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ACÁDIA

Acádia foi uma das mais famosas cidades mesopotâmias, cuja riqueza, esplendor e gloriosos
soberanos seriam recordados por milênios; e ainda tem muita coisa a ser identificada e
escavada. Não dispomos até hoje de registro arqueológico da existência da cidade, nem
depósitos de fundações, nem arquivos, nem sepulturas, nenhuma seqüência estratificada de
entulho, nenhum remanescente arquitetônico, nada de tijolos com inscrições para identificar o
local. Mesmo assim, a realidade de Acádia como a nova capital de um estado fundado por
Sargão nunca esteve em dúvida porque o nome da cidade aparece em documentos escritos a
partir da segunda metade do terceiro milênio, provenientes de outros sítios arqueológicos
mesopotâmios, além das freqüentes referências a Acádia na literatura cuneiforme, em augúrios
e títulos régios.
Acádia era conhecida como o centro do mais bem-sucedido império jamais visto, o qual se
estendia aos quatro cantos do mundo. Tão prestigioso era o seu nome que os reis babilônios
intitularam-se “rei de Acádia” até o advento do período persa.

Examinar de forma um tanto circunstanciada os antecedentes históricos que informam o


desenvolvimento de um estado central e a instituição da realeza.
Inscrições reais acadianas: Os primeiros registros históricos?

A maioria das fontes sobre a história do império Acadiano está preservada em plaquetas
escritas cerca de quinhentos anos após os eventos, durante o período Babilônio Antigo (c.
18OO-10OO).

São cópias das inscrições reais originais dos primeiros soberanos acádios, como Lugalzagesi de
Uruk, Sargão, Rimuch, Manichtusu e Naram-Sin, abrangendo um período que vai de c. 237O a
2223.

Essas cópias foram colecionadas sob a forma de antologias, duas das quais estão preservadas.
As inscrições originais estavam escritas em estátuas e estelas que se encontravam outrora
colocadas no pátio do templo de Ekur em Nippur e foram compostas em sumeriano ou
Acadiano, e em versões bilíngües.
Os escribas do Babilônio Antigo não só copiaram fielmente as versões originais, como também
anotaram o tipo de monumentos de onde tinham sido copiadas. Foram muito admiradas nessa
época como os primeiros e mais veneráveis exemplos do gênero, e estudantes anotaram e
decoraram excertos dessas inscrições reais Acadianas. Assim, elas influenciaram o estilo e o
formato da tradição subseqüente. Entretanto, além das antologias em babilônio antigo, foram
encontradas algumas estátuas com inscrições originais, como as que o rei elamita Chutruk-
Nahunte I(1185-1155), ávido colecionador de monumentos históricos, tinha levado para Susa,
no Sudoeste do Irã, onde arqueólogos franceses as encontraram.

As inscrições reais são interessantes não só por causa de sua informação histórica, suas
descrições de batalhas e conquistas, mas também por sua pertinência política como
instrumentos de propaganda real.
As primeiras inscrições reais desenvolveram-se a partir do costume de dedicar objetos de valor
a um deus. Essa era uma antiga tradição, como foi provado pelo rico inventário dos templos
pré-históricos em Eridu. Entretanto, um doador podia fazer um registro permanente de sua
dádiva na forma de uma mensagem gravada no objeto.

A primeira “inscrição” real consiste em apenas três palavras. É sintomática, porém, de uma
nova prática: perpetuar a memória do indivíduo e o seu elevado status — o vaso de alabastro
torna-se o recipiente da memória.

Além disso, as inscrições ligam freqüentemente a conquista militar ao ato de oferecer, visto
que pelo menos alguns dos despojos da vitória eram oferecidos aos deuses como sua parte do
butim e, ao mesmo tempo, transferidos para a custódia do templo. Que isso era um privilégio é
enfatizado pelo uso de título, o que subentende poder político (“rei”).
Parece que apenas as pessoas que tinham assumido o cargo supremo perpetuaram sua
memória através de uma inscrição num objeto de valor simbólico.

Além do sucesso militar, as inscrições reais também comemoram a inauguração de edifícios


cuja construção foi patrocinada pelo rei.

Os reis com freqüência faziam o seu próprio registro como os construtores de monumentos
públicos ou os restauradores da estrutura arquitetônica de templos. A doação de valiosos
objetos ou a inauguração de um templo restaurado ou recém-construído eram, sem dúvida,
ritualizadas como um espetáculo, como uma forma de desfile da vitória, por exemplo,
culminando talvez com a entrada do vitorioso comandante das tropas no santuário para
depositar alguns dos despojos de guerra como oferenda aos deuses da cidade; ou como um
festival sazonal do qual o soberano participa cumprindo suas mais espetaculares manifestações
votivas.
Em tais ocasiões, os textos inscritos nos objetos podem ter sido lidos em voz alta, e pelo menos
alguns desses monumentos inscritos podiam destinar-se a exibição pública. Isso teria
envolvido, implicitamente, a necessidade de levar ao conhecimento do público o texto inscrito,
pois, se nem todos eram realmente capazes de o ler, a sua versão oral estaria de alguma forma
acessível a todos.

