez, esperando por algum momento especial, assistindo ao dia a
dia do mundo com os olhos semicerrados. Fazendo hora. Esperando
chegar aquela mensagem que revelaria meu propósito desconhecido,
mas pressentido —que eu era diferente do resto, disso não tinha
dúvidas. Mas por quê? Como isso aconteceu? Eu não sabia. Talvez
fosse um gene renegado que, depois de atravessar várias gerações
adormecido, despertou em mim e coloriu minha alma com o clarão
de uma consciência mutante. Em séculos passados, eu teria sido
temido como feiticeiro ou herege. Já aconteceu também de outras
pessoas perceberem minha “natureza alienígena”, ainda que de
modo inconsciente. Isso só serviu para reforçar minha sensação de
estar sozinho na multidão.
Conforme fui me aprofundando nos saberes proibidos, vim a
conhecer o fosso. O seu significado exato me escapou por um bom
tempo, mas eu sabia que, no fim das contas, seria levado a explorar
suas profundezas e descobrir por conta própria o cerne de seu
mistério.
O ar aqui embaixo é denso. Ouço ao longe um ruído indefinido, o
murmúrio de vozes abafadas, uma música estranha, espectral. O
solo de pedra onde piso retumba como se a própria terra me desse
um aviso, como se testasse minha determinação na já tão longa
busca por essas experiências inomináveis. Mas eu vou prosseguir, já
demorei demais, buscando consolo nas prosas e pinturas febris de
quem compartilhava dos meus desejos, de quem já havia provado do
fruto proibido.
Sinto e ouço alguma coisa sendo esmagada por meus pés e...
não, não vou olhar para baixo, não vou olhar para trás para ver o que
é. Preciso continuar. Já cheguei até aqui. Preciso provar meu valor e
me juntar à celebração que certamente encontrarei adiante. Existem
outros como eu, tenho certeza. Sonhadores, outsiders, sensualistas
para quem o mundo cinza lá de cima não tem qualquer atrativo.
O fosso me chama, e eu sigo caminhando.
Um raio de luz rasga a escuridão, grãos de poeira dançam no ar à
minha frente. A porta está entreaberta e consigo ver formas difusas
aglomeradas no recinto. Sombrias e ameaçadoras. Formas escuras
se avolumam quando me aproximo delas na penumbra, enquanto o
brilho das poças reflete visões alucinantes do entorno. Minha
garganta está seca. Estou aqui! Nervoso, lanço-me sobre os corpos
aglomerados.
A música retorna como um rangido em meus ouvidos e me pega
pelo estômago com suas ressonâncias profundas. O ar fede a suor e
odores animais. De cabeça baixa, me esgueiro entre as figuras
disformes, avançando em direção à estrutura parecida com um altar
mais à frente. Devo me apresentar diante dela. Meu casaco se
engancha em uma corrente, mas com um puxão me liberto e ali
estou! O mar de formas se abre para me receber, e eu conquisto o
que desejo. É isso! A criatura inchada atrás do tablado se vira
devagar, me examinando sem escrúpulos, e de repente minha
garganta se fecha. Não sai uma palavra. E então...
“Diga, querido, o que vai querer?”
“É... meio caneco de cerveja, por favor.”
“Sua primeira vez aqui, né? Ninguém te disse que o traje de quinta-
feira é couro?”
REFERÊNCIAS E
RECOMENDAÇÕES DE
LEITURA

Primeiros passos na magia


Carroll, Peter J. Liber Null e Psiconauta. Trad. Vinicius Ferreira. São
Paulo: Penumbra, 2016.
Conway, David. Magic: An Occult Primer. Londres: Jonathan Cape,
1972.
James, M. R. “Casting the Runes”. Em: More Ghost Stories.
Londres: Edward Arnold, 1911.
Johnstone, Keith. Impro: Improvisation and the Theatre.
Buckinghamshire: Methuen Drama, 1981.
Rhinehart, Luke. O homem dos dados. Trad. Eliana Sabino, Luiz
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Caos: Introdução
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(Fita K7)
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Lachman, Gary. Dark Star Rising: Magick and Power in the Age of
Trump. Los Angeles: Tarcherperigee, 2018.
Pagani, Paula. Cardinal Rites of Chaos. Northampton: Sut Anubis,
1984.
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York: Dell, 1975.
Sherwin, Ray. The Theatre of Magick. 1982.

