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A ESCRITA DA HISTÓRIA

RESUMO E REFLEXÕES SOBRE TEXTO MICHEL DE CERTEAU 1

Hellen Danielly Soares2

Capítulo 2: A operação historiográfica3


I. Um Lugar Social
Michel de Certeau inicia o segundo capítulo de seu livro com a discussão sobre a
relação entre o lugar de onde se fala e a investigação que se realiza, discussão essa que será
aprofundada nos tópicos seguintes. O autor argumenta que, por mais que se tente generalizar
ou estender considerações sobre um assunto, é impossível apagar a particularidade do lugar de
e, essa particularidade, sempre influencia a perspectiva adotada. No entanto, o autor também
defende que o gesto que liga as idéias aos lugares é um gesto de historiador, ou seja, é preciso
compreender as produções culturais e intelectuais em seus contextos específicos para poder
analisá-las de maneira mais completa.

I.I O não- dito


O cientificismo, por muito tempo dito como "ciência objetiva" e única forma de se
chegar ao fato, começa a ser questionado. Por mais que tenha sido um processo demorado,
hoje a relatividade histórica compõe um quadro de múltiplas filosofias e interpretações
históricas.
O autor discute a abordagem de Raymond Aron sobre a relação entre ideologia e
prática histórica. Aron isolava a filosofia da prática histórica para extrair a ideologia e fazia
dos filósofos um grupo isolado em sua sociedade, a pretexto de sua relação direta com o
pensamento. Isso permitia aos intelectuais uma relação privilegiada com as ideias, sem serem
perturbados por questões sociais ou políticas. Aron estabeleceu um estatuto reservado tanto
para o reinado das ideias quanto para o reino dos intelectuais. Embora as teses de Aron
tenham sido questionadas, muitos trabalhos ainda mantêm uma posição triunfante e discutível
sobre a produção intelectual. No entanto, alguns autores, como Michel Foucault e Paul Veyne,
introduziram técnicas de disciplina e conflitos sociais no exame da história. Ainda assim, o
pressuposto de negar a pertinência epistemológica ao exame da função social exercida pelos
historiadores e intelectuais permaneceu intacto.

I.II A instituição histórica

1
Trabalho apresentado na disciplina de Tópicos Especiais em Pesquisa Histórica do Programa de
Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco (PPGH/UFPE)
2
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco
(PPGH/UFPE). Licenciada em História pela Associação Caruaruense de Ensino Superior e Técnico
(ASCES).
3
Michel de Certeau. A operação historiográfica. In: CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio
de Janeiro: Forense-Universitária, 1982.
O texto fala sobre a relação entre as instituições sociais e a definição de conhecimento,
apontando que o contorno dessa relação aparece com a "despolitização" dos sábios, ou seja,
com a fundação de corpos específicos, como engenheiros e intelectuais aposentados, e a
especialização das instituições políticas, eruditas e eclesiásticas.
A instituição não apenas dá estabilidade a uma doutrina, mas também a torna possível
e a determina sub-repticiamente. É um mesmo movimento que organiza a sociedade e as
ideias que circulam por ela.
Além disso, o texto discute a importância do "nós" do autor e dos verdadeiros leitores
na produção e recepção de uma obra historiográfica. Ele enfatiza que uma obra de valor em
história é aquela que é reconhecida como tal pelos pares e pode ser situada em um conjunto
operatório.

I.III Os historiadores na sociedade


O texto fala sobre a relação entre a teoria e a prática na pesquisa científica e como as
determinações sociais influenciam o trabalho e o discurso dos pesquisadores. O autor
argumenta que não se pode separar a análise social da ciência da história das ideias e que as
imposições sociais fazem parte da textura dos procedimentos científicos. Ele também aborda
como a produção histórica está ligada ao ensino, às flutuações da clientela, às pressões que
esta exerce e à introdução da cultura de massa numa universidade massificada.

