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variedades de Hine
Phil Hine
tradução
Maíra Mendes Galvão
revisão da tradução
Douglas Mattos e Rogério Bettoni
Copyright © 2019 Phil Hine
Copyright da tradução © 2023 Maíra Mendes Galvão
Copyright des ta edição © 2023 Oficina Palim ps es tus
A reprodução de trechos sem fins lucrativos desta obra, em qualquer meio impresso ou
digital, poderá ser feita desde que citada a fonte completa, incluindo créditos de tradução.
Para qualquer outro uso, é necessária autorização da Editora.
Embora esta obra siga o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, há
transgressões. Consideramos a linguagem um devir, uma atividade viva cujas limitações
institucionais muitas vezes tolhem a atividade criativa e a própria dinâmica do pensamento e
do fazer literário.
S
eriam necessárias muitas páginas para agradecer a todos que
já me incentivaram a escrever ou que deram forma às minhas
ideias ao longo dos últimos quarenta anos, mais ou menos, mas
gostaria ao menos de expressar minha gratidão e meu apreço às
seguintes pessoas, pois sem sua amizade, apoio e inspiração este
livro não existiria:
Jenny Alexander, Gavin Brown, Alexander Cummins, Joseph De
Lappe, Gyrus, Amy Hale, Lou Hart, Ben Joffe, Christopher Josiffe,
Patricia MacCormack, Gordon MacLellan, Mike Magee, Christina
Oakley-Harrington, Rodney Orpheus, Estelle Seymour, Michael
Staley, Andrew Stenson, Nicholas Tharcher e Caroline Wise.
Gostaria de agradecer particularmente a Maria Strutz por seu
amor, paciência e habilidade infalível de remover os excessos em
parte do texto, e a David Southwell por sua clareza de pensamento,
pelas conversas inspiradoras (além do delicioso pudim de pão) e por
seu prefácio generoso.
SUMÁRIO
Agradecimentos
Prefácio
Introdução
Primeiros passos na Magia
Introdução
Primeira fase: da wicca a Éris
Segunda fase: Leeds
Terceira fase: Londres
o livro estúpido
Técnicas para analisar situações antes de intervir por meio da
feitiçaria
Usando técnicas oraculares
Nossa própria motivação
A situação ou o acontecimento
Perfil psicológico
Outras abordagens “mágicas”
Intuição
Oráculos
Análise SWOT
Conclusões
Resumo
Mexendo o caldeirão do caos
Sem o rumo de casa
Gnose
Trabalho e diversão
Brincando com o caos
Introdução
Reconsiderações sobre rituais políticos
Fora, demônios! Fora!
Magia de propaganda
Relatório Reachout
Magia no campo
É preciso amar O ramo de ouro?
Introdução
Rituais que dão errado
Por que alguns rituais não funcionam
Magia de resultados
Invocações
Não adotar uma postura adequada
Não se preocupar com banimento
Excesso de confiança
Ser medíocre
Tecer sonhos
Mentoria e professorado na pedagogia mágica
Dissidência em grupos de magia
Introdução
Experiências de saída
Processo de demonização
Bodes expiatórios em grupos
Sinais de transgressão
Reações do grupo à dissidência
A importância do apoio
Conclusão
Reflexões sobre práticas diárias
Introdução
Kundalini: uma abordagem pessoal
O país das maravilhas dos sentidos
Introdução
Admiração
Prática corporificada
Relacionalidade
O país das maravilhas dos sentidos
Início
Reconhecendo gurus
Nyasa
O louvor às flechas dos sentidos
Shakti
Devoção à Shakti-flecha
Conclusão
Tantra, sexo e imaginação transgressora
Introdução
Amor sob vontade
O retorno das deusas
Sexualidade e intimidade
Caminho adiante
Uma cláusula preocupante
Sodomia e realização espiritual
Baphomet queer
Biografia de um beijo
Introdução
O fantástico mundo de Lobsang Rampa
A publicação de The third eye
A reação da academia
Desmascaramento e reação
Rampa como “mistificador”
Rampa como “desmistificador”?
Tradição/modernidade
Rampa sobre a homossexualidade
Romanceando o tibete: The third eye como diário de viagem
A conexão extraterrestre
Algumas considerações finais
Elizabeth Sharpe e The secrets of the kaula circle
The India that is India
The secrets of the kaula circle
Rituais estranhos
Introdução
Sobre ficção e humor
Playmates
Com as duas mãos
Propaganda astral: uma ameaça ocultista moderna?
O fosso
Referências e recomendações de leitura
PREFÁCIO
David Southwell
À
medida que fui envelhecendo, comecei a desconfiar de qualquer
alusão a viagens no tempo. Na melhor das hipóteses, aventurar-
se pela própria linha do tempo é um caminho cheio de
tribulações emocionais; na pior, lidar com todos os pontos de virada
hipotéticos, com todas as inevitáveis versões anteriores de nós
mesmos que acabamos encontrando, é a mais dura das angústias.
Isso tende a ser ainda mais perigoso para quem escreve. Voltando
poucas páginas ao passado, nos decepcionamos tanto com o que
vemos que acabamos sentindo uma vontade avassaladora de pôr
fogo em tudo que já escrevemos. Reduzir a cinzas —e aos
paradoxos decorrentes disso— todas as nossas palavras de outrora.
Nada é capaz de derrubar mais rápido os escudos da nostalgia, ou
erodir todo o conforto das memórias equivocadas, do que a
realidade encontrada quando temos de reler nossos trabalhos
antigos.
Poucas pessoas que escrevem têm a coragem de fazer a viagem
pela linha do tempo que Phil faz aqui. E pouquíssimas conseguiriam
voltar ao presente com um material tão bom. Além da praticidade de
reunir textos que normalmente teriam de ser caçados no sótão, em
caixas abarrotadas de revistas velhas de ocultismo e em arquivos
PDF duvidosos espalhados pela internet, este livro é uma narrativa e
uma contextualização. Espero que isto não seja o mais próximo de
uma autobiografia que teremos a oportunidade de ler, mas, se for, o
texto dá conta lindamente de documentar não só a vida de Phil
dentro do paganismo, mas também a evolução do cenário esotérico
em geral ao longo dos últimos quarenta anos.
A obra escrita de Phil sempre foi importante porque ele nunca foi
preguiçoso —sempre evita comentários simplistas e não se satisfaz
com sínteses banais. Ele nunca caiu na armadilha de fazer
guerrinhas de status entre magistas com textos que
presunçosamente dessem a entender que ele sabia mais do que
outras pessoas e que provaria seu valor com um ensaio de 3 mil
palavras. Phil foi sempre muito gentil ao confiar que as pessoas que
o leem são tão inteligentes quanto ele. Transparece em seus textos a
alegria genuína que ele sente ao compartilhar suas observações e
informações. Seu trabalho histórico é erudito e acessível, capaz de
equilibrar clareza intelectual e entretenimento. Fazer um curso sobre
mistérios arcanos raramente será mais divertido do que ler os
ensaios sobre Lobsang Rampa e Elizabeth Sharpe incluídos aqui.
Poucas pessoas oferecem caminhos melhores para a compreensão
do tantra do que Phil oferece nestes ensaios e conversas, caminhos
que podem ser percorridos ao mesmo tempo tanto por pessoas já
estudiosas quanto por quem está começando agora.
Como esta coletânea bem demonstra, ele tem a grande habilidade
de usar o humor para destruir qualquer chance de soar pomposo,
podando qualquer tentativa de projetarem nele um status de guru. A
sagacidade de seu humor também ajuda a criar um material que
propicia saltos de entendimento esclarecedores tanto por meio do
sentir como a partir de fatos. A maioria dos textos sobre ocultismo é
estéril —tem a capacidade de impressionar em nível intelectual, mas
raramente de provocar a mesma comoção que a magia provoca.
Essa capacidade é típica da escrita de Phil Hine, pois oferece um
tecido conjuntivo forte e emocionante.
Muitos dos textos incluídos neste volume foram lançados ao
mundo pela primeira vez em uma época na qual se conectar e
aprender com uma comunidade ocultista ampla era muito mais difícil
do que qualquer pessoa nascida na era da internet pode imaginar,
especialmente para quem se criou em ocupações habitacionais na
periferia. Os zines eram devorados, e cada ponto de tinta era
lavrado em busca de possíveis conhecimentos ou instruções úteis.
Isolado de pessoas capazes de me dar alguma mentoria ou de
amizades que tinham mais conhecimento, eu lia essas publicações
querendo aprender, querendo me conectar com quem entendia os
lugares marginalizados que minha própria prática de magia ocupava
—querendo saber mais de quem realmente entendia não só como a
magia funcionava, mas também qual sensação ela proporcionava.
Phil foi uma das principais vozes que descobri em jornadas diárias
para Londres, quando ia até a livraria Compendium no bairro de
Camden para comprar o maior número de exemplares da Nox ou da
Pagan News que eu pudesse encontrar. Suas palavras vinham das
paisagens maltratadas e arruinadas que eu conhecia; ele fazia piada
da pose classista que me revoltava. Phil construiu lugares
emocionantes e acolhedores para pensar sobre magia e praticá-la,
lugares que pouca gente oferecia. Esta coletânea demonstra com
clareza por que seu trabalho se encaixou na minha vida e na de tanta
gente, por que foi tão importante. Mais do que isso, também prova
que, ao fazer o passado conversar com o presente e abrir os portais
do sublime —assim como tirar sarro de tudo para que mantenhamos
os pés no chão enquanto a realidade se distorce à nossa volta—, a
voz de Phil segue plena e inigualável.
INTRODUÇÃO
E
m 2019 fez quarenta anos que comecei a escrever sobre
ocultismo em geral e os aspectos práticos de várias
abordagens mágicas, e esse me pareceu um bom momento
para comemorar minha trajetória com uma antologia de ensaios
sobre uma gama de assuntos. Embora eu seja mais conhecido por
meus três livros sobre magia do caos (Caos condensado, Caos
primordial e Pseudonomicon, publicados originalmente pela editora
The Original Falcon), todos escritos durante a década de 1990, achei
que essa seria uma oportunidade para dar destaque a alguns dos
escritos que antecederam e sucederam esses livros. Boa parte do
material mais antigo foi publicada em revistas ocultistas de pequena
escala, um tipo de publicação que floresceu nos anos 1980 e que,
em sua maioria, foi suplantado pelo surgimento da internet.
Selecionar ensaios para uma coletânea seria uma tarefa
relativamente fácil, mas eu queria fazer mais que isso. Eu queria
mostrar com esse material como minhas ideias e concepções sobre
assuntos específicos foram mudando ao longo dos anos. Para cada
seção, tentei selecionar ensaios que refletissem, de alguma forma,
mudanças de ideias e do que busquei enfatizar com o passar do
tempo. Também quis aproveitar essa oportunidade para refletir sobre
o que me motivou a escrever cada ensaio —o que estava
acontecendo na minha vida enquanto os escrevia— e oferecer
algumas reflexões autobiográficas sobre minha passagem da wicca à
magia do caos e além.
Passei a enxergar a escrita como um processo mágico importante.
Para mim, ela é um enraizamento —um tipo de ponto-final em
qualquer empreitada mágica—, uma oportunidade de fazer uma
pausa, refletir ou tentar entender algo que finalmente possa ser
articulado de modo a fazer sentido para outras pessoas. Embora a
atividade da escrita possa ser muito frustrante às vezes, também é
reconfortante e, em alguns raros momentos, parece se fazer
sozinha, sem muitas contribuições conscientes da minha parte.
Uma nota sobre o título: “Variedades de Hine” (Hine’s Varieties) é
uma paródia irônica do famoso slogan “Heinz 57 Varieties” da
empresa H. J. Heinz. Por causa da semelhança sonora do meu nome
com o da empresa, durante toda minha infância, outras crianças se
divertiam me comparando a um ou outro produto da Heinz; então,
para mim, me apropriar dessa associação é um pequeno gesto de
provocação.
PRIMEIROS PASSOS NA
MAGIA
P
or que me interessei pelo oculto, para começo de conversa? O
que despertou meu interesse pela prática mágica? Eu não me
sentia nada atraído por essas coisas até os últimos anos da
adolescência, embora a obra de Carl Gustav Jung já me chamasse a
atenção. Um dia, na biblioteca da escola, eu estava folheando
despretensiosamente um exemplar de Man, Myth and Magic
procurando fotos de bruxas nuas (como é de se esperar) e me
deparei com uma obra do artista ocultista Austin Osman Spare.[1] A
imagem me chamou a atenção. Ela me remeteu a algumas ideias de
Jung sobre as quais eu andava lendo, e comecei a me interessar
pelo ocultismo —algo que eu menosprezava até então.
Passei horas na biblioteca local, onde as prateleiras sobre
ocultismo tinham, sobretudo, romances de Dennis Wheatley,
clássicos espiritualistas e uma boa quantidade de literatura teosófica
—os escritos de Madame Blavatsky, Annie Besant e Charles
Webster Leadbeater. O primeiro livro de magia prática que consegui
compreender foi um clássico de David Conway, Magic: An Occult
Primer, de 1972.
Meu primeiro ato de magia foi uma maldição. Na época, eu era
aficionado por jogos de guerra de fantasia e, depois de sofrer uma
derrota particularmente humilhante contra um dos meus amigos, que
ele coroou com alguma zombaria do tipo “Vai fazer o quê, me jogar
um feitiço?”, respondi veementemente que era isso mesmo que eu ia
fazer. Me inspirei em um programa de televisão novo na época, uma
adaptação moderna do conto clássico de M. R. James, “Casting the
Runes” (ITV Playhouse, 1979), numa cena que mostrava uma mulher
ameaçada por uma forma-pensamento de aranha gigante. Fiquei
acordado a noite inteira visualizando uma forma sombria pairando
sobre a cama do meu amigo. Uns dias depois eu o encontrei, e ele
disse que ficou pensando se eu havia “feito alguma coisa”, porque
ele teve pesadelos horríveis naquela noite. Senti certa satisfação ao
ouvir isso, o que diz muito de como andava meu estado mental na
época.
Um tempo depois, naquele mesmo ano, saí da minha cidade natal
e me mudei para Huddersfield, em West Yorkshire, para fazer uma
faculdade de três anos em ciências comportamentais (psicologia,
sociologia e filosofia) na Politécnica de Huddersfield. Foi ao sair de
casa que tive contato com a subcultura ocultista mais ampla no Reino
Unido.
O curso em que me matriculei atraía uma grande quantidade de
pessoas mais velhas, e vim a descobrir que algumas delas se
interessavam por ocultismo. Um dos meus colegas tinha sido, por
pouco tempo, membro da Cubic Stone (Pedra Cúbica), uma ordem
mágica inglesa especializada em magia enoquiana, e ele tinha uma
irmã mais velha que ainda estava envolvida com o grupo. A ordem
tinha um curso por correspondência —um tipo de treinamento básico
que, depois de completo, permitia que a gente se candidatasse a
membro. Fiz o curso em 1980 e logo comecei a praticar o pilar do
meio e o ritual menor de banimento do pentagrama no porão do
alojamento estudantil onde morava.
Já tinha me tornado membro da Sociedade Teosófica a essa altura
e, indo até lá na cidade vizinha de Leeds, comecei a frequentar
assembleias pagãs e a visitar uma das poucas livrarias ocultistas do
país na época, a The Sorcerer’s Apprentice, também em Leeds.
A loja, com suas janelas fumê e porta cortinada, tinha ares de
coisa proibida quando vista de fora, com uma atmosfera de
decadência urbana que na época era associada a sex shops. Logo
me tornei frequentador assíduo e comecei a usar o dinheiro da minha
bolsa estudantil para formar uma biblioteca particular.
Foi por meio da The Sorcerer’s Apprentice que cheguei pela
primeira vez aos dois volumes finos que, alguns anos depois, viriam a
ser considerados os dois textos fundamentais do movimento da
magia do caos: Liber Null, de Peter J. Carroll, e O livro dos
resultados, de Ray Sherwin. Logo comecei a fazer experimentos
com o método de sigilação de Sherwin, o que me rendeu umas
advertências do mentor no curso da Pedra Cúbica, que disse que
esse tipo de magia prática era perigoso e que iniciantes não
deveriam se arriscar. Ele também me deu bronca (por carta, com
caneta vermelha e um monte de pontos de exclamação) por escrever
“magick” em vez de “magic”,[2] dizendo que isso era coisa que só os
thelemitas faziam e que Pedra Cúbica não era thelemita! Continuei
fazendo meus experimentos mesmo assim. Eu não acreditava que
sigilos —ou que a magia em geral, na verdade— pudessem ser algo
perigoso, o que provavelmente era uma crença oriunda dos meus
estudos de psicologia.
A primeira experiência que tive com coisas estranhas na magia
ritualística foi minha tentativa de evocar o Grande Ancião Yog-
Sothoth de cima de um monte. Eu havia descoberto a obra de ficção
de H. P. Lovecraft, e um aspecto de sua escrita com o qual sentia
muita afinidade era o tipo de descrição que ele fazia de áreas rurais
e paisagens. Eu gostava muito de caminhar sozinho naquela época e
decidi aproveitar que morava perto de umas montanhas para evocar
um dos Grandes Anciões. Posso dizer com segurança que eu não
tinha a menor ideia do que eu estava fazendo, e não registrei em
meu diário de magia da época os detalhes exatos daquele ritual
noturno. O que me lembro mesmo é de ter visto um raio de luz
descendo das estrelas e atingindo uma das pedras mais baixas do
pico onde eu estava... Naquele momento, simplesmente saí
correndo. Fragmentos de memória persistem: eu correndo em pânico
morro abaixo, tentando não tropeçar nas pedras. Minha lanterna
balançando e às vezes iluminando o rosto das ovelhas em volta. Fui
parar, balbuciando coisas sem sentido, na casa de um colega que
morava do outro lado da vila. Ele me disse, com ar presunçoso, que
imaginava que acabaria acontecendo alguma coisa do tipo.
Hoje em dia, a magia lovecraftiana tende a ser classificada por
algumas pessoas como um subgênero da magia do caos, mas não
era o que eu pensava na época. Eu ainda não havia absorvido a ideia
de que podiam existir diferentes estilos ou abordagens de magia —
tudo era novo e empolgante demais para entrar nessas distinções.
No início de 1981, depois de terminar o curso de psicologia, voltei
para minha cidade natal. Um dia, folheando revistas de ocultismo,
esbarrei no classificado de um coven wicca recrutando pessoas
interessadas, e tinha um número de telefone. Brincando com a sorte,
liguei para o tal número e fui convidado para uma reunião. Esse
acabou sendo o ponto de virada da minha trajetória no ocultismo,
pois conheci não só a alta sacerdotisa do coven wicca no qual me
iniciei mais tarde, como também Richard Bartle-Bertelli (conhecido
como “O Mago de Dewsbury”), que se tornou, alguns anos depois,
um mentor para mim.
K., a alta sacerdotisa do coven, morava com o marido e os dois
filhos em uma casa grande em uma área isolada. Ao longo daquele
ano, passei a visitá-la várias vezes por semana, e ela começou a me
ensinar magia básica: como montar um altar, como desembainhar
uma espada mágica e como fazer um círculo. Sempre que queria me
ensinar algo especialmente importante, K. me levava para caminhar
pela praia ou pelas dunas no litoral, ou às vezes nos escondíamos
nos arbustos de seu jardim exuberante. Comecei a escrever um livro
das sombras e fiz vários exercícios para desenvolver uma relação
com os elementos. Mostrei a K. tanto o Liber Null quanto o Livro dos
resultados, e ela me incentivou a continuar experimentando com
essas novas abordagens mágicas. Eu havia acabado de ler o
romance O homem dos dados, de Luke Rhinehart, e estava fazendo
experimentos com dados para tomar decisões ou exercitar a magia.
Foi nessa época que escrevi meu primeiro artigo para a revista
The Lamp of Thoth, que era publicada pela livraria The Sorcerer’s
Apprentice. O editor (e dono) Chris Bray me mandou uma carta me
incentivando a escrever mais —minha primeira crítica positiva. O
artigo, chamado “The Dark Night of the Soul” [A noite escura da
alma], era um breve relato de como lidar com crises de
insensibilidade e desânimo espiritual. Esse velho artigo está
espalhado pela internet, apesar de agora —por conta desses
processos estranhos pelos quais textos saltam do papel para o
digital— ser geralmente atribuído a um certo Fra. Apfelmann, que foi
quem o transcreveu ou postou em um fórum pela primeira vez.
Mais tarde, naquele mesmo ano, fui formalmente iniciado no coven.
Relatei esse acontecimento —e a reviravolta subsequente— em
Caos primordial. Basicamente, fui iniciado no coven e, uns dias
depois, me informaram que a iniciação tinha sido um erro, que eu não
tinha o temperamento correto para a prática de magia e que não
deveria tentar fazer qualquer tipo de trabalho mágico dali em diante.
É difícil explicar a sensação de choque e decepção que senti
quando me disseram isso e, não muito depois, acabei saindo da
Inglaterra para trabalhar em um kibutz em Israel. Continuei meus
estudos de magia lá, tanto pelo material introdutório da Pedra Cúbica
quanto pelo Liber MMM, o programa de treinamento do Liber Null, e
encontrei áreas remotas para praticar rituais. Também escrevi alguns
artigos curtos que saíram na revista The Lamp of Thoth.
Estar em Israel naquele momento era algo empolgante e, às
vezes, angustiante —a Guerra das Malvinas entre a Grã-Bretanha e
a Argentina eclodiu enquanto eu estava lá, e uma vez um kibutz que
eu estava visitando perto da fronteira com o Líbano sofreu um
bombardeio. Havia áreas onde era perigoso transitar por causa de
minas não sinalizadas, e me acostumei a ver soldados por todo lado.
Talvez até tivesse passado mais tempo por lá, não fosse pela
invasão do Líbano em 1982, que foi a deixa para eu voltar para a
Inglaterra.
Em 1982, eu estava morando em uma pequena vila em
Lincolnshire. Apesar da minha intenção de dar um tempo de qualquer
coisa relacionada com o ocultismo, foi ali que tive encontros
recorrentes em sonhos com a deusa tântrica Kali (ver a “Introdução”
na seção Tantra deste livro). Passei boa parte do ano visitando
pessoas que não eram ocultistas, pegando carona pela Inglaterra,
mas sentia que os sonhos com Kali estavam me chamando de volta
ao mundo do ocultismo.
De Lincolnshire, me mudei para Nottingham para cursar enfermaria
psiquiátrica. Continuei a escrever e, em 1983, alcancei mais um
marco na minha trajetória: ser pago para escrever —no caso, um
artigo que saiu na revista White Dwarf, da Games Workshop,
intitulado “Sorcerous Symbols” [Símbolos de feitiçaria], no qual juntei
meu interesse pelo ocultismo ao amor pelos RPGs de fantasia. Era
uma tentativa de encaixar a metodologia de sigilos de Austin Osman
Spare na mecânica de jogo de Advanced Dungeons & Dragons.
Enquanto estava em Nottingham, me envolvi com um grupo de teatro
experimental que, em diferentes ocasiões, usava o nome “O Teatro
do Vudu”. Fizemos coisas interessantes com máscaras e possessão,
inspirados pelo livro Impro (1979), de Keith Johnstone, que ainda
considero ser uma referência maravilhosa para qualquer pessoa
interessada em rituais criativos, principalmente quanto ao uso de
máscaras. Apesar de algo do trabalho com esse grupo ter
influenciado minha prática mais tarde, na época eu não entendia de
fato a conexão entre o teatro de improvisação e rituais de magia.
Mais tarde, em 1983, troquei o curso de enfermaria psiquiátrica
por terapia ocupacional em York. Nessa época, eu já estava de novo
em contato com K. e seu coven. Haviam se mudado para
Macclesfield, no norte da Inglaterra. Recebi uma carta de K., do
nada, perguntando se eu queria continuar trabalhando com o grupo.
A minha iniciação “fracassada”, segundo ela, foi um teste proposital
para tentar me tirar um pouco da obsessão que eu tinha na época
por tudo que se relacionasse ao ocultismo. Em retrospecto, não
tenho certeza se essa tentativa foi bem-sucedida, mas é provável
que tenha sido o que eu precisava. Voltei para o coven com muito
mais confiança nas habilidades que eu vinha desenvolvendo e percebi
que havia parado de pensar em magia em termos mais psicológicos
e começado a tomar meu próprio rumo. Comecei a frequentar o
coven regularmente, assim como vários festivais de misticismo na
região. Não eram bem eventos de ocultismo ou paganismo, mas
costumavam ser frequentados por wiccas locais para trocar notícias
e fofocas, e foi nessas ocasiões que comecei a conhecer outras
pessoas paganistas e ocultistas. Isso foi importante porque, ao
ampliar meu círculo social, também encontrei pessoas com
perspectivas diferentes.
Considerando minha associação futura com a magia do caos e
certo grau de notoriedade que ganhei por conta de inovações em
magia (ou pelo menos por contestar “verdades” sagradas), agora
parece estranho eu ter passado os primeiros anos da minha vida
ocultista sem questionar muito o conhecimento que obtive através de
livros e das pessoas que foram minhas professoras. Embora eu
achasse o mundo da magia muito sedutor e empolgante, não tinha
autoconfiança suficiente para dar meus próprios passos. Também
acabava ficando razoavelmente isolado, pois eu tinha um número
limitado de contatos com quem conversar, e a maioria das pessoas
que eu conhecia parecia ser, a meu ver, muito mais experiente e ter
muito mais conhecimento do que eu. Conhecia só uma ou duas
pessoas com quem sentia que podia relaxar e conversar em pé de
igualdade. Mas esse isolamento foi benéfico, de certa forma. Hoje
em dia, qualquer magista iniciante que queira conselhos de colegas
antes de embarcar em seus experimentos mágicos pode fazer isso
pela internet. Quando comecei a participar de discussões em fóruns
de ocultismo como o Barbelith ou o Liminal Nation, várias vezes
percebi que as perguntas levavam a algumas discussões
interessantes sobre ser aconselhável ou não fazer certos rituais. No
entanto, o que me chamou a atenção mais de uma vez foi o fato de
as pessoas que pediam orientação serem desencorajadas a tentar
coisas novas. Se a internet estivesse disponível no início dos anos
1980, provavelmente teriam me convencido a não tentar evocar Yog-
Sothoth nas colinas de West Yorkshire. Como não tinha ninguém
para me dizer que eu não devia tentar, simplesmente fui lá e fiz —
uma iniciativa à experimentação que tem me servido bem desde
aquela época.
PARTE I
CAOS
INTRODUÇÃO
C
omo mencionei antes, meu primeiro contato com as obras de
Peter J. Carroll e Ray Sherwin foi em 1980, mas na verdade,
desconsiderando uma ou outra experiência com sigilos, só fui
lidar de fato com a magia do caos anos depois. Em 1985, eu estava
morando em uma comunidade punk/hippie nos arredores de York e
estudando terapia ocupacional. Os dois fatos influenciaram
posteriormente, cada uma à sua maneira, o modo como eu viria a
praticar magia do caos. Embora, no geral, eu ainda estivesse
bastante envolvido com a wicca nessa época, estava começando a
me afastar dela.
Em meio aos círculos sociais da comunidade em York, conheci
algumas pessoas envolvidas na cena alternativa do Reino Unido.
Hippies velhos, punks jovens, uma galera “alternativa” com o cabelo
todo colorido e um jeito descontraído de encarar a vida que era
muito diferente de como a encarava a maioria das pessoas que eu
havia conhecido pela wicca —a maior parte era gente da classe
trabalhadora que, apesar do interesse em ocultismo, tinha uma visão
de mundo mais conservadora. O coven que havia me iniciado em
1981 —que me expulsou e depois me readmitiu— se preocupava
demais em manter segredo. Por exemplo, me diziam para não deixar
nenhum dos meus livros de ocultismo à vista. Me proibiam de falar
sobre meu envolvimento com o ocultismo com quem não fosse
praticante, a ponto de dizer que, se outras pessoas perguntassem
pelo meu interesse no assunto, eu deveria negar que sabia qualquer
coisa e evitar falar com elas. Segui essas recomendações por um
tempo, mas comecei a ficar cada vez mais cansado dessas
restrições e descobri, aos poucos, que na verdade eu gostava de
falar com as pessoas sobre ocultismo. Afinal, era uma paixão minha,
tão central para a minha identidade pessoal que, mais cedo ou mais
tarde, não teria como evitar falar do assunto. E, na maioria das
vezes, as pessoas com quem eu falava reagiam de forma bastante
positiva. Podiam até não concordar com as minhas ideias, mas
também não saíam correndo aos gritos.
Foi durante esse período que eu li a trilogia Illuminatus!, de Robert
Anton Wilson e Robert Shea, e parte da obra de não ficção de
Wilson. Isso me levou a comprar um exemplar do Principia
Discordia, e me identifiquei muito com a ideia de uma deusa do caos
zombeteira —Éris. No equinócio de outono de 1985, consegui
convencer o coven a me ajudar a fazer um ritual para invocá-la. No
dia seguinte, enquanto esperava um trem na estação de Stockport,
“canalizei” uma mensagem de Éris, “O livro estúpido”. Pela primeira
vez, comecei a sentir que estava “indo a algum lugar”, embora eu
não tivesse certeza de que lugar era esse e nem de qual era o
caminho até ele. Mais rituais com Éris vieram e, embora eles fossem
quase sempre estruturados no estilo de magia ritualística que eu
havia aprendido no coven, eu estava começando a “experimentar” —
com o tempo, passei a usar um pentagrama feito de curvas (o
“pentagrama espiral” mencionado em Caos primordial) e sequências
de movimentos energéticos do tai chi. Ao mesmo tempo, estava
espalhando a palavra de Éris, por assim dizer, entre as pessoas que
eu conhecia na cena alternativa de York —por mais que a maioria
delas ainda achasse o ocultismo sem graça e entediante, essas
pessoas não tinham problema algum em aceitar a ideia de uma
deusa do caos excêntrica e caprichosa que pode ser invocada por
meio de ações aleatórias meio bobas. Uma vez, a bicicleta de uma
amiga foi roubada na frente do prédio da União Estudantil. Ela
espalhou um cartaz declarando que era uma “bruxa erisiana” e que a
bicicleta era seu familiar. Em uma faculdade com um grupo grande e
forte de cristãos, essa foi uma jogada corajosa, mas a bicicleta
reapareceu rapidinho. Naquele mesmo ano, participei de uma
performance em uma boate de York onde outra amiga foi declarada
a Papisa da Discórdia de York e recebeu um monte de papéis como
comprovação. Eu estava começando a entender outra lição
importante, que mais tarde faria parte do meu modo de lidar com a
magia do caos: a diversão, arte de não levar a magia —e, por
extensão, não me levar— a sério demais.
