Você está na página 1de 110

INTRODUÇÃO

A economia antiga se mantém no mundo acadêmico em meio a um


debate secular: a existência ou a inexistência do mercado. É uma
dificuldade, porque se o mercado está, sem dúvida, no meio de um
debate sobre a economia antiga, não está, contudo, no centro de sua
reflexão. O mercado antigo, no fundo, ou não é ou é muito pouco
objeto de estudo; é antes um sinal de manutenção de um campo, usado
de uma forma tão polêmica, que obscurece uma reflexão sobre o
conceito em si. Definido assim é necessário colocar o mercado antigo
no centro da reflexão, balizar as diversas posições e levantar novas
questões ao debate (DESCAT, 2006, p. 257).

O papel do mercado no seio do centenário debate da economia antiga ainda


continua sendo motivo de contendas e reflexões. Presente ou ausente, diferente ou
próximo do mundo moderno, o mercado é apenas um elemento do debate da economia
antiga, no entanto, sempre presente. As gerações de historiadores, antropólogos,
sociólogos tomam paradigmas e modelos de suas áreas de conhecimento com o objetivo
de explicá-lo nas mais diversas realidades. Abordá-lo em meio ao debate da economia
antiga se mostra relevante em vista desse emaranhado de opiniões que compõe um
quadro multifacetado, posto que advém de orientações diversas, mas, com certeza, ainda
instigante por suas relações com a realidade em que vivemos.
Karl Polanyi apontou o mercado como o elemento desorientador e central do
debate do oikos, mesmo que seus participantes não tivessem consciência suficiente
disso. A presença, no mundo antigo, de atividades econômicas no mercado não significa
que as atividades econômicas desenvolvidas em condições avançadas de mercado
tenham a mesma função em condições anteriores de mercado. Sem essa distinção, pode-
se cair na armadilha de se considerar surpreendentemente “moderno” fenômenos da
Antiguidade que na verdade são arcaicos e primitivos. A ausência de instrumentos
conceituais adequados para apreender os cimentos institucionais do desenvolvimento
econômico do mundo antigo foi a marca do debate do oikos e dos trabalhos de Weber
sobre a economia antiga. Polanyi e seus seguidores se propõem a desenvolver essa
tarefa.
Averiguar o papel do mercado no interior do arcabouço teórico polanyiano de
economia, e suas repercussões no debate da economia antiga, é o objeto central desse
trabalho. O mercado é apenas um elemento do “substantivismo” polanyiano, da
“economia real”, mas seu papel é central, porque liga o “moderno” ao “antigo”. No
2

arcabouço teórico polanyiano, o surgimento do mercado integrador autorregulável, no


século XIX, aparece como a instituição matriz de uma grande transformação. Ele
constrói uma genética histórica dessa transformação e aponta um marco divisor. É esse
marco divisor que se pretende questionar aqui, relativizando as características únicas do
mercado criador de preços, traço do “moderno” em contraposição aos mercados
“antigos”. Tal demarcação estava na verdade eivada de um caráter ideológico que
ocultou de forma unilateral alguns traços das atividades econômicas desenvolvidas no
mundo antigo.
É, portanto, um trabalho de historiografia, pois investiga as repercussões de uma
corrente teórica da economia antiga em momentos posteriores. O modelo polanyiano
pode ainda ser revisitado, certamente com uma atitude crítica (observando as pré-
condições políticas de sua constituição), mas também com um olhar atencioso, a fim de
se perceber seu valor heurístico como uma tentativa de munir com significado histórico
uma estória que não incorra na possibilidade de se tornar um caos absurdo.
As atividades econômicas – não somente no mundo antigo, mas em todo período
– dependem de condições sociais e culturais, e não somente de leis econômicas. Embora
alguns princípios básicos, tais como a busca por lucro próprio, ou a exploração do fraco
pelo forte, sejam fatores permanentes em atividades humanas, a tarefa do historiador
(incluindo o historiador de economia) é procurar as formas culturais específicas que
cada sociedade e cada fase tecnológica desenvolveram a fim de organizar e administrar
as relações econômicas entre interesses contrastantes.
O trabalho se divide em três grandes partes. A primeira está reservada à
apresentação da perspectiva polanyiana da grande transformação que levou a criação e
consolidação do mercado autorregulável. O caráter recente do mercado, a presença de
características do mercado moderno nas sociedades antigas e a relativização do papel do
mercado na sociedade atual são explorados por Alain Caillé e repensados por Serge
Latouche que contrasta os mercados concretos - lugares de mercado, reuniões de
mercados - ao Mercado teórico - o mecanismo Mercado da teoria econômica - sem
ignorar a impessoalidade e restrições nos mercados concretos, mas relacionando-os com
as especificidades culturais de cada sociedade. Em seguida, nas segunda e terceira
partes, o mercado local, a ágora, e o comércio na Grécia antiga; o comércio
administrado e redistribuição na Mesopotâmia são investigados à luz de modelos
recentes, que, sem descartar o modelo polanyiano, repensam-no a partir de novas e
antigas fontes.
3

Subjaz ao objetivo geral do trabalho a reflexão polanyiana sobre os diferentes


desenvolvimentos econômicos na Grécia e Mesopotâmia. Sem cair na armadilha da
hipótese de que uma tradição de pensadores teria ocultado as inovações e conquistas do
Oriente em favor da singularidade e criatividade de civilizações que deixaram um
legado à cultura ocidental, particularmente a cultura greco-romana (GOODY, 2008), é
relevante pensar sobre os argumentos polanyianos acerca da presença ou ausência de
mercado naquelas civilizações e tentar articular, por meio de novos modelos, as razões
das divergências e convergências.
4

O MERCADO: ENTRE O ANTIGO E O MODERNO

No livro A Grande Transformação, publicado em 1944, gestado entre 1941 e


1943, nos Estados Unidos, a partir das notas de cursos noturnos ministrados sobre
história econômica e relações internacionais nas pequenas cidades de Kent e Sussex, na
Inglaterra, Karl Polanyi afirmou que a sociedade do século XIX foi econômica em um
sentido diferente e distinto das anteriores, pois foi baseada no lucro. Esta sociedade
adquiriu sua maturidade na Inglaterra, na esteira da Revolução Industrial, durante a
primeira metade do século XIX, e cinquenta anos depois alcançou a América do Norte.
Posteriormente, alternativas similares modelaram o padrão de vida em todos os países
do Ocidente (POLANYI, 2000, p. 47).
A característica fundamental desta revolução foi o estabelecimento da economia
de mercado, cuja natureza só pode ser totalmente apreendida a partir do impacto das
máquinas, conjugada com os estabelecimentos fabris em uma sociedade comercial. Tal
transformação implicou em uma mudança na motivação da ação das pessoas: o lucro
suplantou a motivação pela subsistência. As transações assumiram um caráter monetário
que exigiram a introdução de um meio de intercâmbio em cada articulação da vida
industrial. Todas as rendas passaram a derivar das vendas de alguma coisa (POLANYI,
2000, p. 47).
O sistema de mercado designa um padrão institucional, o do mercado, que
funciona sem qualquer interferência externa. Os preços, resultantes das transações em
vez de as precederem, têm a liberdade de se autorregularem, não sendo mais sociais,
culturais ou políticos, mas sim econômicos. Este sistema, capaz de organizar a
totalidade da vida econômica sem qualquer ajuda é chamado de autorregulável. Daí a
perspectiva de que a sociedade liberal não apenas englobe uma economia de mercado,
mas que ela seja uma sociedade de mercado, em que a sociedade se acha imersa
(embedded) na economia de mercado e não o inverso.
Polanyi não nega a existência de mercados antes da sociedade do século XIX,
contudo tais mercados tinham um papel apenas incidental na vida econômica. Portanto,
tais economias não eram controladas pelo mercado. Somente a partir do século XVI, os
mercados passaram a ser mais numerosos e importantes, mas ainda não controlavam a
sociedade, pois não eram autônomos, mas sim acessórios de uma estrutura institucional
controlada e regulada pela autoridade social.
5

O mercantilismo é o momento de transição entre os tempos dos mercados e


aquele do Mercado. O efeito das políticas mercantilistas é apagar a divisão institucional
de comércio e mercados locais, origem de um mercado nacional. Contudo, a França só
unifica o mercado interno em 1793. É por isso que não se deve estranhar que o texto
fundador da economia política, Le Traicté, de Antoine de Montchrestien não seja uma
ciência do mercado. A representação da economia é coerente com a ideia de que o
trabalho deve ser instituído pelo príncipe. O mercado como mecanismo de alocação de
recursos escassos e preços não é um elemento essencial de sua obra, para quem a
verdadeira raridade é as honras. O sábio político deve planejar uma justa e temperada
moderação entre o muito e o muito pouco. O intervencionismo defendido por
Montchrestien anuncia o tipo de intervencionismo do estado liberal. A ideia de que o
poder é responsável pelo bem estar dos homens é a novidade da economia política. Em
relação à economia do antigo regime, Montchrestien, em seu Le Traicté, contribuiu para
a ideia de que a economia refere-se a todos os meios e instituições necessárias para o
sustento do homem e bom funcionamento dos mercados. Tal concepção de economia
implica uma noção de política como articuladora da sociabilidade natural do homem e
do princípio de soberania. A economia política, ciência do governo dos homens, permite
que o príncipe implemente as melhores formas de aumentar a riqueza do seu povo, em
proveito próprio (MAUCOURANT, 2007, p. 5-6).
O mercantilismo, portanto, por mais que tivesse insistido enfaticamente na
comercialização como política nacional, distinguia-se de uma economia de mercado
pela amplitude da intervenção estatal na indústria. Neste ponto não havia diferença entre
mercantilistas e feudalistas e entre burocratas centralizadores e particularistas
conservadores, que discordavam apenas quanto aos métodos de regulamentação: as
guildas, as cidades e as províncias apelavam para a força dos costumes e da tradição,
enquanto a nova autoridade estatal favorecia o estatuto e as leis. Todos, porém, eram
ainda igualmente avessos à ideia da comercialização do trabalho e da terra – a
precondição da economia de mercado (POLANYI, 2000, p. 91).
Após a Revolução Comercial mercantilista, há uma completa redefinição e não
um abandono das intervenções públicas, em virtude da mecanização. A introdução das
máquinas caras requer um bom funcionamento do mercado de todos os insumos,
inclusive do trabalho. Mas, para que o homem esteja pronto para se oferecer de maneira
permanente aos mercados, é necessário que o seu comportamento seja determinado por
considerações econômicas. Não é mais possível condicionar a disponibilidade de
6

trabalho a motivações sociais complexas, cuja economia seria um elemento subsidiário,


em que o ganho não fosse um fator determinante do comportamento econômico
(MAUCOURANT, 2007, p. 6).
Assim, tudo que é produzido pela indústria aparece como algo produzido para a
venda, sujeito ao mecanismo da oferta e procura, com a intermediação do preço. Na
prática, isto significa que deve haver mercado para todos os elementos da indústria,
formando mercados interligados, organizados pelo mecanismo da oferta e procura,
constituindo um Grande Mercado. O trabalho, a terra e o dinheiro, elementos essenciais
da indústria, também têm que ser organizados em mercados e formam uma parte
absolutamente vital do sistema econômico. Todavia, o trabalho, a terra e o dinheiro
obviamente não são mercadorias. O postulado de que tudo o que é comprado e vendido
tem que ser produzido para venda é enfaticamente irreal no que diz respeito ao trabalho,
à terra e ao dinheiro. Em outras palavras, de acordo com a definição empírica de uma
mercadoria, eles não são mercadorias (POLANYI, 2000, p. 93-94).
O trabalho é uma atividade humana, não é produzido para venda e não pode ser
destacado do resto da vida, pois não pode ser armazenado ou mobilizado. Antes da
emergência de uma sociedade de mercados, o trabalho extraído na forma de força de
trabalho, não necessariamente, é objeto de trocas mercantis que estruturam a produção
do conjunto da sociedade. O trabalho se integra muitas vezes em uma série de
atividades sociais estatutariamente definidas que não podem ser facilmente alienadas
por contrato. A sociedade romana, como sociedade escravista pode fazer do corpo
mesmo do homem uma mercadoria. No entanto, a economia romana, pré-capitalista,
não conheceu o funcionamento de mercados autorreguláveis. Isso certamente não
significa que os mercados não existiam naquela época, mas faziam parte do tecido de
relações sociais que não permitiam que tivessem um papel regulador. A terra, como
sinônimo de natureza, não pode ser produzida pelo homem. Por exemplo, o ambiente
natural não é objeto dos direitos de propriedade, exceto no contexto de uma ficção que
legitima os direitos de poluição de troca; em geral, exceto quando se objetiva naturalizar
um processo social, a terra não é, obviamente, uma mercadoria, porque não é pensada
como tal, como evidenciada por numerosas testemunhas antropológicas e históricas.
Finalmente, o dinheiro não é produzido, é apenas um símbolo do poder de compra e,
adquire vida por meio dos mecanismos financeiros. Nenhum deles é produzido para a
venda. A descrição do trabalho, da terra e do dinheiro como mercadorias é inteiramente
fictícia. Assim, a sociedade de mercado é baseada em uma organização cultural com
7