Ao mesmo tempo, continuou a prática de dedicar aos deuses artefatos menores, como vasos,
armas, estatuetas ou plaquetas feitas de material precioso, com a idéia de que eles se
destinavam essencialmente a atrair a atenção dos deuses; eram muitas vezes escondidos ou
depositados no miolo da alvenaria de tijolos do edifício a fim de participar da declarada vida
eterna do templo.
Com freqüência, as inscrições são endereçadas a um futuro rei que poderia deparar-se com
elas no decurso da renovação de um templo, exortando-o a tratar o objeto com respeito e a
não o remover de seu lugar original.

No final do Primeiro Dinástico, as inscrições reais “públicas” tinham adquirido a extensão de


muitas centenas de linhas. Serviam não só para comemorar o nome, o titulo e os feitos de um
poderoso governante local, mas também tinham o propósito de influenciar a opinião pública da
geração presente e das futuras.

Houve tendência para tratar a informação “histórica” das inscrições reais como factuais e
idôneas, mas, em anos recentes, os aspectos propagandísticos das inscrições reais receberam
rigorosa atenção, numa reação contra a interpretação muitas vezes excessivamente literal de
tais fontes como dados históricos primários.
As inscrições reais eram produzidas sempre que um soberano tinha a sua disposição pessoal
letrado e treinado para produzir tais textos, o que não era um subproduto automático da
realeza. Na verdade, a colaboração com escribas experientes era uma indicação de estabilidade
política. Com o transcorrer do tempo, quando um grande número de antigas inscrições reais de
épocas anteriores ficou acessível para estudo — como no período Babilônio Antigo —, elas
informaram a imagem popular da realeza.

No período Acadiano, os escribas a serviço de governantes desempenharam a função de


“ideólogos”; sua tarefa consistia em desenvolver argumentos para contra-atacar a oposição de
outros grupos que resistiam as forças de controle central; eles tinham que justificar uma nova
forma de governo que concentrava todo o poder nas mãos de um rei.
Lugal e a Ascensão da Realeza

A ascensão da casa patriarcal, a acumulação de capital na forma de terra produtiva e de


produção artesanal especializada e a crescente secularização do poder político facilitaram a
ascensão de líderes individuais. A rivalidade entre cidades-estados e sua vulnerabilidade as
incursões de bandos de malfeitores externos tornaram imperativos os investimentos em
armamento e treinamento militar.

O lugal beneficiou-se dos conflitos e das possibilidades de pilhagem ampliando o número de


seus partidários. Ele também comandava instituições, e as pessoas deviam-lhe especial
fidelidade, como mostram alguns nomes de pessoas.

A instituição primária associada com o lugal era o “palácio”, a “casa-grande” e seus


dependentes sob a autoridade do lugal. As provas oriundas do período do Primeiro Dinástico
mostram que esse cargo, talvez o primeiro que se tornou sinônimo de liderança direta da
cidade, surgiu na Ur arcaica e se tornou uma forma cada vez mais comum de governo das
cidades-estados. Em contraste com o cargo de en, o qual necessitava do reconhecimento do
templo e era outorgado a um candidato apropriado, a posição de lugal podia ser herdada e
obedecer a uma sucessão dinástica Também tinha a prerrogativa de controlar os sistemas de
medições e o direito de deixar registros escritos de seus atos.
Lugalzagesi, que iniciou sua carreira como ensi de Umma, tendo conquistado a maioria das
cidades-estados sumerianas e tomado posse de Uruk, cognominou-se “rei de todas as terras,
rei de Uruk, rei do país”. Pela primeira vez, aqui está um governante que considera o seu cargo
um mandato para a implantação de uma forma centralizada de governo que inclui todas as
cidades-estados da Suméria.

Essa visão de um estado que abrangia a totalidade do país como uma unidade política era nova.
Anteriormente as cidades, embora defendendo ciosamente suas esferas de influência e
vigiando o tempo todo qualquer violação de suas fronteiras, colaboravam e reconheciam uma
cultura comum que era urbana, letrada e burocraticamente organizada.
A secularização do poder e da administração, bem como a concentração de riqueza por famílias
e grandes casas, propiciou a individualização do poder. O lugal era, com freqüência, um
individuo carismático, dotado de características e ambições pessoais, em vez de um burocrata
ou “sacerdote”. Isso não sugere que existisse um conflito inerente entre herança “secular” e
“religiosa”. Mais pertinente era a tensão entre independência local (cidade-estado) e
integração em alguma unidade maior (reino).