Quero voltar ao assunto do curso de terapia ocupacional, pois
acredito que os princípios que aprendi a usar no ambiente clínico
também moldaram algumas das minhas ideias sobre magia do caos.
É verdade que meu interesse em dinâmicas de grupo e rituais
criativos foi muito influenciado pela minha bagagem de terapia
ocupacional aplicada a grupos. Durante alguns anos, ministrei
oficinas no Reino Unido, em outras partes da Europa e nos EUA que
se baseavam muito nessa experiência. Basicamente, eu pegava
exercícios de dramatização usados em terapia e adaptava para o
ocultismo, mas não era só isso. A terapia ocupacional usa uma
abordagem multidisciplinar para resolver problemas de pessoas
específicas. Por exemplo, terapeutas podem ter clientes que se dão
melhor com o método psicanalítico, bem como clientes que lidam
melhor com a terapia comportamental. Ambos os métodos de
tratamento têm seus pontos fracos e fortes —o importante é saber
quando aplicar cada um.
Também há uma ênfase importante na avaliação: ser capaz de
avaliar os resultados práticos do tratamento e a efetividade de quem
aplicou esse ou aquele método de terapia.
Acredito que todos esses temas estejam bem aparentes tanto em
Caos condensado quanto em Caos primordial. Embora eu tenha
decidido não seguir carreira em terapia ocupacional depois de
completar os três anos do curso de formação, muito do que aprendi
(o que incluía uma gama ampla de habilidades práticas, desde
marcenaria até o uso de computadores) apareceu mais tarde no meu
trabalho com magia, seja promovendo oficinas ou atividades em
grupo, seja atendendo clientes diretamente como magista.
Foi em novembro de 1985 que certos acontecimentos por fim me
levaram a sair do coven. Foi feito um ritual com o qual a liderança do
coven estava muito envolvida emocionalmente. Na noite anterior,
algumas das pessoas convidadas para a ocasião foram muito
agressivas, verbal e fisicamente, acusando outras pessoas
presentes de “praticarem magia negra” ou de estarem “possuídas
pelo demônio”. Essa atmosfera não era favorável para um bom
trabalho de magia, pelo menos não na minha opinião. Eu realmente
não queria fazer ritual nenhum naquele ambiente, mas senti que não
tinha escolha.
Logo depois do ritual, eu quis fugir do clima de hostilidade que
havia se formado no ambiente. Me deitei em um dos quartos e tentei
me conduzir, via pathworking, a um lugar mais acolhedor. Algum
tempo depois, fui trazido de volta ao presente no susto: uma das
pessoas que participaram do ritual estava sentada acima da minha
cabeça, uma perna de cada lado, movimentando um atame bem na
frente do meu rosto. Aparentemente, haviam entendido o fato de eu
estar deitado sozinho em um quarto, sem atender ao ser chamado,
como sinal de que eu estava “sob ataque de demônios”. Passei o
resto da noite em outra casa, oscilando entre sentimentos de
confusão e fúria.
Isso devia ter sido suficiente, mas não. No dia seguinte, fui embora
para York o mais cedo possível e simplesmente me recusei a
participar de um outro evento que estava planejado. A confiança que
eu havia depositado no coven tinha se despedaçado por completo, e
eu não queria mais saber de dramas ocultistas. Uns dois dias depois,
recebi uma carta dizendo que as outras pessoas do coven haviam
recebido uma mensagem astral de que eu seria atacado de novo por
demônios. Elas tinham inclusive estacionado no meio da estrada e
feito algum tipo de ritual improvisado ali mesmo, pois meu corpo
astral estava em perigo iminente de ser destruído! Também me
deram muitos “conselhos” sobre como meu interesse em caos, Kali
etc. estava me levando a lugares perigosos... Mas eu já havia
parado de escutá-las naquele momento. Felizmente, eu tinha um
amigo —o finado Richard Bartle-Bertelli— que era uma espécie de
mentor para mim, embora sempre que eu demonstrava que ele era
um professor para mim, ele dava de ombros e dizia que éramos só
dois magistas compartilhando pensamentos e ideias. Richard era
gentil, pé no chão e não padecia do mal de se levar a sério demais.
Além disso, ele conhecia a maioria das pessoas envolvidas naquela
série de acontecimentos. Depois de explicar a situação, o que eu
estava sentindo e a carta esquisita, ele basicamente disse: “Essas
pessoas são malucas. Você não precisa disso. Fique longe delas”. E
foi isso o que eu fiz.
E
ste Livro Burro é a Enunciação de Éris. Não me leia em voz
alta, pois é só nos silêncios entre os espaços que posso ser
ouvida.
Meu sacerdote é mudo, pois está arrebatado por meus beijos. Meus
lábios são gelo, o fogo (glifo de Shin) das minhas línguas queima em
sua fronte.
O passado não me conhece. Cada momento é um novo início. O
futuro está escrito nas dobras de minha toga. E dela me despi; as
possibilidades de todas as coisas ainda não nascidas.
Em todas as coisas, adore a mim. O jogo amoroso de agonias e
êxtases. Esteja aqui comigo. Agora. Para sempre.
A matéria é meu parque de diversões. Eu faço e desfaço sem
pensar. Ria e venha a mim.
Meu sacerdote sabe meu nome secreto.
Deseje, digo-lhe, mas não buscando resultado, pois a ele estaria
preso. Venho a você despida. Meu corpo é delineado nas estrelas.
Não me procure fora, não me procure dentro.
Ao mesmo tempo sou a dançarina e a dança. Deixe que todas as
coisas se unam no nada.
O encenar da paixão entre visão e som: todas as coisas vão a
você pois nada recuso!
Sou o todo e o nenhum. Todas as cabalas são iguais. Não pense
em me vincular a uma só; pois eu sou nenhuma.
Não pense em idolatrar, pois lhe arrancarei todo peso. Você não
passa de uma pena de pavão no meu cabelo —entenda isso!
Sou a raiz de tudo que está por vir!
Você é a pupila dos meus olhos; ouro e prata.
O tolo já é meu. Que o Mago se torne um malabarista nas ruas.
Isso é mais honesto.
Que minha sacerdotisa seja a puta das sarjetas.
Não há mensagem neste livro!
Minhas árvores carregam um fruto estranho: partilhe, e partilhe em
igualdade.
Tudo é revelado em meu nome secreto.
TÉCNICAS PARA
ANALISAR SITUAÇÕES
ANTES DE INTERVIR
POR MEIO DA
FEITIÇARIA
Este ensaio foi escrito em 1996 e, pelo que me lembro, só veio a público
em uma das versões iniciais do meu primeiro site. As raízes deste texto
estão no trabalho mágico que realizei no final dos anos 1980 e início dos
anos 1990 com amigos em Leeds, depois em Londres, para encontrar
ferramentas que ajudassem magistas a pensar melhor no uso de feitiçaria
em suas intervenções, especialmente quando o trabalho envolve
problemas e questões alheias. Acho que hoje já se reconhece bastante a
importância desse tipo de abordagem, mas, na época em que discutimos
o assunto, havia pouco material disponível.
À
s vezes acho que a tentativa de influenciar uma situação por
meio da feitiçaria é algo semelhante à acupuntura —se
acertamos o ponto exato, obtemos o resultado desejado. O
problema, no entanto, é que esse “ponto exato” nem sempre é
evidente de imediato, pode mudar de um momento para outro, e é
bem improvável que seja o mesmo ponto quando tentarmos fazer
algo parecido de novo.
Quando diante de uma situação que parece favorável a
intervenções com feitiçaria, nossa tendência enquanto magistas é
basicamente agir por impulso. Por isso, podemos acabar nos
precipitando e tentando alterar a situação sem conhecê-la tanto
quanto deveríamos. Como uma pessoa prevenida vale por duas,
acredito que usar uma variedade de técnicas analíticas para chegar
à imagem mais completa possível da situação ajuda muito no
resultado de atos de magia —pode ser a diferença entre “atirar a
esmo” e mirar exatamente no que se quer alcançar.
Alguns anos atrás, uma pessoa me procurou pedindo ajuda mágica
para um indivíduo que seria julgado por uma série de acusações. Ela
descreveu brevemente a situação e pediu que o objetivo “ideal” da
magia fosse o indeferimento de todas as acusações. Sentindo que
ela não estava me contando a história toda, pedi a um excelente
oraculista amigo meu para fazer uma leitura de tarô sobre a
situação, na esperança de descobrir algumas “variáveis ocultas”.
Tudo que descobrimos nas cartas foi confirmado depois pela pessoa
que havia me procurado, e, na minha opinião, indicavam uma
probabilidade imensa de que todas as acusações não fossem
“indeferidas”. Com isso, mirei em um resultado que julguei ser mais
razoável, dadas as circunstâncias do caso.
O que estou querendo dizer é que as situações normalmente são
bem mais complexas e menos delineadas do que costumamos crer,
principalmente quando começamos a preparar o altar. Acredito que
um dos segredos da feitiçaria eficaz não é tanto aplicar “magia” a
uma situação, mas sim saber quando e como lançar mão do nosso
poder.
Uma amiga que eu e Frater GosaA temos em comum entrou em
depressão depois do término de um relacionamento de alguns anos.
Ela parou de sair, e sua autoconfiança parecia ter sido muito
afetada. Achamos que seria bom para ela conhecer pessoas novas e
interessantes e decidimos fazer um feitiço buscando esse resultado.
Se a pessoa não está saindo e socializando, a probabilidade de
conhecer “gente interessante” vai ser muito pequena. Além disso,
quando alguém se sente emocionalmente vulnerável e pouco
autoconfiante, é improvável que aproveite bem as oportunidades de
causar uma boa impressão. Então priorizamos um feitiço progressivo
que primeiro “daria um empurrãozinho” na autoestima dela e depois,
quando sua autoconfiança estivesse mais fortalecida, começaria a
operar em outros sentidos, se desdobrando em diversas variáveis da
situação de uma só vez.
Usando técnicas oraculares
A situação ou o acontecimento
A consulta oracular pode expandir as informações sobre uma
situação de diferentes maneiras. Você pode, por exemplo, usar o
tarô para sondar “aspectos ocultos” e depois fazer outras leituras
sobre o que tiver surgido. Você pode descobrir como diferentes
aspectos de uma situação se relacionam de maneiras nada óbvias, e
quais podem ser os resultados da situação em diferentes cenários.
Se você se sentir uma pessoa particularmente corajosa, pode
sempre perguntar se sua intervenção mágica será capaz de
influenciar o resultado favoravelmente.
Perfil psicológico
Se você só dispõe de poucos detalhes sobre as principais pessoas
envolvidas em uma situação, pode construir um “perfil psicológico”
usando sistemas oraculares (astrologia natal pode ser bem útil
nesses casos) e usá-lo para investigar o comportamento, a atitude e
outros aspectos dessas pessoas. Esse tipo de perfil pode ser muito
útil quando buscamos pontos psíquicos fracos.
Intuição
Ao longo dos anos, me dei conta de que minha intuição é
razoavelmente bem desenvolvida, e que desconsiderá-la é arriscar
com a minha sorte. Por outro lado, se apoiar demais na intuição
pode ser algo perigoso. Não devemos deixar de considerar outras
perspectivas e possibilidades só porque intuímos qual seria a melhor
abordagem para uma situação específica. Além disso —e, como boa
parte das práticas de magia, esta é uma questão pessoal—, gosto
de tentar descobrir (às vezes com a sabedoria da experiência) a
“razão” do que foi concluído a partir da intuição. É possível treinar a
nossa intuição para que ela funcione mais efetivamente a nosso
favor, e nos afastarmos um pouco da situação para examiná-la mais
friamente (em vez de permanecermos envolvidos nela) pode ser um
bom começo.
Oráculos
Podemos recorrer a diversas formas de oráculo, desde
metaprogramar nossos sonhos usando sigilos e servidores a falar
com espíritos em visões ou questionar uma entidade por meios
astrais ou via agentes humanos. Já recebi (porém muito raramente,
admito) “pistas” de um familiar espiritual sobre como poderia
conduzir um trabalho específico, mas não gostaria de me apoiar só
nesse tipo de fonte.
Análise SWOT
A análise SWOT, também conhecida em português pela sigla FOFA,
se refere a forças, oportunidades, fraquezas e ameaças. Pode ser
útil analisar uma situação sob esses quatro aspectos.
Pontos fortes
A questão aqui é olhar para os pontos fortes da sua posição em
relação ao resultado —qualquer coisa presente na situação que
possa ajudar a manifestar a sua “declaração de intento”.
Informações específicas nas quais você pode se concentrar nesse
sentido incluem tudo aquilo que você souber ou inferir sobre
emoções, comportamentos e/ou pré-disposições das pessoas
envolvidas; como o tempo pode influenciar a situação (por exemplo,
deixar a situação de lado por um mês pode ser mais eficaz do que
começar imediatamente); ou como eventos relacionados
indiretamente à situação podem ajudar.
Outro ponto que deve ser considerado: dada a sua declaração de
intento, quais são os possíveis caminhos de manifestação do
resultado? Se você está prestes a provocar o colapso de uma
corporação multinacional que pretende transformar o seu local
sagrado em um estacionamento, você já identificou os possíveis
pontos fracos na estrutura corporativa que, se levemente
“cutucados”, poderiam levar à sua derrubada? Ou, em uma outra
perspectiva, se quer fazer um feitiço para encontrar o rapaz/a
moça/o pinguim dos seus sonhos, você está fazendo algo para
permitir que esse modelo ideal saia dos seus sonhos e entre na sua
vida?
Pontos fracos
Você deve considerar como pontos fracos quaisquer coisas que
diminuam a probabilidade de o resultado almejado se realizar. Esse é
um bom momento, quem sabe, para examinar o que você deseja e
considerar se não estaria mirando longe demais, ainda que só
inicialmente. Por exemplo: o que você está tentando fazer não vai
muito além do que se pode esperar? É plausível esperar por um
resultado instantâneo se os limites da situação apontam na direção
de um resultado progressivo e lento? Será que é razoável tentar
influenciar outra pessoa de uma maneira que difere muito daquilo que
você sabe sobre a personalidade dela? A própria forma como você
definiu sua declaração de intento pode muito bem ser um ponto
fraco.
Oportunidades
Considere como oportunidades quaisquer estratégias que possam
ajudar com as especificidades do feitiço ou que possam abrir uma
“janela de oportunidade” para você. Talvez o alvo de seu
descontentamento esteja prestes a entrar no hospital para uma
“cirurgia simples”; ou talvez a pessoa que você está ajudando a se
livrar da heroína via magia pode estar prestes a ser internada em
uma cínica de reabilitação. Quem sabe você tenha uma ligação
material com a pessoa que está tentando curar, ou uma fotografia
que pode ajudar outra pessoa a te ajudar nessa empreitada?
Ameaças
Aqui você deve considerar as possíveis consequências de um
fracasso no trabalho mágico. Além disso, o que pode acontecer se a
situação mudar de repente de uma forma que você não considerou
antes?
Você certamente perceberá que é muito raro conseguir prever
algum cenário de “ameaça”, mas esse ponto tem sua utilidade, por
exemplo, em magias maléficas. Conheci um magista que considerou
seriamente lançar uma maldição mortal contra um parente, mas
desistiu quando ficou sabendo que a probabilidade de o resultado ser
um “rápido acidente de carro” era baixa, e que seria muito mais
provável, dado o histórico de saúde do alvo, que o resultado
desejado se desse através de um câncer terminal. A “ameaça” nesse
caso foi que o magista se deu conta de que não conseguiria conviver
com as consequências de causar câncer terminal em um parente!
Conclusões
Resumo
F
alta à cultura do caos uma visão geral de progresso rumo a um
futuro comum. O progresso civilizacional está perdendo gás,
enquanto o pluralismo e a divergência estão virando a cena
contemporânea do avesso e a transformando em uma superfície
fractal, vibrando com novas possibilidades. Fragmentos do passado
e do presente são reorganizados pelas mãos cegas dos novos
deuses —moda, estilo, entretenimento—, pilhando o passado para
dar suporte a um agora imediato. Essa é a dança estonteante de
maya. Tudo é permitido porque nada é verdadeiro. Reflita sobre isso
por um momento.
Gnose
A experiência peculiar da consciência conhecida como gnose é a
chave para todo ritual mágico. Boa parte da magia prática gira em
torno de desenvolver a habilidade de entrar em gnose e talvez, em
alguns casos, de reconhecer a gnose, que costuma ser entendida
como o momento culminante de qualquer exercício que induz ao
transe, no qual o desejo pode ser fenomenizado com sucesso. Mas
será que a gnose é só aquilo que se alcança depois de meia hora
girando, recitando ou se masturbando em cima de um sigilo? Essa
dança toda só por aquele momento ínfimo e breve de deslocamento
para um outro lugar?
A gnose também pode ser entendida como “conhecimento do
coração” —o conhecimento difícil de expressar diretamente com
palavras; uma projeção gestáltica que pode levar anos para decantar
através das camadas de conectividade antes de emergir como
palavras em uma tela. O universo mágico é, necessariamente, um
espaço finito. A gnose pode muito bem nos jogar, por um instante,
para além dessa finitude. E, como diz William Burroughs, não dá
para levar palavras para o espaço.
A gnose, tal como geralmente se usa esse termo em magia do
caos, é simplesmente a ponta visível de uma vasta gama de
experiências numinosas que se costuma ver como domínio de
pessoas místicas, com a rara exceção de psiconautas. Embora seja
possível argumentar que as práticas místicas podem levar a todo
tipo de vírus verbais (como a religião), também vale considerar que
entender a gnose só como aquilo em que penetramos brevemente
para fenomenizar um desejo é subestimar as potencialidades mais
amplas dessa experiência.
S
e eu tivesse de me descrever usando um só rótulo, seria
“paganista”. Independentemente do tipo de magia que tenha
feito em dado momento —wicca, xamanismo urbano, magia do
caos ou tantra—, sinto que “paganista” é minha definição-padrão.
Meu envolvimento com o ativismo paganista só começou de
verdade depois de meados dos anos 1980, quando me mudei para
Leeds e me envolvi com a Paganlink, que era um tipo de rede
independente com o objetivo de reunir paganistas do Reino Unido,
organizar assembleias paganistas locais, se envolver em ações
políticas, e por aí vai. Hoje várias pessoas são consideradas
“fundadoras” do Paganlink, mas meu contato foi com o finado Rich
Westwood, que era o dono de uma livraria de ocultismo em
Birmingham, a Prince Elric’s. Eu havia conhecido Rich em um festival
místico em Manchester, onde conversamos sobre a Paganlink. Ele
era um homem amigável e engajado que acreditava muito que se
declarar paganista era uma ação política, e que parte dessa
sensibilidade política se dava pela construção de uma comunidade
local e regional por meio de parcerias. Na época, eu queria muito
conhecer mais gente e estava muito aberto a ajudar Rich a viabilizar
seu sonho.
Quando me mudei para Leeds, me tornei o coordenador regional
da Paganlink de West Yorkshire, o que era só um título pomposo
para quem se dispunha a dar o próprio endereço para ajudar
paganistas da área a fazer contato entre si. Uma maneira simples de
fazer isso foi ressuscitar a assembleia paganista de Leeds, que
esteve na ativa no final da década de 1970 e chegou a produzir um
zine chamado The Griffin, batizado em homenagem ao Hotel Griffin,
local onde acontecia a assembleia. Eu ajudei tanto a ressuscitá-la
quanto a divulgá-la nas várias revistas que começavam a aparecer
pelo país. Outras assembleias locais acabaram surgindo disso.
E então veio o Heal the Earth [Cure a Terra], um ritual em massa
com o objetivo de mobilizar paganistas de diferentes regiões a fazer
um ritual ou ato mágico (não especificamos o formato) no dia do
solstício de verão, em 1987, entre meio-dia e quatorze horas, para
conscientizar as pessoas sobre a crise ecológica mundial. Discutimos
a ideia de abordar questões políticas específicas, mas, no fim,
decidimos que nosso objetivo seria mais geral: “uma onda
perpassando a mente planetária humana”, como alguém propôs. Eu
realmente aprendi algumas lições muito importantes ao ajudar a
organizar o evento, e a principal foi que o entusiasmo das outras
pessoas era essencial para fortalecer o ímpeto de realização. O
simples fato de trocar ideias com outras pessoas em um grupo já era
uma experiência excelente, e depois levar essas ideias a outros
grupos —e conseguir entusiasmá-los— também foi maravilhoso. Eu
havia passado tanto tempo em um grupo fechado que proibia discutir
abertamente tópicos e ideias de ocultismo que essa foi uma
experiência realmente libertadora.
Sheila Broun, uma artista-magista e professora, deixou que
usássemos como ponto focal uma imagem que ela havia criado do
Ás de Copas, e escrevemos um panfleto da forma mais sucinta
possível. Esses panfletos foram colocados em murais de lojas,
escondidos dentro de livros e revistas e distribuídos em festivais no
país inteiro. Só o grupo de Leeds chegou a distribuir cerca de sete
mil panfletos —nada mau para pessoas, em sua maioria, de baixa
renda—, e depois descobrimos que foram distribuídos cerca de vinte
mil. O ritual foi bem-sucedido? Não sei. O que importa para mim,
olhando para trás, foi ter percebido como o entusiasmo
compartilhado pode rapidamente se tornar uma força para gerar
mudanças.
Uma das pessoas que conheci na época em que ajudava a
organizar o Heal the Earth foi Rodney Orpheus, um músico de Leeds
que adorava computadores. Foi por meio de Rodney que tive meu
primeiro contato com os fóruns precursores da internet, e também foi
por meio dele que montei um boletim gratuito local para o Paganlink:
o Northern Paganlink News (NPLN). A primeira edição do NPLN saiu
em março de 1988, contendo quatro páginas. Imprimimos 25
exemplares, que distribuímos em eventos locais de paganismo e em
lojas amigas. Quando chegou maio daquele ano, já estávamos em
duzentas cópias por edição, e em junho o boletim já chegava a seis
páginas. Além disso, tínhamos comprado um software de editoração
e uma impressora a laser de ponta. Enviávamos as edições e
incentivávamos outras pessoas a fazer e distribuir suas próprias
cópias. O boletim anunciava assembleias locais, notícias sobre
eventos relacionados ao Paganlink e outros eventos do interesse de
paganistas. Mas nessa época outra coisa surgiu e começou a ocupar
cada vez mais espaço em nossas páginas: o pânico satânico
relacionado a abuso infantil.
Esse pânico moral durou, pelo menos no Reino Unido, de 1987 a
1992. Em 1988, sua fase inicial acabou se manifestando
principalmente na publicação de artigos antiocultistas na imprensa
popular e no surgimento de especialistas na mídia expressando
preocupação com a popularidade cada vez maior do ocultismo na
sociedade. Por exemplo, um artigo publicado no jornal The Sunday
Express (15 de maio de 1988) mencionava a Ordo Templis Orientis
como uma organização que “levou desgraça e degradação a
centenas de crianças”, e exortava o secretário do Interior a investigar
“cultos malignos”. Também se discutiu na imprensa popular e no
Parlamento a possibilidade de restabelecer as leis do Reino Unido
contra bruxaria.
Em setembro de 1988, Rodney e eu tomamos em boa hora a
decisão de cortar o Northern e o Link do título do boletim (já que a
distribuição nessa época havia ido além do norte da Inglaterra, e
materiais relacionados à Paganlink não eram mais o único foco). Foi
assim que surgiu o Pagan News, “o jornal mensal de magia e
ocultismo”, um volume de oito a doze páginas que custava trinta
pence. A impressão era feita pela AGIT Press, de Leeds,
comandada por integrantes da banda Chumbawamba. Conseguimos
manter a publicação do Pagan News, primeiro mensalmente e depois
bimestralmente, até 1991. Tivemos imensa contribuição de várias
pessoas que se voluntariaram para distribuir o zine por lojas locais,
bem como das poucas lojas voltadas para o ocultismo que nos
pagavam para publicar propagandas (nossa principal fonte de renda)
e das várias pessoas que aceitaram escrever para o jornal. O etos
editorial do Pagan News era ser o mais eclético possível.
Publicávamos artigos sobre qualquer aspecto do espectro
ocultista/paganista desde que cumprissem, em seções específicas,
nossas diretrizes em relação ao limite de palavras e à nossa linha
editorial. Partíamos do princípio de que o paganismo incluía uma
grande variedade de crenças, e isso era algo que expressávamos
com frequência sob a ótica da filosofia vulcana: “diversidade infinita
em infinita combinação” (éramos ambos fãs de Star Trek). De vez em
quando, recebíamos alguma crítica por tirar sarro de um monte de
“verdades sagradas” ou por publicar material do “caminho da mão
esquerda”.
Também éramos totalmente contra dar qualquer credibilidade ao
pânico satânico, e também por isso recebíamos críticas e perdíamos
assinantes de vez em quando. Nas novas comunidades de
paganismo e ocultismo havia algumas pessoas que queriam distância
de tudo aquilo de que desconfiavam, como, por exemplo, qualquer
coisa relacionada a Aleister Crowley, thelema ou o que mais
coubesse no “caminho da mão esquerda” —um termo generalista até
demais.
Nesse período, era razoavelmente comum encontrar pessoas que
se proclamavam “bruxas de magia branca”, ávidas por quinze
minutos de fama na mídia, alegando que, apesar de a maioria das
pessoas paganistas serem cidadãs de bem e fazerem tudo dentro da
lei, havia alguns “círculos secretos” que tinham de ser eliminados.
Hoje, quando converso com outras pessoas sobre como era ser
abertamente paganista durante esse período de pânico satânico, é
comum admitir que esse período na história do paganismo britânico
foi sombrio e horripilante, um período em que quase nada vinha a
público e as pessoas andavam de cabeça baixa. Mas a minha
experiência não foi essa. Afinal, foi nesse período que as primeiras
grandes conferências paganistas aconteceram. Um evento de dois
dias na Universidade de Leicester em 1988 recebeu 5 mil pessoas,
por exemplo. Houve exposições de arte ocultista em bibliotecas
públicas. As pessoas estavam se revelando mais como paganistas, e
infelizmente uma parte do governo conservador da época entendeu
isso como uma ameaça aos valores cristãos “tradicionais”, o que, em
parte, criou algumas das ansiedades que surgiram durante o pânico
satânico.
Também nesse período, em parte graças ao desenvolvimento dos
computadores pessoais de custo relativamente baixo e aos
aplicativos de editoração, houve uma expansão de revistas
independentes de paganismo e ocultismo no Reino Unido, desde
zines generalistas voltados para notícias, como o Pagan News, até
aqueles dedicados a tradições ocultistas específicas. Na medida em
que fui ganhando confiança em meus textos, comecei a escrever
para uma gama variada de publicações que ia de Moonshine, revista
de Rich Westwood voltada para o paganismo, até o Nox, periódico
do “caminho da mão esquerda” para ocultistas “hardcore”. Em uma
ocasião memorável, escrevi uma curta “biografia” de Satã que
pretendia mandar para o Nox, mas decidi ver o que aconteceria se a
enviasse para a Moonshine, e ao mesmo tempo mandei para o Nox
um texto sobre práticas xamânicas que havia escrito originalmente
para a Moonshine. O editor do Nox ficou bem satisfeito com o
ensaio sobre xamanismo, e a Moonshine acabou usando o texto
sobre Satã, embora depois eu tenha ouvido boatos de que os
editores não ficaram muito entusiasmados com ele, para dizer o
mínimo, e que não aceitariam mais qualquer coisa parecida. Um
amigo também me contou que haviam lhe perguntado se existia dois
“Phil Hines”, pois algumas pessoas acharam difícil acreditar que
alguém pudesse escrever sobre xamanismo e questões paganistas
e, ao mesmo tempo, sobre outras áreas mais excêntricas do
ocultismo.
Rótulos são coisas estranhas. Ao longo dos últimos quarenta anos
da minha vida no ocultismo, eu adotei —e em alguns casos me
deram— vários rótulos: wicca, paganista, magista do caos,
praticante de tantra, xamã urbano, pesquisador independente, só
para citar alguns. Rótulos podem sinalizar ou ajudar a entender os
parâmetros que orientam ou moldam nossa prática, mas também
costumam ser restritivos. Eu vejo o paganismo muito como um
espaço tolerante pelo qual várias ideias e posturas —algumas
conflitantes— podem fluir.
RECONSIDERAÇÕES
SOBRE RITUAIS
POLÍTICOS
A
inserção de uma dimensão política no universo da magia
ocidental teve uma série de efeitos colaterais animadores,
sobre os quais podemos dizer:
1. Rituais em massa criam um espírito comunitário e abrem o
campo para outras ações coletivas.
2. Eles ajudam a reunir pessoas de diferentes orientações em
nome do compromisso de promover mudanças.
3. São empoderadores: renovam a certeza interior de que somos
capazes de agir e fazer diferença.
4. O que se ganha em troca ao participar desse tipo de ritual é
diretamente proporcional à energia usada para fortalecer o ritual ou
para construir sua estrutura organizacional.
Dados esses pontos positivos sobre nossa empreitada, é
necessário lançar um olhar crítico sobre o processo e procurar
caminhos e meios para ampliar a politização da atividade mágica. A
primeira consideração é entender a importância do tipo de técnica
usada para gerar a energia do ritual. A meditação solo é a técnica
mais conveniente de energização, mas não é a mais eficaz; para
gerar a força necessária para executar o ritual, é preferível fazer uso
de técnicas mais vigorosas, como percussão, dança, canto ou
hiperventilação, especialmente se forem feitas por duas ou três
pessoas.