base em ficções específicas. Não obstante, é com a ajuda dessa ficção que são
organizados os mercados reais do trabalho, da terra e do dinheiro. Esses elementos são,
na verdade, comprados e vendidos no mercado e quaisquer medidas ou políticas que
possam inibir a formação de tais mercados ameaçam a autorregulação do sistema.
A ficção da mercadoria, portanto, oferece um princípio de organização vital em
relação à sociedade como um todo, afetando praticamente todas as suas instituições, nas
formas mais variadas. A extrema artificialidade da economia de mercado está enraizada
no fato de o próprio processo de produção ser aqui entendido sob a forma de compra e
venda. Portanto, uma tese fundamental do livro A Grande Transformação é a de que
as ficções atuam como representações criativas do mundo.
Para Polanyi, a Revolução Industrial é indissociável de uma transformação
institucional importante que visa o estabelecimento de uma rede de mercados aptos a
determinar a estrutura da sociedade. Ele demonstra que a economia de mercado que se
propaga plenamente no século XIX não pode ser entendida sem uma série de ações
políticas que contribuem largamente para instituir os comportamentos individuais
típicos dessa economia. Assim, ao mostrar a importância da política na história
econômica, Polanyi questiona as políticas neoliberais, que procuram atribuir um caráter
“espontâneo” aos mecanismos do mercado. O surgimento da sociedade liberal não é o
resultado de uma evolução espontânea e natural, mas de uma forma de decisão política e
ideológica. Mais especificamente, o mercado moderno e o estado moderno aparecem
conjuntamente, e o primeiro como um subproduto do segundo (MAUCOURANT, 2011,
p. 20-21).
Mostrar a oscilação de um imaginário social e instituições estruturadas pelo
princípio da imersão (embedded) em direção a uma autonomização (disembedded) da
economia também é o objeto do A Grande Transformação, verdadeira genética
socioeconômica, que clarifica a constituição do grande mercado e interpreta o primeiro
colapso da sociedade de mercado. Polanyi também argumenta que as sociedades
tradicionais e os grandes impérios arcaicos têm fortemente resistido a tudo o que vai em
direção a uma autonomização do econômico e do mercado, e como, simetricamente, a
emergência do Mercado autorregulável no Ocidente moderno não é fruto espontâneo de
uma evolução natural, mas o resultado de uma de ficção ideológica e de um projeto de
Estado (MAUCOURANT, 2011, p. 22).
A abordagem polanyiana sobre o mercado faz parte de um paradigma
institucionalista em economia que dá as “instituições” um significado especial. Segundo
8

Maucourant (2007, p. 4), a instituição é o que dá estabilidade aos comportamentos


individuais, condição da vida social. É, portanto, um arranjo particular das partes em
relação a toda a sociedade e se refere a fatores psicológicos, sociais e econômicos. Para
Maucourant, a instituição assim entendida está muito próxima do conceito de “fato
social total”, desenvolvida por Mauss. Nas instituições, é possível entender as
modalidades do processo de reprodução social. Nessa perspectiva, a concepção
polanyiana objetiva compreender como se institucionalizam os processos de Mercado,
posto que, o mercado, como princípio organizador da economia, não cria as condições
de regulação e não tende ao equilíbrio, pois não produz espontaneamente as instituições
que são a condição sine qua non de funcionamento dos mercados concretos. Daí a
necessidade de explicar a construção social dos mercados e sua inclusão nas relações de
poder.
A ideia de que a economia do homem, como regra, está imersa em suas relações
sociais, já fortemente difundida à época em que Polanyi escreveu o livro, por
antropólogos, sociólogos e historiadores como Mauss, Malinowsky, Thurwald e Weber,
enfatiza as motivações não econômicas nas trocas em sociedades “primitivas”. Em tais
sociedades, nem o processo de produção, nem o de distribuição estão ligados a
interesses econômicos específicos relativos à posse de bens. Cada passo desse processo
está atrelado a interesses sociais, sendo natural que estes interesses sejam muito
diferentes numa pequena comunidade de caçadores ou pescadores e numa ampla
sociedade despótica, mas tanto numa como noutra o sistema econômico é dirigido por
motivações não econômicas (POLANYI, 2000, p. 65).
Esta perspectiva institucionalista é amadurecida no livro Trade and Market,
coletânea escrita em 1957, fruto do trabalho em um programa de pesquisa
interdisciplinar, na Universidade de Columbia, da qual Polanyi foi professor visitante,
acerca da origem das instituições econômicas, intitulado “os aspectos econômicos de
crescimento institucional”.
A perspectiva institucional e histórica do grupo de Polanyi entende ser a
economia de uma sociedade as formas e as estruturas sociais de produção, distribuição e
circulação dos bens materiais que caracterizam esta sociedade em um dado momento de
sua existência. A economia é uma mescla de dois significados com raízes diferentes, os
quais Polanyi denomina de “real” e “formal” (POLANYI, 1976, p. 289). O significado
“formal” se origina do caráter lógico da relação meios-fins, se refere à escolha entre os
diferentes usos dos meios, isto é, implica em uma série de normas que regem a escolha
9

entre os usos alternativos de meios escassos. Assim, os termos escolha, insuficiência e


escassez deveriam, segundo Polanyi, ser cuidadosamente vistos em sua relação mútua.
Este conceito de economia, ao fundir a satisfação de necessidades materiais e escassez,
reduz os termos carência e necessidade a escalas utilitárias de valor dos indivíduos
isolados que operam em mercados. Portanto, a economia formal aplica-se a uma
atividade econômica de um tipo definido, isto é, o sistema de mercado, mais
especificamente os mercados criadores de preço, autorreguláveis, pois a introdução
geral do poder de compra como meio de aquisição converte o processo de satisfação de
necessidades em uma assignação de recursos escassos com usos alternativos. Disto se
depreende que tanto as condições da escolha como suas consequências são
quantificáveis em forma de preços (POLANYI, 1976, p. 27-28).
A economia “real”, concepção empírica da economia, deriva da dependência do
homem com a natureza e com seus semelhantes para conseguir seu sustento e se refere
ao intercâmbio com o meio natural e social, “na medida em que é esta atividade a que
proporciona os meios para satisfazer as necessidades materiais” (POLANYI, 1976, p.
289). A sobrevivência do homem se dá por uma interação institucionalizada entre os
homens e seu meio natural. A economia é, portanto, uma atividade institucionalizada de
interação entre o homem e seu entorno que dá lugar a um fornecimento contínuo de
meios materiais de satisfação das necessidades (POLANYI, 1976, p. 293). Não é o
processo econômico como um todo que se institucionaliza, mas sim a parte composta
por ações humanas.
As atividades sociais e as instituições são econômicas quando fazem parte das
atividades econômicas. Os elementos econômicos podem agrupar-se como ecológicos,
tecnológicos ou sociais segundo pertençam ao entorno natural, ao equipamento
mecânico ou à sociedade humana. Porém, sem as motivações sociais que determinam as
motivações dos indivíduos, não haveria nada que sustentasse a interdependência dos
movimentos e sua recorrência, necessários para a unidade e para a estabilidade da
atividade econômica (POLANYI, 1976, p. 294-295). Para adquirir a coerência de uma
economia real, o processo de interação deve ser institucionalizado. É a combinação de
elementos humanos e naturais, a interdependência da tecnologia e as instituições, assim
como sua independência relativa, que são compreendidas pela atividade econômica
institucionalizada. Portanto, a economia humana encontra-se integrada e submergida em
instituições econômicas e não econômicas. Weber já havia percebido isto e este é o
grande traço que o liga a perspectiva institucionalista desses dois autores, apesar dos
10

traços “formalistas” da teoria weberiana. Com efeito, a religião ou o governo podem ser
tão importantes quanto às instituições monetárias para a estrutura econômica. O estudo
do lugar cambiante que ocupa a economia na sociedade é a análise de como está
institucionalizada a atividade econômica em diferentes épocas e lugares e deve começar
pela forma como a economia adquire unidade e estabilidade, isto é, pela
interdependência e a regularidade de suas partes. Tal unidade é resultado de formas de
integração, que se manifestam em diferentes níveis e em distintos setores,
impossibilitando-nos selecionar uma delas como dominante para classificar os
diferentes tipos de economias. Contudo, tais formas de integração constituem um
instrumento para descrever a atividade econômica em termos comparativamente
simples, permitindo-nos ordenar as infindáveis variações dessas formas (POLANYI,
1976, p. 296).
As principais formas de integração são a reciprocidade, a redistribuição e o
intercâmbio, segundo a observação empírica. Além dessas três formas de integração,
Polanyi também analisou a household (oikos) no livro A Grande Transformação,
porém a excluiu de Trade and Market, pois a household abrangia um grupo menor,
caracterizado pela ausência das relações intergrupais. Polanyi ampliou estes conceitos
para além das formações primitivas.
A reciprocidade supõe movimentos entre pontos correlativos de agrupações
simétricas; a redistribuição consiste em movimentos de apropriação em direção a um
centro primeiro e, posteriormente, desse centro para fora outra vez. Por intercâmbio,
entendemos movimentos recíprocos como os que realizam os “sujeitos” em um sistema
de mercado. Polanyi ressalta que os meros agregados das condutas individuais não
bastam para produzir as estruturas. A conduta de reciprocidade entre os indivíduos só
integra a economia se já existirem estruturas organizadas simetricamente, como os
sistemas simétricos de grupos unidos pelo parentesco. Do mesmo modo, a redistribuição
pressupõe um centro para onde se dirigem os recursos da comunidade. Finalmente, os
atos de troca no plano individual só produzem preços se estiverem enquadrados em um
sistema de mercados criadores de preços, uma estrutura que não sugere, de forma
alguma, atos de troca efetuados ao acaso (POLANYI, 1976, p. 296-297). Polanyi
enfatiza que as formas de integração não representam etapas de desenvolvimento, já que
elas não implicam nenhuma ordem de sucessão no tempo. Junto com a forma
dominante, poderiam aparecer várias formas subordinadas, podendo a forma dominante
sofrer eclipses e reaparições (POLANYI, 1976, p. 301).
11