É preciso amar O ramo de ouro?


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Dissidência em grupos de magia


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Kundalini: uma abordagem pessoal


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Marcelo Brandão Cipolla e Thiago Blumenthal. São Paulo:
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O país das maravilhas dos sentidos


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Queerizando Baphomet
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Shaviro, Steven. Doom Patrols. Disponibilizado online pelo autor em:
http://www.dhalgren.com/Doom/index.html

O mundo fantástico de Lobsang Rampa


Os livros de Lobsang Rampa foram publicados pela londrina Secker
& Warburg. Acrescentamos entre colchetes o título como foi
publicado em português.
Rampa, Lobsang. The Third Eye, 1956. [A 3ª visão]
______. Doctor from Lhasa, 1959. [O médico de Lhasa]
______. The Rampa Story, 1960. [Entre os monges do Tibete]
______. Cave of the Ancients, 1963. [A caverna dos antigos]
______. Living with the Lama, 1964. [Minha vida com o lama]
______. Wisdom of the Ancients, 1965. [A sabedoria dos lamas]
______. You Forever, 1965. [Você e a eternidade]
______. The Saffron Robe, 1966. [O manto amarelo]
______. My visit to Venus, 1966. [Minha visita a Vênus]
Rampa, Lobsang. Chapters of Life, 1967. [Capítulos da vida]
______. Beyond the Tenth, 1969. [Além do 1º décimo]
______. Feeding the Flame, 1971. [A chama sagrada]
______. The Hermit, 1971. [O eremita]
______. The Thirteenth Candle, 1972. [A vela nº 13]
______. Candlelight, 1973. [Luz de vela]
______. Twilight, 1975. [O sol poente]
______. As It Was!, 1976. [Foi assim!]
______. I Believe, 1976. [A fé que me guia]
______. Three Lives, 1977. [Três vidas]
______. Tibetan Sage, 1980. [O sábio do Tibete]
______. Transmigration: Transcript of an interview Rampa gave in
1958. Disponível online em:
<https://www.bibliotecapleyades.net/mistic/lobsang_rampa02.htm>
Barker, Gray. They Knew Too Much about Flying Saucers.
Champaign-Urbana, Illinois: University Books, 1956.
Bharati, Agehananda. “Fictitious Tibet: The Origin and Persistence of
Rampaism”. Em: Tibet Society Bulletin, 7, p. 1-10, 1974.
Disponível em: <https://bit.ly/3tX0YRz>. Acessado em: 15 mar.
2022.
Bishop, Peter. Dreams of Power: Tibetan Buddhism and the
Western Imagination. Londres: Athlone, 1993.
Dodin, Thierry, Räther, Heinz (org.). Imagining Tibet: Perceptions,
Projections and Fantasies. Boston: Wisdom, 2001.
Evans, Christopher. Cults of Unreason. Nova York: Farrar, Straus &
Giroux, 1974.
Hilton, James. Horizonte perdido. Trad. Rubens Oliveiros Pistek. São
Paulo: Claridade, 2002.
Lindner, Christopher. The James Bond Phenomenon: A Critical
Reader. Manchester: Manchester University Press, 2003.
Lopez JR., Donald S. Prisoners of Shangri-La: Tibetan Buddhism
and the West. Chicago: University of Chicago Press, 1998.
“Private vs. Third Eye”. Em: Time, 71, p. 50, 1958.
Rouse, Sheelagh. Twenty-Five Years with T. Lobsang Rampa.
Morrisville, North Carolina: Lulu, 2006.