O local do ritual também é importante. O quartinho dos fundos
pode até ser o lugar mais prático, mas vale repetir que a facilidade
não é o que mais importa aqui. Estar ao ar livre é preferível, mais
ainda em lugares altos, de onde se pode enxergar uma grande
extensão de terra ao redor.
Obviamente, quanto mais nos empenhamos para organizar algo,
escolher um lugar, juntar as pessoas e decidir o que será feito, mais
especial se torna o evento, e ele precisa ser especial para ser
eficaz. Lembre-se de que você vai desempenhar um ato sagrado, o
que não significa que ele tenha de ser totalmente formal, mas sim
que não deve ser feito com indiferença e sem nenhum entusiasmo.
Como o alvo de um ritual político é a consciência de grupo, tendo
como foco o mundo em geral ou parcelas específicas da população,
o resultado desses trabalhos vai ser sutil e vai se desenrolar no
longo prazo. Não há motivo algum para nos contentarmos com isso,
então é necessário procurar outras formas de intervir por meio de
atos mágicos.
Nossos irmãos e irmãs cristãos estão bem mais à frente do que
nós nesse aspecto. Quando as comunidades cristãs mais militantes
se dão conta de algo que consideram moralmente repreensível, logo
organizam uma vigília para barrá-lo. Um grupo pequeno, se movido
por ousadia e vontade (e algum conhecimento), consegue colocar
umas boas “pedras no sapato” das maquinações do Estado e dos
“deuses idiotas” do mundo corporativo.
Magia de propaganda
Este texto foi publicado na edição de maio de 1990 da Pagan News. Este
artigo de opinião foi escrito dois anos depois do início do pânico satânico
que tomou conta do Reino Unido. Eu queria chamar atenção para a
questão de que os ataques midiáticos liderados por fundamentalistas
cristãos contra paganistas e ocultistas deveriam ser vistos como
elementos de uma campanha muito mais ampla para reestabelecer os
“valores familiares” conservadores no Reino Unido.
H
á dois anos, a campanha antiocultista inspirada por grupos
fundamentalistas deu início à histeria midiática liderada pelo
intrépido membro do parlamento Geoffrey Dickens e pela
imprensa sensacionalista. Essa histeria não parou e exibe todos os
sinais de estar piorando. Grupos como o Reachout Trust e o
Christian Response to the Occult orquestraram uma campanha em
todo o país para “informar” a imprensa nacional e local sobre os
“perigos” do ocultismo usando ganchos emocionais poderosos: a
ideia de que a família e as crianças estavam “em perigo”. Houve
quem fizesse pouco caso desses ataques, dizendo que vinham de
umas poucas pessoas fanáticas e extremistas, mas a coisa não é
tão simples.
Não são só paganistas e ocultistas que estão sob ataque. Nos
últimos anos tem acontecido um cerceamento constante de
liberdades civis no Reino Unido. A Grã-Bretanha tem sua própria
“maioria moral”: uma coleção de aristocratas e sirs, além de
jornalistas e gente dos ministérios, da academia e de outras
profissões. Essas pessoas exercem influência sobre a indústria e o
governo, e a imprensa lhes dá ouvidos. Organizações como Family
and Youth Concern, Conservative Family Campaign, Family Forum e
National Family Trust acreditam que “a família tem de estar no centro
de todo pensamento político”. Essas são as pessoas que inspiraram
a Seção 28 e conseguiram pressionar o governo central a abandonar
a campanha contra a aids. A dama Jill Knight, cujo comitê
parlamentar “não-oficial” dedicado ao “abuso satânico de crianças”
está neste momento juntando informações, é uma das pessoas que
ajudaram a promover o vídeo feito pela Family and Youth Concern
chamado “A verdade sobre a aids”, cuja exibição deveria ser
obrigatória em todas as escolas. A Campaign for Real Education
enviou propostas detalhadas à Secretaria de Educação, e algumas
delas acabaram sendo inseridas no novo programa curricular. Isso já
dá uma ideia de quanta influência esses grupos exercem e do quanto
são capazes de conquistar.
Grupos como o Reachout agora estão instruindo seus membros a
fazer campanha para retirar a revista Prediction das prateleiras de
grandes distribuidoras como W. H. Smith & Sons e Menzies. Eles
pelo menos aprenderam que recitar a Bíblia e levantar bandeiras
tende a afastar as pessoas. Em vez disso, estão usando a imagem
de “pais preocupados”. Ao usar recrutas para reclamar no comércio
local e com a Evangelical Alliance fazendo pressão nas diretorias,
essa abordagem de repente não parece mais tão absurda, não é? O
Reachout agora alega que conseguiu pressionar a W. H. Smith a
adotar uma diretriz interna determinando que a Prediction seja
disposta nas prateleiras superiores, onde normalmente se colocam
as revistas pornográficas. Também estão reclamando com o diretor
de educação sobre temas com “elementos ocultistas” e já
perseguiram docentes que têm alguma conexão com o paganismo.
Essas pessoas dominam a arte de manipular a imprensa enviando
reclamações a emissoras de televisão e jornais. Em um vídeo
chamado “Como lidar com o ocultismo em sua área”, Maureen
Davies se gaba de ter feito piquete em encontros de meditação
transcendental (MT) e de ter argumentado com a diretoria de um
hospital para convencê-los de que a MT é perigosa à saúde. A MT e
outras técnicas semelhantes são amplamente usadas pelo National
Health Service como parte do treinamento em relaxamento para
pessoas com uma variedade enorme de problemas; mas, na opinião
do fundamentalismo, ela é um portal para o satanismo. Qualquer
pessoa que ensine a técnica, portanto, é suspeita. Só que, como
todos sabemos, a MT é uma prática completamente inofensiva,
então temos de nos perguntar: que chance as abordagens mais
aprofundadas terão de sobreviver a essa avalanche fundamentalista?
Maureen Davies instrui quem a acompanha a reclamar sempre
com a diretoria, pois “no topo” estão as pessoas que se preocupam
com a ameaça de repercussões negativas na imprensa, e por isso
podem acabar cancelando eventos e reuniões ou tomando outras
atitudes alinhadas às demandas fundamentalistas. Fora algumas
exceções notáveis, a resposta mais forte que a comunidade
paganista conseguiu oferecer foi algo como “a culpa não é nossa, é
dos outros” —o que não convence muito nem ajuda.
Vou continuar repetindo até que a mensagem seja entendida: o
que essas pessoas querem é suprimir todas as crenças e práticas
minoritárias vistas como uma ameaça à sua concepção de como a
sociedade deveria ser. Temos de construir pontes com outras
minorias em risco, e não tentar nos esconder atrás das barreiras na
esperança de que essas pessoas procurem outras para incomodar.
Elas não vão fazer isso e possuem recursos para seguir com uma
campanha longa e cada vez mais forte. Como reportamos na edição
anterior, elas estão comprando revistas como a Pagan News para
descobrir nomes, endereços e telefones de contatos locais. Em seu
boletim, o Reachout recentemente pediu aos assinantes que
“rezassem” pela “iluminação” das pessoas desviadas, como eu e o
corpo editorial da revista Occult Response to Christian Response to
the Occult —um tipo de maldição, talvez?
Até agora, mensurar o sucesso da campanha antiocultista é difícil.
Embora ainda seja verdade que o público geral costuma não se
preocupar nem com uma coisa nem com outra, o fundamentalismo
conseguiu o que queria na medida em que criou a repercussão na
imprensa e a histeria propícias para pressionar órgãos
governamentais, onde já estão muitos de seus aliados, pessoas
influentes que têm a atenção dos ministros e mandarins do governo
inglês. A questão é que grupos fundamentalistas e de direita estão
“conduzindo” a elaboração de políticas do governo central, e já há
funcionários do Departamento de Saúde reclamando que não têm
como controlar a influência de grupos desse tipo. Mas eles têm
tantas conexões influentes que não podem ser ignorados. A prova de
seu poder, no que se refere a paganistas, será o surgimento de leis
contra nós inspiradas pelo fundamentalismo. Vamos ficar sentados
esperando pisarem na nossa cabeça? Provavelmente sim.
Em uma carta recente para a Pagan News, alguém disse que
“bons magistas não têm o que temer”. Belo “espírito coletivo”, hein?
Não é só uma questão de “direitos paganistas”, mas do cerceamento
dos direitos humanos. Qual a facilidade de organizar um encontro ao
ar livre hoje em dia? Quantas feiras místicas foram sujeitadas a
cancelamentos de última hora? Sejamos honestos: até o momento,
paganistas e ocultistas foram alvo fácil para fundamentalistas; um
bom assunto para a imprensa sensacionalista; uma boa isca para
atrair grupos respeitados como a National Society for the Prevention
of Cruelty to Children; são facilmente colocados uns contra os outros;
não têm capacidade de fazer lobby ou organizar um movimento de
contrainformação; e mais, têm a tendência inata de ignorar questões
“materiais” e políticas. Fundamentalistas não nos veem enquanto
indivíduos, só como um grupo homogêneo e malfeitor que se
esconde atrás de vários disfarces.
Há uns dois anos, alguns senadores dos EUA tentaram passar um
projeto de lei no Congresso que “definia” o que era bruxaria, para
que pudessem aprovar uma legislação antiocultismo. Graças à
Declaração dos Direitos dos Estados Unidos e a um lobby bem-
organizado, o projeto foi descartado, mas esse tipo de proteção não
existe aqui. Nosso governo reconhece só o cristianismo como religião
legítima, e os “direitos” individuais não têm qualquer garantia.
Então, que caminho devemos tomar? Ficar calados e esperar que
a coisa passe? Nem todo mundo tem essa opção, e com este artigo
eu provavelmente estou dando mais informações para um arquivo em
algum tipo de base de dados fascista obscura. Até agora, a única
resposta organizada está sendo feita pelo Sorcerer’s Apprentice
Fighting Fund e pela Pagan Federation, que estão envolvidos
ativamente na resistência e no lobby contra as ações
fundamentalistas. Nos unirmos a outros grupos cuja liberdade
também está sendo cerceada ajudaria: a ética fundamentalista quer
acorrentar as mulheres à pia, empurrar lésbicas e gays de volta ao
armário e suprimir qualquer pessoa que tenha tendências
“alternativas”.
Se alguém aí tiver uma boa ideia, por favor me conte. Um princípio
básico da filosofia paganista é que moralidade e responsabilidade
ética vêm de dentro, mas, se não tomarmos cuidado e não nos
atentarmos ao que está acontecendo, vamos acabar amarrados por
uma definição imposta daquilo que somos aos olhos das autoridades.
Claro, ninguém tem o poder de roubar nossas crenças e valores,
mas essas pessoas podem dificultar a nossa vida. A vida pode se
tornar muito difícil para qualquer pessoa dona de um pequeno
negócio relacionado ao ocultismo. Algumas famílias paganistas já
estão enfrentando problemas por terem sido denunciadas à
assistência social e à polícia. A liberdade de nos reunirmos está
sendo restringida. Até onde a coisa tem de chegar?
É fácil cair na apatia ou na frustração, mas temos de perseverar.
Use suas habilidades mágicas não para revidar, mas para se
enraizar, criar bases para agir —com calma e persistência. Esse tipo
de contratempo pode ser uma grande oportunidade para
procurarmos uns aos outros (apesar das diferenças de caminho ou
estilo de vida) e nos apoiarmos quando necessário. Se a única coisa
que mobiliza nossa união é o desejo de preservar a liberdade de
viver como quisermos, sem interferências, então que este seja nosso
chamado para a ação!
MAGIA NO CAMPO
P
athworkings e visualizações guiadas são formas muito
populares de magia. Mas você já percebeu que, quando nos
deixamos guiar por um caminho em uma floresta sagrada,
nunca pisamos em bosta de vaca? Que quando nos sentamos ao
lado de uma nascente sagrada para escutar a sabedoria de qualquer
guia do plano interior, nunca uma formiga ou um marimbondo vem
nos perturbar? Esse é um exemplo do que acredito ser uma
tendência a idealizar a natureza, algo que pode ser visto em
elementos do paganismo e do ocultismo contemporâneos.
Trata-se de algo tão sutil que, em geral, nem percebemos. Me
parece que, embora se escreva muito sobre elementos, fadas,
espíritos e locais sagrados, muitas vezes vemos a natureza de forma
romantizada; e os aspectos mais sujos, desajeitados e às vezes pura
e simplesmente perigosos da natureza são omitidos, ou pelo menos
ignorados, o que é compreensível, de certa maneira. Muitos de nós
moramos em centros urbanos e temos um desejo forte de fugir e
experimentar a natureza de forma mais direta. Mas, ao mesmo
tempo, é fácil subestimar o seu poder.
Como cresci em uma cidade litorânea, fui impactado
profundamente pelo poder impressionante do mar desde bem cedo.
Uma cena que nunca sairá da minha memória é de quando me
levaram para ver um barco de arrasto que tinha sido literalmente
arremessado contra um paredão em uma tempestade. Aprendi a
nadar no mar e achava que dava conta do recado até quase morrer
umas duas vezes, e não eram raras as temporadas de veraneio
marcadas por uma ou duas mortes de banhistas que não
consideraram o quanto o mar pode ser imprevisível, o que me é
confirmado toda vez que nos embrenhamos na natureza selvagem.
Há uns dois anos, uma simples trilha pelas encostas de Snowdonia
guiada por dois montanhistas experientes de repente se tornou, para
mim, uma experiência de quase morte. Considerando situações que
vivi, tudo pode acontecer —e de fato acontece— no mato,
especialmente quando pensamos que estamos “seguros”. A própria
questão da segurança pode ser bem complexa, ainda mais quando
fazemos magia com outras pessoas e quando estamos ao ar livre.
Na minha própria experiência, até visualizações guiadas tendo a
natureza como cenário podem ter resultados imprevisíveis. Em
meados da década de 1980, eu estudava terapia ocupacional e
trabalhava em um hospital psiquiátrico em York. Uma vez, prestei
assistência em uma sessão de terapia de grupo em que o facilitador
usou uma técnica de visualização guiada para ajudar as pessoas a
explorar o que sentiam sobre estar umas com as outras. Parte da
jornada envolvia o grupo se embrenhar por uma floresta até não
conseguir mais perceber ninguém em meio às árvores. De repente,
um dos participantes pulou da cadeira e saiu correndo da sala. Fui
atrás dele para ver o que havia acontecido: a última vez que ele
esteve numa floresta foi quando a Inglaterra se retirou da França, na
Segunda Guerra Mundial, pouco antes da batalha de Dunquerque.
Ele havia se separado de sua unidade, mas conseguia ouvir o grito
dos colegas sendo perseguidos e executados pelo inimigo. Talvez
esse seja um exemplo extremo, mas é algo a se ter em mente.
Voltando à magia, nunca gostei da ideia de fazer rituais “formais”
ao ar livre. Rituais que funcionam bem em um templo, porão ou
quarto vazio não parecem se encaixar direito no meio de uma clareira
na floresta. Aquela coisa toda de fazer um círculo ou “banimento” —
que basicamente tem a ver com estabelecer limites— parece errada
demais. Muitas vezes eu percebo certa tendência, especialmente
entre magistas atuais, de pegar um ritual “interno” e fazê-lo ao ar
livre sem tomar consciência nenhuma de que estar ali pode exigir
uma outra abordagem e um respeito básico a esse espaço diferente
que a pessoa adentrou. Algumas vezes, isso levou a situações
absurdas. Há alguns anos, durante um seminário de três dias na
Áustria, participei de uma sessão guiada por outro facilitador que nos
pediu para visualizar uma floresta. Nada de errado com isso em si,
mas o lugar onde o evento estava acontecendo, um castelo de
antigos cavaleiros templários, era rodeado por cerca de seis
hectares de floresta virgem! Em outra ocasião, eu estava ao ar livre
com um grupo, e um dos rituais que havíamos combinado de fazer
pedia que as pessoas se escondessem atrás de árvores e arbustos:
o problema era que, onde estávamos, não tinha árvore nem arbusto.
Mas, em vez de cancelar o ritual, o grupo seguiu em frente, e me
lembro de ter achado aquilo meio curioso. Olhando para trás, vejo
isso como exemplo de um grupo que impôs suas ideias
preconcebidas a um espaço natural em vez de tentar trabalhar com
as características do lugar.
Há alguns anos, um amigo e eu decidimos nos embrenhar pelas
profundezas de um dos maiores parques de Leeds para ver se
conseguíamos estabelecer contato com os espíritos locais: os genii
loci, digamos assim. Em vez de seguir o caminho comum de realizar
algum tipo de ritual, simplesmente entramos na floresta, achamos um
lugarzinho ao lado de um riacho e ficamos sentados em silêncio,
tentando ampliar nossa percepção para sentir algum contato, por
mais sutil que fosse. Depois de algumas horas, nós dois começamos
a sentir que alguma coisa estava tentando fazer contato.
Gradualmente, começamos a distinguir uma forma —enorme,
despenteada e cheia de musgo—, não um elemental da água ou da
terra, nem mesmo um espírito arborícola (esses são, afinal, termos
que impomos ao mundo), mas algo que era uma síntese do lugar
onde estávamos. O contato foi efêmero, temeroso, mas repleto de
uma sensação de tristeza e anseio, algo que nós dois tivemos
dificuldade de descrever com palavras, mas que nos tocou
profundamente. Essa, para mim, foi uma experiência importante, que
nos mostrou o valor de “jogar fora” o manual, por assim dizer, e
aprender a confiar no que sentimos intuitivamente em contatos com
“espíritos”.
Nossa forma de encarar os espíritos é em si uma questão-chave.
Há muita coisa escrita sobre “espíritos da natureza” —elementais,
devas, fadas etc.—, mas muitas vezes são pintados como
bonzinhos, pelo menos controláveis, ou abertos ao contato conosco.
Há duas questões aí. Uma é que, embora paganistas da atualidade
tenham aceitado os espíritos da “natureza”, me parece que existe um
bloqueio quanto a aceitar que podem existir outros tipos de espíritos,
como os tipos travessos que ficam à espreita nas tomadas elétricas
sobrecarregadas, os vingativos que escondem nossas chaves de
casa, ou os que ficam perambulando pelo metrô de madrugada.
Caminhamos pela floresta ansiosos para encontrar dríades ou fadas,
mas será que esperamos encontrar um troll nas ruazinhas da
cidade? Estamos aprendendo a lidar com os genii loci de espaços
ao ar livre, mas talvez não estejamos dando atenção suficiente às
“almas” das cidades onde vivemos, que, no entanto, merecem
igualmente nossa atenção.
A outra questão é essa coisa de que “os espíritos são bonzinhos”.
Na minha experiência, muitos espíritos da “natureza” estão
simplesmente com raiva. Raiva do que os humanos fizeram com seus
lugares, raiva da nossa invasão impensada de seus espaços,
irritados com nosso menosprezo em relação a eles, por terem sido
ignorados por tanto tempo ou até mesmo “convidados” por
paganistas e magistas a adentrar espaços que eles já consideravam
como de seu domínio, muito obrigado! Assim como nós, alguns estão
numa boa, outros não e, se tiverem a oportunidade, vão comunicar o
que quer que estejam sentindo de forma bem direta.
Depois desse sermão, não quero ditar como as pessoas devem ou
não praticar magia ao ar livre, mas digo o seguinte: tudo tem a ver
com respeito. Se, como paganistas, dizemos que respeitamos a
Terra e seus habitantes, temos de agir de acordo com essa
premissa a todo momento. Para mim, isso exige esquecer muito do
“conhecimento” adquirido ao longo dos anos em livros sobre
espíritos, locais sagrados etc., e experienciar a natureza como ela é,
e não como gostaríamos que fosse. Reconhecer que estamos em
território alheio sempre que adentramos a natureza com intenções
mágicas —um território onde o que queremos fazer não é
necessariamente importante— e estarmos prontos para o caso de
seus habitantes preferirem que estivéssemos em outro lugar. Ou
estarmos cientes de que um lugar que parece acolhedor durante o
dia pode ser completamente hostil na calada da noite, e de que seja
lá qual for a nossa visão sobre nós como magistas “experientes” ou
competentes, isso pode não significar nada para eles.
É PRECISO AMAR O
RAMO DE OURO?
O
que paganistas veem em O ramo de ouro? Toda vez que abro
uma obra escrita por paganistas ou magistas, tenho a
sensação de ver a sombra inevitável desse livro projetada
sobre o texto, como o monólito de 2001: uma odisseia no espaço.
Recentemente, ao analisar uma citação que parafraseava parte dos
“dados” oferecidos por James G. Frazer, e ao mergulhar em
algumas das fontes secundárias que ele usa, me peguei refletindo (e
não foi a primeira vez) sobre o que leva essa obra —da qual
especialistas atuais da antropologia, do folclore e dos mitos fizeram
questão de se distanciar— a continuar sendo popular entre
paganistas e ocultistas. De certa forma, não me surpreende,
considerando a influência que o trabalho descomunal de Frazer
exerceu no século XX. A propósito, Robert Brockway afirma que
“não é exagero dizer que toda pessoa interessada em mitologia,
desde a virada para o século XX até a Segunda Guerra Mundial, se
inspirou inicialmente pela leitura de O ramo de ouro ou foi
influenciada por ela”.[5]
A obra de Frazer influenciou diretamente W. B. Yeats e Margaret
Murray, só para citar dois nomes proeminentes na história do
ocultismo moderno, e ainda Sigmund Freud, Carl G. Jung, Mircea
Eliade e Joseph Campbell. Chas S. Clifton, em sua contribuição à
antologia de ensaios Researching Paganisms, lamenta a presença
persistente de Frazer (e outros) na escrita paganista
contemporânea:
Embora eu concorde, até certo ponto, com o que Clifton diz, não
acho que a coisa é tão simples quanto a conclusão que ele oferece.
Não quero fazer uma crítica abrangente de Frazer, algo que já foi
muito bem feito por pessoas mais bem fundamentadas que eu, mas
meu problema, em princípio, com O ramo de ouro é a linha de
separação feita por Frazer, de modo leviano e acrítico, entre
aspectos da cultura e os contextos históricos e sociais que lhe dão
significado, como destacou Ruth Benedict:
D
ediquei boa parte da minha produção escrita ao longo dos
últimos trinta e poucos anos a explorar e refletir sobre vários
aspectos da prática de magia. A primeira pessoa que me
incentivou a escrever sobre isso foi uma das altas sacerdotisas da
wicca com quem fiz um treinamento. Segundo ela, escrever sobre
uma prática é uma excelente maneira de verificarmos se a
entendemos o suficiente para comunicá-la com eficiência a outra
pessoa. É claro, há também a vantagem de que o material escrito
pode ser passado para outras pessoas que estão começando a
praticar. Escrevi muita coisa do tipo “como fazer esta ou aquela
prática” no início da década de 1980, mas não guardei a maioria.
O que constitui uma prática? Quando comecei a ler manuais de
ocultismo no fim da década de 1970, as práticas eram abordadas
como algo separado da vida cotidiana e que exigia um tempo
específico de dedicação. Escolhíamos (ou recebíamos) atividades
regularmente, cumpríamos as tarefas e registrávamos os resultados
no diário mágico. Simples —ou nem tanto.
Para mim, escrever sobre práticas costuma me levar a refletir
sobre a natureza delas. Uma coisa que me interessou desde o início
é a relação entre prática e teoria —particularmente o fato de serem
vistas como coisas opostas. Geralmente se concebe “teoria” como
algo abstrato e impessoal, que tem a ver com explicar o mundo em
vez de agir nele ou sobre ele. Das teorias se derivam as “regras” que
podem ser aplicadas a situações práticas. No entanto, existe uma
visão generalizada de que há uma lacuna entre teoria e prática, algo
que muitas vezes leva estudantes a acreditar que a teoria ensinada
em universidades e outras instituições não têm relevância direta para
sua prática. Igualmente, em disciplinas voltadas para a prática, às
vezes há certa desconfiança por parte de quem parece dar
importância demais ao “teórico”. Em alguns dos meus textos iniciais
sobre magia do caos, escrevi que o que me atraiu em seu etos foi a
ênfase na prática —a ideia de que era mais importante agir e “fazer”
magia—, e que não era preciso engolir tratados “teóricos” enormes
antes de pôr as mãos na massa. Claro, essa desconfiança em
relação à teoria é generalizada na cultura contemporânea. Mas,
pouco a pouco, fui me acostumando à ideia de que a teoria instrui e
molda a prática.
Acredito que esse tenha sido um efeito colateral do meu
envolvimento com assuntos indianos. Eu tinha pouco interesse numa
abordagem “teórica” da religiosidade indiana por causa das minhas
primeiras leituras teosóficas e, depois, dos livros de sir John
Woodroffe. Uma coisa que me marcou desde cedo, quando comecei
a ler traduções e relatos etnográficos de práticas religiosas e
mágicas indianas, foi que algumas coisas que costumamos encarar
como fatos incontestáveis no Ocidente —como a ideia de que há
uma divisão precisa entre mente e corpo, ou de que imaginar uma
coisa é inferior à coisa estar ali de fato— simplesmente não parecem
funcionar da mesma forma segundo a visão indiana. Me dei conta de
que eu estava encarando o tantra a partir de uma mentalidade
ocidental, acreditando que suas premissas básicas fossem
semelhantes às ideias ocidentais com as quais cresci, e sequer
considerando que a filosofia que fundamenta as práticas poderia ser
bem diferente. Uma das coisas que volta e meia se repetem em
obras populares sobre o tantra é que ele é voltado à prática — não é
de natureza teórica ou filosófica.
Embora seja verdade, de forma geral, que textos tântricos falem
mais sobre rituais do que sobre minúcias filosóficas, isso não
significa que o tantra não tenha uma base teórica ou que praticantes
da Índia não tenham escrito obras filosóficas, pois escreveram
muitas.
Isso também me levou a refletir sobre a relação entre teoria e
prática nas minhas experiências iniciais com wicca, magia cerimonial
e magia do caos.
Passei muito tempo escrevendo sobre as chamadas —às vezes
em tom derrogatório— “práticas básicas”. Passei a criticar bastante
a noção de que existe uma distinção clara entre “práticas básicas” e
“práticas avançadas”. Conheci pessoas que fizeram cursos de
“práticas básicas” e depois nunca mais as revisitaram, ou que
pularam essas práticas entediantes e foram direto para o que
consideram as práticas “avançadas” de uma tradição. Hoje em dia,
tendo a considerar mais a expressão “práticas centrais” em vez de
“básicas”. Práticas centrais são fundamentais —sempre retornamos
a seus usos.
Outro aspecto importante da prática para mim é a experiência de
estar em um grupo mágico. Já estive envolvido —algumas vezes
como facilitador— com uma variedade grande de grupos, desde
aqueles estruturados de modo formal e hierárquico, como nas ordens
mágicas, até grupos fluidos e informais de amigos que realizam
trabalhos juntos. É muito comum assumir que magistas competentes
também serão líderes competentes, mas descobri que isso
raramente acontece e que liderança é uma competência que
demanda trabalho árduo e uma visão clara e atenta em constante
desenvolvimento. Embora grupos mágicos compartilhem certos
processos dinâmicos com outros tipos de grupo, cada um tem suas
características peculiares, como podemos esperar ao acrescentar
magia à mistura às vezes volátil de quando pessoas se juntam para
fazer alguma tarefa.
RITUAIS QUE DÃO
ERRADO
E
stou em dívida com o indômito Reg por sugerir o tema da minha
fala de hoje. Magistas sempre se animam para comentar sobre
rituais que funcionaram —as invocações incríveis, as evocações
poderosas e a nota de dez encontrada no meio da rua logo após
fazerem um encantamento para chamar dinheiro. Mas e os rituais
que não saem como o esperado —as invocações em que a deidade
não se manifesta, a magia de resultados que não dá em nada e os
trabalhos que nos deixam com uma sensação de “é só isso?” Aqui,
vou abordar algumas das minhas experiências com “tropeços”
mágicos e discutir como elas mudaram minha vida —ou talvez como
não mudaram—, e vou comentar alguns dos “erros” vividos por
colegas. Relendo meu texto, percebo que está parecendo mais um
pretexto que encontrei para contar vários casos —mas e daí, né?
Magia de resultados
Invocações
Excesso de confiança
Ser medíocre
Se tivermos de fazer um ritual, acho fundamental que seja com certo
ânimo ou estilo. Imagine que você esteja atuando em cima de um
palco e dê um pouco de vida ao processo. Você pode não acreditar
que os deuses invocados são reais, mas imagine: se você estivesse
em um plano espiritual superelevado, se daria ao trabalho de fazer
todo o percurso até o astral inferior por causa de uma pessoa idiota
que declamou sua invocação errada, de um jeito vacilante —“é...
hum...”—, com a mesma empolgação de quando estamos
declarando imposto de renda e que ainda tem a ousadia de dizer que
aqueles rabiscos são pentagramas?
A magia funciona muito sob o princípio de que se nada entra, nada
sai. Se você é capaz de pelo menos fingir que está chamando forças
poderosas para além do espaço e do tempo, pode ser que consiga
chegar em algum lugar. Se você se interessa minimamente por
rituais, então é bem possível que alguém na sua legião de eus seja
uma diva dramática berrando por reconhecimento. Então seja
extravagante. Dê um show, e os deuses vão te recompensar, fazer
críticas positivas, voltar para outros espetáculos e contar para os
amigos sobre você.
E isso nos leva a outra coisa: pedir aos deuses para fazer algo por
você, o que pode ser complicado. Pedir a Kali para dar uma sova no
vizinho que está ouvindo música muito alto enquanto você tenta
meditar quase equivale a usar uma arma nuclear tática para matar
uma mosca. Há quem diga que as divindades têm uma noção de
tempo diferente da nossa, e que o “agora” que percebemos é muito
diferente do delas. Quando fiz uns trabalhos com Ísis há uns anos,
tive a impressão de que ela só começaria a fazer alguma coisa dali a
pelo menos uns mil anos. Elementais são bem mais fáceis. Porém,
vale lembrar, eles podem ser travessos. Para mim, a culpa disso é
dessa coisa toda de psicologia mágica. Ela diminui o impacto das
entidades e, para ser honesto, se alguém dissesse “você não passa
de uma subpersonalidade minha, então agora faça isso aqui,
espertinho”, você obedeceria? Não, você responderia com um tapa
na cara (espero), e acho que, na maioria das vezes, as entidades se
sentem assim em relação à presunção de magistas que dizem “faça
isso, faça aquilo” sem nem um “por favor”, um “obrigado” ou um
sacrifício decente.
