Você está na página 1de 3

1

Após uma noite mergulhada em pesadelos infindáveis, emergi de um sono


profundo, encarando o teto como se fosse o epitáfio de minha própria sanidade.
A cama, que deveria ser meu refúgio, transformou-se em um leito de desespero,
uma prisão onde meu corpo jazia imóvel, inerte diante da própria existência. As
sensações haviam abandonado meu corpo, deixando-me apenas com a
capacidade de mover os olhos, testemunhas silentes de minha agonia. A busca
por respostas revelou-se tão inútil quanto a tentativa de escapar dessa cela
invisível. Nenhuma lembrança estranha permeava minha mente, apenas o vazio
e a incerteza. O dia, inicialmente monótono, transformou-se em um enigma
claustrofóbico, onde a normalidade era uma ilusão e o mistério sussurrava em
cada sombra. Meus olhos, ávidos por algum vislumbre de sentido, vagaram pelo
quarto escuro. Em um instante, fui arremessado para uma situação ainda mais
desesperadora, agora no chão imundo, enquanto a silhueta do sol projetava-se
como um cadafalso. A confusão aprofundava-se com a impossibilidade de
discernir as horas, como se o tempo zombasse de minha incapacidade. A
ausência de fome era eclipsada pela sensação de desvanecimento, uma quase
inexistência que me fazia questionar minha própria humanidade. A escuridão, ao
consumir a silhueta do sol, transformava meu entorno em um abismo silencioso,
onde a rua outrora repleta de vida agora repousava como um túmulo. O quarto,
negligenciado e esquecido, tornou-se palco de minha própria autodestruição. A
reflexão trouxe à tona a inescapável culpa: por que não cuidara de meu único
refúgio? Restos de lanches se acumulavam como testemunhas do meu
desinteresse, enquanto meu corpo permanecia cativo, aprisionado em um
pesadelo sem fim. A culpa tornou-se o catalisador de minha própria condição
lastimável. Poderia eu sentir pena de mim mesmo? A morte, inevitável e fria,
pairava sobre mim, mas a renúncia ao direito de viver era uma escolha que eu
hesitava em fazer. Sempre estive só, tanto nos momentos de bonança quanto nas
tormentas. Mereço viver mais, uma afirmação que ecoa no vazio do meu próprio
desespero. Mesmo com o abismo prestes a consumir-me e a incerteza sobre o
amanhã persistindo, afirmo com frieza: mereço viver. Sim, as pessoas precisam
saber meus pensamentos, minhas reflexões, aquilo que acredito e o que deveriam
saber. De forma abrupta, sinto-me ceder ao sono, envolto pela ideia

2 1 de 34
1

tranquilizadora de que o amanhã será um dia mais propício e que,


inevitavelmente, tudo isso há de passar.

II

No segundo dia, fui arrancado do meu sono pelos sussurros sombrios que se
desprendiam do monte de lixo no meu quarto. Simultaneamente, percebia os
murmúrios distantes dos carros deslizando furtivamente pela rua, alguns
pássaros impertinentes e estridentes, e a irritante ladração incessante de um cão
perdido na penumbra. "Que ironia cruel! Estou ouvindo tudo novamente,
então não era um pesadelo. Estou, de fato, afundado em uma condição
desesperadora", refleti, enquanto os sons do lixo cresciam em intensidade,
provocando uma inquietude que se avolumava como uma tempestade iminente.
À medida que o som crescia, delineava-se a presença inconfundível da
escuridão mórbida: baratas. Seres vis que encontram satisfação nas entranhas
do lixo, acolhendo a depravação com uma indiferença insensível,
transformando-se em criaturas repugnantes, no máximo úteis como banquete
para ratos. "Não poderia ser pior", ecoou minha genuína resignação. Afinal,
aquelas aberrações arrastavam o silêncio para um abismo de ruídos agonizantes.
O ambiente que anteriormente se banhava em uma calmaria perturbadora
agora tornava-se um palco de desconforto, onde o zumbido das baratas se
mesclava a um coro lastimável de ruídos perturbadores. O meu santuário
tornava-se uma arena para a decadência sonora, como se a própria escuridão
conspirasse para reger essa sinistra sinfonia do caos, uma trama intrincada que
se desenrolava nas sombras da minha própria prisão.
A despeito da cacofonia infernal que emanava dessas criaturas repulsivas,
resignava-me à aceitação de um benefício trágico: a restauração de minha
audição prometia, por inevitável consequência, provocar uma mutação
significativa em meu dia. Este, escorrendo rapidamente pelos dedos do tempo,
transmutava-se à medida que as baratas devoravam os detritos, e eu, de maneira
voraz, fixava minha atenção nesse espetáculo grotesco. De alguma forma, esses
2 2 de 34
1

insetos repugnantes metamorfoseavam-se em meu entretenimento mórbido,


uma narrativa sinistra tecida nos recessos do meu próprio confinamento.

2 3 de 34

Você também pode gostar