Você está na página 1de 30

A OPERAÇÃO HISTORIOGRÁFICA

 
AULA INTRODUTÓRIA

ESPECIALIZAÇÃO
A OPERAÇÃO HISTORIOGRÁFICA

À medida que passa o tempo, aumentam nossas perspectivas de examinar os dados


do passado, pelo fato de estarmos deslocados, possibilitando-nos revelar suas relações
com outros elementos de sua época e inscrever sua historiografia na história, agora
objeto de nossa historiografia. As obras do passado de história vão se erguendo
lentamente à dignidade de testemunho histórico, tornando-se um documento sobre o
seu meio e o seu tempo.
Michel de Certeau recusou ao mesmo tempo para o
conhecimento histórico o “paradigma galeliano” e a
redução da história a uma atividade literária de simples
curiosidade, livre e aleatória. Para o autor, a história é uma
prática ‘científica’, pois produzia um corpo de enunciados
científicos, cujas modalidades dependiam das variações de
seus procedimentos técnicos, dos constrangimentos que lhe
impunham o lugar social, ou ainda das regras que
comandavam sua escrita
Segundo Certeau (1982, 45-55), a ciência histórica é um discurso
que articula o real em duas posições diferentes: em primeiro lugar, o
real é o conhecido, na medida em que o historiador o compreende
ou o ressuscita de uma sociedade passada, portanto, resultado de
uma análise; em segundo lugar, o real está implicado na sociedade
presente à qual se refere a problemática do historiador, seus
procedimentos e seus modos de compreensão. É, portanto, o
postulado da análise.
Fundada sobre um corte entre um passado que é seu objeto e um
presente, que é o lugar de sua prática, a história não para de
encontrar o presente no seu objeto e o passado nas suas práticas.
Daí o exame de uma operação que é sempre afetada por
determinismos, dependente do lugar onde se efetua numa
sociedade e especificada por um problema, métodos e uma
função próprios. A história atua nesta fronteira que articula uma
sociedade com o seu passado e o distingue dele. Traça uma
imagem da realidade, demarcando-a do seu outro.
Para Certeau, a “operação historiográfica” é uma
combinação de um lugar social (um recrutamento,
um meio, uma profissão, etc), de práticas
‘científicas’( procedimentos de análise, uma
disciplina) e de uma escrita (uma literatura).
O LUGAR SOCIAL
Toda pesquisa historiográfica se articula com

um lugar de produção sócio-econômico,

político e cultural. (...) É em função deste lugar

que se instauram os métodos, que se delineia

uma topografia de interesses, que os

documentos e as questões, que lhes são

propostas, se organizam (CERTEAU, 1982,

66-67).
Os fatos históricos enunciam na linguagem da análise escolhas que lhes são
anteriores. Este lugar escondido pela análise é uma instituição do saber. A
relação entre uma instituição social e a definição de um saber é um lugar
particular numa redistribuição do espaço social e constitui-se em um lugar
científico.
O fato do discurso obedecer a regras próprias não o impede de
articular-se com aquilo que não diz, o corpo social que o
organiza silenciosamente. Sem essa articulação é impossível
pensar em uma renovação da disciplina histórica, “assegurada
pela única e exclusiva modificação de seus conceitos, sem que
intervenha uma transformação das situações
assentadas”(CERTEAU, 1982, 71).
Cada trabalho individual se insere em uma rede cuja combinação dinâmica forma
a história em um momento dado. Assim, uma obra é reconhecida pelos seus pares,
na medida em que se situa em um conjunto operatório e representa um progresso
em relação ao estatuto atual dos objetos e métodos históricos, além de tornar
possíveis novas pesquisas.
Portanto, muito mais ligada ao complexo de uma
fabricação específica e coletiva, do que o efeito de uma
filosofia individual, uma obra histórica é o produto de
um lugar. Assim, a mudança de uma situação social
resulta em uma mudança no modo de trabalhar e no
tipo de discurso. Eis a dupla função de um lugar:
permite um tipo de produção historiográfica e proíbe
outras. Torna possível certas pesquisas em função de
conjunturas e problemas comuns e torna outras
impossíveis (CERTEAU, 1982, 65-77).
A PRÁTICA
Segundo Certeau, se a
organização da história é relativa
a um lugar e a um tempo, isto é
possível devido a suas técnicas de
produção. Toda sociedade se
pensa historicamente com os
instrumentos que lhes são
próprios.
O estabelecimento das fontes começa com o gesto de
separar, reunir e transformar em ‘documentos’
objetos distribuídos de outra maneira. Ao recopiar,
transcrever ou fotografar documentos, muda-se seu
lugar e seu estatuto. Os documentos são ‘produzidos’
por ações combinadas que recortam o universo do
uso e se destinam a um reemprego coerente.
Esta operação técnica, instauradora de novos signos,
expostos a tratamentos específicos não é o efeito de um
olhar, mas sim um gesto fundador, representado pela
combinação de um lugar, de um aparelho e de técnicas
que utilizam de outra maneira os recursos conhecidos e
mudam o funcionamento dos arquivos.
Trata-se mais de
interpretação do que de
“explicação”. Transcreve
linguagens já codificadas, das
quais se faz intérprete,
constitui uma metalinguagem
na própria língua dos
documentos utilizados
A prática contemporânea consiste em construir ‘modelos’, fixar os
seus limites de significabilidade, e julgar o valor científico de um
objeto segundo um ‘campo de questões’. Desta forma a história
torna-se uma experimentação crítica dos modelos sociológicos,
econômicos, psicológicos ou culturais. Utiliza um instrumental
emprestado e testa-o através de sua transferência para terrenos
diferentes, evidenciando os limites da significabilidade dos
modelos, agora experimentados em campos estranhos ao de sua
elaboração. Portanto, a relação com as outras ciências permite a
história exercer uma função crítica, em virtude de seu objeto ser
determinado pelo interesse de outras ciências.
A ESCRITA
Para Certeau, a escrita da história é uma prática social que confere ao
leitor um lugar determinado. Destaca-se do trabalho cotidiano, das
eventualidades, dos conflitos da pesquisa. Tal discurso histórico
pretende oferecer um conteúdo verdadeiro (oriundo da
verificabilidade) sob a forma de uma narração. O discurso
historiográfico compreende seu outro - a crônica, o arquivo, o
documento. Pelas citações, pelas notas e por todo o aparelho de
remetimento a uma linguagem primeira, que comprova o discurso,
introduz um efeito de real, se estabelece como saber de um outro.
Assim a estrutura do discurso, ao extrair da citação uma
verossimilhança do relato e uma validade do saber, produz uma
credibilidade
A escrita histórica está assegurada por
um certo número de conceitos, categorias
históricas de tipos diferentes: século,
classe social, família, povo, guerra,
heresia, Antigüidade, Antigo Regime, etc.
Ela impõe regras que não são iguais às da
prática, mas diferentes e complementares,
regras que organizam lugares em vista de
uma produção.
Segundo Peter Gay , as técnicas estilísticas
utilizadas pelos historiadores apresentam
semelhanças com as técnicas dos
romancistas. Contudo, enquanto a verdade é
um instrumento ocasional da ficção, na
história é uma busca incessante, sua
finalidade essencial. Daí a dupla face do
ofício do historiador, voltada para as
subjetividades e para a ciência, tal como os
domínios da cultura e de personalidade
individual.
IGGERS
 