Se em encontros da patota ocultista você de fato admitir que
algum trabalho deu errado, sempre terá uma pessoa babaca e
espertinha para apontar uma falha na sua pesquisa. “Ah, você não
invocou o fulaninho pelos portais corretos, não usou as cores certas
nas bandeiras do templo e nem fez a dança no sentido anti-horário”,
esse tipo de coisa. Depois de conversar com um membro de certo
grupo da OTO sobre nosso trabalho malogrado com Amalantrah,
recebi a seguinte dica: “olha, é o seguinte, os mestres do astral
estão fazendo silêncio no momento”, o que, presume-se, significa
que eles estavam todos no “horário de almoço” ou tirando uma
soneca. Logo, concluiu-se que a entidade com quem nos
comunicamos e que se disse Amalantrah não era ele coisa nenhuma;
era alguma outra coisa se passando por mestre do plano interior. Foi
o ovo de Páscoa de chocolate que bagunçou tudo, tenho certeza.
Sem contar que eu mencionei que tínhamos usado todos os artifícios
de sempre para testar a validade da entidade. O fato de termos feito
isso sem uma Mulher Escarlate chapada de éter fez alguma
diferença? Fim de papo.
Eu não sou muito fã desse tipo de explicação. A maioria dos
“sistemas” parece ter contradições enormes e gritantes. Por
exemplo, ninguém jamais foi capaz de me dar uma boa explicação do
porquê de a esfera de Hod na cabala ter associação elemental com
a água. Nunca tinha me dado conta desse fato até fazermos uma
série de trabalhos com Hod no ano passado, e ninguém me deu uma
explicação satisfatória desde então. Mas enfim, estou desviando do
assunto.
Seja como for, parece que existem algumas regras básicas em
certos tipos de operações mágicas. Tomemos a goécia como
exemplo. Ui, goécia! Sim, conjurar demônios. Uns dois anos atrás,
fizemos uma série de evocações da Chave menor de Salomão. Para
o primeiro trabalho, pensamos: “para que fazer círculo e triângulo no
chão, vamos apenas visualizá-los”. O resultado principal foi uma
náusea constante e uma sensação de “esgotamento” por uns dois
dias depois do trabalho —um tipo de ressaca escura da alma, eu
diria. E o demônio não se mostrou muito claramente. Pelo visto, os
demônios da goécia têm ideias razoavelmente “tradicionais” sobre
como gostam de ser invocados. Eles não querem saber de
modismos. Ou a gente fazia a coisa do jeito certo ou teríamos uma
greve de demônios.
Tecer sonhos
Esse é um nome metido a descolado para uma coisa que não vai
muito além de fantasiar intensamente para continuar a sonhar com
aquilo em que estávamos pensando antes de cair no sono. O que
acontece muitas vezes é cairmos no sono de qualquer jeito. Isso
pode acontecer com os pathworkings também. Você está guiando
um pathworking com o grupo todo deitado à sua frente, está usando
sua melhor “voz de meditação guiada”, até que, de repente, escuta
um ronco. Me lembro de capotar em um pathworking uma vez. Todo
mundo depois contou que teve visões incríveis. Aí chegou a minha
vez de dizer: “Então, na verdade eu estava tão exausto de dirigir até
aqui que simplesmente caí no sono”. Pronto, todo mundo ficou me
olhando com um ar de desprezo ou superioridade. Eu costumava me
preocupar com minha tendência de cair no sono enquanto praticava
banimentos “astrais” na cama. Não era problema nenhum, pelo que
vim a constatar.
Isso parece ser parte do aprendizado em magia. Enquanto nos
classificamos como neófitos, de certa forma “esperamos” que as
coisas deem errado e sempre exageramos ao pensar nas
consequências horrendas que vão acontecer se fizermos algo
errado. Depois que ganhamos um pouco de experiência, no entanto,
ficamos mais confiantes e temos menos expectativas de que algo
possa desandar. Hoje tento encontrar um meio-termo: se eu fizer
esse trabalho, alguma coisa vai acontecer, mas não tenho 100% de
certeza do que vai ser. A magia envolve riscos. Na pior das
hipóteses, se meter em uma enrascada dá uma nova perspectiva
sobre as coisas.
Em 1979, eu estudava psicologia em Huddersfield e fiz alguns
trabalhos com as cartas de tattva e os elementais. A magia é só uma
extensão da psicologia, pensava eu. Há, há, há! Um dia acordei de
madrugada e havia uma bruma vermelha no quarto, e senti como se
alguém tivesse despejado uma mala cheia de concreto em cima de
mim... Que merda!
Eu não conseguia me mexer nem falar. O que eu devia fazer?
Que peso!
Acabou que projetei para fora um pentagrama de banimento. A
sensação de peso se esvaiu, a bruma também, e eu logo entrei no
modo tagarelice. Por cerca de dois dias. Certo, então o que
aconteceu foi que passei por uma dessas experiências em que
achamos que estamos acordados, mas não estamos. Na época, no
entanto, a coisa realmente me assustou e me fez ter um respeito
mais profundo pela magia. Então, no fim das contas, foi tudo bem
passar por aquilo. Ah, nada como a ingenuidade juvenil!
Não muito tempo depois, fiz minha primeira tentativa de evocar
Yog-Sothoth. Sabem quem é, né, um dos mais horrendos dos
horrendos Grandes Anciões em Lovecraft. Como eu estava nos
limites do Peak District, tinha umas boas opções de montanhas e
escolhi a mais alta do distrito. Além disso, estava nevando. Levei
uma lanterna e ainda me lembro dos olhos vermelhos dos carneiros
ao refletir a luz. Era de dar medo. Não me lembro bem dos detalhes,
mas sei que vi um facho de luz descendo do céu sobre as pedras
onde eu estava sentado. Depois disso, só sei que saí correndo num
pânico alucinado e fui parar na casa de um amigo. Mais tagarelice.
Não sei se foi um fracasso ou um sucesso, só sei que passei por
mais um cagaço. Vai ver era disso mesmo que eu precisava na
época.
Pode ser que a gente aprenda muito mais sobre magia e sobre
nós mesmos quando as coisas não acontecem exatamente como
planejamos. Se a magia fosse tão fácil quanto dizem por aí, a gente
provavelmente acharia a coisa toda muito banal e seria um grupinho
secreto de cristãos planejando a queda da Era Pagã ou algo assim.
Não. A magia, assim como a vida, é uma doideira, uma bizarrice e
uma maravilha. Nunca deixei de ficar impressionado com o fato de
que é possível, só ficando de pé numa sala, balançando os braços e
recitando uns versos horríveis, mudar o ambiente, mudar como nos
sentimos e possivelmente engatilhar um processo aleatório que vai
dar (mais ou menos) naquilo que queríamos que acontecesse.
Podemos teorizar, discutir e palestrar pedantemente o quanto
quisermos, mas eu acho que o cerne do mistério jamais será
explicado.
Acho extremamente difícil julgar resultados mágicos só em termos
de sucesso e fracasso. As minhas experiências com sigilos mágicos,
por exemplo, me mostraram que acontece muito de os resultados
não se manifestarem de jeito nenhum até que eu pense “ah, que se
dane, isso é perda de tempo” —aí eles aparecem. Algumas
abordagens mágicas chegam mesmo a recomendar que façamos
trabalhos por um resultado negativo de vez em quando —e o
contrário vai acontecer depois de um tempo. Todo ato mágico deve
ser instrutivo, especialmente quando não funciona como planejado.
Vou fechar então com alguns axiomas da magia que devemos ter
em mente:
1. Faça invocações com frequência.
2. Faça banimentos com frequência.
3. Faça tudo com estilo.
4. Mantenha certa perspectiva sobre as coisas.
5. Quando se enrolar, improvise.
MENTORIA E
PROFESSORADO NA
PEDAGOGIA MÁGICA
Este ensaio foi escrito em 1997 e publicado pela primeira vez em uma
antiga encarnação do meu primeiro site. É uma análise do papel de
orientação na pedagogia esotérica em contraste com as formas mais
tradicionais das relações de ensino e aprendizagem.
É
possível aprender sobre magia de formas muito variadas. Para
a maioria de nós, provavelmente os livros são a fonte primária.
Outros caminhos de aprendizado incluem cursos à distância,
oficinas, treinamentos em grupo e aulas particulares. Quando
informações sobre magia eram relativamente raras, as pessoas que
a ensinavam eram muito requisitadas como detentoras de
conhecimentos difíceis de adquirir de outra forma. Hoje em dia, é
claro, as coisas mudaram, porque há uma grande variedade de livros
e revistas de ocultismo, além da internet. Aliás, há quem diga que,
por conta disso, não há necessidade de procurar ninguém para nos
ensinar, já que a disponibilidade de informações sobre técnicas e
práticas mágicas é relativamente ampla.
Há também uma discussão recorrente sobre quais pessoas entre
as que se proclamam professoras, mestras espirituais e gurus estão
preocupadas apenas em inflar o próprio ego à custa de estudantes,
que por sua vez só se fodem com elas (muitas vezes literalmente!). É
comum desconfiar de pessoas que parecem querer ser vistas por
outrem como professoras. Dito isso, os classificados do ocultismo
estão cheios de gente procurando quem lhes ensine algo. Por quê?
Um fator que é preciso compreender envolve as crenças comuns
ligadas à iniciação. Muitos livros que falam sobre formas ocidentais
de magia sugerem, em graus variados, que estudantes só podem se
tornar proficientes e se iniciar nos “mistérios” se encontrarem alguém
proficiente que lhes ensine. Em alguns círculos, passar por uma
iniciação com uma pessoa reconhecida é algo que dá status, quando
comparado a uma simples autoiniciação —isto é, quando alguém é
autodidata. Me lembro que, na minha época de coven wicca, era
comum se referir a uma ou outra pessoa como autoiniciada, deixando
implícito que elas eram consideradas uma espécie de cidadãs de
segunda categoria em relação a quem havia se iniciado em um
coven. Ainda persiste a ideia de que, para ser magista, xamã ou
praticar bruxaria “de verdade”, temos de passar por uma iniciação
conduzida por alguém ou estudar com uma pessoa que seja mestra.
Isso está relacionado também à popularidade de sistemas
esotéricos não ocidentais, sejam oriundos da Ásia, da África ou das
Américas. Quando olhamos para os sistemas de magia
pseudoétnicos, tais como os vários tipos de prática xamânica, as
tradições pan-africanas ou os vários sistemas esotéricos orientais, a
conexão entre progresso pessoal e ter passado por uma iniciação ou
encontrado alguém que nos guie fica ainda mais explícita. O que
devemos lembrar aqui é que, nas culturas das quais esses sistemas
são tirados, as visões sobre esoterismo, ensino etc. podem muito
bem ser radicalmente diferentes das perspectivas ocidentais.
As pessoas ocidentais, dedicadas que são em se apropriar de
sistemas mágicos não ocidentais (ou pré-industriais), facilmente
esquecem ou ignoram a cultura que está por trás desses sistemas.
Por exemplo, na Índia se associa o termo “guru” a uma relação filial
entre quem ensina e quem estuda que é um pouco estranha para os
olhos ocidentais modernos, para quem a rebelião contra a geração
anterior (isto é, o movimento em direção ao individualismo) é um
imperativo cultural muito mais forte do que obediência e reverência a
pessoas mais velhas, e, por extensão, mais forte também do que
uma tradição histórica recebida.
A relação entre a pessoa que ensina e a tradição é importante, e
de fato muita gente no ocultismo contemporâneo busca um senso
sólido de tradição, um sentimento de continuidade entre prática
moderna e o que se fazia antigamente. Também é preciso
reconhecer que as pessoas que ensinam podem ser algo mais do
que detentoras de conhecimentos. Em nossa cultura da abundância
de informação, o papel de quem ensina não é mais o de quem
transmite conhecimento, e sim de alguém que pode nos ajudar a
trilhar um caminho no meio dele, nos ajudando a fazer uma triagem
daquilo que é relevante para nós e a entender o significado desse
caminho em nossa vida.
Me lembro de um magista veterano que eu costumava visitar para
conversar sobre magia. Eu o via como um professor, mas ele
sempre me dizia: “somos iguais, compartilhamos informação”. Certa
vez, pedi-lhe um conselho sobre como usar um pentagrama feito de
curvas, algo que eu havia imaginado, mas sobre o qual me sentia
inseguro. Ele disse algo como: “Interessante. Experimenta, depois
me conta o que aconteceu.” Isso me deu confiança para testar
minhas ideias sozinho, coisas que não estavam em livros —minhas
únicas fontes na época. É esse tipo de relação que torna a pessoa
que ensina valiosa para magistas aprendizes, algo profundamente
diferente da ideia comum de que as pessoas que ensinam magia, por
terem uma “iniciação superior”, têm autorização para vomitar
baboseiras pretensiosas em troca de adulação e obediência servil.
Acredito que magistas que já estão há uns bons anos mergulhando
em atividades mágicas às vezes se esquecem da sensação estranha
de dar os primeiros passos no mundo mágico. É bastante
compreensível que, ao tomar um rumo novo e relativamente
desconhecido, procuremos outras pessoas que possam nos ajudar, e
isso vale também para o aprendizado em magia. A sensação de
incerteza e de estar correndo riscos diminui muito quando contamos
com alguém que sabemos que dará apoio tanto para nos incentivar
quanto ajudar, especialmente quando as coisas ficam complicadas ou
estranhas. Lidar com incertezas é algo que cada pessoa faz de
forma diferente. É provável que haja diferenças claras entre alguém
que só teve contato com o ocultismo por meio dos livros e que, por
causa deles, passou a ter convicção da necessidade de encontrar
uma pessoa que ensina, e alguém cujas opiniões sobre o ensino da
magia em geral tenham sido ampliadas pelo contato com a cena do
ocultismo através de revistas, grupos de discussão ou da internet.
Então, em geral, sou a favor de que se tenham relações de
aprendizado, desde que —é claro— todas as pessoas envolvidas
estejam cientes do propósito da relação e do que está acontecendo.
Para esclarecer essas questões, vou explorar um pouco o papel da
mentoria.
A origem da palavra “mentor” está na Odisseia, de Homero.
Mentor era o professor de Telêmaco, o filho de Odisseu. A figura do
mentor é uma imagem central na mitologia grega, vista, por exemplo,
na relação iniciática entre Aquiles e o centauro Quíron. Ao longo das
eras, a palavra “mentor” se tornou sinônimo de amigo, conselheiro de
confiança, guia, terapeuta, professor e iniciador. Existem também
numerosos exemplos de relações mentor-estudante na história, como
Freud e Jung, Sócrates e Platão, e talvez Aleister Crowley e Alan
Bennett.
O que há de especial no Mentor, da Odisseia? Sua tarefa original
não era somente criar e educar Telêmaco, mas prepará-lo e
desenvolvê-lo para as responsabilidades que ele teria de encarar
como herdeiro de um reino. A mentoria, portanto, é mais do que um
mero lecionar: é oferecer conhecimentos, percepções ou
perspectivas que são especialmente úteis para a outra pessoa. A
essência da mentoria é difícil de precisar, pois é parte intuição, parte
sentimento, surge do momento em questão e é feita a partir dos
materiais disponíveis. Ser uma pessoa mentora exige a capacidade
de ser flexível. A relação de mentoria é algo que vai além de outras
relações formais.
Ajudar alguém a dar conta de um problema pessoal não é
necessariamente prestar mentoria. Mas um comentário casual, por
exemplo, se despertar novos entendimentos ou perspectivas sobre
um problema e revelar aspectos antes desconhecidos, pode ser
considerado um exemplo de mentoria. A história da magia está
repleta de exemplos de insights repentinos, desde as lendas dos
sábios zen, tântricos e taoístas, até o encontro entre Crowley e
Theodore Reuss, quando Crowley intuiu os segredos da magia
sexual. Portanto, uma das tarefas da mentoria mágica é esclarecer
estudantes. Para mim, a diferença central entre mentoria e
professorado é que neste se diz “faça isto”, mas naquela é mais
provável que se pergunte “o que você quer fazer?”. Quem professa
tende a despejar regras e assumir a interpretação de metáforas no
lugar de quem estuda. Na mentoria, no entanto, somos ajudados a
recapitular conscientemente nossas experiências para que deixemos
de seguir irrefletidamente as regras de outrem, ou de comprimir o
mundo dentro de metáforas que já perderam a validade há muito
tempo.
O foco central da mentoria é capacitar estudantes através do
desenvolvimento de suas habilidades. Fazer isso de forma efetiva
exige que a pessoa responsável pela mentoria respeite a
singularidade de cada estudante. Podemos ver os resultados de
ensinamentos disfuncionais quando encontramos pseudomagistas
que parecem ser pouco mais que o reflexo de quem lhes ensinou,
que não têm voz própria e tentam controlar o mundo com seus
sistemas de crenças que, parafraseando um comentário sardônico
de Peter Carroll, não funcionam nem como muletas para as pessoas
fracas, apenas como pernas quebradas para quem é incapaz. O
costume de ensinar magia no estilo “livro de receitas” não incentiva
ninguém a moldar as técnicas e teorias para que sejam relevantes à
sua experiência de vida imediata, apenas reforça o pensamento
opaco e estreito da maioria de ocultistas da atualidade. Desconfio
que isso aconteça porque muitas pessoas que professam têm certo
status ao qual se aferram, e isso envolve manter estudantes à sua
volta em vez de deixar que corram atrás de seus próprios interesses.
Já as melhores mentorias, ao contrário, são realizadas por pessoas
que enxergam o processo como uma experiência de aprendizado
para si.
A ideia de uma sabedoria imutável —que não fica obsoleta—
passada de magista experiente para iniciante é sedutora, mas
imprecisa em um mundo de mudanças constantes e aceleradas. A
mentoria exige trabalho e responsabilidade das duas partes
envolvidas. É uma parceria entre quem mentoreia e quem estuda,
baseada em respeito mútuo. As duas pessoas contribuem e se
beneficiam igualmente na relação.
No entanto, dito isso, também é preciso reconhecer que tanto
estudantes quanto mentores e mentoras em potencial precisam ter
clareza sobre as expectativas que trazem à relação. Para que a
mentoria seja efetiva, essas expectativas precisam estar explícitas.
A mentoria é baseada em uma relação amigável e informal, e
qualquer tentativa de extrair promessas firmes de qualquer um dos
lados provavelmente vai terminar mal. Mas isso não quer dizer que
algum tipo de acordo entre as partes seja inútil. Se as duas pessoas
tiverem deixado claras suas expectativas, então um acordo pode
servir para lembrá-las dos objetivos específicos que surgiram desse
trabalho conjunto e às vezes pode servir também de referência para
esclarecer os limites da relação.
Esse último ponto é particularmente útil na mentoria mágica, em
que a influência de quem mentoreia tende a se estender para além
dos limites da relação mágica propriamente dita —o que acontece
com frequência, sob uma variedade de roupagens e justificativas. O
desejo de que isso aconteça pode vir de uma ou de outra pessoa, ou
pode surgir inesperadamente a partir do compartilhamento de
experiências mágicas intensas. Problemas desse tipo não são
incomuns entre terapeutas e clientes, tampouco entre profissionais
da enfermagem e pacientes ou docentes e estudantes.
Ao longo dos anos, servi muitas vezes como mentor de magia.
Gradualmente, desenvolvi um acordo a ser usado nessas relações
que é algo como: “Esse é um encontro da minha experiência
passada com magia com a sua inexperiência e percepção (que me
desafia a fazer coisas que nunca fiz antes) e vai resultar em algo
novo e de valor para nós dois. O que eu quero dessa relação é que,
em algum momento no futuro, quando você alcançar excelência em
um aspecto da magia que está além das minhas habilidades, você
volte e me ensine sobre isso”. Muito me alegra relatar que, no geral,
isso aconteceu em nove de cada dez ocasiões.
Esse tipo de código pode ser visto como um acordo geral, algo
que a pessoa responsável pela mentoria pode deixar explícito desde
o início e mencionar de novo só quando a situação pedir. Também há
acordos mais específicos relacionados a objetivos e metas
determinados pelas duas pessoas na relação de mentoria —acordos
que podem ser ajustados, periodicamente avaliados, e que estão, é
claro, sujeitos a modificações.
Um tema central para entender o valor da mentoria é a habilidade
de lidar com mudanças. Mudanças acontecem em um ambiente
pessoal e social que está em constante transformação. Abandonar
crenças, comportamentos e, às vezes, relacionamentos familiares e
confortáveis é algo que costuma provocar uma sensação de perda.
Também é preciso lidar com o medo do desconhecido e a
possibilidade de fracasso. Mudanças são, é claro, centrais para a
magia. Frequentemente, a coisa mais difícil de se resolver é nossa
resistência a elas, ou a recusa de admitir que tanto nós quanto nossa
vida passamos por mudanças quase diariamente.
A chave para esse processo é a alteração de contexto —que pode
ser entendida como auxiliar ou complementar à alteração de crença.
Se você consegue imaginar com clareza como você e seu mundo
serão quando a mudança desejada for alcançada, vai começar a
fazer coisas que impulsionam suas ações em direção a essa meta.
Esse ajuste contextual tem de ser pensado em termos positivos.
Aqui, o desafio da mentoria é preparar quem estuda para
transformar a perspectiva dos problemas de hoje no sucesso de
amanhã. Deve-se reconhecer que mudanças não são instantâneas.
As pessoas esperam que a magia funcione, é claro, de uma hora
para a outra, como um processo positivo sem qualquer estresse ou
consequências desagradáveis. Assim, outro aspecto importante para
ajudar estudantes a lidar com mudanças é indicar estratégias de
manejo do estresse.
É importante lembrar que a relação de mentoria envolve confiança
e respeito mútuos, que, se bem fundamentados, vão se manter
apesar de discordâncias e diferenças interpessoais. Para a pessoa
que se assume como mentora de magia, sucesso é ver estudantes
desenvolverem o poder mágico à sua própria maneira, adquirindo
excelência e maestria em áreas da magia que podem ir além dos
interesses e das capacidades atuais da pessoa que mentoreia. Essa
forma poderosa de criar laços não deveria ser menosprezada,
especialmente em uma disciplina tão propensa a disputas sobre
diferenças mágicas e choques de personalidade como é a magia do
caos. A mentoria não tem a ver só com a transferência de
habilidades, teorias ou opiniões, mas é um processo pelo qual uma
pessoa incentiva outra a descobrir o que funciona para ela, da
maneira mais efetiva possível, por meio da aplicação de
conhecimentos e habilidades às suas próprias circunstâncias
singulares.
Em vários aspectos, encontrar uma pessoa que seja boa mentora
é muito mais difícil do que se aproximar de uma que seja professora.
Relações de mentoria tendem a aparecer informalmente e exigem
(para mim, pelo menos) uma interação cara a cara. Não consigo
fazer esse trabalho por carta ou e-mail. Assim como em uma
amizade, a relação se desenvolve devagar e (risos) caoticamente. E
ainda, algo que acho muito significativo, a relação de mentoria não é
totalmente focada em magia, pelo menos no sentido de discutir os
aspectos técnicos de magia prática, mas tem mais a ver com a
forma pela qual a magia adentra nossa vida. Então não caia na
armadilha de procurar uma pessoa para ser sua mentora da mesma
forma que se procura um professor ou uma professora. Busque uma
amizade.
DISSIDÊNCIA EM
GRUPOS DE MAGIA
Introdução
A
dinâmica de organizações e de grupos mágicos é uma área que
desperta meu interesse há alguns anos. Neste ensaio, quero
explorar o que muitas vezes é uma questão turbulenta: os
processos ligados à saída de uma pessoa de um grupo mágico
depois de alguns anos de parceria e de intensa exploração mágica.
A meu ver, nem sempre é algo simples como escrever um
comunicado de saída e se afastar do grupo, e talvez se tenha que
lidar com diferentes formas de “sequelas” psicológicas e emocionais,
tanto em nível pessoal quanto, às vezes, interpessoal. Também vou
discutir alguns processos de grupo que identificam pessoas como
transgressoras, e como se costuma lidar com isso.
Experiências de saída
Processo de demonização
Sinais de transgressão
A importância do apoio
A tensão vivida quando se sai de um grupo também pode ser
intensificada se a pessoa dissidente não tiver outra rede de apoio.
Ocultistas costumam achar difícil discutir essas questões com
amigos e amigas não ocultistas. Na minha experiência, percebi que
ajuda muito conhecer pessoas envolvidas com magia que, embora
não participem dos mesmos grupos que eu, têm experiência
suficiente para entender meus sentimentos.
Ter alguém com quem conversar sobre nossos sentimentos faz
muito bem para qualquer processo de elaboração. É claro, nos
casos em que o grupo é a fonte principal de relações naquela área
(como no exemplo que dei sobre a minha primeira saída de um
coven), é difícil conseguir isso. Já conheci magistas que, embora
expressassem muita insatisfação com o grupo de que faziam parte,
pareciam sentir que não havia “nenhum outro lugar para onde ir”. De
fato, parece que o forte senso de inclusão em grupos mágicos (essa
ideia de um “nós”), que funciona como um estreitador de laços
(interesses em comum, crenças e experiências compartilhadas),
pode acabar isolando as pessoas e as impedindo de fazer contato
com outros grupos e magistas. Outros fatores que podem influenciar
esse tipo de situação são a localização geográfica (por exemplo, é
mais difícil diversificar contatos sociais em uma cidadezinha do que
em uma metrópole) e a desconfiança que costuma existir entre
grupos mágicos —particularmente quando um indivíduo “passa” de
um sistema de crenças para outro, ou vai para um grupo “rival”
dentro do mesmo sistema. A diversidade de crenças e abordagens
que caracteriza o paganismo e outras vertentes de magia costuma
ser vista como um ponto forte; no entanto, também pode dificultar a
transição entre grupos e redes de diferentes inclinações, em
particular se a pessoa em questão já estiver se sentindo isolada e
temerosa por causa do rompimento anterior com um grupo.
Conclusão
U
m tema central na minha perspectiva sobre o tantra é a
“consciência desperta”. Uma forma de explicar esse conceito é:
estar consciente do que acontece à nossa volta no momento
presente, em vez de se prender a fantasias sobre o futuro ou remoer
eventos passados. Muitas de nossas práticas têm o objetivo de
ampliar a capacidade de estarmos “conscientes-despertos” e podem
ser feitas em qualquer lugar, em meio à correria da vida cotidiana,
diferentemente das práticas para as quais temos de tirar um tempo.
Isso se relaciona ao fato de que, no tantra, não se faz a distinção
vista em muitas vertentes de magia ocidental entre o mágico e o
mundano, o espírito e a matéria, o inferior e o superior etc. —no
tantra, os diferentes aspectos da vida não são compartimentalizados
dessa forma. Embora se incentive as pessoas a experimentar vários
tipos de práticas diárias, também se sabe que muitas pessoas que
têm uma vida mais corrida nem sempre podem fazer isso. O tantra
tem menos a ver com um conjunto distinto de práticas, e mais com
viver a vida de uma maneira específica.
A ideia de consciência desperta está relacionada à prática de nos
localizarmos no presente imediato: não sermos levados de um lado
para o outro pelas preocupações do passado e do presente ou pelas
ansiedades sobre o que o futuro pode trazer. É claro que isso é
difícil, já que tendemos a recair em todo tipo de turbulência mental.
Isso é algo natural. Para mim, é importante não me cobrar demais
quando me pego fazendo isso, mas sim tentar relaxar e tomar
consciência do que está em meu ambiente imediato. Quando nada
funciona, tento me concentrar em como sinto meu corpo: como estou
sentado, como estou respirando, qual a sensação da roupa tocando
minha pele. Fechar os olhos por um momento pode ajudar. Nesse
sentido, nosso corpo é o melhor professor, por isso é comum se
referir a esse tipo de prática como uma forma de prestar atenção à
sabedoria do próprio corpo.
Outra coisa central para mim é a ideia de que o mais perto que
chegamos de sentir a presença divina é quando experimentamos
admiração, alegria, surpresa. Qualquer atividade que promove essas
emoções deve ser abraçada, desde as aparentemente simples até
as mais profundas. Em certo sentido, o tantra é um modo de vida
que nos permite fazer da alegria e da admiração o nosso estado-
base de existência.
A alegria pode ser algo muito simples. Muitas vezes encontro
momentos de alegria ao simplesmente caminhar até o trabalho pela
margem do rio Tâmisa. No efeito da luz do sol ao bater numa poça
d’água, no sorriso de uma pessoa estranha que cruza meu caminho,
ao sentir uma rajada de vento, ao olhar um gráfico que acabei de
levar uma hora ou mais para refazer e sentir uma tranquila
satisfação. Eu diria que, para mim, parte da consciência desperta
tem a ver com estar aberto à alegria, à admiração e à surpresa que
surgem de qualquer direção. Vale repetir: desenvolver isso leva
tempo.
Há muitos anos, eu costumava ensinar exercícios de relaxamento
em um hospital. Um dos primeiros choques com que tive de lidar foi
que muitas pessoas simplesmente não sabiam “relaxar” —tinham de
se esforçar para isso— e não tinham qualquer experiência consciente
da sensação corporal do relaxamento.
Na cultura moderna, o relaxamento se tornou um tipo de “trabalho”.
É muito difícil só “não fazer nada” —mesmo quando o corpo não está
ocupado, a mente está um turbilhão. Então, aprender a não fazer
nada pode ser por si só um “exercício”. Já passei horas sentado
debaixo de uma árvore, sem pensar em muita coisa. Considerando
que somos freneticamente estimulados o tempo todo a nos ocupar, a
fazer coisas e ir a lugares (seja em termos físicos, emocionais ou de
desenvolvimento pessoal), não fazer coisas pode ser uma prática
mágica. Claro, isso pode ser visto como uma receita para a
preguiça, enquanto muitos livros de magia vão dizer que precisamos
desenvolver autodisciplina e força de vontade —mas por quê?
Sempre vejo na internet várias pessoas reclamando que não estão
fazendo “práticas diárias” tanto quanto sentem que deveriam.