Elizabeth Sharpe e The Secrets of the Kaula Circle


Garrison, Omar. Tantra: The Yoga of Sex. Nova York: The Julian,
1964.
Urban, Hugh B. Tantra: Sex Secrecy, Politics and Power in the Study
of Religion. Berkeley: University of California Press, 2003.
______. Magia Sexualis. Berkeley: University of California Press,
2006.
White, David Gordon. “Tantric Sects and Tantric Sex: The Flow of
Secret Tantric Gnosis”. Em: Elliot R. Wolfson (org.). Rending the
Veil: concealment and secrecy in the history of religions. Nova
York: Seven Bridges, 1998. p. 249-270.
Wilke, Annette. “Negotiating Tantra and Veda in the Paraśurāma-
Kalpa Tradition”. Em: Ute Hüsken e Frank Neubert (org.). Negotiating
Rites. Oxford: Oxford University Press, 2011. p. 133-159.

[1]
A enciclopédia Man, Myth & Magic: An Illustrated Encyclopedia of the Supernatural foi
publicada originalmente em 112 fascículos pela editora britânica BPC Publishing Ltd.,
posteriormente reunidos em 24 volumes e reeditada em 1995 em 21 volumes. Editada pelo
historiador britânico Richard Cavendish, considerado uma das maiores referências em
ocultismo, religião e mitologia, a iniciativa com também contou com outros redatores de peso,
como Mircea Eliade, Glyn Daniel e John Symonds. Em português, foi publicada pela Editora
Três, a partir de 1973, uma compilação de artigos da enciclopédia, também em fascículos,
chamada Homem, mito & magia, reunida em três volumes em 1974. (N.E.)
[2]
A língua inglesa carece de um termo que defina “magia” como a entendemos em
português, de modo que a palavra “magic” condensa dois sentidos: “magia” e “mágica” (de
palco) ou “ilusionismo”. O ocultista inglês Aleister Crowley foi quem difundiu o uso de
“magick” para fazer essa distinção. (N.E.)
[3]
Referência ao “do easy”, exercício proposto pelo escritor e artista William S. Burroughs no
conto “The Discipline of DE”. Ver Caos condensado, p. 66, nota 7. (N.E.)
[4]
O ramo de ouro teve basicamente três edições: em dois volumes em 1890, em três
volumes em 1900, e depois a obra foi ampliada em doze volumes e publicada entre 1906 e
1915, com outras edições abreviadas e resumidas lançadas posteriormente. No Brasil, foi
publicada uma versão em 1982, pela Zahar, com tradução de Waltensir Dutra. (N.E.)
[5]
Robert Brockway, Myth, p. 157.
[6]
Chas S. Clifton, “Drugs, Books, and Witches”, p. 93.
[7]
Ruth Benedict, Padrões de cultura, cap. 3 (s.p.).
[8]
Herbert Spencer, The Principles of Psychology, p. 194.
[9]
James G. Frazer, The Golden Bough, s.p.
[10]
Ibidem. Ênfase minha.
[11]
Ibidem.
[12]
Tom Douglas, Survival in Groups, p. 110.
[13]
A expressão “cultura de paranoia” se refere a uma dinâmica pela qual integrantes do
grupo parecem ser altamente sensíveis a críticas internas e externas ao grupo. Pelas minhas
observações, isso cresce com o tempo e tende a se manifestar (talvez inconscientemente)
em líderes ou integrantes de destaque. Alguns fatores que levam a isso: o quanto integrantes
do grupo se veem na sociedade como “outsiders” e que por isso precisam se proteger contra
intervenções do Estado, da mídia ou de órgãos governamentais; a proibição de revelar a
pessoas de fora o que acontece dentro do grupo, mantendo “segredo” custe o que custar (o
que pode reduzir a capacidade de cada pessoa estabelecer uma rede de contatos externa); o
histórico recente do grupo (em termos de conflitos anteriores e como foram resolvidos); e a