Diferente da historiografia originada desde à Antiguidade, o que era novo
no século XIX era o tratamento científico que recebia a investigação
histórica dentro do marco da profissionalização, tal como teve lugar nas
Instituições de ensino superior. Foi então que a história se constituiu em
disciplina e começou a chamar-se ciência histórica, diferenciando-se do
conceito mais antigo de historiografia.
A história se distanciou, por um lado, do objetivo
cognitivo de outras ciências, isto é, formular
regularidades, ou modelos de explicação concluintes, e
sublinhava os elementos do singular e do espontâneo, os
quais exigiam da história como ciência cultural
(Geisteswissenschaft), uma lógica especial de
investigação, direcionada para entender as intenções e os
valores humanos
Por outro lado, compartilhava com as ciências
profissionalizadas a confiança que estas, em
geral, tinham na possibilidade de aceder ao
conhecimento objetivo por meio da
investigação metódica, sem estarem
conscientes de que esta investigação se
baseava em pressupostos, com respeito ao
desenvolvimento histórico e à estrutura da
sociedade, que predeterminavam os resultados
de sua investigação.
A autodefinição da história como disciplina
científica significava para o trabalho profissional
do historiador uma rigorosa separação entre o
discurso científico e o literário, entre os
historiadores profissionais e os aficionados.
Esta mudança institucional não deve obscurecer os aspectos comuns que
enlaçavam a ciência histórica, tal como se estabeleceu no século XIX, com a
historiografia tradicional praticada desde a Antiguidade. Entre estes aspectos
destaca-se a distinção entre a história e o mito, tal como efetuaram Heródoto e,
em especial, Tucídides, apesar deles vêem a historiografia como uma forma de
literatura, mais concretamente, de narrativa, cuja primeira preocupação não eram
os conhecimentos metodicamente adquiridos, senão a manter viva na memória os
grandes acontecimentos. Três são os aspectos que têm em comum a ciência
histórica desde Ranke e a ciência histórica desde Tucídides até Gibbon:
1.A exposição histórica descreve pessoas que existiram realmente e
ações que realmente tiveram lugar, e deve corresponder a essa
realidade, isto é, deve ser verídica;
2.A exposição segue estas ações em suas ações diacrônicas, isto é, só
seguem às anteriores e se fazem compreensíveis graças a isto;
3.Pressupõe que ações humanas refletem as intenções dos que atuam;
Tanto a tradição clássica da historiografia desde a Antiguidade até
Ranke se acha a consideração do transcurso da história na perspectiva
daqueles que dominam. A convicção de que os homens fazem a
história, isto é, a ideia de que as decisões relevantes para a
sociedade humana são tomadas por pessoas do sexo masculino que
estão no poder, tem sido compartilhada da antiguidade até o século
XIX.
Por isso, a história se tem ocupado em primeiro lugar do poder,
isto é, sobretudo o Estado como centro do poder, que permite
conferir ao relato histórico coerência.
Com isso no século XIX a história é equiparada ao
desenvolvimento dos estados europeus.

Você também pode gostar