Isso me cheira a “desenvolvimento-espiritual-como-trabalho”. Por
que não adotar uma postura descontraída? No passado, algumas
vezes eu disse que minha prática não era séria, que eu só estava
“me divertindo”.
Além disso, para mim parte da consciência desperta é não me
forçar a um regime artificial. Já lido com regras o suficiente no
trabalho, e não vejo nenhum benefício em replicar isso em qualquer
outra área da minha vida.
É muito fácil cair no ciclo de pensar “tenho de fazer uma prática
diária” e depois, quando o entusiasmo inicial se esvai, simplesmente
parar e ficar se culpando por não manter a rotina. Sei muito bem
como é isso por já ter me comprometido muitas vezes a cumprir
rotinas impossíveis e depois fracassar.
Então, perguntas: por que você tem de fazer uma prática diária? É
algo necessário? O que você espera conseguir com isso?
Pode ser que “prática diária” não seja de fato aquilo de que você
precisa agora. Talvez você precise repensar o que constitui uma
“prática diária” para você. Embora a gente recomende várias
práticas diárias, também acho importante que as pessoas encontrem
seus próprios “inícios”, por assim dizer. Por exemplo, se você acha
difícil se sentar e permanecer na mesma posição seja lá por qual
período, uma prática que envolve muito tempo nessa posição vai ser
difícil. Mais uma vez, muitas de nossas práticas são coisas que você
pode fazer em qualquer lugar, em vez de ter de reservar um tempo e
um local para praticá-las. O objetivo de uma prática pode ser
desenvolver certas atitudes —como se abrir à alegria e ao esplendor
presentes no mundo. Fazer rituais, repetir mantras, meditar etc. são
somente instrumentos para esse processo. É claro que é bom
manter uma prática diária no sentido de fazer um exercício especial,
mas acho que a pessoa tem de estar “pronta” para isso: estar
animada com a prática, deixar que ela estruture o dia.
Algumas coisas que tento fazer todos os dias e que são mais
hábitos mentais do que “exercícios especiais”:
M
eu envolvimento com o tantra começou com um sonho —um
sonho com Kali. Em 1982, eu estava morando na zona rural de
Lincolnshire —por estar afastado das minhas amizades e de
ocultistas que eu conhecia, achei que era uma oportunidade para dar
um tempo nas práticas mágicas. Embora eu achasse que não queria
mais me envolver (naquele momento) com magia, a magia continuava
envolvida comigo. Certa noite, sonhei que conhecia a deusa indiana
Kali em um crematório. Foi um sonho vívido. Acordei com a memória
dos olhos dela cravados em mim. Na noite seguinte, tive o mesmo
sonho, que se repetiu por mais três noites. Não vou dizer que nunca
tinha ouvido falar de Kali, mas, naquela época, eu não tinha interesse
por nada que fosse da Índia. Claro que muitos livros de ocultismo
tinham referências variadas a mantras, chacras e várias divindades
indianas, mas eu jamais imaginaria sonhar com aquilo de modo tão
direto, intenso e recorrente. Ao mesmo tempo, tive a sensação de
que a experiência era significativa, mas não consegui identificar sua
importância.
Como eu não tinha com quem conversar sobre o assunto, anotei o
sonho e o transformei em um tipo de pathworking que eu poderia
executar antes de dormir. Não fiquei surpreso quando o sonho
retornou de modo ainda mais intenso, e foi justamente essa
experiência com Kali que me fisgou. Mas eu não tinha quem me
ajudasse a entender melhor o sonho, então não me concentrei nele.
Mais ou menos um ano depois, me mudei para Nottingham para
fazer um curso de enfermaria psiquiátrica e me envolvi com um grupo
de teatro experimental. Nesse período, pude me reconectar com
várias amizades do ocultismo. Alguns amigos wicca me “explicaram”
que meu recente interesse em Kali teria a ver com alguma vida
passada na Índia, mas eu era cético em relação a afirmações desse
tipo. Foi mais ou menos nessa época que comecei a ler sobre tantra.
Não parecia haver muito material disponível —alguns livros new age,
outros sobre “sexo sagrado”, e um ou dois escritos de ocultistas
ocidentais que tratavam o tantra como uma variante da cabala, mas
nada falava sobre rituais ou sobre como começar algum tipo de
prática, o que obviamente era o que eu queria. Cheguei a ler um
pouco de sir John Woodroffe (vulgo “Arthur Avalon”), mas achei tudo
praticamente incompreensível.
O primeiro grande avanço aconteceu quando me mudei para York
decidido a passar da enfermagem psiquiátrica para a terapia
ocupacional. Essa especialização de três anos acabou exercendo
grande influência na minha abordagem mágica posterior, pois incluía
treinamentos intensivos tanto em dinâmicas de grupo quanto em
dramaterapia, além de ter uma abordagem multidisciplinar de
técnicas terapêuticas que influenciariam minha forma de praticar
magia do caos. Raven, uma das alunas da minha turma, havia
passado uma temporada em um ashram de siddha yoga na Índia.
Ela me pareceu ter muito conhecimento sobre tantra e yoga —além
de ser professora certificada de yoga, ela também se interessava
por wicca. Formamos uma parceria mágica, e ela participou de
alguns encontros dos covens com os quais eu estava envolvido na
época (um em York e outro em Macclesfield). Foi um relacionamento
intenso e um tanto estressante, porque sentíamos que não era
possível compartilhar nossos interesses mútuos em ocultismo com
outras pessoas. Foi por influência dela, no entanto, que consegui
entender minhas experiências com kundalini em 1984.
É difícil escrever sobre kundalini até mesmo nas circunstâncias
mais favoráveis, pois praticamente toda pessoa que escreve sobre
ocultismo parece ter uma opinião própria sobre o assunto e seu
significado enquanto experiência mágica ou espiritual.
No equinócio de outono de 1984, fui iniciado no segundo grau da
wicca. Algumas semanas depois, comecei a ter crises de vertigem, a
sensação de deslocamentos pelo corpo e outras sensações
estranhas na base da coluna. Em mais de uma ocasião, essas
sensações ficavam tão difíceis de suportar que eu quase tinha
ataques —meus dentes batiam, eu sentia calor e frio ao mesmo
tempo e tinha contrações musculares involuntárias. Eu não sabia o
que estava acontecendo, mas Raven me acalmou e disse que se
tratava do despertar da “serpente de fogo”, a kundalini. Essas
experiências intensas pareciam ocorrer com frequência cada vez
maior. Eis um excerto do meu diário mágico da época:
Começou como um grito na minha cabeça —“o grito de Kali”, pensei, que reverberou por
um tempo que parecia interminável até eu não conseguir mais “ouvi-lo”. Eu o vi e o senti
como uma luz branca que desceu pela minha coluna e se enroscou no meu chacra-raiz,
que se abriu com um clarão. Uma sensação de frio começou a se espalhar lentamente
pelo meu corpo, como se todos os meus nervos estivessem acesos, e senti como se a
ponta dos meus dedos brilhasse. Comecei a tremer e ter espasmos, e fui tomado por uma
desorientação, que piorava quando eu fechava os olhos e me dava a sensação de estar
girando em alta velocidade, envolvido por padrões coloridos em espiral. Logo me esqueci
das outras pessoas no quarto, entrei na postura de lótus, que para mim era a melhor
maneira de não sucumbir. Tudo isso durou mais de uma hora, e foi muito difícil manter o
controle.
O
despertar da kundalini, ou serpente de fogo, é um elemento
central na magia contemporânea, que assimilou o conceito a
partir de sua fonte original, o tantra. Embora o conceito de
kundalini tenha sido apresentado a ocultistas ocidentais por
teosofistas como Alice Bailey e C. W. Leadbeater, foram os escritos
mais detalhados de Arthur Avalon e Aleister Crowley que levaram
uma quantidade significativa de ocultistas ocidentais a buscar essa
experiência. Foi Crowley especificamente que ofereceu uma síntese
das práticas de magia ocidentais e orientais e legou a ocultistas
posteriores uma abordagem integrada da experiência com a
kundalini, identificando-a como o “poder mágico” central no
organismo humano. Seus experimentos (entusiasmados) tanto com
drogas quanto com magia sexual eram completamente diferentes do
“asceticismo espiritual” pregado por muitas pessoas de sua época.
Enquanto a “espiritualidade” era geralmente associada a filosofias
que rejeitam a experiência corpórea ou somática, Crowley construiu
a fundação de uma abordagem ocidental ao desenvolvimento pessoal
que integra tanto o aspecto psíquico quanto o somático da
experiência. Foi só na década de 1960, e com a chegada da “era
psicodélica”, que essa abordagem recebeu atenção mais ampla (e
séria). Os anos 1960 foram o início do que Timothy Leary chamou de
“tecnologia hedonista”: a descoberta do prazer, no lugar da restrição,
por meio de drogas, sexualidade, dança, música, massagem, yoga e
dieta. A “era psicodélica” também trouxe consigo um grande
“renascer ocultista”, interessado principalmente numa magia de
orientação hedonista, como no tantra e no culto thelêmico de Aleister
Crowley.
Dessa explosão de consciência se desdobraram o pensamento e a
prática de magia dos anos 1970, principalmente com a exposição
das ideias de Crowley, dos preceitos tântricos e dos trabalhos de
Austin Osman Spare feita por Kenneth Grant. Periódicos voltados à
thelema, como SOThIS, Agape e The New Equinox, ofereciam
pontos focais para a evolução de técnicas e considerações em
magia. A natureza fisiológica dos estados intensos de consciência
passou a ser cada vez mais reconhecida, e a magia passou a ser
vista cada vez mais como uma abordagem de desenvolvimento
pessoal que integra tanto a experiência mental e interior quanto a
consciência corporal. A “potência” agora estava dentro de cada
pessoa, e não em uma força externa qualquer.
Desde os anos 1960, o “despertar” da kundalini se tornou uma
experiência muito procurada no Ocidente. A magia é um dos
principais caminhos para isso, o yoga é outro, além de cultos
extáticos liderados por uma variedade de gurus. Muita coisa já foi
dita sobre o assunto, desde os escritos mais técnicos como os de
Kenneth Grant, até trabalhos populares sobre kundalini yoga e
manuais de sexo baseados no tantra.
Assim como acontece com muitos outros temas ocultistas, hoje
existem muitos livros que foram escritos “de tabela”, isto é, por
pessoas que perpetuam uma perspectiva específica sobre o assunto
em vez de escrever a partir da experiência direta. Isso levou a muitas
confusões e equívocos relacionados à natureza geral da kundalini e à
experiência com ela. O poder da experiência em transformar a
consciência em diversos graus parece ser reconhecido quase
universalmente, mas alguns escritos fazem ressalvas à prática de
kundalini yoga, enquanto outros dão a impressão de que, para
experimentar a kundalini, bastam alguns asanas básicos de yoga e
uma pessoa interessada (geralmente) do sexo oposto. É a sua
kundalini que está subindo ou você está feliz de me ver?
Então o que quer dizer “experiência da kundalini”? Kundalini é uma
palavra em sânscrito que pode ser traduzida como “enrolado como
uma cobra”. A kundalini é representada em muitas ilustrações
tântricas como uma serpente adormecida, enrolada três vezes e
meia na base da espinha dorsal. A ideia popular que se tem é de
uma força dormente à espera de ser ativada por meio de diversas
práticas. O “poder da serpente”, uma vez despertado, sobe pelo
canal central da coluna e entra nos chacras (centros de energia
psíquica) até chegar ao chacra da coroa e o yogue atingir a
“iluminação”.
Parece simples, não? Mas a experiência com a kundalini é um
fenômeno muito mais complexo. Ao se aprofundar no assunto, fica
claro que não há um consenso sobre isso. A ciência ocidental e a
mística oriental, a sabedoria antiga e a pesquisa moderna —todas
deram explicações muito variadas sobre como funciona a kundalini.
Assim como em qualquer outro tipo de experiência do “oculto”, o
melhor modo de proceder é a partir da vivência pessoal; e, com
relação à kundalini, a experiência direta mudou minha forma de
encará-la (além de muitas outras coisas) e me fez buscar minhas
próprias respostas. Quando me deparei com o tema da kundalini
pela primeira vez nos escritos de Kenneth Grant e Gopi Krishna, tive
a impressão errônea de que eu certamente deveria evitar o assunto
até que minhas habilidades mágicas e ióguicas fossem “mais
avançadas”. E o que foi que aconteceu? Tive uma experiência com a
kundalini. Que inusitado, não? Isso aconteceu depois de um longo
período de bhakti yoga em devoção à deusa Kali, que culminou em
uma visão de “morte e renascimento” muito intensa —eu era
queimado vivo em uma plataforma de pedra, e depois refeito em uma
nova forma.
A experiência com a kundalini ocorreu sete dias depois. Eu tinha
passado o dia inteiro sentindo um desconforto muito forte, sem
conseguir definir uma causa específica. À noite, enquanto eu
meditava com a sacerdotisa Raven, de repente vivi algo que só
posso descrever como uma crise: espasmos musculares, dentes
batendo, ondas de frio e de calor e, com a coluna arqueada para
trás, comecei a hiperventilar. Raven me segurou e me ajudou a
relaxar e “entrar na onda”. A “crise” continuou por uns vinte minutos
e, conforme foi esmorecendo, me senti fraco e zonzo. Raven, que
tinha mais de vinte anos de experiência como professora de hatha e
raja yoga, disse que poderia ser a “serpente começando a se
mexer”.
Foi um acontecimento abrupto, extremamente físico e totalmente
além da minha vontade consciente. Todas as concepções que eu
tinha sobre kundalini (e sobre estar no controle da experiência) se
desfizeram de uma hora para a outra. Por trás de toda essa
confusão, no entanto, tive a certeza intuitiva de que estava tudo
certo.
Ao longo dos 28 dias seguintes, tanto a sacerdotisa Raven quanto
eu experimentamos uma atividade “aguçada” da kundalini,
caracterizada por espasmos musculares ao redor da base da coluna,
euforia, experiências fora do corpo e alucinações. Transcrevo aqui o
relato de uma das experiências mais desorientadoras que tive (5 de
outubro de 1984, por volta das 23h30):
Começou como um grito na minha cabeça —“o grito de Kali”, pensei, que reverberou por
um tempo que parecia interminável até eu não conseguir mais “ouvi-lo”. Eu o vi e o senti
como uma luz branca que desceu pela minha coluna e se enroscou no meu chacra-raiz,
que se abriu com um clarão. Uma sensação de frio começou a se espalhar lentamente
pelo meu corpo, como se todos os meus nervos estivessem acesos, e senti como se a
ponta dos meus dedos brilhasse. Comecei a tremer e ter espasmos, e fui tomado por uma
desorientação, que piorava quando eu fechava os olhos e me dava a sensação de estar
girando em alta velocidade, envolvido por padrões coloridos em espiral. Logo me esqueci
das outras pessoas no quarto, entrei na postura de lótus, que para mim era a melhor
maneira de não sucumbir. Tudo isso durou mais de uma hora, e foi muito difícil manter o
controle.
Introdução
O
tantra, como afirma Herbert Günther, é “um dos conceitos mais
equivocados que a mente ocidental desenvolveu”.[17] A ideia de
que o tantra existe como uma categoria monolítica e separada
de outras formas de práticas religiosas do sul da Ásia é em si um
produto da imaginação acadêmica (e ocultista) ocidental.[18] Tentar
entender a forma como o tantra foi “imaginado” e representado em
discursos acadêmicos, populares e ocultistas também tem sido uma
das preocupações da minha prática.
Dentro da subcultura do ocultismo contemporâneo, isso toma uma
forma específica: o tantra é tratado como essencialmente
semelhante ao esoterismo ocidental tanto na prática como em seus
objetivos —pelo menos a partir da reinterpretação de seu conteúdo.
Geralmente, há uma ênfase no tantra como um conjunto de
“técnicas” ou uma “ciência sagrada” disponível em diversos níveis
para as pessoas. A figura de praticante do tantra é frequentemente
ilustrada como um tipo de super-herói nietzscheano, que se envolve
com práticas “transgressoras” que a levarão a superar os limites da
sociedade convencional.
No entanto, pouquíssima (ou nenhuma) atenção é dada ao tantra
como uma prática social: praticantes como pertencentes a um grupo
particular; a relação desse grupo com a cultura geral; e a relação
entre praticantes do tantra e o Estado (o tantra e a eleição de
governantes, por exemplo, ou instâncias em que o tantra se tornou
uma “religião do Estado”). Frequentemente, escritos ocultistas
ocidentais consideram necessário reinterpretar o tantra para que ele
se torne familiar —por exemplo, comparando-o à cabala—, ou às
vezes reapresentam conceitos tântricos em termos totalmente
ocidentais. Declarações como esta, feita pelo falecido Christopher
Hyatt, não são incomuns:
Assim, não espere uma série de palavras estrangeiras (o que pode chamar de “blá blá blá
hinduísta”) concatenadas como resposta a uma pergunta. Para nós, essas abordagens
são nada mais do que uma recusa de responder à pergunta que torna complexo o que é
simples —em favor do ego de quem escreve. Seria ridículo para nós responder perguntas
usando conceitos esotéricos orientais. Se fizéssemos isso, este livro seria de pouca
utilidade para praticantes ocidentais. Não fingimos ser especialistas na fraseologia,
linguagem, cultura etc. do caminho oriental. Nossa especialidade está na utilização de
suas técnicas para chegar aos objetivos desejados.
Em muitas ocasiões, usaremos métodos e símbolos ocidentais deliberadamente, já que
o inconsciente coletivo ocidental é capaz de os assimilar e integrar com mais facilidade.[19]
Admiração
Prática corporificada
Relacionalidade
Início
Reconhecendo gurus
Enalteço meu guru, guru dos gurus; o primeiro guru. Dou atenção
a quem a mim professou.
Esse é um breve momento durante o processo em que reconheço
minha dívida e minha relação com os professores e professoras do
passado (e, muitas vezes, pessoas amigas que morreram). É um
reconhecimento do papel de outras pessoas na minha trajetória até o
momento presente. Um dos aspectos mais complicados do tantra
para praticantes ocidentais contemporâneos é a questão toda de se
ter gurus. Eventualmente, quando dou palestras sobre o tantra,
muitas vezes me perguntam se eu acho “necessário” ter gurus, e
geralmente respondo que não acho que teria adquirido a
compreensão do tantra que acredito ter sem a pessoa a quem me
refiro como “guru”. Para mim, a necessidade de ter um guru reforça
o aspecto relacional da prática tântrica. É uma prática que demanda
a presença e a cooperação de outras pessoas amigas, professoras,
até mesmo (se possível) uma comunidade ou uma rede de
praticantes.
Como se afirma no Kularnava tantram: “experiência e boa
companhia são os dois olhos abertos de quem busca”. Minha relação
com a pessoa que aceitou ser meu guru —me ajudar a desenvolver
minha própria prática e abordagem— é um tipo de amizade. Ela foi
intensa em alguns momentos, particularmente quando morávamos na
mesma cidade e podíamos nos encontrar com razoável frequência.
Agora moramos em diferentes extremos do planeta, e a relação que
temos é inevitavelmente diferente. Não é como se ele me dissesse o
que devo ou não fazer, ou me desse conselhos sobre que práticas
fazer, ou que tivéssemos de concordar quanto à doutrina ou teologia
que adotamos. De modo geral, não concordamos.
Nyasa
Shakti
Devoção à shakti-flecha
Conclusão
Me senti atraído pela prática do tantra no início dos anos 1980 por
causa de uma série de sonhos recorrentes em que a deusa Kali
avultava imensa. Naquele momento de vida, eu estava envolvido com
a wicca, e teria sido fácil interpretar meus sonhos com Kali dentro
dessa perspectiva. Mas eu estava procurando outra coisa. Os
relatos ocidentalizados e as apropriações do que supostamente é o
tantra são abundantes. De muitas formas, um dos maiores
obstáculos que tive de contornar ao longo dos últimos trinta anos,
mais ou menos, foi perpassar as representações ocidentais do tantra
(tanto as ocultistas quanto as acadêmicas) e descobrir as
abordagens teológicas ricas e diversas dos próprios textos do sul da
Ásia. Na medida em que aprendi a lidar com esse material, percebi
que, para entendê-lo, eu tinha de abandonar a perspectiva ocidental
(imperialista) de que as práticas de outras culturas podem ser
facilmente assimiladas aos esquemas esotéricos ocidentais
universalizados e, em vez disso, procurar entender como essas
práticas se relacionam com as formações culturais mais amplas da
Índia, tanto historicamente quanto no meio contemporâneo. Ao fazer
isso, acabei não só abandonando muito do que eu pensava sobre
práticas mágicas, como também focando naquilo que para mim eram
temas cada vez mais centrais, em torno dos quais eu queria basear
minha prática: a admiração perante a vida, o ato de viver momento a
momento e as milhares de formas pelas quais podemos ter essa
experiência através das nossas relações com o mundo.
TANTRA, SEXO E
IMAGINAÇÃO
TRANSGRESSORA
Além disso, esmiuçar um texto específico (neste caso, um texto tântrico não-
dualista do budismo) demonstra as nuances e dificuldades da interpretação de
textos e das doutrinas que os fundamentam.
◆ ◆ ◆
P
raticamente desde o início de sua descoberta por europeus na
virada do século XIX, o “tantra” enquanto conceito girou em
torno de dois grandes eixos —sexo e transgressão—, a ponto
de esses dois elementos serem comumente interpretados como
características definidoras do tantra, isto é, como os elementos-
chave da “identidade visual” do tantra. Afinal, a transgressão é
vendável. Os ideais contemporâneos de transgressão movimentam o
mercado; somos incentivados a ser únicos, a “quebrar as regras”, a
nos entender e nos expressar como pessoas autênticas, criativas e
libertas por meio da compra de coisas: de carros a perfumes, de
hambúrgueres a livros. Ao que parece, há todo um gênero de livros,
especialmente de ocultismo, que parecem feitos com o objetivo de
serem declarados transgressores —do contrário, ninguém os
perceberia. Hugh Urban faz uma pergunta pertinente:
A busca por uma libertação radical até mesmo dos limites do eu de fato leva a algum tipo
de liberdade significativa? Ou será que ela simplesmente transformou as próprias ideias de
“libertação” e “transgressão” em mercadorias que podem ser compradas por US$ 19,95
na Amazon.com?[25]
Quem tira vidas, quem se compraz em mentir, quem sempre cobiça a riqueza alheia,
quem gosta de fazer amor, quem consome fezes e urina de propósito, são essas pessoas
as merecedoras desta prática. Yogues que fazem amor com a mãe, a irmã ou a filha
alcançam enorme sucesso na verdade suprema do mahayana.[26]
E esta, do capítulo 7:
Tomando uma moça de posses, dotada de um semblante formoso e muito bela, meditando
sobre a fundação da bênção, ele deve oferecer a devoção da essência, e tomando o
sêmen ele deve comer, de olhos abertos, com a mente tranquila; essa é a devoção do
corpo, do discurso e da mente de todos os mantras. É chamada de executora de todos os
mantras-siddhi, o segredo de quem possui a sabedoria vajra.[27]
◆ ◆ ◆
Filhos desta família, a fumaça surge e provoca o fogo a partir da fricção de dois pedaços
de madeira e do trabalho das mãos humanas, mas o fogo não mora na madeira que
fricciona, nem na madeira friccionada, nem no trabalho das mãos humanas. É dessa
mesma forma, filhos desta família, que as leis vajra de todos os tathagatas devem ser
entendidas, como um simples ir e vir.[34]
◆ ◆ ◆
M
inhas primeiras experiências com grupos de ocultismo (e com
a leitura de livros sobre o tema), no que diz respeito a
sexualidade, não aconteceram sem que houvesse problemas.
Quando entrei em contato com a cena ocultista do Reino Unido nos
anos 1980, predominava a ideia de que, se a pessoa não fosse
hétero, não poderia ser bruxa ou magista. Essa noção estava
presente em todas as vertentes do ocultismo: bruxaria, magia
cerimonial, tantra. Até o movimento neotantra, ou do sexo sagrado,
que começou a se popularizar no início daquela década, defendia
essa opinião. O best-seller Sexual Secrets (1979), de Nik Douglas e
Penny Slinger, defendia que a “liberdade homossexual” havia levado
ao declínio de impérios e que homens gays deveriam usar técnicas
de yoga para suprimir seus desejos e assim evitar “consequências
cármicas”. Hoje em dia, é fácil ter a impressão de que o mundo do
paganismo e do ocultismo sempre aceitou bem as sexualidades não
normativas. Quando algumas pessoas não acolhem a causa, se vê
isso como anomalias individuais, e não como uma cultura arraigada.
É fácil se esquecer de que nos anos 1980 e 1990 (pelo menos no
Reino Unido) não era incomum encontrar gente vomitando
declarações que agora reconheceríamos como homofóbicas, das
quais, em geral, ninguém reclamava ou contestava.
Para mim, e para a maioria das pessoas da minha geração que se
identificam como queer, a realidade disso é mais complexa. A meu
ver, a aceitação de paganistas e magistas não hétero na cena
mainstream foi resultado de uma longa batalha que, até certo ponto,
ainda não acabou. Em parte, essa batalha tem consistido em
combater declarações tais como a de Gareth Knight de que a
“homossexualidade, assim como as drogas, é uma técnica de magia
negra”,[40] ou teorias ocultistas que dizem que sexualidades não
normativas são produto de “chacras bloqueados”, de “desequilíbrios
de energia yin ou yang” ou de “kundalini invertida”. Também tivemos
de combater explicações de polaridade que se baseiam em
eletromagnetismo e até na boa e velha analogia de “plugues e
tomadas”, além da opinião bizarra de que homossexuais
simplesmente não são seres humanos, mas sim entidades
elementais ou demoníacas que habitam corpos humanos com
objetivos duvidosos —todas são ideias que já encontrei em uma
grande variedade de textos que ainda circulam.
Ler (e ouvir) esse tipo de coisa no início da década de 1980, como
um jovem lutando para entender a própria identidade como homem
gay ou bissexual (eu não tinha certeza e cheguei a me identificar
como gay por alguns anos), era perturbador, para dizer o mínimo.
Passei por fases de confusão, depressão e, finalmente, vim a sentir
raiva da situação.
O sentimento de raiva tomou forma em textos, palestras e longas
discussões com outras pessoas ocultistas e paganistas não hétero
—e não havia muita gente, a princípio. Também comecei a ficar mais
para “fora do armário” em reuniões ocultistas e paganistas: em uma
ocasião memorável, saí desfilando por um descampado cheio de
paganistas em Leicestershire usando calças de couro, uma coleira
de cachorro e um boá de plumas.
No final dos anos 1980, eu estava muito ativo na rede PaganLink,
[41]
e foi por meio dela que conheci Gordon “The Toad” McLellan.
Gordon montou uma rede chamada HOBLink com o objetivo de
conectar gays, bissexuais, lésbicas e trans paganistas. O foco inicial
era em correspondência, apesar de termos tido um ou dois ótimos
encontros. Quando me mudei para Londres, ajudei a montar um
grupo HOBLink por lá, chamado Queerwolf: A Radical Sexuality
Network, que durou algum tempo. Colocamos um anúncio na Gay
Times para tentar atrair pessoas interessadas, mas muitas
responderam associando claramente o paganismo com orgias em
Hampstead Heath, o que não era bem o tipo de encontro que
estávamos procurando na época! Produzi um boletim informativo
chamado Queerwolf, mas só houve uma edição.
Ao longo dos anos 1990, conheci e me correspondi com uma
grande variedade de praticantes de magia que não eram hétero e
seguiam várias tradições e abordagens. Embora de vez em quando
eu ouvisse histórias de pessoas que tiveram de “esconder” sua
sexualidade para serem aceitas em grupos ocultistas, as coisas
estavam mudando aos poucos. A maioria das pessoas que conheci
por meio da Iluminados de Thanateros (IOT) ou da Temple of
Psychic Youth (TOPY) não tinha qualquer problema com praticantes
queer, mas ainda circulava muita homofobia disfarçada de saber
ocultista nos textos de outras tradições e, é claro, sempre tivemos
de lidar com fofocas nesse meio, que às vezes se tornavam públicas.
Até o fim da década de 1990, havia praticantes LGBT/queer que já
estavam criando seus próprios espaços autônomos.
O Queer Pagan Camp (QPC) é um exemplo. Estabelecido em
1998, o QPC foi um espaço queer organizado anualmente (por 13
anos consecutivos, quando houve um breve hiato até que as
atividades fossem retomadas), no estilo do it yourself, montado e
administrado por praticantes queer de paganismo e magia —algo
muito diferente de um evento basicamente heteronormativo que
poderia (mesmo com a maior boa vontade do mundo) ter dificuldade
de ser “inclusivo” para participantes e perspectivas não hétero. Parte
do ímpeto por trás da organização do QPC era oferecer um espaço
seguro para paganistas e magistas queer, mas também se queria
criar algo diferente.
O que significa queer nesse contexto? Me parece que existem
duas formas correlatas, porém divergentes, de pensar a expressão
“paganista queer”. Primeiro, enquanto substantivo, “paganista queer”
pode ser lido como um termo “guarda-chuva”, isto é, algo que abarca
uma variedade de posições identitárias entre as quais talvez o único
ponto comum seja o comprometimento (em diferentes graus) com a
recusa ou resistência à binaridade de gênero heteronormativa.
No entanto, é na segunda forma de usar “paganista queer” que
quero me concentrar no momento, na qual “queer” aparece como
verbo, significando um processo radical de ruptura: o foco passa de
paganista queer como posição identitária para paganismo
“queerizante” enquanto processo.
O que significa “queerizar” algo? Queerizar pode ser entendido
como um processo de ruptura, interferência e questionamento do
normal, das coisas que são “dadas como naturais”. O queer se
aproxima sorrateiramente das identidades e ideologias: qualquer
categoria tomada como atemporal, sólida e fundamental que revele
lacunas, fissuras, resistências, instabilidades, possibilidades
diferentes e surpresas. Parte desse compromisso de confrontar,
desvelar o que está escondido, olhar para os bastidores e descobrir
como as produções são realizadas é o compromisso de manter o
queer difuso e indeterminado —um reconhecimento da importância
de não recair no binarismo “nós vs. eles” que privilegia um sujeito
queer heroico e “transgressor” em contraposição a todo o resto que
ainda se mantém enredado em relações normativas.