Polanyi tratou as ações de comportamento de acordo com os princípios de


reciprocidade e redistribuição e reconheceu que essas formas de comportamento
estavam ligadas à existência de estruturas sociais determinadas – um exemplo
característico de explicação funcional. Segundo MihálySárkány (1990, p. 184-186), o
conceito de economia como um processo institucionalizado está ligado às tendências da
Escola Institucionalista Americana e abordagens da Escola Histórica de Teoria
Econômica. Seus paralelos também podem ser achados na análise institucional da
Antropologia social britânica, na qual o aspecto de integração social teve um papel
central. M. Godelier, na apresentação de Comercio y mercado em los impérios antigos
(Trade and Market), afirma de forma crítica que as formas de integração são conceitos
descritivos de aspectos comuns e formais de certas relações sociais. Por esse motivo,
Polanyi, segundo Godelier, não tentou explicar as razões da presença no seio de
determinada sociedade, dessa ou daquela estrutura social, nem tratou de descobrir que
razões fazem com que o processo de produção de meios materiais se encontre “imerso”
em determinada sociedade. Polanyi se limitou a investigar o efeito concreto dessa
“imbricação” sobre o mecanismo econômico. Godelier argumenta que a questão
premente é interpretar a dominação ou a subordinação das formas de integração, e,
portanto, “a presença de uma hierarquia específica dessas formas como a consequência
de uma etapa alcançada pela evolução das formas de organização econômica e social da
humanidade” (POLANYI, 1976, p. 29).
O mercado, do ponto de vista da economia formal, é o lugar onde se efetua a
troca, pois estes dois elementos são inseparáveis. A vida econômica se reduz a atos de
troca realizados por meio do regateio no mercado. Assim, a troca é a relação econômica
e o mercado é a instituição econômica. A definição do mercado deriva logicamente
dessas premissas. Na realidade, contudo, mercado e troca têm características empíricas
independentes. A troca é, em essência, um movimento mútuo de apropriação de
produtos entre sujeitos, sujeita a equivalências fixas ou negociadas. Só esse último caso
é resultado do regateio entre as partes e está limitado especificamente a uma
determinada instituição, aos mercados criadores de preços - autorreguláveis
(POLANYI, 1976, p. 311).
Os mercados são enfocados por Polanyi por meio dos “elementos de mercado”
em virtude da diversidade de configurações agrupadas sob a denominação de mercados
e instituições de mercado. Existem dois elementos de mercado que devem ser
considerados como específicos: as multidões de ofertantes e as de demandantes. Se os
12

dois estão presentes falaremos de mercado. Segue-os em importância o elemento de


equivalência, quer dizer, a taxa da troca; segundo o caráter dessa equivalência, os
mercados podem ser classificados em mercados a preços fixos e mercados criadores de
preços. Finalmente, existem elementos que podemos chamar funcionais. Em geral, estão
à margem dos mercados e das instituições de mercado, porém se aparecem juntos com
as multidões de ofertantes ou demandantes podem modelar aquelas instituições de uma
forma que pode ter grande importância prática. Entre esses elementos funcionais,
podemos citar a situação geográfica, os produtos trocados, os costumes e as leis. Essa
diversidade de mercados e instituições de mercado ficou obscurecida em época recente
em nome do conceito formal de um mecanismo de oferta-demanda-preço (POLANYI,
1976, p. 312-313).
Quanto ao elemento de mercado chamado de “preço”, fica compreendido aqui
na categoria das equivalências. A palavra preço sugere flutuações, coisa que não ocorre
com equivalência, mas o “preço” é originariamente uma quantidade rigidamente fixada,
sem o qual não pode realizar-se o comércio. Os preços mutantes ou flutuantes de caráter
competitivo são de surgimento relativamente recente, e seu surgimento é um dos temas
de estudo da história econômica da Antiguidade. Tem-se suposto tradicionalmente que a
ordem era inversa: se considerava o preço como o resultado do comércio e da troca e
não como sua condição. O “preço” é a definição de relações quantitativas entre produtos
de diferentes tipos, alcançado através do escambo ou do regateio. É a forma de
equivalência característica das economias integradas através da troca, porém as
equivalências não estão de modo algum restringidas a relações da troca, senão que
também são correntes sob uma forma de integração redistributiva. Designam relações
quantitativas entre bens de diferentes tipos que são aceitáveis como pagamento de
impostos, rendas, direitos ou multas ou que denotam qualificações para um status cívico
dependente de um censo de propriedade. Também podem estabelecer a relação a que se
pode escolher a forma de pagamento dos salários ou as rações em espécie. A
equivalência denota aqui não o que tem de dar-se por outro bem, senão o que pode
exigir-se em vez desse bem. Em formas de integração regidas pela reciprocidade, as
equivalências definem a quantidade “adequada” em relação ao grupo situado
simetricamente. Evidentemente, este contexto de conduta é diferente do sistema de
redistribuição ou de troca (POLANYI, 1976, p. 314).
Em 1977, Harry Pearson editou uma série de escritos dispersos de Polanyi, nos
quais este aprofundava muitas das questões teóricas de Trade and Market e tecia uma
13

série de reflexões sobre a Grécia antiga. Este livro foi intitulado The Livelihood of
Man. Polanyi defende a sua abordagem institucional mais uma vez contrapondo-a a
abordagens teleológicas que enunciam a economia de mercado, originária do comércio
local de alimentos ou comércio de mercado, como objetivo natural de alguns três mil
anos de desenvolvimento ocidental. No sentido institucional, o encontro de multidões de
ofertantes e demandantes, conduz a troca a equivalências fixas, e não forma um
mercado autorregulável - criador de preços. Mas, por outro lado, sempre que os
elementos de mercado se combinam para formar um mecanismo de oferta–demanda–
preço, nós falamos de mercados criadores de preço. A instituição de mercado tem sua
origem em dois desenvolvimentos diferentes: um externo à comunidade e o outro
interno. O externo está intimamente ligado à aquisição de mercadorias de fora, o interno
com a distribuição local de alimentos. Esse último tomou duas formas diferentes: a
primeira, relacionada com os impérios irrigacionais, se centrava no estoque e
distribuição de gêneros alimentícios de primeira necessidade; a segunda, encontrada
desde épocas mais primitivas em comunidades camponesas, assentava-se na venda local
de alimentos frescos e comida preparada. Esses diferentes elementos constitutivos
contribuíram das mais diferentes formas para a instituição do mercado.
Em seguida, Polanyi apresenta os tipos de mercados locais, comparando o tipo
de mercado que ele denomina de ágora com os tipos portões e bazar. O tipo ágora de
mercado local foi primeiramente um local alimentício para a população, no qual o
varejista de alimento vendia leite fresco e ovos, legumes frescos, peixe, e carne na
Grécia antiga. Em princípio, este tipo não incluía mercadorias de grande distância e em
geral, os artigos mantidos para a venda eram produtos da vizinhança e fornecidos por
mulheres que os carregavam para o mercado em suas cabeças. O freguês que procurava
por sua comida no mercado era o trabalhador pobre ou transeunte que não tinha
household próprio. Nem o comerciante chegante nem o residente próspero
frequentavam o mercado local primitivo, que servia as necessidades das pessoas comuns
(POLANYI, 1977, 123-125).
Fora da Ática, especialmente nas regiões falantes de grego da Ásia Menor, os
principais promotores de mercados foram os exércitos gregos, notavelmente as tropas
mercenárias, que estavam sendo cada vez mais utilizadas na guerra. Por volta do final
do século V, após a guerra do Peloponeso, o exército hoplita, tradicionalmente equipado
com armamentos e com um saco de alimento de cevada, estava transformando-se em
uma força expedicionária, sendo a maioria dos guerreiros recrutada entre mercenários.
14

O emprego de uma tal força levantava novos problemas logísticos. O impacto


econômico do exército grego pode ser analisado de dois ângulos separados: a disposição
do butim capturado pelo exército e o provisionamento do exército. O primeiro
contribuiu grandemente para o desenvolvimento de uma multidão de demandantes; o
outro para uma multidão de ofertantes. As técnicas de suprimento do exército oferecem
surpreendente evidência da proliferação de mercados em toda a Grécia, Sicília, e Ásia
Menor no final do quinto e quarto séculos.
O outro desenvolvimento liga o mercado com os métodos de distribuição de
alimentos praticados nos impérios redistributivos. Polanyi se refere aos métodos de
armazenamento com redistribuição praticados na Suméria antiga e nas culturas
mesopotâmias. Nesses impérios irrigacionais da antiguidade, o armazenamento de
grãos de larga escala pelo governo central contribuiu para um elaborado sistema de
estocagem dentro dos portões, isto é, templo, palácio, ou mesmo cidade. A necessidade
de estocagem foi causada por medo da fome bem como por pressão das exigências de
comida, para soldados ou para partes dos trabalhadores recrutados pelo palácio ou
templo para tratar da água corrente, da irrigação ou da drenagem. Os portões consistem
de torres altas para proteção com porões maciços para simples estocagem, com um
espaço aberto em frente dos portões externos para encontros cerimoniais e sessões da
corte. Nos portões, os poucos gêneros alimentícios de primeira necessidade principais
são tanto recebidos quanto distribuídos ou trocados por prata ou em espécie, tal como
um gur de grãos ou óleo na Babilônia. Simples equivalências quantitativas para grão,
óleo, vinho, e lã, permitiam que os gêneros alimentícios de primeira necessidade fossem
substituídos por um ao outro. Estão presentes os pagamentos de taxa e aluguel, de um
lado, e rações para trabalhadores e soldados, do outro. Embora haja distribuição de
alimento, não se pode considerar tal prática um mercado de alimentos, visto que não há
“encontro de multidões de ofertantes e demandantes”. No bazar há um tal encontro.
Porém não era um mercado de alimento, mas de artigos manufaturados, os produtos dos
artífices. Também era diferente de qualquer mercado moderno, visto que não havia
outro preço por qualquer tipo de objeto, e a competição era excluída por sua própria
organização. A venda acontecia na loja, o chefe da família do artífice agindo como um
agente. Os artífices eram, em geral, estrangeiros – ou transplantados como parte de um
povo conquistado. Fisicamente, o bazar era um local coberto. Desde o começo, porém,
o ponto essencial é que o bazar carecia de um elemento distintivo do mercado – um
preço – se aquele preço ou aquela equivalência é fornecido por lei, costume e autoridade
15

ou por fornecedores e fregueses interagindo coletivamente, como no mercado criador de


preço de épocas modernas.
Finalmente Polanyi questiona como o sistema de oferta-demanda-preço, com
preços flutuantes que controlam a oferta, senão a própria produção, se originou. E
quando e como o comércio – uma instituição milenar de grande escopo e poder,
(POLANYI, 1977, p.136) que tinha se desenvolvido inteiramente sobre fundações
administrativas, de dom e contra-dom e expedições – associou-se com este mercado?
Para Polanyi, o historiador de história antiga deve procurar as origens do mecanismo de
oferta–demanda–preço, seguindo os rastros do comércio, pois os traços dos mecanismos
de mercado do passado nos eludem (escapam). A presença ou ausência de um mercado
para uma mercadoria definida é difícil de verificar. Mas para o comércio, pessoal,
mercadorias, rotas e veículos são visíveis. Em qualquer lugar, é possível encontrar o
curso e fluxo de comércio, o que nos ajuda a descobrir as mercadorias utilizadas. É
preciso investigar como o comércio, organizado em um modo inteiramente diferente
antes, pode ter sido massivamente reorganizado sob a forma de mercado autorregulável.
Novamente nós devemos evitar a tentação teleológica, que pode, em retrospecto,
facilmente ser esmagadora, e colocaria de lado a maioria da questão. Assumir uma
afinidade natural entre o mecanismo mercantil e o comércio é uma simplificação
puramente arbitrária, que ignora a complexidade de ambos. A conjunção do mecanismo
de mercado e comércio é, portanto, produto de um desenvolvimento específico, que
deve ser deduzido de condições históricas e institucionais, verificáveis somente por
meio da pesquisa factual. A emergência do comércio de mercado, embora seja
historicamente um evento mais recente do que a emergência de mercados locais de
alimento, é igualmente obscura. Deve ter ocorrido de forma gradual em uma região,
com alguns tipos de mercadorias, afetando um ou outro componente do comércio.
Portanto, esta emergência é resultado de um quadro de desenvolvimento altamente
diversificado. (POLANYI, 1977, p. 136-137).
Esses três textos nos dão uma ideia clara da visão polanyiana sobre o mercado,
que se encontra envolvida na reflexão mais geral sobre a economia formal e real. A
perspectiva historiográfica e comparatista de Polanyi mostra que um tipo de mercado, o
autorregulável ou criador de preços, é recente e artificial. Polanyi se volta para as
civilizações pré-capitalistas para demonstrar que não é possível encontrar esse tipo de
mercado fora do capitalismo. A imemorialidade e os tipos de mercado são tratados por
Alain Caillé (1998) e Serge Latouche (1998), que aprofundam a perspectiva polanyiana
16