percepção comum de que qualquer crítica feita ao grupo também é uma crítica direta a cada
pessoa, inclusive críticas a suas “habilidades mágicas”. Embora esse tipo de “cultura” não
seja incomum em grupos pequenos, ela é particularmente notável (na minha experiência) em
organizações maiores e em redes nas quais costuma haver desconfiança interna entre
subgrupos —especialmente quando estão distantes geograficamente ou quando há uma
grande divergência interna sobre crenças, abordagens mágicas e a direção que a
“organização como um todo” deveria estar tomando. Uma vez me contaram que certa
pessoa, de uma rede de paganismo com a qual estive envolvido por um tempo, disse uma
frase que resume esse tipo de postura: “Sei lá o que aquele povo de Leeds está fazendo, só
sei que não estou gostando!”.
[14]
O termo usado por Hine no original é “bliss”. A tradução como “alegria” soaria mais
natural, porém o termo descreve um estado que evoca a experiência de contentamento
sublime e integral —mente e corpo—, para além da simples alegria, felicidade ou êxtase.
(N.T.)
[15]
Aldous Huxley, As portas da percepção e Céu e inferno, p. 119.
[16]
Walter Norman Pahnke, Drugs and Mysticism, p. 257.
[17]
Herbert Günther, The Life and Teaching of Naropa, p. 102.
[18]
Para um panorama do assunto, ver Hugh Urban, Tantra. Ver também André Padoux,
“What Do We Mean by Tantrism?”.
[19]
Christopher S. Hyatt, Tantra Without Tears, p. 10.
[20]
Gandharva Tantra citado em Alain Daniélou, The Myths and Gods of India, p. 377.
[21]
Ver Joseph S. Alter, The Wrestler’s Body.
[22]
Ver Douglas R. Brooks, Auspicious Wisdom.
[23]
Do Saundarya Lahari, citado por W. Norman Brown, Man in the Universe, p. 96.
[24]
Phil Hine usa a expressão “become an individual”, ou literalmente se tornar um indivíduo
—tomar posse da própria individualidade, ou buscar se colocar no mundo levando em conta
mais quem somos nós mesmos e menos o que outrem espera que sejamos. Byung-Chul
Han, filósofo sul-coreano naturalizado alemão, trata longamente do assunto em diferentes
livros, afirmando que hoje vivemos numa sociedade pautada não só pelo cansaço provocado
pela exigência de produtividade, mas também pela pressão de que a existência só vale se
nos impusermos e demonstrarmos quem, de modo relativo, “de fato somos”. (N.E.)
[25]
Hugh Urban, Magia Sexualis, p. 254.
[26]
Citado por David Snellgrove, Indo-Tibetan Buddhism, p. 170-171.
[27]
Citado por Francesca Fremantle, A Critical Study of the Guhyasamaja Tantra, p. 51-52.
[28]
Christian J. Wedemeyer, Making Sense of Tantric Buddhism, p. 127.
[29]
Miranda Shaw, Passionate Enlightenment, p. 58.
[30]
Ibidem.
[31]
Citado por Francesca Fremantle, op. cit., p. 41-42.
[32]
Christian J. Wedemeyer, op. cit., p. 128.
[33]
Citado por Francesca Fremantle, op. cit., p. 53.
[34]
Ibidem, p. 55.
[35]
Ibidem.
[36]
Christian J. Wedemeyer, op. cit., p. 112.
[37]
Referência à obra de Shere Hite, The Hite Report: A Nationwide Study of Female
Sexuality, de 1976, que causou polêmica ao desafiar as suposições conservadoras da época
sobre a sexualidade feminina. (N.T.)
[38]
Bernard Faure, The Red Thread, p. 65.
[39]
Patrick Olivelle, Language, Texts, and Society, p. 202.
[40]
Gareth Knight, A Practical Guide to Qabalistic Symbolism, p. 155-156. Knight, é
verdade, diz no novo prefácio que “é para mim um motivo de profundo arrependimento caso