Me perguntaram há uns anos se o paganismo queer poderia ser
visto como uma “tradição”. É uma pergunta interessante que, para
mim, destaca o quanto paganistas tendem a conceituar diferentes
categorias de práxis como “tradições”. Isso também suscita um
questionamento sobre como o próprio conceito de “tradição” é usado
no discurso paganista. A palavra “tradição” é utilizada às vezes para
denotar atributos comuns de uma práxis —ou seja, um conjunto não
só de práticas, mas também de ideologias comuns e de alianças
políticas comuns, por exemplo—, e muitas vezes há uma implicação
histórica sobre essa práxis —certa ideia de que as coisas que
fazemos agora eram feitas pelas pessoas que são nossas
ancestrais, ou algo assim. A tradição pode ser pensada
(simplificando bastante) como uma busca pela unidade em variados
graus, e pode funcionar como uma fronteira quando se fazem
distinções entre duas abordagens da práxis. Mas para o paganismo
queer essa busca pela unidade só pode existir, acredito eu,
temporariamente. Uma coisa que vejo como central para o
paganismo queer é o compromisso com a diversidade e a diferença
—o que envolve abrir espaço para discordância— e o entendimento
de que a própria discordância é produtiva, e não um fracasso.
Da mesma forma, defender um paganismo queer histórico é
também complicado. Embora possamos falar (e muito!) sobre
celebrar ancestrais queer e enxergar o queer em diferentes histórias
retrospectivamente, desvelando políticas dissidentes ocultas por trás
de relatos monolíticos sobre o passado, não acredito que isso seja a
mesma coisa que colocar as origens de uma prática de paganismo
queer em um passado distante e indiferenciado. Enxergo o
paganismo queer como algo novo: a teoria e o ativismo queer
surgiram a partir dos anos 1990, e o tipo de paganismo queer
praticado na QPC tem conexões diretas com grupos ativistas como o
Queeruption.
Se for possível falar de “tradição paganista queer”, ela estaria
relacionada a alianças e redes específicas temporárias, produzidas
em espaços não hegemônicos como o Queer Pagan Camp. Talvez
haja um senso de tradição compartilhada quando paganistas queer
se reúnem para dar risadas, celebrar, dançar e discutir, mas, fora
desses espaços, isso retrocede, esvanecendo como o orvalho
matinal.[42]
Em vez de enxergar a tradição como uma fronteira que delimita
práticas específicas (como teologias, rituais etc.), o que me parece
ser motivo de maior preocupação dentro de um espaço paganista
queer é o compromisso com uma ética de cuidado mútuo e
reciprocidade: um convite a jogar com limites e categorias, a
celebrar a diferença. É essa abertura ética —primariamente em
relação a sexualidade e identidade de gênero, mas também a outras
formas de diferença— que vejo como central ao entendimento das
abordagens paganistas queer. O queer não precisa ser uma escolha
entre isto ou aquilo feita em contraste a outras identidades, mas
(dependendo do contexto ou da situação) possivelmente algo como
um “tanto isto como aquilo” ou até mesmo “nem isto nem aquilo”.
Abrir-se para as possibilidades de fluidez implica aceitar múltiplas
orientações e posições que mudam de acordo com contextos e
situações particulares. No QPC, ser “queer” é uma questão de
autoidentificação. Se você se enxerga como queer —
independentemente de como você enquadra e expressa (ou não)
seus desejos—, se você se identifica com os ideais do grupo, você é
“queer”. O queer não é só wicca com purpurina ou xamanismo de
salto alto.
Os ensaios que escolhi para esta seção foram escritos entre 1988
e 2019, e acredito que trazem uma ampla variedade de influências e
perspectivas.
AMOR SOB VONTADE
Sexualidade, magia e libertação
N
o momento em que a magia está (supostamente) passando por
um renascimento, com ideias e técnicas centrais apresentadas
de forma clara e aberta, a magia sexual continua emaranhada
em falsas aparências e concepções errôneas. Parece haver muito
pouco material publicado que fale claramente sobre o assunto. Em
geral, o que acontece é que a magia sexual fica velada (às vezes
“afogada”) em meio a alusões e comentários simbólicos.
Para começar, o que de fato constitui um ato de magia sexual?
Uma definição ampla seria: o uso da própria sexualidade com
intencionalidade —literalmente “amor sob vontade”— para provocar
mudanças. Isso implica muito mais do que empunhar bastões,
varinhas, taças e rosas. O celibato, enquanto decisão consciente de
não ser uma pessoa sexualmente ativa, pode ser um ato de magia
sexual tanto quanto qualquer cópula ou masturbação ritualizada.
A base da magia sexual é entender e experienciar a sexualidade
como sagrada ou “mágica”. A sexualidade é provavelmente o meio
mais poderoso de transformação, descoberta e conhecimento de
que a humanidade dispõe. É por isso que a sexualidade é
efetivamente guardada “sob sete chaves” por nossa sociedade. A
visão judaico-cristã da sexualidade ficou “cravada” na psique cultural
a tal ponto que muitos de nós acreditam que a expressão sexual vem
com uma carga “natural” de vergonha e culpa. Para o cristianismo
ortodoxo, a sexualidade nunca é totalmente isenta de pecado,
mesmo dentro dos limites do casamento. O advento da “sociedade
permissiva” supostamente nos libertou das amarras e inibições do
passado, mas será que foi isso mesmo?
A sexualidade se tornou mais um produto comercializável, mais
uma fonte de status. Embora costumemos encarar nossa natureza
sexual em termos de privacidade e de “naturalidade”, ela está sujeita
a bastante interferência e manipulação pelas mãos de agentes
externos. Difunde-se na mídia um imperativo cultural de que temos
de ser bons de cama; que o sucesso depende da quantidade de
orgasmos que conseguimos provocar na pessoa parceira; ou, na
verdade, da quantidade de pessoas parceiras que temos. Para muita
gente, a sexualidade é um dos principais meios de conquistar status
e poder egocêntrico, associados com a imposição da própria
vontade a outrem. O fator-chave do estupro, por exemplo, parece
ser a demonstração do poder do macho sobre outra pessoa (uma
mulher ou um homem mais fraco).
A sociedade age de modo a direcionar a energia sexual para
formas aceitáveis: aquelas que mantêm certa alienação, como o
romantismo sentimental e a pornografia. Mais poderosos e invasivos
do que os íncubos medievais são as neuroses, obsessões e atos de
violência que parecem ser o produto inevitável desse niilismo sexual.
Uma característica dessa sexualidade profundamente egocêntrica é
a pessoa parceira ser vista como pouco mais do que um instrumento
de satisfação das próprias necessidades (sejam elas físicas ou de
status). As emoções humanas ficam alienadas nessa corrida por
gratificação consumista: de produtos, riqueza, sucesso e conquista
dos orifícios de outrem.
Esses imperativos culturais —de sermos pessoas bem-sucedidas
e termos objetivos definidos em todas as áreas da vida— estão tão
arraigados que normalmente só percebemos suas manifestações
mais óbvias, como em relação a trabalho, por exemplo. Eles podem
facilmente passar despercebidos no domínio bastante pessoal no
qual colocamos nossa própria sexualidade e, igualmente importante,
nosso senso de “espiritualidade”. Como resultado da ênfase cultural
que se coloca na conquista de objetivos, boa parte do que passa por
ocultismo ocidental também é focada em objetivos. A magia sexual
ocidental não é exceção. Existe uma tendência a encarar a magia
sexual simplesmente como um jeito “melhor” de adquirir produtos,
“poderes” ou riqueza, e se coloca muita ênfase na necessidade de
visualização, inibição do orgasmo e concentração mental em vez de
consciência corporal e prazer. Essa abordagem ao potencial sexual
parece muito fria e limitada; como Zachary Cox disse, é “como usar
um microchip como peso de porta”.[43]
Parte do problema sofrido pela magia sexual ocidental é a
consagração das ideias de Aleister Crowley, muitas vezes visto como
modelo ideal da “nova sexualidade”. No entanto, uma pansexualidade
como a de Crowley não implica necessariamente uma libertação
sexual total. Embora tenha sido um grande inovador e sintetista,
Crowley não foi capaz de se livrar da moral sexual prevalente na
época. Sua filosofia sexual demonstra uma típica (e duradoura)
postura dualista quanto às mulheres, colocando aquelas que ele
“idealizava” em um pedestal, mas continuando aparentemente
incapaz de aceitar as mulheres como iguais. Exemplos desse
egocentrismo não são difíceis de encontrar:
Por volta das 20h45, eu estava na esquina da Rua 35 com a Broadway, procurando uma
alma gêmea, uma noiva predestinada, uma afinidade, um ego congênere etc.; e teria
considerado as condições satisfeitas por qualquer orifício no qual eu pudesse mergulhar
meu pênis por um valor que não excedesse US$ 2,50.[44]
A abordagem de magia sexual adotada por Crowley parece ter
sido quase totalmente voltada para resultados, com suas inúmeras
operações para atrair dinheiro, fascínio, sucesso, juventude e
energia mágica. Ele sugere que a parceira nesses trabalhos é
secundária à vontade do mago, e a seleção de uma pessoa
adequada é deixada para algum capricho inconsciente. Infelizmente,
para ocultistas de hoje, há pouco material disponível sobre o trabalho
e as ideias das mulheres que seguiram o sistema de Crowley. Sem
dúvida boa parte da atração por Crowley enquanto uma espécie de
guru se dá pelos valores sexuais masculinos egocêntricos presentes
em suas atitudes. Todo o material disponível hoje em dia sobre a
“compatibilidade de parceiros” é voltado para homens, e serve para
manter um tipo de desequilíbrio. Por um lado, há a postura de Louis
T. Culling:
Muitas vezes, uma mulher que estudou ocultismo se torna insuportável por ter um excesso
de preconcepções que não estão de acordo com seu papel de parceira boa e cooperativa.
Se há qualquer relação possível, a mulher se torna automaticamente responsiva às
aspirações do varão, e, depois que isso acontece, é muito fácil oferecer a elas uma
explicação e uma compreensão dos aspectos mágicos.[45]
Mulheres ocidentais com as características necessárias são raras, e, como elas não têm
a vantagem hereditária da iniciação em técnicas ocultistas —como algumas mulheres
africanas e orientais—, o impacto repentino da energia mágica em suas personalidades
tende a perturbar sua sanidade.[46]
as mulheres começaram a perceber que a coisa toda [isto é, a revolução sexual contra a
moral vitoriana] tinha sido organizada por homens, com premissas masculinas e valores
masculinos, que beneficiavam os homens. Esperava-se que as mulheres se
comportassem como os homens em todos os sentidos.[49]
Sexualidade e intimidade
Caminho adiante
A
cláusula 25 do Criminal Justice Bill, projeto de uma nova lei
anticrime na Inglaterra, prevê a “criminalização” —para gays e
lésbicas— de uma variedade ampla de atividades sociais que
são naturais para outras pessoas e nunca seriam questionadas:
trocar beijos em público, andar de mãos dadas, marcar algum
encontro intermediado por uma pessoa amiga, passar a noite no
quarto de hóspedes na casa de alguém. “E daí?”, talvez você
pensasse. Afinal, “não é natural”, “é nojento”, “não é problema meu”.
Mas como você se sentiria se toda vez que estivesse na rua e
quisesse dar um beijo na pessoa amada existisse a possibilidade de
você e a outra pessoa serem levadas pela polícia, presas e até
obrigadas a fazer um tratamento médico? Além disso, também
haveria a ameaça muito real de levar porrada por ser uma pessoa
estranha —“queer”. Você acha que isso afetaria sua visão de
mundo? Pois afeta a minha.
Mas por que estou escrevendo sobre isso na Moonshine? O que o
paganismo tem a ver com sexualidade, ou mesmo com política? Para
mim, não há como separar uma coisa da outra. Ser paganista me
ajudou muito a ficar em paz com a minha própria sexualidade.
Quando comecei a sair do armário e me declarar gay, recebi muito
apoio de amigas e amigos paganistas. Vejo muitos cruzamentos
entre as duas coisas. Ser paganista é algo que pode fazer a pessoa
perder amizades, emprego ou até afastá-la da família, da mesma
forma que acontece quando se revela a própria sexualidade. As duas
coisas exigem de nós uma autoanálise —que olhemos para dentro e
digamos “eu sou assim”— e que nos sintamos bem com isso, ainda
que nem sempre nos declaremos para todo mundo.
A cláusula 25, no fim das contas, afeta a todos nós,
independentemente de orientação sexual e política. Ela afeta a todos
nós porque vai efetivamente legitimar a homofobia, uma palavra ou
vírus verbal que diz que homens “de verdade” não podem ser gentis
e afetuosos uns com os outros nem tratar mulheres de modo
diferente de um objeto sexual. A homofobia é um dos códigos
básicos de controle que sustentam o patriarcado, definindo os
contornos da masculinidade de forma tão tacanha que qualquer
homem que der um passo para fora automaticamente será taxado de
faggot [bicha, viado]. Palavra interessante. Faggots são feixes de
gravetos para queima. Essa palavra ofensiva remete à época das
fogueiras, em que os homens gays eram queimados na estaca. Isso
deve ter acontecido com muita gente para essa palavra ser
incorporada ao vocabulário popular. Historicamente, homossexuais e
paganistas são pessoas consideradas “hereges” e compartilham um
histórico de perseguição. Na Alemanha nazista, da mesma forma,
pessoas consideradas ocultistas eram enviadas para os campos de
concentração, e mais de um milhão de lésbicas e gays foram mortos
em câmaras de gás nesses locais.
E a caça às bruxas continua. É interessante que as mesmas
pessoas que agitaram o pânico satânico de abuso infantil[54] são as
que lançam adesivos de para-choque com a mensagem “Kill a queer
for Christ” [Mate uma pessoa queer em nome de Cristo].
Por outro lado, um número cada vez maior de gays e lésbicas está
se interessando por paganismo e magia. Para mim, pelo menos, ser
paganista tem a ver com descobrir meu próprio caminho individual e
explorá-lo em um ambiente em que as pessoas fazem concessões
individuais. É muito melhor do que certas religiões em que ser gay
imediatamente significa estar condenado ou comungar com o Diabo.
Como costumo dizer, de forma geral, fui acolhido e tive apoio de
amigos e amigas paganistas, o que diz mais sobre essas pessoas
como seres humanos do que sobre suas crenças paganistas em si.
Por que digo isso? Porque quase não existe literatura expressando
uma postura positiva a respeito de pessoas gays e lésbicas
envolvidas em caminhos paganistas ou ocultistas. Existe, no entanto,
uma crença muito disseminada de que a homossexualidade
(especialmente masculina) não tem lugar no paganismo ou na magia.
Já ouvi isso de wiccas, paganistas, thelemitas, cabalistas,
praticantes de tantra etc. Algumas pessoas, inclusive, como Dion
Fortune e Gareth Knight, já declararam que a homossexualidade é
uma forma de “magia negra”. Ideias ultrapassadas? Eu diria que sim,
mas o fato é que essas ideias ainda circulam como “verdades
espirituais”, e quando o preconceito é legitimado como “verdade
espiritual”, paganistas que adotam essas crenças não estão tão
longe assim de certas vertentes evangélicas que vociferam que
“todas as bruxas amam o Diabo”.
Talvez agora você diga “por que lésbicas e gays não adaptam o
que foi escrito para a maioria (isto é, heterossexuais) nos livros?”
Bom, é o que nós fazemos. Mas se todos os livros sobre paganismo
fossem escritos por mulheres, como será que os homens se
sentiriam ao ter de “adaptá-los”? Eu gostaria mesmo é de ver gays e
lésbicas tecendo formas próprias de espiritualidade que nos fossem
pertinentes, em vez de nos “encaixarmos” em uma espiritualidade
que não tem lugar claro para nós. Por outro lado, com a cláusula 25
em vista, pode ser difícil produzir essa literatura, especialmente se
quisermos abordar nossa própria sexualidade. Você consegue
imaginar alguma editora ocultista popular lançando um livro que
promove magia gay? Certo, é um assunto minoritário, mas o
mercado editorial ocultista inteiro é centrado em “assuntos
minoritários”.
Um último ponto que gostaria de colocar em jogo é que quem ousa
encarar a opressão, se levantando e dizendo “eu sou isto”, são as
pessoas que agem movidas pela mentalidade de um “poder que vem
de dentro”. Eu sempre lutei contra a classe média, contra pessoas
paganistas presunçosas e cheias de si, e contra magistas que, para
mim, simplesmente compram e propagam a ideia de que a
sociedade atual já é um mar de rosas, e não que poderia ser se
tivéssemos a ousadia de olhar para além de seus muros. A magia
floresce entre as pessoas oprimidas porque todos os meios normais
estão fechados. É a única opção que resta. É difícil ter uma
espiritualidade saudável quando não param de introduzir a golpes na
nossa cabeça (às vezes literalmente!) a ideia de que somos
diferentes, desprezados e anormais.
Não são as expressões “seguras” de espiritualidade que nos
ajudam a crescer, mas a resistência às garras que tentam nos pegar
a todos. Basta olhar para o impacto da magia que surgiu a partir do
feminismo e da espiritualidade feminina: os rituais em Greenham
Common[55] e as obras das deusas. Da mesma forma, o movimento
moderno de libertação gay cresceu a partir da revolta de Stonewall,
quando os “viados” desprezados finalmente encararam os cassetetes
e o gás lacrimogêneo —um ato mágico, por que não? Podemos
escolher a segurança, ou podemos tentar evoluir; é uma empreitada
perigosa, com certeza, mas que vale a pena. Como paganistas, nós
ousamos ser “diferentes”, então qual é o problema de
reconhecermos a ousadia de outras pessoas e de termos empatia
por elas?
Não alimentemos a fera; lutemos contra a cláusula.
SODOMIA E
REALIZAÇÃO
ESPIRITUAL
Este ensaio foi escrito em 1995. Minha intenção era publicá-lo em uma
revista londrina cujos editores haviam me pedido um texto sobre magia
sexual. Eles acabaram concluindo (sem dizer o motivo) que o ensaio era
“hardcore” demais, então acabei publicando-o no n. 11 da Chaos
International. Ao relê-lo agora, sinto nas palavras uma certa rebeldia. Eu
queria fugir completamente de relatos abstratos sobre magia sexual e
escrever diretamente a partir da minha experiência, mas, ao mesmo
tempo, tinha plena consciência de que eu ultrapassaria um limite ao
descrever a sensação de ser penetrado. Há uma clara influência dos
escritos de William S. Burroughs e de Jean Genet, que comecei a ler lá
pelos vinte e poucos anos. A frase sobre sexo anal estimular o chacra
muladhara —algo que não se encontra em trabalhos populares sobre
chacras— provavelmente foi influenciada por uma leitura do livro Gods of
Love and Ecstasy (1992), de Alain Daniélou, em que ele oferece um relato
bastante rebuscado (hoje eu diria “espúrio”) sobre penetração anal como
forma de despertar a kundalini. Nesse ponto, eu ainda me apoiava nesses
relatos sobre práticas sexuais tântricas e não havia de fato começado a
questionar sua validade. Não me lembro se, na época, levei Daniélou ao pé
da letra ou se só tinha sido uma justificativa ocultista satírica para os
benefícios do sexo anal passivo.
E
u me lembro muito bem da primeira vez que fui penetrado.
Exausto e relaxado depois de uma tarde inteira de sexo, me
deitei na cama do meu namorado e disse aquelas palavras
fatídicas: “Faz o que quiser comigo.” De soslaio, vi que ele pegou um
frasco em formato de unicórnio, cheio de um líquido amarelado (óleo
de amêndoas doces) e entendi o que estava prestes a acontecer.
Não tive medo, só uma sensação de relaxamento profundo. Não
doeu, mas, no momento da penetração, um eu morreu e outro
renasceu. Uma “iniciação”, certamente —e uma iniciação que me
trouxe percepções que agora tentarei reunir em um texto coerente.
Que sentimentos se agitam em mim por ter sido penetrado? Duas
palavras talvez sejam as melhores descrições: entrega e possessão.
Ao ser penetrado, estou abandonando minhas defesas do ego, me
abrindo em um nível profundo a outra pessoa, e sou capaz de deixar
de lado as “máscaras” construídas socialmente que eu usava para
lidar com o mundo. Entrego-me completamente ao prazer total e ao
prazer do meu parceiro. Vou e volto entre os limites do êxtase e da
agonia, até gemer e chorar incontrolavelmente; o líquido morno jorra
na minha barriga, e sinto um forte formigamento que me parece mais
intenso na ponta dos dedos. Até hoje, nunca tive um orgasmo só com
a penetração, mas ejaculação e orgasmo são duas experiências
diferentes para mim, na maior parte do tempo, e a ejaculação
peniana me parece sem importância quando comparada às
sensações que parecem despedaçar meu corpo quando um parceiro
está dentro de mim. O orgasmo de um parceiro dentro de mim me
traz uma profunda sensação de paz e satisfação. Sinto-me como se
tivesse sido revitalizado e pudesse sair pelo mundo com um brilho
interno. Lamento profundamente, nessa época de cuidados com a
aids, que eu não possa receber o sêmen de um parceiro dentro de
mim. Ainda assim, ao me entregar ao outro, é como se eu
reafirmasse meu senso de quem sou.
No mesmo momento em que me entrego, também me coloco em
um estado de possessão. É mais difícil escrever sobre isso, mas
acredito que isso esteja ligado a uma percepção errônea comum
sobre o ato sexual: o conceito de “ativo” e “passivo”. Para mim,
prefiro as palavras “doador” e “receptor”. Nosso condicionamento
patriarcal miserável deu origem à concepção de que “ativo” =
masculino e “passivo” = feminino. Passei a rejeitar cada vez mais
esse tipo de pensamento. Só porque uma pessoa (homem ou
mulher) recebe o pênis de um parceiro no corpo não significa
necessariamente que ela seja automaticamente “passiva”. Isso fica
claramente ilustrado nas imagens tântricas de Shiva montado por
Kali. O condicionamento social é forte o suficiente para fazer um
homem gay sentir que qualquer pessoa que toma no cu é, de alguma
forma, menos “macho”, porque se entregar sem amarras ao prazer
não é comportamento másculo que se preze. Por que não? Para
mim, ser penetrado é uma celebração da minha masculinidade.
Quase nunca sinto que abro mão da minha força pessoal em favor
de outra pessoa (a não ser, é claro, que haja um tipo de encenação
de “entrega” como brincadeira sexual).
Muitas vezes, sinto um senso de poder “sobre” o parceiro que me
penetra. O prazer e a ejaculação dele reafirmam meu próprio poder
interior. Em uma passagem de seus diários mágicos, Aleister
Crowley diz que era um gozo (perdão pelo duplo sentido) pensar que
“quando um homem me penetra, é porque sou belo”. Os relatos
exaustivos da ópera sexual de Crowley (como The Paris Working)
demonstram que ele tinha forte preferência por ser o parceiro
receptor quando se tratava de magia sexual gay. No entanto, a
importância de sua magia sexual com parceiros como Victor Neuburg
costuma ser ignorada por quem herdou sua filosofia mágica. Por que
será?
A intensidade desses sentimentos —de se entregar ao prazer e de
possuir outra pessoa, e de ser possuído ao mesmo tempo— eu
também percebi em outra situação: nas nuances de um transe, que
variam de um espírito a ofuscar minha consciência até a possessão
total por um espírito durante um ritual e dança. O transe-possessão
é visto como algo duvidoso pela cultura ocultista ocidental, do mesmo
modo que se deixar penetrar pelo pau de outro cara é um anátema
para muitos homens. De várias maneiras, permitir que minha psique
seja penetrada por um espírito (uma deusa, um deus, seja o que for)
desperta os mesmos sentimentos de quando sou penetrado
fisicamente. A chave parece ser o deslocamento consciente ou
desejado do ego a outra pessoa: o ato de oferecer meu corpo como
veículo para a transmissão de energia. Crowley sugeriu algo assim
em Liber Astarte, seu ensaio sobre magia devocional (bhakti yoga).
O ápice de bhakti é ser penetrado pelo espírito com o qual se está
trabalhando. Durante um beltane, atraí a deusa Éris vinda por cima
de mim e Pã vindo por baixo de mim —as divindades se encontraram
em algum lugar no meio disso, e eu perdi a consciência em seu
clímax.
Em Querelle de Brest, Jean Genet sugere que uma relação
homossexual “obriga” os homens a descobrirem os elementos
“femininos” em sua psique, mas “quem se sai melhor nisso não é
necessariamente o mais fraco ou mais jovem, nem o mais delicado
entre os dois, mas sim o mais hábil, que costuma ser o mais velho ou
o mais forte”. Há um elemento de verdade nisso, mas é igualmente
verdade que os dois parceiros podem se deleitar ao deixarem livres
os aspectos femininos da psique —ao mesmo tempo ou em
momentos diferentes.
Nesse ponto, preciso mencionar também o conceito mágico de
“polaridade”, que, em sua forma mais simplista, diz respeito à ideia
muito citada do deus e da deusa dentro de si. O problema da
“polaridade” ocorre quando se confunde divindade com condição e
com o que supostamente seriam qualidades “masculinas” e
“femininas”. Assim, ouvimos sem parar que o fogo é masculino e a
água é feminina; que a capacidade de demonstrar emoções e a
intuição são femininas, e que a análise intelectual é masculina. Quem
disse? Críticas feministas a esse tipo de condicionamento
argumentam que só sabemos o que é masculinidade e feminilidade
porque foram definidas de modos específicos. Superar essas
limitações certamente é uma tarefa primordial no processo de
desenvolvimento pessoal. Grande parte do que é aceito como “leis
do ocultismo” não passa de justificativas “espiritualizadas” para
preconceitos e condicionamentos sociais. Para homens gays, a
polaridade não precisa ser algo tão simplista como um dos parceiros
assumir um papel feminino —é possível reconhecer o feminino e
ainda assim oferecer o pênis para outro homem. É possível celebrar
os elementos masculinos da psique e ainda assim receber o pau de
outro cara dentro de si. As divindades não estão sujeitas às mesmas
restrições que os humanos: afinal de contas, qual seria o sentido se
deusas e deuses fossem iguais a nós? Impor nossos limites estreitos
às divindades é o mesmo que não compreender todo o exercício de
invocá-las. Faço minhas invocações para que eu vá além das minhas
limitações atuais —para me unir momentaneamente a algo maior, ou
fora do meu ego. Às vezes meu parceiro se torna, para mim, um
deus ou uma deusa —ou isso seria esquisito demais pra você?
Um bloqueio antigo que me foi condicionado e com o qual eu tive
de lidar foi a ideia equivocada de que, do ponto de vista tântrico,
sexo entre dois homens não tem valor. Mas não demorei a me livrar
dessa noção na medida em que fiquei mais confortável com meus
sentimentos e desejos por sexo com homens. Pela minha
experiência, posso dizer que tive vivências tântricas com homens tão
fortes quanto as que havia tido antes com mulheres. Sensações
como de uma “onda de júbilo”, de ver meu parceiro mergulhado em
luz dourada, o orgasmo de corpo inteiro e a sensibilidade aumentada
à atividade da kundalini são tão possíveis em uma parceria
homossexual quanto na heterossexual. A penetração anal é uma
forma muito eficaz de estimular o chacra-raiz, apesar do que diriam
alguns manuais de magia sexual. Pessoalmente, eu diria que minhas
experiências sexuais com outros homens e que deram vazão às
experiências descritas na magia tântrica foram ainda mais potentes
por causa do elemento óbvio da catarse: realizar desejos que
ficaram reprimidos por muito tempo costuma ser uma fonte poderosa
de energia —e uma energia, é claro, que pode ser direcionada para
a magia.
Obras modernas (pós-Crowley) sobre magia sexual parecem lidar
com a homossexualidade de duas maneiras. Existe ou a repreensão
de que é algo errado —que bloqueia os chacras, “reverte” a kundalini
ou “cria um vórtex astral sombrio”—, ou a visão mais positiva de que
o gênero das pessoas não importa, e que a “energia” é a mesma.
Obviamente, eu prefiro a segunda postura, embora sinta que as
coisas não são tão simples. Os escritos que pendem mais para a
segunda visão tendem a reforçar que a magia sexual só funciona
adequadamente dentro de uma relação estabelecida, o que é
verdade até certo ponto, mas excluem solenemente todas as facetas
da cultura sexual gay que a sociedade hétero considera
perturbadoras: sexo casual, sadomasoquismo e especialmente sexo
grupal. No Reino Unido, pelo menos, parece que existe pouquíssima
gente dedicada a escrever de forma inteligente (ou de forma afetiva,
o que é ainda mais importante) sobre as possibilidades de um tantra
afirmativo à cultura gay, e o único grupo que oferece apoio e
abordagens mágicas especificamente customizadas para homens
gays é a rede internacional do vodu. Espero que essa situação mude
na medida em que a questão da espiritualidade ganhe terreno dentro
da comunidade gay e mais ocultistas gays se assumam.
Para concluir, ouso declarar que, para mim, ser penetrado é uma
experiência intensamente sagrada; que a espiritualidade está na
celebração do prazer e não na negação do corpo. Oferecer meu pau
a outro homem também é algo prazeroso, é claro, mas de ordem
diferente, e minhas reflexões sobre isso ficarão guardadas para um
outro momento.
BAPHOMET QUEER
Este ensaio foi escrito em 2010 e foi publicado no meu blog enfolding.org.
Trata-se de um texto bem autobiográfico; um relato do meu relacionamento
—se é que essa é a palavra certa— com Baphomet e de como
compreendi essa divindade em momentos diferentes da vida, começando
com a wicca, passando pela magia do caos e finalmente me aproximando
de uma relação queer com Baphomet, influenciada pela teoria queer e por
nomes da filosofia continental como Gilles Deleuze. O ritual descrito
aconteceu no Queer Pagan Camp de 2004 e ainda é um dos rituais mais
memoráveis de que já participei. Este ensaio vai além do escopo talvez
limitado da magia sexual e se concentra, em vez disso, na possessão e na
“queerização” de divindades.