de forma crítica no livro La Modernité de Karl Polanyi, coletânea de artigos


publicada em 1998, sob a direção de Jean Michel Servet, Jerôme Maucourant e André
Tiran, conhecedores profundos da obra de Polanyi.
Alain Caillé, ao se perguntar sobre a origem do mercado, aborda os argumentos
e os pontos de vista da longevidade do mercado e os argumentos que defendem a
origem recente do mesmo. Se a sua data de nascimento é antiga, então é permitido
emprestar para o mercado uma forte dose de naturalidade e universalidade, propício a
paz e prosperidade, ligado à exigência democrática. Mas, se ao contrário é recente, isto
implica que, na sua essência, o mercado seria artificial, ligado apenas a certos tipos de
relações sociais e não a outras e, de fato, fracamente universalizável, exceto pela
violência. E mais, se ele é tão lento a se impor na história, é porque ele é o portador de
uma lógica profundamente desumana e antissocial, que é inseparável do capitalismo, da
exploração e da artificialidade própria aos especuladores (CAILLÉ, 1998, p. 131).
Segundo Caillé, aqueles que defendem que o mercado é recente, afirmam que,
nas sociedades selvagens, os bens que circulam não são comprados ou vendidos, ou
mesmo intercambiados ou trocados. Na verdade, os seus movimentos eram regidos pela
lógica da tripla obrigação de dar, receber e devolver, bem estudado por Mauss, e
Malinowsky. No seio de tal lógica, o objetivo de todos os membros dessas sociedades é
uma competição para ser o mais generoso e grandioso possível. Além disso, os bens
essenciais postos em circulação não se revestem de um caráter utilitário, mas suntuário
ou prestigioso. Os objetos contáveis, evidenciados por toda a parte, que por ventura
venham a anunciar a moeda moderna sem sê-la, não permitem comprar qualquer coisa,
mas só pagar as dívidas da vida e da morte. Os grandes ciclos de trocas suntuárias
narrados pela etnologia, potlatch, Kula, tee, moka, não têm a dimensão comercial. O
moka, por exemplo, só é desenvolvido nas margens externas das comunidades, nas
relações com aqueles que são radicalmente exteriores à comunidade, os estrangeiros
absolutos (CAILLÉ, 1998, p. 132-133 ).
Isto não significa que o comércio de longa distância não existia desde tempos
imemoriais. Pelo contrário, desde a pré-história certos bens circulam a milhares de
quilômetros de seus lugares de origem. Caillé afirma que o mérito de Karl Polanyi e de
seus discípulos “substantivistas” é ter questionado a modalidade econômica e
sociológica desse comércio de longa distância e ter colocado em dúvida a tese de que se
há comércio e comerciantes, então esse comércio deve ser organizado de acordo com a
lógica de mercado. Porque não há nenhum relato, segundo K. Polanyi, entre o comércio
17

e o mercado da teoria econômica, ou entre esse mercado da teoria econômica e os


mercados de aldeia ou bairros (lugares de mercado). O fato de ir ao mercado (lugar de
mercado) não implica que se esteja em conformidade com as leis do mercado moderno.
Mais geralmente, no quadro daquilo a que poderíamos chamar os mercados tradicionais,
os preços são anteriores à troca e não são facilmente afetados pelo volume da oferta e da
procura. São preços sociais, estabelecidos pelo costume. Em suma, até há pouco tempo
o mercado estava imerso no conjunto das relações sociais (CAILLÉ, 1998, p. 133-134).
Caillé, entretanto, ressalta que mesmo no seio das economias que são claramente
dependentes do mercado, e onde os preços variam continuamente em função das
quantidades produzidas e demandadas, é possível afirmar que os mercados estão longe
de ser tão sensíveis à oferta e à procura e também exclusivamente são dependentes da
lógica de impessoalidade e da associabilidade absoluta que postula à teoria econômica.
Na França, há apenas 20 anos atrás, as flutuações do preço do peixe eram ainda
fortemente temperadas pela preocupação de estabilizar, a longo prazo, as relações entre
o patrão da pesca e sua tripulação por um lado, e entre o mesmo patrão e os grossistas,
por outro. As negociações com o GATT (General AgreementonTariffsand Trade,
significado em português: Acordo Geral de Tarifas e Comércio, referente a uma série de
acordos de comércio internacional destinados a promover a redução de obstáculos às
trocas entre as nações, em particular as tarifas e taxas aduaneiras entre os membros
signatários do acordo), têm mostrado que os preços agrícolas estão fora dos preços de
mercado. Esses exemplos nos levam a perguntar se, em última instância, e ainda hoje,
os preços dos bens não refletem o valor socialmente reconhecido daqueles que os
produzem, indivíduos, grupos, classes ou nações sociais, mais do que grandezas
estritamente físicas e econômicas. Por último, deve ser relativizado o alcance do
mercado nas sociedades atuais. É sabido que, mesmo nas economias mais capitalistas, a
maior parte da vida econômica concreta está menos sujeita às exigências propriamente
mercantis que aos padrões estatais e administrativos. A maior parte da existência social
não se realiza no mercado ou na esfera político-administrativa, mas no campo das
relações de pessoa para pessoa (dentro da “sociabilidade primária”). No entanto, essa
sociabilidade primária não está voltada para as mercadorias e o dinheiro, nem para a Lei
ou regulamentos, mas sim em torno da dádiva e dívida. E de acordo com determinados
pressupostos, as atividades reguladas pela tripla obrigação de dar, receber e restituir,
ainda hoje, têm mais espaço do que aquelas que contribuem para o Produto Interno
Bruto (CAILLÉ, 1998, p. 135).
18

A esses argumentos em favor da tese da singularidade histórica do mercado,


Caillé opõe uma série simétrica de contra-argumentos, também convincentes. O mais
importante é sem dúvida aquele de que nenhum povo, nenhuma cultura, ignorou a
possibilidade e a realidade de troca interessada. Nos interstícios do Kula, a troca nobre e
cerimonial dos trobriandeses, se realiza a troca utilitária, o Gimwali. Do mesmo modo, a
troca não é ignorada, nos diz Marcel Mauss, pelos Kwakiutl, realizadores do plotach.
Poderá discutir-se se esses intercâmbios abertamente interessados se desenvolvem na
forma de troca, assemelhando-se, assim a uma troca mercantil sem moeda. A resposta
provavelmente seria negativa. Mas não há dúvida de que o conjunto das culturas que
valorizam fortemente o dom, a prodigalidade e o altruísmo, não o faz por ignorância do
utilitário, do cálculo e do interesse, mas, pelo contrário, devido ao perigo do caos que
pode causar este espírito de ganância calculado que elas assimilam à guerra. Portanto,
tais culturas consideram altamente desejável afastar qualquer possibilidade de que a
troca interessada e utilitária gangrene o corpo social subordinando hierarquicamente o
utilitário ao não utilitário e o interesse ao dom (CAILLÉ, 1998, p.137).
Caillé retoma Polanyi questionando-o acerca das possíveis datas de nascimento
do mercado autorregulável. Entre A Grande Transformação (1944) e Trade and
Market (1975), são oferecidas ao leitor três datas distintas de nascimento do mercado
autorregulável: o período helenista no século III a. C., o fim da Idade Média e 1834,
data da abolição da lei dos pobres adotada em 1795, em Speenhamland, na Inglaterra.
Essas datas não são necessariamente incompatíveis ou contraditórias, mas é necessário
precisar melhor sua articulação. Além disso, em seu livro póstumo, The Livelihood of
Man, K. Polanyi também afirma que o mercado autorregulável já estaria constituído em
Atenas, ou pelo menos, no seio do exército, no século V a.C. Para além de tais
contradições, Caillé vai mais longe no tempo e retorna ao início do século VII a. C.,
quando na China, questionado pelo duque Hungsobre sobre a possibilidade de tributar o
preço, Kuan-Chong (730-645 a.c.), o primeiro-ministro do estado de Qui descreve com
precisão o mecanismo de oferta e demanda dizendo-lhe que tal medida não servia para
nada, pois os preços devem avançar com os movimentos da oferta e da demanda. E
quando o duque insiste e lhe pergunta se não seria razoável ter um preço fixo que seria
revisto periodicamente, o primeiro ministro respondeu negativamente porque tal medida
tornaria o movimento de preços menos fluido, iria congelar a produção e dificultar a
atividade econômica. É surpreendente que o primeiro “teórico do liberalismo” tenha
vindo de uma sociedade onde o mercado não existia (CAILLÉ, 1998, p. 137-139).
19

Mesmo se é totalmente justificada a crítica sociológica da irrealidade das teorias


econômicas, mesmo se o mercado não é apenas o mundo de relações impessoais entre
indivíduos anônimos, sem família, sem cultura e sem história, descritos nos manuais de
análise econômica, não é menos verdade que há uma lógica da produção e do consumo
de coisas que excede irremediavelmente aquela da reprodução dos status sociais.
Pretender renunciar ao uso da própria noção de mercado, sob o pretexto de que as
descrições dos economistas não são suficientemente realistas não resolveria nosso
problema. Mais frutífero seria tentar esclarecer, em cada caso, como se articulam a
ordem das mercadorias, com base na equivalência, a ordem da lei, com base na
igualdade, e a ordem do dom, baseada na paridade (CAILLÉ, 1998, p. 139).
É particularmente difícil de arbitrar entre estes dois blocos de teses - menos
homogêneos, e entre os quais é possível imaginar ou constatar múltiplas inversões de
aliança. O próprio Marcel Mauss (1968), no seu famoso Essai sur le don, demonstrou,
por um lado, como nas sociedades selvagens e arcaicas, os intercâmbios econômicos
não se efetuavam na forma de regateio e de compra e venda, mas sob os dons,
obrigatoriamente dados, feitos e restituídos. Porém também escreveu que por detrás
destas doações o interesse pessoal está sempre presente e que o mercado é uma
instituição que não é estrangeira a nenhuma sociedade humana. Contradição de Marcel
Mauss? Mais provável, segundo Caillé, parece ser a hipótese de que a realidade é
contraditória ou, mais precisamente, constantemente sacudida entre as exigências
antiéticas. Se o mercado existe em todas as sociedades humanas, ele apenas se atualiza
em algumas e com uma intensidade e de acordo com as modalidades infinitamente
variáveis (CAILLÉ, 1998, p. 132).
Entre esses dois blocos de argumentos, a conclusão que parece se impor é de que
a extrema diversidade e variabilidade geográfica e histórica, pelo menos até o processo
de homogeneização planetário que está atualmente em curso sob forma da
ocidentalização do mundo - e, portanto, a sua mercantilização, - é fundamental para
entendermos desenvolvimentos diversos no tempo e espaço do mercado. Alguns pontos
do planeta, provavelmente aqueles que estavam acessíveis aos meios de transporte
aquáticos, marítimo ou por via navegável, conheceram ou têm conhecido, em graus
diversos, de uma forma ou de outra, o mercado autorregulável, enquanto outros pontos
ignoram-no até muito recentemente. Uma parte considerável do planeta tinha até há
pouco tempo um conhecimento muito parcial e indireto de todo o planeta. Esta
diversidade geográfica é acompanhada de igual variabilidade histórica que vê o
20

mercado às vezes aparecerem e às vezes desaparecem. Por exemplo, o mercado aparece


maciçamente presente no império romano do século II. Ele se dissolve, pouco a pouco,
e depois mais e mais, nos séculos que seguem, até quase desaparecer.
Concomitantemente, as sociedades selvagens e arcaicas não ignoravam o mercado, tanto
que eles o combatiam. Tais sociedades constituíam corporações contra o mercado como
bem mostrou Pierre Clastres (CAILLÉ, 1998, p.140-141), as chamadas “sociedades
contra o Estado”. Esta luta contra o surgimento e o fortalecimento do mercado é
atestada em todos os períodos da história, frequentemente com sucesso. No final da
Idade Média europeia, não é o grande comércio internacional de luxo o nascedouro do
mercado moderno, mas sim a aliança dos estados nacionais em gestação, ansiosos de
pagar aos mercenários, com os banqueiros e com uma burguesia emergente. As nações-
estado e o mercado moderno são co-extensivos.
O principal erro dos economistas liberais é a concepção do mercado como uma
coisa, que poderia decidir impor sua vontade, sem se preocupar com a forma em que ela
contribui para a unidade, ou, ao contrário, para a ruptura das sociedades em causa. Por
conseguinte, é oportuno rever a formulação sobre o papel do mercado nas pequenas e
grandes democracias. Se o mercado dissolve as pequenas sociedades - as sociedades
fechadas - é porque ele expressa sua contingência e suas limitações particularistas,
fazendo valer o ponto de vista do outro, aquele do estrangeiro que não tem lugar, ou
quase, e abre a possibilidade de expressão e manifestação àqueles que se acharam mais
dominados ou os menos beneficiários da antiga ordem de coisas. Mas há longo prazo, é
evidente que a extensão do reinado das mercadorias é concomitante com a concessão do
direito da cidade e cidadania a um número crescente de indivíduos previamente tidos
sob tutela. O significado dessa evolução a longo termo continua incerto, pois a
generalização por si só desejável do direito de cidadania se paga muitas vezes ao preço
da destruição da comunidade e da solidariedade da existência social. Se as sociedades
humanas têm também resistido por muito tempo à penetração do mercado, é porque ele
modifica a prática do intercâmbio interno da comunidade, baseada no dom e contra-dom
e no altruísmo, abrindo a comunidade aos estrangeiros e a novas formas de intercâmbio,
gerando obviamente incertezas.
Três conclusões para se pensar o mercado na atualidade: 1. É errado e perigoso
limitar o debate ao Estado ou ao mercado na gestão da economia e na organização da
existência social, posto que há três ordens fundamentais da realidade social moderna: o
estado, o mercado e a existência de sujeitos sociais que se originam na esfera da
21