I.IV O que permite e o que proíbe: o lugar


Nesse trecho, o autor destaca a importância de compreender como uma sociedade
funciona antes de se analisar o que a história diz sobre ela. Ele argumenta que as instituições
que compõem uma sociedade são limitadas em sua capacidade de produção, e que essa
limitação é uma combinação entre permissão e interdição. Ou seja, certas pesquisas são
permitidas enquanto outras são excluídas do discurso.
A história, segundo ele, não pode ser encarada apenas como um "dizer", pois isso a
reduziria a lenda, ou seja, a substituição de um não-lugar ou de um lugar imaginário pela
articulação do discurso com um lugar social. A história se define pela relação da linguagem
com o corpo social e, portanto, também pela sua relação com os limites que o corpo impõe.

II. Uma Prática


O autor começa essa parte afirmando que "fazer história" é uma prática, ou seja, é algo
que se faz na prática e não apenas teoricamente. Ele argumenta que a Universidade classifica
como "ciência auxiliar" tudo o que coloca a história em relação com técnicas, como a
epigrafia, papirologia, paleografia, entre outras. No entanto, ele argumenta que isso é um
equívoco, pois a história é mediatizada pela técnica e a relação de uma sociedade consigo
mesma é central na atividade científica presente.
Por fim, ele conclui que a história não deve ser vista apenas como uma arte de discorrer que
apaga vestígios de trabalho técnico, mas sim como uma prática que é mediatizada pela técnica
e que tem um lugar importante na relação de uma sociedade consigo mesma e com o mundo
natural.

II.I A articulação natureza-cultura


De acordo com de Certeau, o historiador não se limita a traduzir objetos de uma
linguagem cultural para outra, mas pode transformar elementos da natureza em cultura. Ele
modifica o meio ambiente através de uma série de transformações que deslocam as fronteiras
e a topografia interna da cultura.
O autor também critica a ideia de que a história deve ser "científica" e destaca que
muitos livros históricos acabam se tornando mais romanescos ou legendários, deixando de
produzir transformações nos campos da cultura. Por outro lado, a literatura é vista como uma
forma de trabalho sobre a linguagem, produzindo movimentos de reorganização e circulação
que podem ser destrutivos.
No geral, o tópico destaca a importância do trabalho do historiador como um processo
ativo de manipulação e transformação de materiais em história, ao mesmo tempo em que
questiona alguma das concepções tradicionais sobre a natureza da história e da literatura.

II.II O estabelecimento das fontes ou a redistribuição do espaço.


O tópico se refere ao papel dos arquivos na história e como eles foram criados a partir
da coleção de documentos que foram isolados e classificados para formar um sistema
marginal de objetos abstratos de saber. Essa operação técnica de criação de arquivos começou
a ser realizada no Ocidente com as coleções de documentos que surgiram no século XVI na
Itália e na França, financiadas pelos grandes mecenas da época. Essas coleções foram criadas
para justificar grupos familiares e políticos recentes e para estabelecer tradições e direitos de
propriedade específicos. A partir dessas coleções, nasceu a erudição do século XVII, que
recebeu dos arquivos suas bases e regras.
Esse ponto discute, também, a transformação dos procedimentos de pesquisa em
arquivos e a necessidade de uma nova história. O autor argumenta que os arquivos são apenas
uma parte de um aparelho técnico que limita a possibilidade de respostas novas para questões
diferentes. Para o autor, a transformação do aparelho arquivístico é o ponto de partida para
uma nova história, que pode ser impulsionada por avanços tecnológicos como o computador.