alguém tenha, graças às minhas palavras, passado por maus bocados devido a sua
orientação sexual”. Mas é lógico que aquelas mesmas palavras continuam no mesmo lugar
na nova edição.
[41]
Ver seção “Paganismos”. (N.E.)
[42]
Vale destacar que hoje, no Brasil, existem grupos minoritários dedicados a promover
não só o que Phil Hine chama aqui de “paganismo queer”, como também um ambiente
diverso para o estudo do ocultismo. O Projeto Xaoz, por exemplo, formado por pessoas de
diferentes crenças, tradições e orientações sexuais, busca promover a pesquisa e o estudo
do ocultismo e da magia em suas diversas manifestações, concentrando-se na autonomia e
na individualidade de cada pessoa. Citamos também o Sagrado Transviado, movimento
mágico liderado por Helena Agalenéa e Paul Parra desde 2018, que começou na cidade de
Campinas/SP. Helena e Paul são pessoas trans que praticam a bruxaria e fogem dos
padrões binários de gênero e sexualidade. Ao perceberem que grande parte dos espaços de
pesquisa, produção e vivência mágica e ocultista contemporâneos continuam agenciados
com a binariedade, a dupla passou a criar espaços seguros para a dissidência e a elaborar
possibilidades de uma sacralidade transviada, que não se baseia em pares binários e nem
em divindades separadas enquanto “masculinas e femininas”. A principal divindade cultuada
no Sagrado Transviado é Inanna. Seus textos conceituando o movimento foram publicados no
livro Liber Queer, publicado pelo Círculo da Viada Chama Púrpura —um movimento de
empoderamento LGBTQIA+ que busca fomentar uma religiosidade queer voltada para o
paganismo. (N.E.)
[43]
Zachary Cox, Aquarian Arrow, n. 22.
[44]
Aleister Crowley, The Magical Record of the Beast 666, p. 10-11.
[45]
Louis T. Culling, A Manual of Sex Magick, p. 25.
[46]
Kenneth Grant, Aleister Crowley & The Hidden God, p. 84.
[47]
Ibidem.
[48]
Galadriel, “The Great Rite”, p. 7.
[49]
John Rowan, The Horned God, p. 134.
[50]
Starhawk, Dreaming the Dark, p. 41.
[51]
Donald L. Mosher, “Three Dimensions of Depth of Involvement in Human Sexual
Response”, p. 5.
[52]
Ver seção “Kundalini: uma abordagem pessoal”. (N.E.)
[53]
Starhawk, The Spiral Dance. E-book, posição 248.1/640.
[54]
Ver Introdução à parte II, “Paganismos”. e o ensaio “Relatório Reachout”. (N.E.)
[55]
Greenham Common foi uma base militar britânica usada pela força aérea dos Estados
Unidos na década de 1980 como parte de suas operações na Guerra Fria. Quando os
Estados Unidos declararam que levariam mísseis nucleares para a base, um grupo de
mulheres montou acampamento no local (o Women’s Peace Camp), em setembro de 1981,
dando origem a um movimento que chegou a mobilizar setenta mil pessoas num único
encontro. O lugar se tornou um marco da luta feminista na Inglaterra e reuniu muitas práticas
de religiosidade neopagãs, especialmente do culto a Hécate. Ver o artigo de Shai Feraro,
“Invoking Hecate at the Women’s Peace Camp”, em Magic Ritual and Witchcraft, 11(2), p.
226-248. (N.E.)
[56]
No vodu haitiano, “cavalo” (chwal) se refere à pessoa possuída durante os rituais, uma
vez que “montar um cavalo” é uma metáfora para a incorporação das entidades. (N.E.)
[57]
Em inglês, a referência é “Pangenitor Panphage”, com os termos derivados do grego.
“Pangenitor” é aquele que a tudo gera; “panófago”, aquele que a tudo devora. (N.E.)
[58]
Peter Carroll, Liber Null & Psychonaut, p. 131-132. Baphomet nessa litania é