sociabilidade primária e das relações de pessoa à pessoa. Portanto, nem o mercado nem
o Estado podem ser considerados como fins em si. O desenvolvimento das inter-
relações humanas e da vida associativa, tudo o que contribui para a manifestação da
pluralidade humana, pode, ao contrário, ser considerado como as verdadeiras metas que
devem ser atribuídas à ação política; 2. Nesse contexto, não se deve tentar restringir o
mercado a partir do interior, tributando o preço ou multiplicando as limitações
administrativas. Melhor seria tentar avaliar sua aderência sobre a vida de todos os
indivíduos; 3. Torna-se urgente a necessidade de reconhecer que, se as democracias
selvagens e arcaicas foram condenadas por suas estreitezas e pelo seu particularismo,
por outro lado, as grandes democracias modernas seguem para a futilidade e o declínio
irreversível se não souberem refazer o lugar em seu seio às exigências atualizadas da
pequena democracia, pois as grandes sociedades são uma miríade de pequenas
sociedades (CAILLÉ, 1998, p.145).
Caillé avança em sua reflexão sobre o papel dos mercados no mundo pré-
capitalista e capitalista ou pré-moderno e moderno. Contudo, parece conviver com o
mesmo equívoco de Polanyi ao considerar a definição de mercado àquela dos mercados
modernos ou autorreguláveis. Polanyi objetivou desmascarar a perspectiva formalista
acerca do mercado, mas ao tentar mostrar que este mercado formalista não estava
presente no mundo pré-capitalista, toma o mercado autorregulável ou criador de preços
como a mais forte referência sobre o mercado, tendo dificuldade em perceber elementos
“constituintes” do mercado criador de preços em outras realidades históricas, ou a
possibilidade de formações pré-capitalistas mercantis que escapavam de seu modelo,
pautado nas formas de integração, reciprocidade e redistribuição, como predominantes
em tais sociedades. Sua definição de mercado nasce do mercado moderno e apresenta
contundentes argumentos para mostrar como esse se impõe a partir de uma perspectiva
histórica e antropológica. Caillé consegue relativizar, no tempo e no espaço, a
perspectiva polanyiana, argumentando em favor de experiências de mercado
autorregulável no passado e o papel limitado do mercado autorregulável no mundo
capitalista, defendendo outras formas de sociabilidade tão fundamentais quanto àquelas
desenvolvidas no interior dos mercados e dos Estados. Este é o seu grande mérito. A
dicotomia moderno/tradicional traduzida pela distinção entre as sociedades mercantis
pré-modernas, que experimentaram relações de mercado, sem ser capitalista, e a
sociedade de mercado moderna; ou entre o mercado moderno e as trocas de
22

comerciantes pré-modernos não é suficiente para entendermos todas as nuances do


mercado no tempo e espaço.
Para Serge Latouche, o uso da palavra mercado, para designar trocas concretas
limitadas em um determinado lugar e um modo abstrato de circulação centralizada de
tudo o que é suscetível de ser desejado, é fonte de confusão por aqueles que defendem o
imperialismo da economia. Assume-se implicitamente que qualquer troca é um
mercado, se atribui mais ou menos a todo mercado as virtudes do grande Mercado da
teoria econômica. Essa extensão abusiva tem a tendência à generalização universal
inerente à relação mercantil. Daí a proposta de distinguir o mercado (ou os mercados
com um “m” minúsculo) do Mercado com um “M” maiúsculo. Contrastar em outros
termos os mercados concretos, lugares de mercado, reuniões de mercados ao Mercado
teórico, ao mecanismo Mercado da teoria econômica, a que Caillé chama “a verdadeira
economia de mercado”. Esta distinção não é, necessariamente, baseada no fato de que
os mercados concretos ignoram a impessoalidade, estejam sujeitos a restrições (nem a
terra, nem ao trabalho), seus preços sejam tributados (mesmo se muitas vezes isso venha
a acontecer), nem mesmo sobre as limitações geográficas (LATOUCHE, 1998, p. 149).
O paradigma econômico do Mercado é conscientemente ou muito das vezes
inconscientemente apresentado aos historiadores, antropólogos, sociólogos como o tipo
ideal das realidades que eles encontraram e analisaram. O modelo do Mercado como um
protótipo de um mecanismo de interação foi imposto para se traduzir a troca social. Isto
ocorre mesmo quando os autores rejeitam todo tipo de evolucionismo e economicismo.
O uso de metáforas econômicas ou mesmo a integração de mecanismos econômicos
podem ser frutíferos, mas não se pode aceitar quando Braudel, por exemplo, diz que o
mercado é natural e ahistórico. Ou quando Marcel Mauss, como já dito acima, afirma
que o mercado é um fenômeno humano que não é alheio a nenhuma sociedade
conhecida, mesmo com o acréscimo de que o regime do comércio é diferente da nossa
realidade, Mauss vê o mercado antes da instituição de comerciantes e antes de sua
invenção principal, a moeda em si. Isso reflete não apenas o “imperialismo do
econômico” sobre as ciências sociais, mas também a colonização do nosso imaginário
pelo ambiente economicista (LATOUCHE, 1998, p. 149).
O Mercado, este mercado com um grande “M”, supõe que todos os homens
realizam cálculos sistemáticos de interesse. Por outro lado, se os homens obedecem à
lógica utilitarista, necessariamente deve haver Mercado. Cada indivíduo deve estar
pronto para negociar tudo o que ele possui (incluindo o seu próprio corpo e
23

sentimentos) e tudo o que ele quer. A interconexão dos agentes calculistas fez do
Mercado não apenas um lugar central onde os preços são criados, mas um não lugar
(uma utopia) onipresente. No caso dos mercados fictícios, não sabemos o que afixou os
preços discutidos, nem como se fez a centralização. Ele é tudo e não está em nenhuma
parte. No entanto, não está menos presente no horizonte das práticas e do trabalho real.
Neste sentido, o mercado é composto de distintos centros econômicos, interligados por
redes de comércio, presos a redes de força. Os centros são de produção, de ofertas, de
fatores e consumo. O mercado também é definido como um lugar abstrato onde se
encontra tudo o que pode se vender e tudo o que se pode comprar. Um mercado pode
ser localizado geograficamente, mas é na sua essência um espaço econômico definido
por um bem ou serviço, por todas as demandas e ofertas que concernem este bem: o
mercado é o centro das relações monetárias e dos cálculos em moeda que interessam a
este bem. O preço exprime, em termos monetários, a utilidade e a raridade dos diversos
bens e de serviços sobre os mercados. Os preços dos bens e serviços constituem em uma
economia um sistema relacionado e coerente. De fato, os mercados se comunicam e são
solidários e em diferentes graus (LATOUCHE, 1998, p. 149).
Que os preços refletem às alegações da teoria é questionável, mas que a vida
social das sociedades modernas é dominada por um conjunto de mercados
interconectados e interdependentes é inegável. Certamente, não há mercado (pelo menos
não ainda) para tudo, mas a ideia daqueles que defendem o imperialismo do econômico
sobre o social é de que as áreas não atingidas pelos mercados devem entrar em conexão
com os mercados reais para formar o Mercado. A sociedade de Mercado existe, mesmo
se o Mercado autorregulável seja um mito.
Serge Latouche afirma que a troca é um fenômeno atestado em todas as
sociedades humanas. Ela liga as pessoas, bens e sinais em ciclos mais ou menos
extensos. Todo mercado supõe uma troca, mas a troca não passa pelo mercado (mesmo
um mercado fictício). A troca “normal” é estruturada pela lógica do dom, como Marcel
Mauss destacou: a obrigação de dar, receber e de restituir. Esta lógica não é uma lógica
do mercado, mesmo se o ciclo de dom entre os parceiros, por vezes, com especulação
sórdida e frustração possa levar a conflitos. O dom não é uma troca “primitiva” quer por
seu espírito, nem por seu modo de conduta, nem pelo conteúdo a que se refere. Não é a
falta de dinheiro, ou a ausência de comerciantes que diferenciam o dom do mercado; é o
objetivo fundamental do ato. O dom nasce e é alimentado pela relação de troca social,
fortalecendo as responsabilidades de cada um para o benefício de todos, e não para
24

satisfazer as necessidades ou acumular valor materializado sem deixar o traço pessoal


em relações entre os comerciantes. A lógica do dom sempre existiu em nossa sociedade,
e ocupa um lugar importante, embora oculto. O fantasma do mercado generalizado nos
impede de ver que sem o ciclo do dom, a nossa sociedade simplesmente não existiria,
pois não haveria família, negócios, ou investigação científica, nem criação literária, nem
arte (LATOUCHE, 1998, p. 153-154).
Enquanto algumas culturas parecem não deixar espaço para a troca mercantil e
para o mercado, a maioria das sociedades, mesmo as mais primitivas, tem ao lado da
troca do dom e da troca social, uma forma de intercâmbio mais “neutra”, mais utilitária,
mais individual. Os melanésios trobriandeses além do Kula, forma cerimonial da
circulação de bens nobres, praticam o Gimwali (“simples troca econômica de
mercadorias úteis”). Esta forma de troca “neutra” pode ser feita entre estranhos ou
pessoas que não estão ligadas por parentesco ou clã. Em algumas circunstâncias, para
certas mercadorias, em alguns lugares, essa relação pode ser feita entre próximos. Estes
“lugares de mercado” ou “mercados de encontro” elucidam até certo ponto uma relação
“econômica”, mas não “natural”. Estas trocas tradicionais podem assumir duas formas
contrastadas: o comércio de longa distância e o pequeno mercado local. A primeira é
mais parecida com a grande aventura, a pirataria. A segunda concerne aos alimentos
cujos preços são geralmente definidos por costume ou lei. São, na maioria das vezes, a
oferta e a procura que se adaptam aos preços e não o inverso. De qualquer forma, por
vezes, direta ou indiretamente, em curto ou médio prazo, a oferta e a demanda, e a
competição têm um papel na determinação da relação de troca. No entanto, mesmo se
há algo próximo da despersonalização, o mercado é um encontro entre pessoas e não
entre duas funções. A barganha é uma relação social com um compromisso entre as
partes envolvidas com o fito de se evitar que a despersonalização total não elimine
qualquer um dos participantes (LATOUCHE, 1998, p. 154-155).
Entre o povo Hausa da Nigéria, a justiça cumulativa que rege as relações com os
estrangeiros é baseada no livre contrato das partes. A justiça nunca é a aplicação de um
mecanismo abstrato. Muitos produtos ou mercadorias são excluídos das trocas, certos
bens não podem circular entre homens ou entre mulheres e algumas pessoas são
excluídas do comércio. Ainda hoje na sociedade Hausa, podemos observar tais
restrições. A terra e o trabalho não se apresentam como mercadorias. Estas restrições
não são antinaturais e não se destinam a prevenir a ocorrência da lei eterna do mercado
dos “Economistas”, elas advêm da definição cultural daquele povo, e das arbitragens
25

propostas entre a expansão da atividade individual e as necessárias restrições coletivas.