II.III Fazer surgir diferenças: do modelo ao desvio


Este trecho apresenta reflexões sobre como as técnicas atuais de informação têm
impactado a prática da pesquisa histórica. O autor argumenta que, ao utilizar essas técnicas, os
historiadores têm mudado sua abordagem de uma prática centrada na acumulação de vestígios
e na construção de uma compreensão coerente a partir desses vestígios, para uma prática que
se concentra na construção de modelos teóricos a priori e na busca por desvios ou limites
desses modelos por meio de análises quantitativas e computacionais.
O autor destaca que essa nova abordagem não significa a substituição da pesquisa
baseada em vestígios, mas sim uma mudança na forma como os historiadores trabalham com
esses vestígios. Em vez de buscar uma compreensão coerente a partir de um número limitado
de vestígios, os historiadores agora podem lidar com uma quantidade indefinida de
informação que pode ser organizada e analisada por meio de técnicas computacionais.
Além disso, o autor destaca que essa nova abordagem tem o potencial de produzir
"erros" ou desvios que são cientificamente utilizáveis, permitindo aos historiadores corrigir e
aprimorar seus modelos teóricos. O autor também argumenta que essa nova abordagem se
concentra mais em limites e desvios do que em totalidades coerentes, o que pode levar a uma
compreensão mais complexa e nuance do passado.

II.IV O trabalho sobre o limite.


A história contemporânea não busca mais a totalidade, mas sim a diferença e a
diversidade. Ela se tornou um lugar de experimentação crítica dos modelos teóricos e práticos,
e sua função é de controlar e falsificar esses modelos. Isso não significa que a história tenha
perdido sua relevância ou importância; ao contrário, ela se tornou uma disciplina fundamental
para a compreensão das complexidades e contradições da sociedade contemporânea.
O autor destaca dois momentos essenciais: a relação com o real através do fato
histórico e o uso dos "modelos" recebidos e sua relação com a razão contemporânea. Em
resumo, o texto destaca a importância da abordagem dos historiadores em relação aos fatos
históricos e sua relação com a realidade, que não deve ser vista como uma escolha entre a lei
ou o fato, mas sim como uma relação entre os termos de uma operação e modelos existentes,
onde o "fato" é a designação de uma relação e o acontecimento é um corte relativo a uma
combinatória de séries.

II. V Crítica e história


Neste trecho, o autor discute o estatuto da história como ciência e aponta para três
aspectos que a particularizam: (1) a mudança completa do conhecimento histórico desde há
um século; (2) a posição do particular como limite do pensável e (3) a introdução do passado
como uma distância tomada.
Ele explica que o conhecimento histórico atualmente é julgado pela sua capacidade de
medir exatamente os desvios, tanto quantitativos quanto qualitativos, em relação às
construções formais presentes.
O segundo aspecto refere-se ao elemento particular que se tornou a especialidade da
história. Por fim, o terceiro aspecto refere-se à composição de um lugar que instaura no
presente a figuração ambivalente do passado e do futuro

III. Uma Escrita


III.I A inversão escriturária.
O trecho fala sobre a estranha passagem da prática para a escrita, onde a escrita impõe
uma lei contrária às regras da prática. A escrita prescreve como início aquilo que na realidade
é um ponto de chegada, seguindo uma ordem cronológica. Enquanto a pesquisa é
interminável, o texto deve ter um fim, o que o torna servil à escrita. A escrita é a imagem
invertida da prática, pois funciona como uma ficção fabricadora de enganos e segredos. A
escrita histórica tem um estatuto ambivalente de "fazer a história" e "contar histórias",
instruindo e divertindo ao mesmo tempo

III.II A cronologia, ou a lei mascarada.


Esse tópico discute a importância da temporalização na historiografia e como ela
permite a compatibilização de contrários, criando uma cena onde elementos incompatíveis
podem funcionar juntos. A temporalização também permite a colocação em perspectiva
histórica e a compreensão de posições antinômicas. No entanto, o texto aponta que a
temporalização pode prejudicar a explicação racional, uma vez que o relato preserva nas
margens a relação de uma razão com aquilo que se passa fora dela, ocultando a ausência de
uma ciência ou filosofia.