M
inha relação de idas e vindas com Baphomet começou em
1983, quando me via mais ou menos como um wicca, embora
esse rótulo que eu havia adotado já estivesse meio
desgastado. Eu havia comprado uma estatueta de Baphomet em
uma livraria ocultista e a colocado no meu altar sem saber bem por
quê. Eu costumava meditar imitando a posição da estátua. Nessa
época, eu me entorpecia devorando as obras de Kenneth Grant, com
o auxílio do que conseguisse encontrar sobre Baphomet em textos
ocultistas —Éliphas Lévi, Aleister Crowley... esse tipo de coisa. Mas
não “conhecia” Baphomet de fato.
Eu morava em York quando tentei pela primeira vez fazer um ritual
direcionado a Baphomet. Infelizmente, o registro desse dia no meu
diário (9 de junho de 1983) está incompleto, mas teria sido
estruturado nos moldes da wicca, e minha alta sacerdotisa (que era
de Macclesfield) estava presente, assim como outra mulher. Meu
diário diz:
Baphomet apareceu na beirada do círculo e quis entrar. Nós não deixamos, e ele começou
a fazer bagunça; primeiro, tirou devagar da parede um cartaz enorme (bem a propósito,
uma ilustração de um sabá das bruxas), depois fez um caixote cheio de caixas de leite
balançar para frente e para trás. O ritual foi encerrado (às pressas), e saímos do recinto.
O deus deste mundo não é o monoteísta; mas sim Baphomet, o “príncipe das
modificações”. Como explica Klossowski, Baphomet preside um universo instável e
policêntrico, uma anarquia de metamorfoses e metempsicoses. William Burroughs
defende o princípio regulatório de que temos de entender todo evento como produto da
vontade de alguma instância, como a expressão de uma intenção. Klossowski propõe um
princípio complementar: ele sugere que toda intenção é um evento externo, uma
modificação do meu ser e, portanto, um tipo de possessão demoníaca. Cada pensamento
ou desejo é uma alteração do meu estado anterior; é uma intrusão vinda de fora, um
sussurro no meu ouvido, um fôlego que inalo e exalo, um espírito estranho que me chama
detrás do palco ou se insinua dentro de mim. É claro que nem todas as intenções são
levadas a cabo; mas qualquer intenção já é, em si, um tipo de ação, um tributo feito a
Baphomet.[59]
A teoria queer pode ser um lembrete de que estados de desejo que transbordam nossa
capacidade de nomeá-los sempre nos habitam. Cada nome dado a esses desejos —
conflitantes, contraditórios, inconsistentes, indefinidos— só lhes confere uma fronteira
fictícia.[60]
Q
uando você me beijou, meu mundo virou de ponta-cabeça.
Era 1986. Eu estava saindo de uma reunião do coven, mas não
me lembro do ritual que fizéramos. Só me lembro do beijo.
Você me acompanhou até a estação, mas não me lembro da
conversa. Só me lembro do beijo. Quando ia entrar no trem, você
abriu os braços, me envolveu e me beijou. Nada de lábios no rosto,
mas lábios nos lábios, em cheio. Aquele beijo virou meu mundo de
ponta-cabeça.
Você não teve pressa, como se fosse a coisa mais natural, mais
normal do mundo. Como se as outras pessoas na plataforma, no
trem, não estivessem ali. Ou não importassem. E embora a estação
não estivesse exatamente lotada, também não estava vazia.
Era uma cena comum, vista em milhares de filmes e programas de
TV: uma despedida entre enamorados. Um script do qual nunca
pensei que pudesse fazer parte, pelo menos não com outro homem.
Não namorávamos, mas aquele primeiro beijo público, nós dois
envoltos no calor de um dia de verão, virou meu mundo de ponta-
cabeça.
Me sentei no vagão. O trem saiu da estação. Havia um sujeito
sentado na minha frente, de olhos esbugalhados como se não
acreditasse no que tinha acabado de presenciar. Ele passou toda a
viagem de volta me olhando de soslaio, e eu me diverti com aquele
choque. O engraçado, ao que se revelou, é que esse cara
frequentava a mesma faculdade que eu em York, embora em outro
departamento —no decorrer das semanas seguintes, volta e meia eu
o flagrava me encarando com um fascínio —ou talvez inveja—
horrorizado.
Eu cresci beijando outros meninos. Na escola, quando brincávamos
de imitar a série infantil de ficção científica Stingray, com seus
personagens de marionete, eu geralmente escolhia o papel da sereia
Marina, que não falava, então sobrava muito tempo para ficar só
beijando. Tudo parecia bem natural, até que deixou de ser —os
beijos pararam e os xingamentos começaram. Saí do armário para
os meus pais aos 21 anos, e vi toda a situação ser silenciada, como
se envolta por um manto de pedra. Eu havia dado uns amassos
rápidos nos cantos escuros de boates e becos, explorado os nichos
de prazeres polimorfos, mas ainda não me sentia confiante nem
confortável comigo mesmo e com meus desejos, pois eles sempre
pareciam se esquivar ou perturbar qualquer tentativa de me definir
como este ou aquele tipo de pessoa. Eu definitivamente não tinha
“saído do armário” para a maioria das pessoas que eu considerava
amigas, embora hoje eu desconfie que algumas já soubessem mais
de mim do que eu imaginava. Muitas dessas pessoas na época eram
ocultistas de algum tipo, e eu estava começando a ficar com raiva
das generalizações que estavam em toda parte naquela época:
comentários do tipo “a gente não quer nenhum tarado no nosso
círculo”, ou declarações diretas de que “nenhum gay, lésbica ou
bissexual poderia se envolver com magia”. Eu sabia que havia um
mundo gay à parte do ocultismo, só não me sentia pronto para fazer
parte dele. Me escondi e busquei consolo em obsessões esotéricas
e fantasias de poder.
Mas me lembro do beijo. E esse encontro agora ao acaso, 25
anos depois, trouxe-o de volta. E eu só queria reconhecer isso.
Porque quando você me beijou naquela manhã, meu mundo virou de
ponta-cabeça.
PARTE VI
HISTÓRICOS
INTRODUÇÃO
E
m meados da década de 1990, descobri minha paixão por
história. Antes, eu não me preocupava muito com o assunto,
nem me interessava demais pela origem das ideias. Afinal, eu
escrevia a partir das minhas experiências e considerava isso o
suficiente. Mas meu fascínio por história cresceu, e comecei a
experimentar novos estilos de escrita.
Uma coisa que às vezes me irritava em textos ocultistas era a falta
de atenção às fontes e referências. Claro que, nesse quesito, eu
tinha tanta culpa no cartório quanto meus pares, mas comecei a
enxergar o valor de explicitar as referências ao ler material
acadêmico, já que isso facilita a verificação de uma fonte para ver se
quem escreveu o artigo fez a interpretação correta (assumindo que
se possa acessar o material original). Acredito que essa abordagem
seja melhor do que simplesmente fazer afirmações generalizadas e
declarações vagas. É claro que, na época pré-internet e antes de se
pregar a necessidade de checar fatos e citações, cobrava-se muito
menos de autoras e autores, e por isso generalizações e afirmações
infundadas passavam despercebidas com mais frequência.
Então, comecei a escrever com mais cuidado, prestando mais
atenção a citações, fontes, referências e notas. Comecei a notar
meu interesse em história por conta do meu interesse por uma
variedade de personagens históricas. Embora as pessoas que as
criaram fossem populares em sua própria época e tivessem
trabalhos que haviam influenciado o ocultismo contemporâneo de
diversas formas, aparentemente elas acabaram esquecidas ou
negligenciadas. Os dois ensaios que escolhi para esta seção —uma
passada de olhos por Lobsang Rampa, infame autor tibetano, e
outra por Elizabeth Sharpe, escritora de livros de viagem, tradutora e
romancista— refletem esse interesse. Suas vidas e obras me
influenciaram ou me intrigaram de diversas formas.
Na medida em que vou escavando material histórico, correndo
atrás de textos esquecidos, rastreando referências obscuras e
fazendo longas buscas em repositórios on-line, me dou conta de que
aprecio imensamente esse trabalho de detetive. Mas ele não é mero
exercício intelectual: muitas vezes, o ponto de partida acaba surgindo
de uma meditação ou prática ritual.
Esses ensaios são, em sua maioria, muito mais longos do que os
que costumava escrever no passado, e, como você verá, tento ser
mais cuidadoso quanto a referências e fontes consultadas.
O FANTÁSTICO MUNDO
DE LOBSANG RAMPA
E
m 1956, um livro chamado The Third Eye foi publicado no Reino
Unido e descrito com entusiasmo pelo Times Literary
Supplement como “quase uma obra de arte”, e em The
Observer como “um livro extraordinário e emocionante”.[61]
The Third Eye é a autobiografia de um tal Tuesday Lobsang
Rampa. Ele era filho de um membro proeminente do governo Dalai
Lama e vinha de uma família abastada de Lhasa. Aos sete anos,
astrólogos previram o futuro do menino: ele entraria para um
monastério, seria educado como sacerdote-cirurgião, passaria por
muitas dificuldades, deixaria o Tibete e viveria entre povos estranhos.
Tuesday entrou em um lamastério e, com o tempo, demonstrou ser
um aluno exemplar e foi selecionado para receber os mais esotéricos
ensinamentos. Em seu oitavo aniversário, sacerdotes-cirurgiões
fizeram um furo em seu crânio para criar um “terceiro olho” que o
permitiria enxergar auras. Depois de se recuperar da operação,
Tuesday foi entrevistado por Dalai Lama, que havia investigado as
vidas passadas do menino e o lembrou do papel que ele
desempenharia em breve na preservação da sabedoria do Tibete.
Aos doze anos, Tuesday fez uma prova para se habilitar como
médico-sacerdote. Isso envolvia ficar trancafiado em um cubículo de
pedra e ali receber questões escritas, que ele deveria responder
também por escrito. Essas provas tomavam quatorze horas por dia,
em um total de seis dias. Depois de ser aprovado com as melhores
notas, Tuesday acompanhou seu tutor, o grande lama Mingyar
Dondup, em uma expedição para coletar plantas e ervas medicinais.
Nessa empreitada, visitaram um monastério onde os monges
construíam pipas em forma de caixa, dentro das quais cabia uma
pessoa. Tuesday fez vários voos e também deixou sugestões para
aperfeiçoar o projeto. Em outra expedição, ele e seu professor
encontraram o Yeti e fundaram um paraíso, tal qual o jardim do
Éden, em um vale perdido. Aos dezesseis anos, ele passou por outra
bateria de testes e alcançou o grau de lama.
O livro se encerra com a conquista do grau de abade por Tuesday
—após a cerimônia da “Pequena Morte”— e com sua partida do
Tibete para a China, seguindo instruções do Dalai Lama.
A reação da academia
Desmascaramento e reação
Cada página revela a completa ignorância do autor sobre qualquer coisa relacionada ao
budismo prático e ao budismo enquanto sistema de crença no Tibete e em qualquer outro
lugar. Mas o livro também demonstra uma intuição ferina sobre o que milhões de pessoas
querem ouvir. Monges e neófitos voando junto à brisa misteriosa em pipas gigantes;
imagens douradas em células ocultas, representando encarnações anteriores do homem
que as contempla; cirurgias secretas no crânio para abrir o olho da sabedoria; contos
sobre os perigos do treinamento e da iniciação místicos... Em um mundo ocidental
desesperado em busca do mistério nas coisas quando tudo é tão terrivelmente acessível
às faculdades de inspeção, onde o divino foi censurado ou institucionalizado, onde se
profere o divino usando o jargão de dedo em riste das admoestações moralistas, os
menos resistentes e os mais maleáveis vão buscar algo que seja o contrário de todos
esses aspectos desanimadores.[63]
Tradição/modernidade
Será considerado benéfico para toda uma população que ele seja renegado, que não seja
apoiado por quem deveria apoiá-lo, por quem poderia apoiá-lo, e digo mais uma vez que
essas são probabilidades, porque é muito possível que nosso povo o apoie e lhe dê a
oportunidade de falar perante as nações do mundo para que, antes de tudo, o Tibete seja
salvo.
A conexão extraterrestre
E
lizabeth Sharpe (1888-1941) faz parte de um grupo de pessoas
“esquecidas” que escreveram sobre a Índia no início do século
XX. Aparentemente, ela passou a maior parte da vida na Índia,
com uma breve viagem à Inglaterra na década de 1930. Escreveu
diversos livros sobre aspectos da vida indiana, incluindo pelo menos
uma obra sobre o tantra; traduziu textos do sânscrito como o Shiva
Sahasranama; e se interessou profundamente pela educação de
mulheres na Índia. Ela é mais conhecida por seu romance de 1936,
The Secrets of the Kaula Circle, uma história de magia e orgias
tântricas de mão esquerda, que inclui um retrato bastante
desfavorável de Aleister Crowley.
Há pouquíssimas informações biográficas disponíveis sobre
Elizabeth Sharpe. Ela nasceu em Bangalore em 1888, e seu nome
completo era Phoebe Elizabeth Lavender. Aos 17 anos, em 1905, se
casou com John Charles Sharpe (1877-1943), um oficial do Royal
Ordnance Corps. De acordo com David Templeman (em sua
introdução à edição recente de The Secrets of the Kaula Circle,
publicada pela Teitan Press), embora o casal nunca tenha se
divorciado oficialmente, os dois levavam vidas bem separadas.
Elizabeth Sharpe foi secretária particular do thakur sahib da
província de Limbdi (agora parte do estado de Gujarate), Sri Sir
Daulat Singh (1868-1940), cuja biografia ela escreveu
posteriormente. Ela também atuou como preceptora particular dos
filhos dele e foi consultora especial do thakur para a educação de
mulheres. Sabe-se que ela se correspondeu com Gandhi,
Rabindranath Tagore (que escreveu o prefácio da biografia do thakur
escrita por Sharpe) e A. C. Benson (diretor da Faculdade
Magdalene, da Universidade de Cambridge), principalmente sobre
questões relacionadas à educação de um dos filhos do thakur.
Sob o Império Britânico, Limbdi foi classificado como um “Estado
principesco” —um privilégio protocolar pelo qual seu regente seria
formalmente recepcionado por uma salva de tiros; o número de tiros
refletia o grau de prestígio dado ao regente de um Estado
principesco. A salva de 21 tiros era a saudação mais alta concedida
a um regente local. O thakur de Limbdi recebia uma salva de 9 tiros.
Sri Daulat Singh era considerado um regente e administrador capaz,
particularmente quanto à educação e à agricultura, e recebeu os
títulos de Cavaleiro Comandante da Ordem do Império Indiano e de
Cavaleiro Comandante da Ordem da Estrela da Índia. Ele
representou a Índia na inauguração do primeiro parlamento da
Commonwealth da Austrália em 1901, e sabe-se que ele foi um
grande apoiador dos britânicos na Grande Guerra, captando
recursos e incentivando seus súditos a entrar para as Forças
Armadas. Seu predecessor, Maharana Sri Sir Jaswantsinhji
Fatehsinhji Sahib (1859-1907), compareceu ao Jubileu de Ouro da
Rainha Vitória em Londres em 1887 e, mais tarde nesse mesmo ano,
fez uma visita aos Estados Unidos. Ele é particularmente notável por
ter influenciado Vivekananda e por tê-lo resgatado, segundo relatos,
quando caiu nas garras de “uma seita degenerada de adoradores do
sexo”. Lord Willingdon, o governador de Bombaim (atual Mumbai),
fez uma visita a Limbdi em 1916, no dia da inauguração formal da
Escola Lady Willingdon para Meninas, embora aparentemente a
instituição tenha sido fundada em 1859.
Elizabeth Sharpe publicou uma série de livros entre 1924 e 1939,
todos por editoras londrinas: Shri Krishna and the Bhagavad Gita
(Arthur H. Stockwell, 1924); The Flame of God: A Mystical
Autobiography (Rider & Co., 1929); Shiva: or, the Past of India
(Luzac & Co., 1930), que incluía traduções de trechos do Shiva
Sahasranama e do Ananda-Lahari; Thakore Sahib Shri Sir Daulat
Singh of Limbdi, Kathiawar (John Murray, 1931), a já mencionada
biografia; The Tantrik Doctrine of Immaculate Conception (Luzac &
Co., 1933); The Philosophy of Yoga: Containing the Mystery of Spirit
and the Way of Eternal Bliss (Luzac & Co., 1933); The India that is
India (Luzac & Co., 1934); The Secrets of the Kaula Circle: A Tale of
Fictitious People Faith Fully Recounting Strange Rites Still Practised
by this Cult (Luzac & Co., 1936), seu romance “semificcional”, que,
entre todos os seus livros, recebeu a maior atenção; An Eight-
Hundred Year Old Book of Indian Medicine and Formulas (Luzac &
Co., 1937); The Great Cremation Ground (Mahasmasana): A
Critical Dissertation on Indian Philosophy (Luzac & Co., 1938); e
Indian Tales (Luzac & Co., 1939), que inclui sua tradução da
biografia de um monge jainista do século XVI.
Ela também escreveu o prefácio de At the Feet of God (1928), de
Swami Ramdas. Até o momento, só consegui adquirir dois livros de
Sharpe: The India that is India e The Secrets of the Kaula Circle.
Rituais estranhos
Entre os mistérios abomináveis correntes na Índia, existe um que é conhecido até demais:
a prática chamada shakti-puja [...]. A celebração desses mistérios, invariavelmente
desagradáveis no que diz respeito ao conteúdo, pode variar às vezes em termos de forma.
Em certos casos, os objetos imediatos do sacrifício a Shakti são um recipiente grande
cheio de bebida alcóolica local e uma menina que chegou à puberdade. Esta última,
totalmente nua, fica parada na mais indecente pose. Eles então invocam a deusa Shakti,
que presumem aceitar seu convite ao simultaneamente se assentar no recipiente de álcool
e naquela parte da anatomia da menina que a modéstia me proíbe de nomear. [...]
brahmans, sudras, párias, homens e mulheres se embebedam com o álcool consagrado a
Shakti, que eles bebem do mesmo recipiente, levando-o aos lábios [...]. Os homens e as
mulheres então se jogam na comida, sorvendo tudo com avidez. Um mesmo naco de
comida passa de boca em boca e é mastigado sucessivamente até ser consumido
completamente [...]. Nesse caso, as pessoas estão convencidas de que não são de forma
alguma maculadas por comer e beber de maneira tão revoltante. Quando enfim estão
totalmente intoxicados, homens e mulheres se misturam livremente e passam o resto da
noite juntos [...].[72]
isolar os ritos sexuais do todo integrado que é o pancamakara pode ser um viés ocidental.
Seja como for, não é por acaso que presumivelmente se chama o álcool de “o primeiro”.
Ele é na verdade a substância ritual mais importante do PKS [Parasurama-Kalpasutra] e
também do KT [Kularṇava-Tantra]. O KT 5.77 equipara o álcool ao deus Bhairava e à
deusa, isto é, à revelação-de-si desses deuses. Beber em excesso era aparentemente
uma forma de transe de possessão. [...] Ao isolar os ritos sexuais, portanto, se colocou
ênfase demais neles. Aliás, também se encontra na tradição doxológica um foco maior no
álcool do que na relação sexual.[73]
S
empre fui fascinado pela capacidade das narrativas mágicas de
tornarem indistintos o aparentemente factual e o fantástico e,
com isso, criarem um espaço que dá asas à nossa imaginação.
A ficção também ajuda a inserir o público leitor em uma situação ou
um local. Quando comecei a me interessar por magia, me pareceu
totalmente natural recorrer a elementos das histórias de ficção que
eu lia na época. Quando descobri as narrativas de terror de H. P.
Lovecraft, eu morava em uma vila nas proximidades de uma
cordilheira e logo percebi que aquelas imagens de uma paisagem
assombrada e viva poderiam facilmente ser transpostas da Nova
Inglaterra para as áreas silvestres da região oeste de Yorkshire. As
imagens medonhas que Lovecraft criou de cidades apinhadas que
eram lar tanto de terrores taciturnos quanto de delícias ocultas
poderiam reverberar em Huddersfield —a primeira vez que morei em
uma cidade com quilômetros de armazéns e fábricas vazios,
testemunhas silenciosas de um passado industrial perdido.
Sentindo certa afinidade com o típico outsider lovecraftiano em
busca de segredos e juntando pistas desconexas, descobri novas
experiências e liberdades nas circunstâncias mais improváveis ou não
intencionais. O que também me atraiu em Lovecraft foi que a
mitologia criada em torno de seus contos era fragmentária e
inacabada. Não era algo que eu achava que pudesse ser
sistematizado ou enfiado na Árvore da Vida cabalística —apesar de
já terem tentado! Em vez disso, essa mitologia foi para mim um
trampolim, um ponto de partida que poderia levar a algo novo.
Ao ler as obras de ficção de Lovecraft, Dion Fortune ou Lord
Dunsany —favoritas desde sempre—, vim a desenvolver uma noção
de magia enquanto jornada, um desdobrar-se em direção a espaços
mais amplos e a uma visão expansiva. Ouvir o audiolivro de The
Beggars, de Lord Dunsany, enquanto caminho por Londres, desperta
em mim uma percepção animista —segredos imemoriais da cidade
se desdobram à minha frente enquanto olho em volta com uma nova
perspectiva. A ficção nos abre para novas possibilidades.
Ao mesmo tempo, ler ficção e trazer temas ficcionais para minha
prática ocultista me levou a perceber a importância do envolvimento
emocional na magia. É isto que dá vida tanto à ficção quanto à
magia: a capacidade de se deixar envolver com algo, temer pela
vítima da série de televisão ou chorar com um filme meloso. Os
fóruns de internet e grupos de Facebook voltados para o ocultismo
estão cheios de discussões sobre a —efetividade e legitimidade—
dessa ou daquela tradição ou abordagem. É claro que a resposta
soberana nesses debates é que “funciona” —um padrão de
qualidade segundo o qual se pode validar qualquer coisa. Mas, no
que diz respeito à magia, qualquer coisa pode funcionar desde que
você tenha feito uma conexão emocional. Seja uma prática com
bagagem histórica, seja algo improvisado numa mesa de bar e
depois envernizado com um linguajar floreado ou marketing, pode-se
dizer que ambos funcionam. Desde que, é claro, alguém tenha uma
reação emocional à coisa, que seja algo que reverbera no interior da
pessoa, algo em que ela possa se encontrar. Faz sentido.
Quase não importa se uma tradição tem base histórica ou não.
Passei cerca de uma década fazendo práticas tântricas que tinham
pouca semelhança com as tradições tais como são descritas em
fontes textuais primárias, mas isso não significou que os rituais ou
práticas não fossem pessoalmente eficazes para mim só porque se
baseavam no imaginário ocidental do tantra em vez de na “coisa em
si”. Se o que eu estava fazendo não tivesse funcionado, eu não teria
continuado a fazer, e foi o ânimo que fui ganhando com isso que me
levou a tentar compreender o material tradicional.
Escrever ficção pode ser uma forma de se revelar ao público
leitor, dar um espaço para a intrusão do diálogo interior, a reflexão
sobre si mesmo e —talvez o mais importante para mim— o senso de
humor. A ficção ou a sátira podem ser uma via útil para tirar sarro de
pretensões ocultistas, especialmente se isso implica admitir as
próprias pretensões. Acredito que a maioria das minhas tentativas de
fazer ficção se baseia no desejo de enfraquecer minhas próprias
fantasias de ser um praticante de magia poderoso. É fácil demais
cair nas garras dessa projeção de si próprio como uma pessoa
poderosa, com acesso a segredos e destacada do resto da
humanidade. Quando comecei a escrever ficção e humor ocultista no
final dos anos 1980, estava me tornando cada vez mais consciente
das armadilhas dessas fantasias e, na contramão delas, quis
explorar as vulnerabilidades e fraquezas da figura do magista. Desse
modo, três dos quatro textos de ficção selecionados para esta seção
trazem um tipo de narrador: o que se esconde de sua própria
conjuração em um armário na despensa, o que tem medo de
vespas[77] (e de hippies), e o que demonstra extremo nervosismo ao
entrar em um bar gay.
A sátira e outros tipos de humor têm seu lugar também nos textos
de ocultismo, e muitas vezes me parece que a sátira,
particularmente, é subestimada como modo de expressão. Tirar um
sarro gentil de teorias e modas ocultistas pode ser um incentivo à
reflexão crítica e um desafio ao status quo tanto quanto qualquer
texto bem embasado e argumentado, e acredito que, de certa forma,
seja mais efetivo. Se quero criticar uma ideia ou perspectiva, pode
ser bem útil usar do humor para trazer as pessoas para o meu lado,
segundo minha experiência. A gargalhada pode construir pontes
entre opiniões, crenças e diferentes status. Rir dessas ideias e com
essas ideias que tomamos por sagradas é em si um ato de magia.
PLAYMATES
Esta foi minha primeira tentativa de escrever ficção de magia. O texto foi
escrito em 1989, enviado a um fanzine de ficção paganista e rejeitado
imediatamente pelo editor por causa da temática “sexual”. Ele saiu na
edição de março/abril de 1990 da Pagan News.
E
stou seguro aqui, acho. Deus, meu coração está a mil! E se ela
ouvir? Preciso me controlar... respirar fundo... pranayama...
isso... agora, sim!
Quase consigo ver pela fresta. É só um feixe de luz, mas talvez eu
consiga ver a sombra dela... Ah! Ela não deve ter sombra. Droga!
De repente se eu abrir a porta só um milímetro... melhor não... se
ela me encontrar, aí... Que cheiro é esse? Cera de sapato? Brasso?
Aqui deve ser o armário da limpeza. Talvez isso a afaste. O que será
que ela vai fazer se não me encontrar? Descontar em algum pobre
coitado? Não. Ela não consegue sair da casa. Essa é a regra, né?
Não poderem sair do lugar para onde foram chamados. Talvez ela
fique entediada e vá embora. Talvez desapareça. Talvez... se eu me
lembrasse de como faz o banimento, daria para fazer daqui mesmo.
O ritual de banimento do armário da limpeza... seria cômico se não
fosse tão patético.
Poderia esperar o Andrew voltar. Ele daria um jeito nela. Mas não,
eu nunca mais conseguiria olhar na cara dele. Seria como ser pego
batendo punheta. E acho que é mesmo, de certa forma. Ele sairia
contando por aí, e em cinco minutos todo mundo já estaria sabendo.
Consigo até imaginar o Brian com aquela pose de gostosão e uma
risadinha estampada no rosto. A maior piada... eu.
Isso foi um estalo? Será que ela está vindo aqui para baixo? Se
bem que ela poderia só se teletransportar ou se projetar para
qualquer lugar —ela não precisa ir andando. Calma lá, o livro não
dizia que o sexo faz com que ganhem alguma solidez —uma certa
personalidade individual? Faz sentido, então, ela estar tão animada.
Por um momento achei que minha cabeça tivesse se soltado. Deus
do céu, que fome! Eu devoraria um bife com fritas agora. E essa
noite era minha vez de cozinhar e tudo mais. Bosta!
Que aconchegante isso aqui. Só eu e o balde. Queria saber onde
ela está. Será que ectoplasma é fácil de limpar? Me engraçar com
demônios. Mamãe teria um troço. Pelo menos não dá para pegar
aids ou engravidar alguém ou sei lá. Ou será que dá? Talvez ela
esteja neste momento parindo um monte de monstrinhos cor-de-rosa
cheios de tentáculos. Vou sair por aí com uma horda de elementais
choramingando e golfando pelos cantos. Bom, não deixa de ser um
jeito de conseguir um familiar.
Deus do céu, estou esfolado. Ela me chupou até o talo. A pior
coisa foi a gargalhada. Era meio que uma brincadeira no começo,
mas eu não achei que fosse ser tão desafiador. Não dei conta da
coisa. Ou dela. Que grande adepto, hein? Aposto que titio Aleister
nunca teve de se esconder das próprias conjurações. Ele jamais se
esconderia no armário se tivesse uma demônia descontrolada lá em
cima com uma vontade infernal de transar a qualquer custo. Mas
também ele não teria brochado depois de meia hora. É isso, chega...
já deu de caminho da mão esquerda. Daqui para frente só Gareth
Knight e os seus branquíssimos rosacruzes. Ou talvez eu vire
evangélico. Até onde sei eles nem sequer fazem sexo.
Que escuro aqui. Onde será que ela está? Eu consigo até imaginá-
la —ela tem uma certa luminosidade, olhos verdes, cabelos
vermelhos. Uma vampira típica. Bem sedutora... quem sabe eu
consiga convencê-la a me deixar descansar um pouco... recuperar as
forças... hummm... ela é realmente bem gata... se eu conseguisse
pelo menos...
Aaaaaaaah!
— A-ha, te achei! Vem brincar, vem...
COM AS DUAS MÃOS
Este texto foi escrito em 1991 e publicado na 3ª edição de Both the Ones,
revista do TOPY. Este é meu texto de ficção mais autobiográfico, pois, na
época em que o escrevi, eu morava no bairro de Headingley, onde se
passa essa história. Eu morava num apartamento de subsolo, e mergulhei
um tempo num estado meio deprimente e solitário que, no conto, é
causado por um feitiço. O personagem Jeff é um híbrido de algumas
pessoas que conheci na cena de magia de Leeds, e muitos dos lugares
mencionados são reais.
J
eff era um ex-cientologista, um xamã questionável —nenhuma
grande novidade. Ele se mostrava ao mundo como um andarilho,
todo alegre e envolvido em sua nuvem de termos técnicos e uma
salada mista de metáforas. Jeff queria ser visto como um homem do
saber, sempre aludindo a segredos, digressões conspiratórias e
lançando olhares contemplativos à sua coleção de livros de
ocultismo. Munia-se de segredos sobre si mesmo como se estivesse
se envolvendo em um manto, costurando-os nas próprias roupas.
Mas às vezes o manto parecia pesar como um fardo que o fazia se
arrastar, atrelado aos espectros de um horror indefinido e distante
que o perseguiam.