Esses mercados carregam certa liberdade e informação útil para as partes interessadas, e
a presença dos preços não causa desemprego em massa e exclusão. A “mão invisível”
que preside este compromisso é um conjunto de circunstâncias históricas onde se
misturam regulamentos, riscos e interesses. Apesar do imaginário mercantil e restrições
institucionais da modernidade, esta forma de mercado, “lugares de mercado” ou
“mercados de encontro”, está muito presente em nossas sociedades (LATOUCHE,
1998, p. 156).
A diferença entre os “lugares de mercado” ou “mercados de encontro” e o
Mercado não significa necessariamente a falta de anonimato nas relações mercantis. Os
“lugares de mercados” são portadores de uma força de anonimato desde suas origens.
Sabemos que esta prática descrita por Heródoto, evidenciada por muitos exploradores
ao longo dos séculos e praticada até recentemente na Nova Guiné, tem fascinado todos
os observadores. Lá, o cara a cara é negado. Os objetos são retirados e depositados em
segredo. As taxas de câmbio são habituais e variam apenas por buscas cuidadosamente
calculadas. A vontade de recusar a relação intersubjetiva é óbvia. De acordo com a
fórmula de Mauss, o bem substitui o penhor (garantia, laço). O produtor ignora o
consumidor, o vendedor não está preocupado com o comprador. A despersonalização,
para uma esfera muito limitada, é mais alargada do que no mercado moderno. Somente
os produtos competem em um encontro inusitado. Entende-se que a “solução” do
mercado foi escolhida na história sempre que o estabelecimento de um vínculo social
era impossível ou indesejável ou o relacionamento anterior estava se tornando
insuportável (LATOUCHE, 1998, p. 156-157).
A mercantilização também atua sobre os mercados tradicionais, por vezes de
forma mais intensa do que no Mercado. Não só os homens e as mulheres são objetos de
mercados com a escravidão, mas entre os Hausa, no Níger, uma verdadeira
comercialização dos corpos faz parte das atitudes mentais. No entanto, toda a atividade
do mercado está voltada para o ritual sacrificial. Pode-se supor que nas cidades
mercantis antigas “tudo é comprado e vendido”, mas, diferente do Mercado, esta
sociabilidade mercantil se inclina para outra sociabilidade mais essencial e não
mercantil, como a religiosa ou altruísta. É a articulação dessas sociabilidades que deve
ser interrogada (LATOUCHE, 1998, p. 157).
As questões levantadas por Caillé e Latouche sobre as características dos
mercados em diferentes sociedades no tempo e espaço são fundamentais para
26

compreender a análise polanyiana do mercado e suas consequências para as sociedades


grega e mesopotâmia. Prender-se ao debate entre formalistas e substantivistas é
empobrecer o debate, pois as sociedades pré-capitalistas apresentam uma diversidade
muito grande de trocas, com características diversas. A perspectiva de Latouche nos
parece mais frutífera, pois nos auxilia a caracterizar os diferentes tipos de mercados em
sociedades pré-capitalistas e sua relação com o comércio. Os trabalhos atuais vêm
demonstrando que essas duas sociedades tinham mercados. Mas como se
caracterizavam esses mercados? Como a perspectiva polanyiana contribui ou se
constitui em obstáculo para a caracterização dos mesmos? É só apreciando de forma
mais detalhada alguns trabalhos, colocando a perspectiva polanyiana e seu topos que
poderemos ter uma ideia mais clara do debate atual.
27

COMÉRCIO E MERCADO LOCAL NA GRÉCIA ANTIGA

A reflexão histórica é por vezes um patrimônio que é transmitido de geração em


geração. Para a antiguidade, um dos exemplos é o da interpretação da economia antiga.
Tal interpretação foi profundamente marcada desde o século XIX (e mesmo por vezes
desde o século XVIII, se se pense em David Hume) por uma preocupação com uma
comparação com a economia do mundo moderno. Esta comparação se situa, desde o
início, em um terreno evolucionista. No século XIX, o debate se cristaliza em torno de
uma tipologia dos estágios históricos rigorosamente diferenciados por Karl Bücher:
economia doméstica fechada, economia urbana (com troca sem intermediário) e a
economia nacional (com uma série de intermediários). Essa tipologia abriu caminho
para um intenso debate entre aqueles que acreditavam que a economia antiga era uma
economia doméstica fechada, os “primitivistas”, e aqueles que defenderam a tese
modernista, sendo, no início, Eduard Meyer o seu principal representante, qualificando
a economia antiga como uma réplica, reduzida quantitativamente, mas qualitativamente
semelhante, da economia contemporânea. Apesar do triunfo inicial da tese modernista, a
partir do início do século XX, em 1909, Max Weber intervém no debate e direciona a
reflexão no sentido da grande questão do nascimento do capitalismo: quais são os
elementos que levaram o mundo antigo a não ser, contrariamente ao mundo medieval, o
cadinho do capitalismo? De fato, mesmo se, em Weber, a reflexão integra uma visão
completa da economia antiga, a orientação da explicação para um elemento de natureza
psicológico se torna dominante. A marca de referência para descrever a economia antiga
torna-se uma análise dos comportamentos, campo onde a nossa documentação é mais
relevante (DESCAT, 2006, p. 255-256).
Esta análise será retomada novamente por Johannes Hasebroek e é a posição que
Moses Finley vai popularizar e fazer triunfar nos anos de 1970, com a publicação em
1972 do livro The Ancient Economy. O conceito de “economia antiga” (Oriente
Próximo excluído) foi definido pelo historiador de Cambridge pela “existência de uma
estrutura cultural e psicológica comum, cuja importância para uma explicação da
economia espero demonstrar nos capítulos seguintes” (FINLEY, 1980, p. 42). Este
conceito se impôs na comunidade dos historiadores, mesmo que encontremos aqui e
alhures alguns adversários. Esta nova ortodoxia definia a economia antiga como
preponderantemente agrícola, autossuficiente na esfera local, com artesanato e
monetarismo restritos e ausência de um verdadeiro mercado de trabalho e de
28

investimento. Quando Finley faz a distinção entre o pensamento econômico dos


modernos e as observações, banais aos seus olhos, que os textos gregos chamam de
oikonomia, levanta a seguinte questão: Será que é “uma falha intelectual” ou “a
consequência da estrutura da sociedade [sic] antiga”? É a segunda solução, que ele
escolhe. Essa solução parte da definição clássica de Erich Roll:

Se considerarmos, então, o sistema econômico, como uma enorme


conglomeração de mercados interdependentes, o problema central da
investigação econômica é a explicação do processo de troca ou, mais
particularmente, a explicação da formação do preço. Isto é porque, se
não há na Antiguidade mercado no sentido abstrato da ciência
econômica, não há leis do comportamento econômico e nós chegamos
assim a ausência de análise econômica entre os antigos. Não é preciso
dizer que este último ponto é essencial. O que se sabe do
comportamento antigo nega desde este ponto de vista qualquer
existência no mercado (FINLEY, 1980, p. 24).

Finley conclui então sobre a impossibilidade de estabelecer uniformidades


estatísticas ou a formulação de leis do comportamento econômico no mundo antigo. Daí
a impossibilidade do desenvolvimento de um conceito de economia da análise
econômica. Diante disso, Finley negou qualquer possibilidade de se encontrar no mundo
antigo mercados interdependentes, e ignorou os mercados concretos ou “imperfeitos”.
Tais posições convergem com as de Polanyi, que defendendo a ausência de um mercado
autorregulável no mundo antigo, que pudesse integrar todo o mundo grego, desenvolve
a tese do comércio administrado e do mercado local, a ágora.
Segundo Polanyi, o comércio é um método relativamente pacífico de conseguir
produtos não aproveitáveis imediatamente e que não se encontravam em um
determinado lugar. É uma atividade externa ao grupo, similar às atividades que nós
tendemos associadas com esferas completamente diferentes da vida, como caçadas,
expedições e ataques piratas. O objetivo fundamental da ação do comércio é a aquisição
e transporte de produtos de certa distância, porém, diferentemente da busca de presas e
do butim, o caráter bilateral do movimento assegura seu desenvolvimento pacífico e
regular. Outrossim, o comércio é uma atividade de grupo mais que individual e se
centraliza no encontro de grupos pertencentes a comunidades diferentes, com a
finalidade, entre outras, de trocar mercadorias. Estes encontros não produzem taxas de
trocas, mas as pressupõem (POLANYI, 1976, p. 303; POLANYI, 1977, p. 81).
29

O COMÉRCIO E OS COMERCIANTES

Diferente do ponto de vista formal, Polanyi não vê o comércio como um


movimento de produtos por meio do mercado e controlado por preços. Para ele,
comércio e mercado não estavam indissoluvelmente ligados entre si. Como implica no
transporte de produtos entre lugares distantes e em duas direções opostas, o comércio
tem quatro fatores - pessoas, mercadorias, transporte e bilateralidade -, que nos ajudam
a analisar suas enormes variedades de formas e organizações ao longo da História. A
aquisição de produtos longínquos poderia ser feita por motivos diferentes quanto à
posição do mercador na sociedade: por status ou por lucro. No primeiro caso, os
benefícios materiais, amparados pelo caráter de honra e de obrigação, eram reforçados
pelos presentes e pelas concessões fundiárias efetuadas pelos reis, templos ou, mesmo,
pelos senhores como forma de recompensa; enquanto, no segundo caso, os ganhos
transacionais geralmente indicavam somas insignificantes que não admitiam nenhuma
comparação com a riqueza que o senhor concedia ao mercador audaz e afortunado.
Assim, quem comercializava por honra e obrigação tornava-se rico, enquanto aquele
que trocava com ânimo de lucro não saía da pobreza. A motivação de lucro não estava
ausente da sociedade de status, pois, enquanto se esperava dos grupos de status mais
altos, atitudes guiadas por motivos de dever, obrigação, e amor próprio, os grupos de
status mais baixo são encorajados a se entregarem às atividades lucrativas que eram
desprezadas e de pouco retorno. A sociedade antiga, portanto, conheceu apenas dois
tipos de mercadores: um situado na esfera superior da pirâmide social, e outro, na esfera
inferior. O primeiro estava ligado aos governantes, e o segundo dependia do trabalho
manual para sua sobrevivência. Não havia, portanto, uma classe de mercadores, no
sentido moderno, entre os cidadãos (POLANYI, 1976, p. 304-305; POLANYI, 1977, p.
84-86).
Polanyi estabelece uma tipologia do comércio, conceituando-o em três tipos
principais: o comércio de presentes; o comércio administrativo; e o comércio mercantil.
No comércio de presentes, as partes estavam unidas por relações de reciprocidade e a
sua organização era geralmente cerimonial envolvendo presentes mútuos, embaixadas e
negócios políticos entre reis e chefes. As mercadorias eram, na maioria das vezes,
objetos de circulação restrita à elite: escravos, metais preciosos, vestuário. Este tipo de
comércio era muito difundido em sociedades tribais e entre impérios (POLANYI, 1977,
p. 94). O comércio administrado pressupunha corpos comerciais relativamente estáveis
30

e amparava-se em tratados mais ou menos formais, isto é, em relações tradicionais ou


costumeiras ou em tratados explícitos. Tanto a importação como a exportação eram
organizadas por canais governamentais, que arrecadavam as mercadorias para
exportação e distribuíam as mercadorias importadas. Em geral, havia predomínio dos
interesses importadores.
Os métodos administrativos se estendiam à toda atividade comercial, como os
acordos sobre as “taxas” ou proporções em que se intercambiam as unidades, as
facilidades portuárias, o intercâmbio físico das mercadorias, a vigilância, o controle do
pessoal comercial, a regulação dos “pagamentos”, os créditos e as diferenças de preços.
O regateio não era parte dos procedimentos, pois as equivalências predominavam,
embora pudesse haver, em virtude das circunstâncias mutantes, regateio, porém apenas
sobre os elementos alheios ao preço, como as medidas, a qualidade do produto e os
meios de pagamento (POLANYI, 1976, p. 307).
A instituição específica, local de todo comércio estrangeiro administrado, é o
“porto de comércio”, geralmente situado na costa, nas fronteiras do deserto, na nascente
do rio, ou no encontro de planícies e montanhas. A função do “porto de comércio” era
oferecer segurança militar para o anfitrião, proteção civil para os comerciantes
estrangeiros, facilidades de ancoramento, desembarque, estocagem e armazenamento e
servir como autoridade judicial. No caso da Grécia antiga, há informações da existência
do porto de comércio desde o período pré-clássico, o emporium, que significava um
lugar de encontro de comerciantes, localizado fora dos portões de uma cidade, ou
mesmo em uma costa desabitada. No período clássico, o emporium era destinado ao
comércio estrangeiro e tinha seu próprio porto, cais, armazéns, hospedarias de
marinheiros e edifícios administrativos. O emporium clássico, em geral, tinha seu
próprio mercado de alimento (POLANYI, 1976, p. 244).
Para Polanyi, a configuração geográfica e política das regiões da Grécia, onde
estavam situados os suprimentos de grãos e as rotas de comunicação, foi fundamental
para o desenvolvimento do uso de métodos administrativos de comércio em vez do
comércio de mercado. Apesar de trabalhar com autores diversos, inclusive alguns
modernistas, como Rostovtezef, Polanyi aprofunda a tese de Hasebroek, de que o
comércio de grão foi resultado de uma política de Estado, e não de uma política
comercial. De acordo com tal ideia, Polanyi afirma que a provisão de suprimentos e
suas rotas comerciais, foram garantidas pelos meios militares e políticos. A política
estrangeira ateniense nunca foi inspirada por interesses comerciais; ela buscava garantir
31