III.III A construção desdobrada


Este trecho trata da especificidade da construção da historiografia enquanto discurso
misto, que combina elementos da narração e da lógica. Enquanto a narração se organiza em
uma ordem sucessiva de eventos, podendo ter omissões e inversões para produzir efeitos de
sentido, o discurso lógico busca estabelecer relações silogísticas entre enunciados que
determinam a exposição de maneira dedutiva ou indutiva.
No caso da historiografia, há uma pretensão de produzir um conteúdo verdadeiro por
meio de uma narrativa que busca uma cronologia dos eventos. Ao mesmo tempo, a
semantização do material histórico faz com que elementos descritivos sejam organizados em
sequências históricas programadas, buscando estabelecer uma normatividade na
inteligibilidade dos fatos.Essa mistura de elementos da narração e da lógica na historiografia
pode levar a contradições e ambiguidades, mas também permite uma abordagem mais ampla e
complexa dos eventos históricos.
Certeau também discute a produção do discurso historiográfico e sua relação com a
metáfora, a referência e a autoridade. Ele afirma que a metáfora está presente em toda parte,
disfarçando a explicação histórica e substituindo a verificabilidade pela plausibilidade dos
enunciados. Por isso, a autoridade é fundamental para a credibilidade desse discurso. Além
disso, o texto argumenta que o discurso historiográfico se estabelece como saber do outro,
construído sobre uma problemática de processo, capaz de "fazer surgir" uma linguagem
referencial que aparece como realidade, e julgá-la a título de um saber. Nesse sentido, a
citação é um meio de articular o texto com sua exterioridade semântica, permitindo que ele
assuma uma parte da cultura e assegure uma credibilidade.
Ele enfatiza que o acontecimento é uma condição necessária para a organização do discurso,
mas não é a base substancial na qual se apoia uma informação.

III. IV O lugar do morto e o lugar do leitor.


O Terceiro paradoxo da história, segundo o autor Michel de Certeau, afirma que a
escrita representa uma população de mortos em suas narrativas, colocando personagens,
mentalidades ou preços como elementos que exibem o passado. Ele defende que a escrita é
como uma galeria de história que organiza uma relação entre um espaço (o museu) e um
percurso (a visita), e que a historiografia tem uma estrutura de quadros que se articulam com
uma trajetória. A escrita acumula o produto deste trabalho e exorciza a morte, colocando-a no
relato que substitui pedagogicamente algo que o leitor deve crer e fazer, criando um lugar
simbólico que articula-se com o trabalho de criar um lugar a preencher no presente. A
linguagem tem como função introduzir no dizer aquilo que não se faz mais, marcando o
passado e redistribuindo o espaço das possibilidades, determinando negativamente aquilo que
está por fazer e utilizando a narratividade para enterrar os mortos como um meio de
estabelecer um lugar para os vivos.
Resumo crítico
A operação historiográfica proposta por Michel de Certeau em seu livro "A Escrita da
História" apresenta uma abordagem crítica em relação à história como disciplina acadêmica e
seus métodos de pesquisa. O segundo capítulo se mostra mais fácil de ser lido do que o
primeiro, talvez devido a própria experiência adquirida pela leitura do primeiro.
A operação historiográfica nos ensina que um pesquisador que seja comprometido
com a pesquisa historiográfica, mas obviamente que essa operação não deve limitar-se apenas
ao campo da história, deve levar em conta o contexto social, político e cultural em que as
fontes históricas foram produzidas e também considerar a multiplicidade de perspectivas que
podem ser extraídas dessas fontes. Sua obra nos mostra a importância de se considerar os
elementos invisíveis ou ausentes da história, como as experiências individuais e cotidianas, o
chamado “não-dito”
Ler Certeau nos faz querer produzir uma história mais plural e dinâmica, que vá além
das narrativas dominantes e inclua uma variedade de perspectivas e experiências. A história
movimento, mudança ao invés de uma narrativa totalizante que busca trazer para si uma
noção de verdade.

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