Quando veio a primeira onda da Era de Aquário, Jeff procurou
pelos mestres, tanto os mortos como os vivos. Krishnamurti,
Gurdjieff, Alice Bailey. Lançou-se à sorte de estar com todos, desde
um encontro com Aleister Crowley no plano astral até se sentar ao
lado de Kenneth Grant no metrô. Até que um dia, já velho de guerra
com toda aquela sabedoria acumulada, acabou se aventurando na
Mansão de East Grinstead, terra da cientologia, e lá foi solenemente
ignorado à espera de um acontecimento qualquer. E dali, depois de
atravessar anos tortuosos, acabou em Leeds Six. Um rato de porão;
testemunha silenciosa dos sonhos dos anos 1960.
Conheci Jeff numa festa, onde fui parar quase como penetra por
meio daquele amigo do amigo do amigo. Nada de interessante
estava acontecendo e, com preguiça de entrar em alguma conversa
entre os grupinhos fechados, fui para a cozinha. Alguém —Jeff— me
seguiu, atraído feito ímã pelo pentagrama pendurado no meu
pescoço. Observei um sorriso amistoso despontando em seu rosto e
ensaiei mentalmente as possíveis saudações, revisitando minhas
reações costumeiras. Será que vai me oferecer drogas? Valeria a
pena trocar ideia nesse caso. Ou teria algo a ver com religião? Já
fazia um tempo que eu não alimentava meu cinismo cultivado com
tanto carinho. Seria bem diferente se ele fosse cristão ou estudante
de sociologia. Sexo? Disso eu duvidei. Mas naquele momento, já
meio anuviado pelo álcool e estimulado por uma solidão persistente...
bem, a gente sabe como é.
No fim, não era nada disso.
“Então você curte magia?”
Fiz que sim, com um ar gracioso.
“E manda bem?”
Dei de ombros, dando a entender ao mesmo tempo que não
levava essas coisas a sério demais, que não me preocupava em ser
bom... mas que sim, achava que mandava bem.
Jeff me examinou por um tempo e pegou uma caderneta. Arrancou
uma página e colocou no bolso da minha jaqueta.
“Melhor que seja bom mesmo, porque vou te matar.”
Com isso, girou sobre os calcanhares e sumiu de vista.
Fiquei surpreso com a rapidez do diálogo, e um tanto perplexo.
Balancei a cabeça e continuei rumo à cozinha. Para esquecer o
encontro, bebi uma lata quase intocada de cerveja que encontrei
para ver se me livrava dos rápidos calafrios de medo que senti.
“Ele só está doido de ácido”, pensei, no momento exato em que
senti olhos percorrendo minhas costas. Deliberadamente, me virei
como um boneco de filme de terror, acreditando que veria “o cara
doido de ácido”. Em vez dele, me deparei com o brilho de olhos
delineados, um cabelo preto espetado e uma língua cor-de-rosa
deslizando sobre os lábios roxos para umedecê-los. Fui tomado por
uma onda de autoconfiança e, de olhos bem abertos, dei um passo à
frente e cheguei junto.
◆ ◆ ◆
A mudança veio sem aviso prévio. Três ou quatro vezes por semana,
comecei a caminhar até a conveniência do posto 24 horas para um
lanchinho às três da manhã: sanduíches, chocolate e suco. Eu
gostava dessas caminhadas noturnas porque havia menos gente na
rua, o que me permitia sentir uma vaga nostalgia pela companhia dos
outros. Eu deslizava pelas ruas me esquivando de qualquer presença
iminente, mas atraído pelas luzes e cortinas fechadas. Para falar a
verdade, estava começando a apreciar essa posição de forasteiro.
Ou de fantasma.
Numa noite em particular, esperando meu pedido ficar pronto, senti
uma presença atrás de mim. Alguém na fila, provavelmente. Olhos na
minha nuca —talvez um antigo amigo, mas obviamente eu não ia ser
o primeiro a agir. Peguei a sacolinha com minhas besteiras e me virei
para ir embora. Uma mão agarrou meu braço.
“Pensei que você tivesse dito que era bom.”
Me virei para identificar o dono daquela voz. Um típico hippie de
Headingley —definitivamente não me parecia ninguém conhecido.
“Você sabe que eu estou te matando, né? Você está preso na
minha teia.”
“Como assim, você... não entendi...”
Até que, claro, me dei conta.
“Meu nome é Jeff”, disse o hippie. “Nos conhecemos naquela festa
no Ruffle. Não lembra?”
“S-sim. Eu acho. Eu estava bem bêbado aquele dia. Por que
você... está fazendo isso comigo?”
“Você não sabe? Você não é o bonzão da magia?”
“Você me aprisionou, é isso? Agora entendo por que não gosto de
sair dessa área. Tudo... meus pensamentos... está tudo embaçado.
Que horas são?”
Ele riu.
“Você tem sorte de saber que dia é hoje.”
“Vai parar com isso agora?”
“Por que pararia? É bem simples, senhor suposto magista. Ou
você morre, ou você luta pela vida. Você que sabe. Vou ficar
esperando.”
Fiquei petrificado. Não consegui me mexer até ele sumir no breu
da noite. Só então meus pés se libertaram, e corri para casa como
se todos os demônios do inferno estivessem me perseguindo. Na
direção oposta a Jeff.
◆ ◆ ◆
A
comunidade ocultista está cada vez mais dividida por causa de
uma nova polêmica da magia moderna: as propagandas astrais.
Na recente transmissão de Yule para todas as rainhas bruxas,
magos e gurus, os Superiores Secretos deixaram de lado a habitual
mensagem de harmonia e paz mundial para pedir às lideranças de
todas as ordens mágicas que tomassem a iniciativa de reduzir o nível
de propaganda astral.
Um dos nossos repórteres entrevistou uma “vítima” recente de
correspondência astral abusiva, a alta sacerdotisa da Nova Igreja
Superior Ortodoxa Reformada da Wicca (filial de Wymeswold),
Marjorie Pedrosa.
“É um horror. Olha, na semana passada mesmo nós invocamos a
Deusa e, em vez de receber o conselho que queríamos para curar o
problema de joelho da Sharon, só vinha uma mensagem repetida
para assinar a ‘Gazeta Ocultista’ ou coisa do tipo. A coisa está
ficando tão ruim, que toda vez que eu medito me vêm uns jingles na
cabeça vendendo pacotes de férias dos Éons ou repelentes de
demônio que não ferem a camada de ozônio.”
No mês passado, uma reunião pública de ocultistas no Conway
Hall foi tomada pelo caos quando, logo após uma meditação guiada,
várias pessoas da assembleia reclamaram de ter visto 359 anjos
fazendo uma coreografia como propaganda de um tratado
cabalístico escrito por “Z’em Bang Hafesh Wang”. Visitantes de
Glastonbury também relataram ter sentido um “vazio” estranho ao
subir até o Tor, e a sensação só abrandava ao visitar a Adega Livre
de Orgônio e Bistrô Astral Orgânico de Russell Zonza. O problema
parece se agravar consideravelmente durante os festivais, nas luas
cheias e nos dias que antecedem o Yule.
Mas há ocultistas, sobretudo do setor de negócios, que apoiam
sem reservas a propaganda astral. Conversamos com Angel Dama-
da-Noite, do Centro New Age “Tenha um Ótimo Dia”, em Stow-on-
the-Wold:
“Bom, eu prefiro pensar que isso traz uma dimensão espiritual para
o consumismo. Todos os nossos cristais foram carregados com as
mensagens ‘me compre’ e ‘compre mais um’. Mas a verdade é que
novos cristais nunca são demais. Eu acho que aquele azulzinho ali no
canto gostou de você...”
Depois de um longo e árduo ritual (incluindo interrupções e
intervalos comerciais), conseguimos descobrir quem são os adeptos
do plano interior por trás de toda a iniciativa de propaganda astral no
Reino Unido, a obscura organização A...A... Ltda. Eles estavam em
horário de almoço, mas deixamos uma mensagem com o Guardião
do Limiar. Depois, em uma entrevista canalizada por meio dos
advogados, Shem, Ham & Phorasch, a A...A... disse:
“Isso é só o começo. Em seis meses, conseguimos treinar um bom
neófito para projetar uma imagem com trilha sonora e, graças ao
Efeito Borboleta, ela se mantém consistente no astral por meses. É
claro que, sempre que alguém acessa a propaganda, a energia
desse contato alimenta a forma-pensamento. Nossos primeiros
clientes foram um consórcio de caoistas com uma oferta especial:
‘experimente nossa caosfera no astral por noventa dias antes de
comprar’. E depois a OTTO nos contratou para projetar uma
propaganda de Crowley recomendando um de seus próprios livros.
Qualquer pessoa que faça a Missa Gnóstica nos próximos meses
poderá acessá-la. Essa é a beleza da coisa —além de ser barata,
você também pode atingir um público específico. E não são só
ocultistas que estão aproveitando nossos serviços. Uma importante
fábrica de sopa nos ofereceu uma quantia substancial para divulgar o
‘Macarrão Instantâneo Vai-no-Caldeirão de Olívia Trêmula’,
anunciado por uma simulação de Gerald Gardner e o coven de New
Forest. Nos próximos meses, devemos começar a transmitir uma
série de propagandas de café estreladas por vários membros do
panteão grego. É impressionante o que algumas dessas divindades
antigas estão dispostas a fazer por um pouquinho de atenção
midiática. Estamos particularmente felizes com a propaganda que
Zeus fez com duas ninfas, vários bodes e um pote de Nescafé Gold.”
Questionamos: “Isso não está indo longe demais?”
“De forma alguma. O ocultismo precisa se atualizar com o passar
do tempo, e estamos usando 1% da nossa renda para ajudar na
iluminação espiritual geral com meditações guiadas para semideuses
menores, para publicar avisos de ‘Mantenha os planos limpos’ em
todos os grandes portais, e para digitalizar os registros akáshicos.”
Mas alguns tradicionalistas não estão convencidos. Hercules
Zonza, da Ordem das Nove Lâminas, líder da filial de Surbiton da
campanha “Limpe o astral”, nos disse:
“Isso é uma verdadeira desgraça. Ontem fizemos uma evocação
completa de Asmodeus e suas 99 legiões para uma Unidade Astral
de Transmissão do Canal 4, e todos os diabinhos apareceram
usando camisetas que diziam ‘Turnê do Retorno dos Deuses
Nórdicos’!”
Apesar da polêmica, parece que a propaganda astral veio para
ficar. Desde que fizemos a reclamação em nome das pessoas
afetadas, a A...A... generosamente ofereceu uma meditação simples
que serve como “filtro de ruído” astral. Custa apenas 500 libras e
está disponível diretamente na Mammon Investimentos. É só
visualizar o logo da A...A... —um cifrão dentro de um triângulo— e,
ao ouvir a campainha astral, basta entoar seu nome, endereço e
número do Cartão Carma.
O FOSSO
A
cho que foi a curiosidade que me levou pela primeira vez ao
fosso —ela e um desejo de adentrar territórios proibidos. Eu
me considerava um outsider, um observador da humanidade e
suas falhas mesquinhas. Em vez de baixar a cabeça e aceitar os
trabalhos tediosos que o mundo oferece, procurei aquilo que estava
às margens da sociedade. Coisas proibidas, conhecimento proibido.
Antigamente, passava meu tempo em bibliotecas sombrias e mal
iluminadas, esmiuçando textos arcaicos —livros considerados
nefastos demais para serem retirados de suas tumbas poeirentas e
circularem pelo mundo. Eu lia avidamente sobre coisas que eu
desconfiava que seriam possíveis, coisas que eu só havia
vislumbrado em pesadelos e sonhos febris. Agora, a realidade
desses sonhos se arrastava lentamente em minha direção, enquanto
eu descia vacilante, um passo após o outro, rumo às profundezas do
fosso.
Eu sempre me senti “distante” de meus colegas. Um alienígena
talvez, esperando por algum momento especial, assistindo ao dia a
dia do mundo com os olhos semicerrados. Fazendo hora. Esperando
chegar aquela mensagem que revelaria meu propósito desconhecido,
mas pressentido —que eu era diferente do resto, disso não tinha
dúvidas. Mas por quê? Como isso aconteceu? Eu não sabia. Talvez
fosse um gene renegado que, depois de atravessar várias gerações
adormecido, despertou em mim e coloriu minha alma com o clarão
de uma consciência mutante. Em séculos passados, eu teria sido
temido como feiticeiro ou herege. Já aconteceu também de outras
pessoas perceberem minha “natureza alienígena”, ainda que de
modo inconsciente. Isso só serviu para reforçar minha sensação de
estar sozinho na multidão.
Conforme fui me aprofundando nos saberes proibidos, vim a
conhecer o fosso. O seu significado exato me escapou por um bom
tempo, mas eu sabia que, no fim das contas, seria levado a explorar
suas profundezas e descobrir por conta própria o cerne de seu
mistério.
O ar aqui embaixo é denso. Ouço ao longe um ruído indefinido, o
murmúrio de vozes abafadas, uma música estranha, espectral. O
solo de pedra onde piso retumba como se a própria terra me desse
um aviso, como se testasse minha determinação na já tão longa
busca por essas experiências inomináveis. Mas eu vou prosseguir, já
demorei demais, buscando consolo nas prosas e pinturas febris de
quem compartilhava dos meus desejos, de quem já havia provado do
fruto proibido.
Sinto e ouço alguma coisa sendo esmagada por meus pés e...
não, não vou olhar para baixo, não vou olhar para trás para ver o que
é. Preciso continuar. Já cheguei até aqui. Preciso provar meu valor e
me juntar à celebração que certamente encontrarei adiante. Existem
outros como eu, tenho certeza. Sonhadores, outsiders, sensualistas
para quem o mundo cinza lá de cima não tem qualquer atrativo.
O fosso me chama, e eu sigo caminhando.
Um raio de luz rasga a escuridão, grãos de poeira dançam no ar à
minha frente. A porta está entreaberta e consigo ver formas difusas
aglomeradas no recinto. Sombrias e ameaçadoras. Formas escuras
se avolumam quando me aproximo delas na penumbra, enquanto o
brilho das poças reflete visões alucinantes do entorno. Minha
garganta está seca. Estou aqui! Nervoso, lanço-me sobre os corpos
aglomerados.
A música retorna como um rangido em meus ouvidos e me pega
pelo estômago com suas ressonâncias profundas. O ar fede a suor e
odores animais. De cabeça baixa, me esgueiro entre as figuras
disformes, avançando em direção à estrutura parecida com um altar
mais à frente. Devo me apresentar diante dela. Meu casaco se
engancha em uma corrente, mas com um puxão me liberto e ali
estou! O mar de formas se abre para me receber, e eu conquisto o
que desejo. É isso! A criatura inchada atrás do tablado se vira
devagar, me examinando sem escrúpulos, e de repente minha
garganta se fecha. Não sai uma palavra. E então...
“Diga, querido, o que vai querer?”
“É... meio caneco de cerveja, por favor.”
“Sua primeira vez aqui, né? Ninguém te disse que o traje de quinta-
feira é couro?”
REFERÊNCIAS E
RECOMENDAÇÕES DE
LEITURA
Caos: Introdução
Brown, P. D. The Chaochamber. UK: Complex Productions, 1985.
(Fita K7)
Drury, Nevill. Stealing Fire from Heaven. Oxford: Oxford University
Press, 2011.
Gray, William. Between Good & Evil: Polarities of Power. St. Paul:
Llewellyn, 1989.
Lachman, Gary. Dark Star Rising: Magick and Power in the Age of
Trump. Los Angeles: Tarcherperigee, 2018.
Pagani, Paula. Cardinal Rites of Chaos. Northampton: Sut Anubis,
1984.
Shea, Robert; Wilson, Robert Anton. The Illuminatus! Trilogy. Nova
York: Dell, 1975.
Sherwin, Ray. The Theatre of Magick. 1982.
Queerizando Baphomet
Carroll, Peter J. Liber Null e Psiconauta. Trad. Vinicius Ferreira. São
Paulo: Penumbra, 2016.
Edelman, Lee. “Queer Theory: Unstating Desire”, em GLQ: A
Journal of Lesbian and Gay Studies, 2 (4), p. 343-346, 1995.
Shaviro, Steven. Doom Patrols. Disponibilizado online pelo autor em:
http://www.dhalgren.com/Doom/index.html
[1]
A enciclopédia Man, Myth & Magic: An Illustrated Encyclopedia of the Supernatural foi
publicada originalmente em 112 fascículos pela editora britânica BPC Publishing Ltd.,
posteriormente reunidos em 24 volumes e reeditada em 1995 em 21 volumes. Editada pelo
historiador britânico Richard Cavendish, considerado uma das maiores referências em
ocultismo, religião e mitologia, a iniciativa com também contou com outros redatores de peso,
como Mircea Eliade, Glyn Daniel e John Symonds. Em português, foi publicada pela Editora
Três, a partir de 1973, uma compilação de artigos da enciclopédia, também em fascículos,
chamada Homem, mito & magia, reunida em três volumes em 1974. (N.E.)
[2]
A língua inglesa carece de um termo que defina “magia” como a entendemos em
português, de modo que a palavra “magic” condensa dois sentidos: “magia” e “mágica” (de
palco) ou “ilusionismo”. O ocultista inglês Aleister Crowley foi quem difundiu o uso de
“magick” para fazer essa distinção. (N.E.)
[3]
Referência ao “do easy”, exercício proposto pelo escritor e artista William S. Burroughs no
conto “The Discipline of DE”. Ver Caos condensado, p. 66, nota 7. (N.E.)
[4]
O ramo de ouro teve basicamente três edições: em dois volumes em 1890, em três
volumes em 1900, e depois a obra foi ampliada em doze volumes e publicada entre 1906 e
1915, com outras edições abreviadas e resumidas lançadas posteriormente. No Brasil, foi
publicada uma versão em 1982, pela Zahar, com tradução de Waltensir Dutra. (N.E.)
[5]
Robert Brockway, Myth, p. 157.
[6]
Chas S. Clifton, “Drugs, Books, and Witches”, p. 93.
[7]
Ruth Benedict, Padrões de cultura, cap. 3 (s.p.).
[8]
Herbert Spencer, The Principles of Psychology, p. 194.
[9]
James G. Frazer, The Golden Bough, s.p.
[10]
Ibidem. Ênfase minha.
[11]
Ibidem.
[12]
Tom Douglas, Survival in Groups, p. 110.
[13]
A expressão “cultura de paranoia” se refere a uma dinâmica pela qual integrantes do
grupo parecem ser altamente sensíveis a críticas internas e externas ao grupo. Pelas minhas
observações, isso cresce com o tempo e tende a se manifestar (talvez inconscientemente)
em líderes ou integrantes de destaque. Alguns fatores que levam a isso: o quanto integrantes
do grupo se veem na sociedade como “outsiders” e que por isso precisam se proteger contra
intervenções do Estado, da mídia ou de órgãos governamentais; a proibição de revelar a
pessoas de fora o que acontece dentro do grupo, mantendo “segredo” custe o que custar (o
que pode reduzir a capacidade de cada pessoa estabelecer uma rede de contatos externa); o
histórico recente do grupo (em termos de conflitos anteriores e como foram resolvidos); e a
percepção comum de que qualquer crítica feita ao grupo também é uma crítica direta a cada
pessoa, inclusive críticas a suas “habilidades mágicas”. Embora esse tipo de “cultura” não
seja incomum em grupos pequenos, ela é particularmente notável (na minha experiência) em
organizações maiores e em redes nas quais costuma haver desconfiança interna entre
subgrupos —especialmente quando estão distantes geograficamente ou quando há uma
grande divergência interna sobre crenças, abordagens mágicas e a direção que a
“organização como um todo” deveria estar tomando. Uma vez me contaram que certa
pessoa, de uma rede de paganismo com a qual estive envolvido por um tempo, disse uma
frase que resume esse tipo de postura: “Sei lá o que aquele povo de Leeds está fazendo, só
sei que não estou gostando!”.
[14]
O termo usado por Hine no original é “bliss”. A tradução como “alegria” soaria mais
natural, porém o termo descreve um estado que evoca a experiência de contentamento
sublime e integral —mente e corpo—, para além da simples alegria, felicidade ou êxtase.
(N.T.)
[15]
Aldous Huxley, As portas da percepção e Céu e inferno, p. 119.
[16]
Walter Norman Pahnke, Drugs and Mysticism, p. 257.
[17]
Herbert Günther, The Life and Teaching of Naropa, p. 102.
[18]
Para um panorama do assunto, ver Hugh Urban, Tantra. Ver também André Padoux,
“What Do We Mean by Tantrism?”.
[19]
Christopher S. Hyatt, Tantra Without Tears, p. 10.
[20]
Gandharva Tantra citado em Alain Daniélou, The Myths and Gods of India, p. 377.
[21]
Ver Joseph S. Alter, The Wrestler’s Body.
[22]
Ver Douglas R. Brooks, Auspicious Wisdom.
[23]
Do Saundarya Lahari, citado por W. Norman Brown, Man in the Universe, p. 96.
[24]
Phil Hine usa a expressão “become an individual”, ou literalmente se tornar um indivíduo
—tomar posse da própria individualidade, ou buscar se colocar no mundo levando em conta
mais quem somos nós mesmos e menos o que outrem espera que sejamos. Byung-Chul
Han, filósofo sul-coreano naturalizado alemão, trata longamente do assunto em diferentes
livros, afirmando que hoje vivemos numa sociedade pautada não só pelo cansaço provocado
pela exigência de produtividade, mas também pela pressão de que a existência só vale se
nos impusermos e demonstrarmos quem, de modo relativo, “de fato somos”. (N.E.)
[25]
Hugh Urban, Magia Sexualis, p. 254.
[26]
Citado por David Snellgrove, Indo-Tibetan Buddhism, p. 170-171.
[27]
Citado por Francesca Fremantle, A Critical Study of the Guhyasamaja Tantra, p. 51-52.
[28]
Christian J. Wedemeyer, Making Sense of Tantric Buddhism, p. 127.
[29]
Miranda Shaw, Passionate Enlightenment, p. 58.
[30]
Ibidem.
[31]
Citado por Francesca Fremantle, op. cit., p. 41-42.
[32]
Christian J. Wedemeyer, op. cit., p. 128.
[33]
Citado por Francesca Fremantle, op. cit., p. 53.
[34]
Ibidem, p. 55.
[35]
Ibidem.
[36]
Christian J. Wedemeyer, op. cit., p. 112.
[37]
Referência à obra de Shere Hite, The Hite Report: A Nationwide Study of Female
Sexuality, de 1976, que causou polêmica ao desafiar as suposições conservadoras da época
sobre a sexualidade feminina. (N.T.)
[38]
Bernard Faure, The Red Thread, p. 65.
[39]
Patrick Olivelle, Language, Texts, and Society, p. 202.
[40]
Gareth Knight, A Practical Guide to Qabalistic Symbolism, p. 155-156. Knight, é
verdade, diz no novo prefácio que “é para mim um motivo de profundo arrependimento caso
alguém tenha, graças às minhas palavras, passado por maus bocados devido a sua
orientação sexual”. Mas é lógico que aquelas mesmas palavras continuam no mesmo lugar
na nova edição.
[41]
Ver seção “Paganismos”. (N.E.)
[42]
Vale destacar que hoje, no Brasil, existem grupos minoritários dedicados a promover
não só o que Phil Hine chama aqui de “paganismo queer”, como também um ambiente
diverso para o estudo do ocultismo. O Projeto Xaoz, por exemplo, formado por pessoas de
diferentes crenças, tradições e orientações sexuais, busca promover a pesquisa e o estudo
do ocultismo e da magia em suas diversas manifestações, concentrando-se na autonomia e
na individualidade de cada pessoa. Citamos também o Sagrado Transviado, movimento
mágico liderado por Helena Agalenéa e Paul Parra desde 2018, que começou na cidade de
Campinas/SP. Helena e Paul são pessoas trans que praticam a bruxaria e fogem dos
padrões binários de gênero e sexualidade. Ao perceberem que grande parte dos espaços de
pesquisa, produção e vivência mágica e ocultista contemporâneos continuam agenciados
com a binariedade, a dupla passou a criar espaços seguros para a dissidência e a elaborar
possibilidades de uma sacralidade transviada, que não se baseia em pares binários e nem
em divindades separadas enquanto “masculinas e femininas”. A principal divindade cultuada
no Sagrado Transviado é Inanna. Seus textos conceituando o movimento foram publicados no
livro Liber Queer, publicado pelo Círculo da Viada Chama Púrpura —um movimento de
empoderamento LGBTQIA+ que busca fomentar uma religiosidade queer voltada para o
paganismo. (N.E.)
[43]
Zachary Cox, Aquarian Arrow, n. 22.
[44]
Aleister Crowley, The Magical Record of the Beast 666, p. 10-11.
[45]
Louis T. Culling, A Manual of Sex Magick, p. 25.
[46]
Kenneth Grant, Aleister Crowley & The Hidden God, p. 84.
[47]
Ibidem.
[48]
Galadriel, “The Great Rite”, p. 7.
[49]
John Rowan, The Horned God, p. 134.
[50]
Starhawk, Dreaming the Dark, p. 41.
[51]
Donald L. Mosher, “Three Dimensions of Depth of Involvement in Human Sexual
Response”, p. 5.
[52]
Ver seção “Kundalini: uma abordagem pessoal”. (N.E.)
[53]
Starhawk, The Spiral Dance. E-book, posição 248.1/640.
[54]
Ver Introdução à parte II, “Paganismos”. e o ensaio “Relatório Reachout”. (N.E.)
[55]
Greenham Common foi uma base militar britânica usada pela força aérea dos Estados
Unidos na década de 1980 como parte de suas operações na Guerra Fria. Quando os
Estados Unidos declararam que levariam mísseis nucleares para a base, um grupo de
mulheres montou acampamento no local (o Women’s Peace Camp), em setembro de 1981,
dando origem a um movimento que chegou a mobilizar setenta mil pessoas num único
encontro. O lugar se tornou um marco da luta feminista na Inglaterra e reuniu muitas práticas
de religiosidade neopagãs, especialmente do culto a Hécate. Ver o artigo de Shai Feraro,
“Invoking Hecate at the Women’s Peace Camp”, em Magic Ritual and Witchcraft, 11(2), p.
226-248. (N.E.)
[56]
No vodu haitiano, “cavalo” (chwal) se refere à pessoa possuída durante os rituais, uma
vez que “montar um cavalo” é uma metáfora para a incorporação das entidades. (N.E.)
[57]
Em inglês, a referência é “Pangenitor Panphage”, com os termos derivados do grego.
“Pangenitor” é aquele que a tudo gera; “panófago”, aquele que a tudo devora. (N.E.)
[58]
Peter Carroll, Liber Null & Psychonaut, p. 131-132. Baphomet nessa litania é
apresentado como predominantemente masculino em vez de poligênero.
[59]
Steven Shaviro, Doom Patrols, s.p.
[60]
Lee Edelman, “Queer Theory”, p. 345.
[61]
Em português, o livro foi publicado por diferentes editoras ao longo dos anos como A
3ª visão. O título original, no entanto, traduz-se por “O terceiro olho”. Ao longo do ensaio, nos
referimos aos títulos originais dos livros de Rampa por não termos consultado as edições em
português. Nas referências, no entanto, colocamos os nomes traduzidos entre colchetes para
facilitar a consulta de quem tiver interesse. (N.E.)
[62]
Donald Lopez Jr., Prisioners of Shangri-La, p. 86.
[63]
Agehananda Bharati, “Fictitious Tibet”, p. 5.
[64]
David Lopez Jr., Prisoners of Shangri-La, p. 104.
[65]
Lobsang Rampa, citado em Donald Lopez Jr., Prisoners of Shangri-La, p. 109.
[66]
Essa entrevista foi ao ar no programa “Citizens of the World”, da emissora CFMT Télé-
Métropole, de Montreal, e foi conduzida por Alain Stanké, amigo de Rampa e seu editor em
língua francesa. Feita originalmente em inglês, a conversa foi traduzida para o francês e
publicada no livro Lobsang Rampa, imposteur ou initié? (Montreal, Éditions Stanké, 1973),
escrito e publicado pelo próprio Stanké. Partes da transcrição podem ser encontradas online
em inglês (ver Lobsang Rampa, “Transmigration”). (N.E.)
[67]
“Paperback” nada mais é do que o papel jornal. Porém, essa expressão, por
metonímia, passou a se referir a um estilo de publicação impressa em papel jornal: livros de
alta tiragem com capa de papel cartão de baixa gramatura, lombada colada, sem orelha, com
projeto gráfico e capa padronizados ou muito simples, feitos para serem mais baratos,
voltados ao grande público e vendidos não só em livrarias, mas também em bancas de jornal,
lojas de conveniência etc. (N.T.)
[68]
Ativistas do Women’s Liberation Movement (Movimento de Libertação das Mulheres).
(N.T.)
[69]
Lobsang Rampa, You Forever, p. 102.
[70]
Ram Kumar Rai, Kularnava tantram, p. 45.
[71]
Segundo nota do próprio livro de Sharpe, não haveria edição publicada desse
manuscrito, que teria sido apresentado à autora por um yogue. Não confundir com o livro
homônimo de Swami Rama, Rudolph Ballentine e Alan Hymes, Science of Breath: A Practical
Guide (Honesdale, The Himalayan Institute Press, 1979). (N.E.)
[72]
David G. White, “Tantric Sects and Tantric Sex”, p. 250.
[73]
Annette Wilke, “Negotiating Tantra and Veda in the Paraśurāma-Kalpa Tradition”, p. 145.
[74]
O escândalo de Vallabhacharya, conhecido também como o Caso de Difamação do
Maharaj, de 1862, refere-se a um processo de difamação movido contra os fundadores do
jornal semanal Satyaprakash, de Mumbai. Os editores do jornal haviam publicado um artigo
em 1860 acusando de abuso sexual e de poder os líderes do culto vaishnava Vallabha
sampradaya. O julgamento foi em favor dos réus. (N.E.)
[75]
Em Tantra e em Magia Sexualis.
[76]
Hugh Urban, Tantra, p. 112.
[77]
“Wasp” é o termo usado por Hine. Vale notar que a palavra também é usada como
abreviação de “white Anglo-Saxon protestants”, expressão referente à elite protestante
americana, geralmente de origem britânica, que se tornou também uma forma de se referir a
pessoas brancas, europeias e privilegiadas cuja visão de mundo é hegemônica, eurocêntrica
e coloca outros grupos sociais em posição de subalternidade. (N.T.)