apresentado como predominantemente masculino em vez de poligênero.
[59]
Steven Shaviro, Doom Patrols, s.p.
[60]
Lee Edelman, “Queer Theory”, p. 345.
[61]
Em português, o livro foi publicado por diferentes editoras ao longo dos anos como A
3ª visão. O título original, no entanto, traduz-se por “O terceiro olho”. Ao longo do ensaio, nos
referimos aos títulos originais dos livros de Rampa por não termos consultado as edições em
português. Nas referências, no entanto, colocamos os nomes traduzidos entre colchetes para
facilitar a consulta de quem tiver interesse. (N.E.)
[62]
Donald Lopez Jr., Prisioners of Shangri-La, p. 86.
[63]
Agehananda Bharati, “Fictitious Tibet”, p. 5.
[64]
David Lopez Jr., Prisoners of Shangri-La, p. 104.
[65]
Lobsang Rampa, citado em Donald Lopez Jr., Prisoners of Shangri-La, p. 109.
[66]
Essa entrevista foi ao ar no programa “Citizens of the World”, da emissora CFMT Télé-
Métropole, de Montreal, e foi conduzida por Alain Stanké, amigo de Rampa e seu editor em
língua francesa. Feita originalmente em inglês, a conversa foi traduzida para o francês e
publicada no livro Lobsang Rampa, imposteur ou initié? (Montreal, Éditions Stanké, 1973),
escrito e publicado pelo próprio Stanké. Partes da transcrição podem ser encontradas online
em inglês (ver Lobsang Rampa, “Transmigration”). (N.E.)
[67]
“Paperback” nada mais é do que o papel jornal. Porém, essa expressão, por
metonímia, passou a se referir a um estilo de publicação impressa em papel jornal: livros de
alta tiragem com capa de papel cartão de baixa gramatura, lombada colada, sem orelha, com
projeto gráfico e capa padronizados ou muito simples, feitos para serem mais baratos,
voltados ao grande público e vendidos não só em livrarias, mas também em bancas de jornal,
lojas de conveniência etc. (N.T.)
[68]
Ativistas do Women’s Liberation Movement (Movimento de Libertação das Mulheres).
(N.T.)
[69]
Lobsang Rampa, You Forever, p. 102.
[70]
Ram Kumar Rai, Kularnava tantram, p. 45.
[71]
Segundo nota do próprio livro de Sharpe, não haveria edição publicada desse
manuscrito, que teria sido apresentado à autora por um yogue. Não confundir com o livro
homônimo de Swami Rama, Rudolph Ballentine e Alan Hymes, Science of Breath: A Practical
Guide (Honesdale, The Himalayan Institute Press, 1979). (N.E.)
[72]
David G. White, “Tantric Sects and Tantric Sex”, p. 250.
[73]
Annette Wilke, “Negotiating Tantra and Veda in the Paraśurāma-Kalpa Tradition”, p. 145.
[74]
O escândalo de Vallabhacharya, conhecido também como o Caso de Difamação do
Maharaj, de 1862, refere-se a um processo de difamação movido contra os fundadores do
jornal semanal Satyaprakash, de Mumbai. Os editores do jornal haviam publicado um artigo
em 1860 acusando de abuso sexual e de poder os líderes do culto vaishnava Vallabha
sampradaya. O julgamento foi em favor dos réus. (N.E.)
[75]
Em Tantra e em Magia Sexualis.
[76]
Hugh Urban, Tantra, p. 112.
[77]
“Wasp” é o termo usado por Hine. Vale notar que a palavra também é usada como
abreviação de “white Anglo-Saxon protestants”, expressão referente à elite protestante
americana, geralmente de origem britânica, que se tornou também uma forma de se referir a
pessoas brancas, europeias e privilegiadas cuja visão de mundo é hegemônica, eurocêntrica
e coloca outros grupos sociais em posição de subalternidade. (N.T.)

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