Embora se possa descrever, em certa medida, o desenvolvimento interno da realeza suméria,


também é possível que essa forma de governo aristocrático se originasse num meio ambiente
diverso do da cidade-estado suméria.
Tal região era a área setentrional da planície aluvial, onde o Tigre e o Eufrates mais se
avizinham um do outro. Possuíam uma situação ecológica e geográfica diferente das planícies
meridionais. O terreno em suave declive impedia que os rios mudassem seus cursos de forma
exagerada.

Michael Mann sugeriu que essa zona, logo ao norte de Quich, era de especial importância para
toda a Mesopotâmia não só porque podia sustentar uma economia mista, combinando a
agricultura baseada na irrigação e a criação de rebanhos, mas também pela posição
estratégica, a cavaleiro das rotas comerciais em todas as direções cardeais.

Mann caracteriza a região como um “pântano de transição”, dominado por caudilhos rivais,
usualmente guerreiros hábeis que tentavam ampliar seu poder através de ataques de surpresa
e imposição de tributos a troco de proteção. Em tais circunstâncias, a liderança está ligada a
campanhas militares bem-sucedidas, dependendo a popularidade do chefe de sua capacidade
para garantir o respeito e a renda.

Essa heterogênea cultura de fronteira, com sua flexibilidade social, assim argumenta Mann,
criou os corajosos reis-aventureiros, ágeis em aproveitar todas as oportunidades para a
pilhagem e a imposição de tributos.
O Estado Acadiano

Muitas teorias têm sido formuladas a respeito da mudança radical produzida pelo estado
Acadiano.

Foi considerado a primeira entidade política supra-regional no antigo Oriente Próximo, o


primeiro governo a dinamizar a administração pública de um extremo ao outro da
Mesopotâmia, o primeiro regime a apresentar uma realeza carismática, o primeiro a manipular
opiniões públicas pela “propaganda”, o primeiro a implantar o comércio internacional, e assim
por diante.

De modo geral, não existem simplesmente informações suficientes para comprovar qualquer
dessas hipóteses, as quais se baseiam freqüentemente numa diferença fundamental percebida
entre o “velho” mundo das “cidades-estados sumerianas” e a nova ordem mundial do dinâmico
e expansionista estado Acadiano, “semítico” e centralista. Além disso, a nossa percepção do
que era novo ou tradicional é muitas vezes filtrada através de tradições locais posteriores que
chamam a atenção para certas características que só vieram a ser pertinentes na época em que
os comentários foram feitos.

Tradicionalmente, como vimos em Eridu, os deuses residiam dentro de suas cidades; seus
templos eram suas casas e domínios, onde viviam com suas esposas, filhos e servidores. Toda a
noção de urbanismo sumeriano estava intimamente relacionada com essa coabitação do
humano e do divino. A religião mesopotâmia nunca levou inteiramente em consideração a
presença transcendental e infinita dos deuses; precisava que eles fossem vinculados a um
determinado lugar. Suas alcovas sagradas ocupavam os mais íntimos recessos do edifício do
templo. O céu não estava mais longe do que o telhado do templo. Ao prover os deuses de
alojamentos e sustento, a cidade compartilhava a essência da divindade.
O principio fundamental era o de trocas recíprocas, comparáveis com as que definiam o
relacionamento da cidade com o campo circundante. Assim como a fertilidade dessa terra sem
chuva só podia ser efetivamente aproveitada com turmas de trabalhadores bem organizadas,
equipamentos e armazenagem que a cidade fornecia, também a sobrevivência e a felicidade
dos deuses dependiam do esforço humano. Isso é explicado em numerosos mitos que relatam
a desventura dos deuses antes de poderem transferir o encargo da subsistência, a tarefa de
“abrir canais”, para pessoas criadas especialmente para realizar esse trabalho.

Através da alimentação dos deuses, a cidade tornou-se viável, mas dependia da boa vontade de
as deidades tornarem e manterem residência. Inanna empenhou-se ao máximo em dotar
Acádia de riqueza e felicidade, mas faltava-lhe uma base de operações, um grande templo. A
construção de um templo era visto como um requisito essencial para a existência da cidade.
Acádia sobreviveu à ocupação pelos Gútios; a cidade foi intermitentemente cotada em textos
econômicos ate o primeiro milênio. Mas nunca mais recuperou o seu status como uma capital
mesopotâmia. A lembrança de Acádia permaneceu associada à dinastia sargônica, que a
tradição posterior converteu no protótipo de todas as aspirações imperiais. Se Acádia de fato
ocupava o mesmo lugar de Bagdá, existe um impressionante paralelo entre a cidade de Sargão
e a cidade de al-Mansur e dos califas abássidas, uma cidade repleta de estrangeiros exóticos,
caravanas de mercadores e histórias que forneciam entretenimento para mil e uma noites.

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