o suprimento de grãos para seus cidadãos, posto que a Ática não tinha um solo propício
para a produção de grãos, mas sim para a produção de oliva. Essa dependência da
importação de grão refletiu-se no pensamento social e político grego, e a necessidade
sempre insatisfeita de suprimento alimentar adequado fez do princípio da
autossuficiência – autarquia – o postulado de sua existência e de sua teoria do Estado.
Tal princípio está presente em algumas legislações, como a de Sólon, preocupadas em
extrair a maior quantidade possível de grão para Atenas e evitar o movimento de grão
para fora de Atenas. Não era permitido a nenhum residente ateniense transportar grão
para qualquer lugar, exceto para Atenas. Portanto, o controle militar ateniense sobre o
comércio de grão era completo. Para garantir sua supremacia, Atenas proibiu todos os
navios, a não ser aqueles que levavam grãos para Atenas, de entrar no Mar Negro
(POLANYI, 1977, p. 199-216).
No entanto, o comércio administrado do século IV distinguiu-se do século V,
quanto ao grau de controle ateniense. No século V, Atenas administrou o comércio
quase sem ajuda, posto que as cidades bosforianas estavam sob seu domínio. No século
IV, o comércio pôntico era administrado como comércio de tratado entre grandes forças,
pois Atenas dominava os mares somente a oeste do Bósforo trácio. Os tratados que
regulamentavam o suprimento de grãos, em sua maioria, traduziam o direito de comprar
mercadorias em um certo porto ou portos e objetivavam obter vantagens no transporte,
isenção de taxas, e prioridade de carregamento.
A ameaça da perda do suprimento de grão do Peloponeso foi o principal motivo
da entrada de Atenas na Guerra do Peloponeso, resultado do objetivo ateniense de
controlar o suprimento ocidental de grão. Portanto, o comércio de grãos dominava a
política estrangeira ateniense, como comércio administrado, e não como comércio de
mercado. O comércio administrado estava perfeitamente ajustado à política naval
ateniense, interessado no controle de rotas e nos suprimentos vitais de importação, e aos
objetivos redistributivos do Estado. Neste sentido, não somente o comércio de grãos,
mas o comércio, em geral, era comércio administrado.
O comércio de madeira, do qual Atenas era extremamente dependente, e o de
ferro, bronze, cera, estavam regulamentados por monopólios e tratados que
beneficiavam Atenas. O comércio de escravos, – gênero de primeira necessidade no
período clássico - principalmente em seu primeiro estágio, era comércio administrado.
Como era, em sua grande maioria, oriundo de fornecimento externo, gerava diversos
problemas físicos, tal como, armazenamento e deslocamento, como também, problemas
32

de avaliação financeira. Já o comércio de artigos de luxo era um subproduto derivado do


comércio administrado de mercadorias de primeira necessidade. Existia em função da
talassocracia ateniense.
Os tipos de mercadores da Antiguidade eram o tankarum, o meteco ou residente
forasteiro e o “estrangeiro”. O tankarum dominava a região mesopotâmica e era o tipo
de comerciante que comercializava por obrigação e honra e se tornava um mercador por
hereditariedade ou por indicação do rei, do templo ou de “uma grande pessoa”. Sua
sobrevivência era assegurada por receitas de status, na maior parte das vezes por meio
da propriedade fundiária, ou da provisão real ou do templo. Já o meteco e o
“estrangeiro” objetivavam o lucro e se encontravam na esfera inferior da sociedade.
Estes dois últimos tipos originaram-se na Grécia clássica e advinham, em geral, de uma
população flutuante de pessoas deslocadas – refugiados políticos, exilados, criminosos
fugitivos, escravos fugidos. A ocupação do meteco, em geral, era a de pequeno
comerciante, capitão de um navio ou cambista com uma banca no mercado. Quer como
cambista, comerciante de grão ou capitão mercantil, o meteco estava sempre sob estritas
restrições da autoridade pública. Mesmo quando acumulavam muito dinheiro, estavam
proibidos de possuir terras e casas (POLANYI, 1977, p. 88).
Segundo Polanyi, desde os primórdios do período arcaico grego, o comércio era
conduzido por reis e chefes em busca de metais preciosos e produtos para a household e
que tinham um alto status dentro da sociedade. Até aqui, portanto, o comércio nada
tinha a ver com o mercado. Com a introdução do mercado (ágora), tipos diferentes de
comerciantes engajaram-se no comércio local e estrangeiro. O comerciante local era o
kapelos, e o comerciante marítimo era o emporos. Polanyi utiliza Platão e Xenofonte
para afirmar que os kapeloi são aqueles comerciantes que se instalaram na ágora,
provavelmente cidadãos, pois, de acordo com uma lei de Sólon, não era permitido a
estrangeiros comerciar no mercado local, a menos que pagassem uma taxa. Porém,
apesar de terem um status político superior aos não cidadãos, tinham status econômico
inferior aos cidadãos envolvidos em outras atividades. Já os comerciantes de longa
distância, diferentemente daqueles dos períodos pré-clássicos, eram agora
majoritariamente não cidadãos, estrangeiros ou metecos. Praticavam o comércio
também por motivo de ganho, e não de status. Seus lucros eram baixos e objetivavam
juntar dinheiro para tornarem-se financiadores de comerciantes. Os emporoi estavam
envolvidos neste comércio, em grande parte, por causa das guerras entre Cidades-
Estados e intra-Cidades-Estados que “liberavam” grande número de viajantes pelo
33

mundo grego. Segundo o autor, não havia concorrência entre estrangeiros e cidadãos
(estes em número reduzido) envolvidos no comércio marítimo, pois o grande número de
estrangeiros no ramo era uma fonte de receita para o Estado.
A relação entre os mercadores e a política, particularmente entre o comércio e o
Estado, encontrou um eco particularmente famoso no campo da história grega antiga.
Antes de Polanyi, o alemão Johannes Hasebroek escreveu, em 1928, um clássico
trabalho sobre a relação entre comércio e política na Grécia antiga, intitulado Staat und
Handel im alten Griechenland, já como professor da Universidade de Colônia. Este
livro reacendeu a polêmica entre “modernistas” e “primitivistas”, e apesar da sólida
base filológica, recebeu críticas pela visão unilateral em relação ao papel do comércio.
O livro foi muito bem recebido na Inglaterra, e recebeu uma tradução em 1933, com o
título de Trade and Politics in Ancient Greece, sendo recomendado como leitura
obrigatória para estudantes de História Antiga grega até os anos 50. Algumas das
deficiências deste estudo foram remediadas em seu livro posterior, Griechische
Wirtschafts-und Gesellschaftsgeschichte bis zur Perserzeit, de 1931, no qual
enfatizava a utilidade dos conceitos weberianos para a estrutura da economia e da
sociedade gregas desde épocas homéricas até o final das guerras persas.
Hasebroek procura estabelecer a relação do Estado grego com o comércio em
todas as suas formas e atividades, além de descrever sua política comercial. Hasebroek
assegura que o comércio era apenas um meio para o suprimento de necessidades,
particularmente de cereais e matérias primas para construção de navios, e para o
enriquecimento do tesouro por meio de impostos e taxas. Este autor refutava a hipótese
“modernista” da existência de antagonismos entre Estados nacionais gregos lutando
entre si por interesses eminentemente comerciais. Para ele, o comércio era apenas um
meio, e não um fim. Ao investigar os tipos de mercadores e a atitude adotada pelo
“Estado grego” em relação ao mercado e comércio, Hasebroek afirma que os
comerciantes eram uma classe de profissionais de tempo integral, que navegavam de
porto em porto sem destino fixo, vendendo suas mercadorias sempre e onde quer que
uma oportunidade favorável se apresente. Comercializavam com mercadorias
manufaturadas e com produtos agrícolas. No entanto, isto não quer dizer que os
produtores não comercializavam seus produtos. Há evidências abundantes de produtores
de oficinas, que vendiam direto para os consumidores e, também, de produtores que
transportavam suas mercadorias para outros distritos, vendendo-as de casa em casa se
fosse o caso (HASEBROEK, 1993, p. 2-6).
34

Polanyi compartilha a opinião de que não havia competição entre os cidadãos e


os estrangeiros (metecos) em relação aos interesses econômicos, já que estes eram
encorajados pelo Estado a conduzir os negócios entre as Cidades-Estados. Os metecos,
estrangeiros residentes, sem status cívico completo ou direitos políticos, porém sujeitos
a encargos financeiros, como a liturgia e o serviço militar, eram responsáveis pelo
comércio estrangeiro e podiam negociar no atacado e no varejo. Por outro lado, era
pequena a proporção de cidadãos envolvidos diretamente em atividades produtivas; eles
estavam mais interessados em receitas da propriedade da terra e nas rendas do Estado.
Hasebroek afirma que o cidadão ideal da Antiguidade era um rentier, enquanto os
estrangeiros constituíam o esteio do comércio e da indústria, pois buscavam o ganho
pecuniário. Esses constituíam, junto com os escravos, os proletários, porque eram
homens sem direito político, assim como também o eram o proprietário de terras
arruinado e o camponês endividado. Portanto, “a separação fundamental do Estado
grego foi entre os rentiers que viviam às custas do Estado ou das rendas de sua
propriedade e investimentos e a massa sem cidade de estrangeiros” (HASEBROEK,
1993, p. 35) (o grifo é nosso). A exclusão dos estrangeiros (metecos, escravos) da
política citadina era o elemento fundamental do poder das Cidades-Estados. O comércio
era útil apenas como elemento constituinte do objetivo maior da cidade, o suprimento de
necessidades, e não afetava o ideal de independência das Cidades-Estados.
Comparando as abordagens de Polanyi e Hasebroek, constatamos que os autores
parecem concordar quanto ao baixo status do comerciante em geral. Polanyi aprofunda
as hipóteses de Hasebroek ao assinalar a diferença entre o comerciante local e o
marítimo, enquanto Hasebroek, mais preocupado com o comércio marítimo, alija da sua
análise o papel do comerciante no mercado local. Polanyi acentua o papel dos metecos
como financistas do comércio marítimo. Podemos afirmar que o modelo polanyiano de
comércio administrado completa as impressões de Hasebroek, em relação a duas
questões: 1. Comércio apenas como um campo para o investimento do capital e uma
fonte de receita do Estado; 2. Intervenção do Estado no comércio para encher seus
celeiros e seu tesouro. Estes são elementos do modelo polanyiano de comércio
administrado, com todas as suas variantes no tempo e no espaço. Além do mais, o seu
modelo de comércio administrado, exemplificado na sociedade grega, está em harmonia
com a ideia de que o econômico está imerso (embedded) no social, pois não adquire
autonomia.
35

Essas posições são revistas por autores que têm apresentado novos modelos a
partir de novas interpretações das evidências escritas e arqueológicas. A relação entre o
comércio e a política, ou mais especificamente, o papel político daqueles que tratavam
com as atividades comerciais nas poleis gregas é a questão de fundo.
Partindo do livro de Hasebroek, Moses Finley escreveu, em 1935, ainda
assinando com seu nome de batismo, Moses Finkelstein, um artigo intitulado Еμpοrος,
Naύκληrος, and Κάpηλος: A prolegomena to the study of Athenian trade, no qual
procura avaliar o trabalho Hasebroek em uma análise de caráter fortemente filológico.
No início do texto, Finley, ainda no seio do debate entre primitivistas e modernistas,
afirma que infelizmente a utilização de termos gregos relacionados ao comércio está
associada com expressões como firmas, sociedades anônimas, cheque bancário e
capitalistas. A confusão na conceituação interfere na tentativa de se obter uma visão
correta das condições existentes na Antiguidade, pois todos os eruditos, até aquele
momento, classificavam os comerciantes gregos de acordo com algum padrão
(geralmente moderno), que nunca foi seguido pelos antigos (FINKELSTEIN, 1935, p.
320). Em seguida, o autor afirma que as fontes antigas que abordam o papel dos
comerciantes apresentam confusões e contradições, dificultando uma análise mais
rigorosa e generalizações a partir das evidências. Após uma análise detalhada das fontes
sobre o tema, Finley afirma que os emporoi podiam, em alguns casos, possuir navios
mercantes, e que os comerciantes marítimos não eram sempre distintos dos produtores,
pois o comércio marítimo não poderia ser feito o ano todo. Portanto, Finley não
aprofunda o debate e não toca em questões centrais sobre o status do comerciante.
Charles M. Reed (2004) afirma que o equívoco de Hasebroek é pensar que
Atenas intervinha no comércio somente para assegurar necessidades vitais para seus
cidadãos, sem se preocupar com os interesses dos emporoi e dos naukleroi. Segundo
Reed, Atenas obviamente agia em favor dos comerciantes marítimos, em razão da
enorme sobreposição de seus interesses àqueles do corpo de cidadão ateniense. Reed
salienta a ideia de complementaridade de interesses entre cidadãos e estrangeiros e
aprofunda as ideias de Polanyi e Hasebroek sobre essa questão, contudo, salienta que
Hasebroek não percebeu que a dependência cívica de alimentos importados substituía
considerações de status social na mente dos indivíduos atenienses (REED, 2004, p. 51-
77).
Afastando-se do substantivismo, mas não assumindo a linha formalista, Edmund
Burke, no artigo intitulado, The economy of Athens in the Classical Era: some
36

Adjustmesnts to the Primitivist Model, de 1992, afirma que no final do século IV a.C., a
atividade econômica em Atenas conseguiu crescer em uma escala sem precedentes,
estimulada, em grande parte, pelo crescimento no comércio marítimo. Esse crescimento,
combinado com as mudanças nas práticas e instituições sociopolíticas explica, segundo
Edmund Burke, o movimento para um disembedding (autonomia) da economia da
cidade. Partindo deste pressuposto, Burke analisa as circunstâncias específicas que
envolvem o aumento extraordinário na atividade comercial em Atenas no final do
século IV e examina as mudanças decorrentes destas transformações nos fenômenos
sociopolíticos. Contudo, este genuíno disembedding, certamente, não causou uma
erradicação da atividade econômica de seu contexto sociopolítico, mas resultou de
transformações na esfera sociopolítica.
Em primeiro lugar, a proxenia. Na prática, os proxenoi eram cidadãos de uma
pólis que foram reconhecidos oficialmente como amigos e representantes de outras pólis
(ver Platão, Leg, 642b). É uma instituição que parece ter experimentado alguma
mudança como uma consequência do comércio marítimo no Egeu na era clássica. Como
uma prática diplomática, a proxenia parece ter se desenvolvido da xênia, instituição
que, próxima ao casamento foi a chave para forjar ligações entre as elites no século X e
IX (BURKE, 1992, p. 205). Dessa forma, o típico proxenos serviria em seu estado natal
como convidado amigo da pólis que ele representava. Desse modo, em sua concepção e
em sua prática inicial, a proxenia refletia uma ética elitista e, como a xênia era uma
instituição embedded (imersa) na estrutura das relações sociais arcaicas fazendo pelos
Estados o que a xênia fazia pelos indivíduos.
Em Atenas, sabemos que a proxenia era concedida por decreto público, debatida
e votada pela Eclésia. Parece claro que muitos dos honoráveis que tinham herdado seu
status como proxenoi herdaram, sem dúvida, a similaridade entre as instituições de elite
da xênia e da proxenia.
Parece uma inferência clara de tudo isso que na era clássica a proxenia, se não
usada ativamente para favorecer a atividade comercial marítima, pelo menos ajudou a
aumentar o vínculo das relações interestaduais das quais tal comércio dependia, pois,
desde o final do século V e o século IV há um número de exemplos onde Atenas e
outros estados designaram como proxenoi homens ativamente envolvidos em comércio
marítimo (BURKE, 1992, p. 207). Os indivíduos reconhecidos não eram mais só
membros da elite, mas homens engajados no comércio e foram citados pela Eclésia
37

como benfeitores, garantindo o reconhecimento e o encorajamento como qualquer outro


honorável.
Concomitantemente, foi típico da era arcaica que a posse da terra tendia ser uma
prerrogativa exclusiva dos cidadãos da pólis. Na realidade, a cidadania em si, assim
como o status entre cidadãos, frequentemente foi definida em termos de posse da terra
(BURKE, 1992, p. 208). Até o final do século V não encontramos em Atenas evidência
de concessões concedidas a cidadãos estrangeiros permitindo-os posse de terra na
cidade. Subsequente à Guerra do Peloponeso, contudo, há evidência de mudança.
Sabemos que uma consequência da guerra foi um êxodo de Atenas de metecos, um fato
que contribuiu para as dificuldades econômicas da cidade no final dos anos de 350 a.C.
e nos anos de 340 a.C.. Ademais, o encorajamento de comércio marítimo, incluindo,
claro, o movimento de grão, emerge como o principal motivo conhecido na doação da
concessão.
O que é especialmente notável aqui é que as concessões distribuídas durante esse
período deram aos não cidadãos engajados no comércio um direito que, às vezes, tinha
sido a prerrogativa exclusiva dos cidadãos, de fato, um direito pelo qual a cidadania em
si tinha sido definida e onde o status de cidadão e a atividade econômica tinham estado
localizados. Desse modo, mais do que a alteração de uma prática sociopolítica com o
objetivo de promover a atividade econômica, as últimas concessões são evidência de
uma prerrogativa que, às vezes, tinha definido a atividade econômica apropriada e
natural de um cidadão, agora usadas para beneficiar os não cidadãos engajados em um
tipo de atividade econômica diferente daquelas exercidas por cidadãos (BURKE, 1992,
p. 210). Na realidade, um comparável ajuste é observável na concessão da cidadania em
si. Há na segunda metade do século IV, iniciado por volta de 360, um aparente ajuste
nos motivos para a concessão da cidadania, com o objetivo de encorajar abertamente
aqueles homens envolvidos no comércio marítimo. Não parece exagerado especular que
a crescente consciência econômica no final do século IV influenciou a cidade a
encorajar aqueles efetivos no comércio marítimo. Que a deficiência em grão pode ter
estimulado tal interesse, não altera o que parece ser um notável ajuste, na prática.
Em suma, Burke conclui por um processo de disembedding (autonomia) do
político em relação ao econômico por meio das seguintes evidências: 1. O papel dos
comerciantes estrangeiros, particularmente o naukleros e emporos, caracterizados como
uma massa de proletários a serviço da Cidade-Estado, como um estamento
negativamente privilegiado, perde seu fundamento depois da Guerra do Peloponeso em
38

Atenas; e 2. A concessão de honras, como a proxenia, o direito ao acesso à propriedade


da terra, e o próprio acesso à cidadania são evidências claras da inserção destes setores
ao estamento positivamente privilegiado dos cidadãos. Não obstante, tal realidade
transformar as relações de status e incluir os comerciantes marítimos na comunidade de
cidadãos, não se produziu uma economia de mercado genuína, criadora de preços, mas
sim uma transformação nas relações sociopolíticas de uma economia embedded, à
medida que os comerciantes, longe de se tornarem um grupo social diferenciado e
autônomo, graças ao seu papel e suas atividades econômicas, se transformaram, não
todos é claro, em elementos constitutivos daquela sociedade, legitimando o status quo,
isto é, o domínio de um estamento positivamente privilegiado, a comunidade de
cidadãos.
Já Alain Bresson (2003) se afasta de forma mais contundente da perspectiva
polanyiana e de Hasebroek. Bresson procura desconstruir o modelo de Hasebroek por
meio de uma reflexão em que procura reavaliar as relações entre os mercadores e a
política em seus aspectos sociais e econômicos, questionando as evidências e categorias
de todos os lados envolvidos no debate.
Bresson pergunta, em primeiro lugar, se existia nas cidades gregas uma categoria
especial de pessoas que podiam ter sido definidas como mercadores? Um breve resumo
do comércio de média ou longa distância nos períodos Clássico e Helenista, a partir do
final do período arcaico em diante, mostra que, de fato, os papéis eram muitos: nautai
(navegadores), nauklêroi (armadores, capitães, ou administradores de um navio
comercial), emporói («passageiros», de fato, comerciantes que compravam e vendiam
mercadorias de um porto para outro porto), e daneizontes («aqueles que emprestavam
dinheiro», “capitalistas” que tinham investido seu dinheiro em viagem comercial). Em
alguns casos, alguns dos papéis podiam ser desempenhados pela mesma pessoa, por
exemplo, o nauklêros e emporos ou capitalista, mas isso não era sempre o caso. De
qualquer modo, todas essas atividades envolviam algum risco, ou para navegadores, que
podiam perder suas vidas no mar, ou para aqueles que emprestavam o dinheiro, que
podiam perder suas fortunas. Essa dimensão de risco deve sempre ser lembrada
(BRESSON, 2003, p. 141-142).
O principal ponto de discussão é conhecer em que proporção o comércio era
uma atividade profissional. O papel da elite em financiar o comércio ou outras
atividades, mais frequentemente por meio de intermediários, era um traço constante da
Antiguidade. Se olharmos para os mundos de Homero e Hesíodo, nós podemos perceber
39

dois padrões. Primeiro, o comerciante profissional, que leva as mercadorias para longas
distâncias. Na Odisseia é tipicamente um fenício: uma ocupação integral para um povo
marítimo, que são mais experientes, tanto na arte de navegar como no comércio.
Segundo, há o comerciante ocasional, o camponês que, de acordo com Hesíodo, podia
vender sua própria produção: nesse caso, o comércio é uma ocupação de tempo parcial,
uma viagem de curta distância em um barco de manejo simples, a cabotagem. Mas a
nova realidade do período Arcaico foi o surgimento do comerciante grego como tal, que
viajava o Mediterrâneo e desempenhava o papel anteriormente feito pelos fenícios. Esse
tipo de comércio não foi uma atividade casual do camponês querendo complementar sua
renda no fim da estação, mas uma ocupação que envolvia um investimento importante
de tempo e dinheiro. No final do século VII e no século VI a.C., ocorrem novos
desenvolvimentos que formam as estruturas do comércio grego. Nas mais avançadas
poleis não havia obstáculo legal de qualquer tipo para as atividades comerciais, estando
os aristocratas envolvidos nessa estrutura comercial (BRESSON, 2003, p. 142-143).
Investigando as diversas formas de conectividade no Mediterrâneo, Bresson
(2005) procura demonstrar o papel que os gregos exerceram nessa estrutura comercial.
Segundo o autor, os gregos iniciaram sua expansão nos séculos X e IX a.C., primeiro
seguindo as mesmas rotas dos micênicos, porém estendendo seus esforços até os
horizontes mediterrâneos mais distantes. Eles alcançaram seu apogeu no final do
período arcaico e começo do período clássico, quanto, fora das zonas onde ali já
existiam estados com um controle firme de sua área costeira, os gregos se estabeleceram
na maioria das costas do Mar Mediterrâneo. Por meio da intervenção dos gregos ou dos
fenícios, qualquer ponto na costa mediterrânea estava potencialmente em ligação com
outro qualquer. Deveria também ser salientado que duas redes de comunicação, a
fenícia e a grega, não eram desconhecidas entre si. Ao contrário da visão que
anteriormente prevaleceu, os gregos eram numerosos em Cartago e no oeste da Sicília.
Ao mesmo tempo, grupos de fenícios ou cartagineses estavam presentes em Atenas no
período clássico, e escavações em Corinto provaram a existência de comércio direto
com Cartago. Isso era uma situação até aqui inteiramente desconhecida na história do
Mediterrâneo. Os gregos e fenícios, desse modo, elevaram a um nível sem precedente o
grau de ligação entre os povos do Mediterrâneo. Enquanto os etruscos eram, de certa
forma, ativos no mar nas costas da Itália, Sardenha, Espanha e até Cartago,
particularmente em relação ao comércio de longa distância a oeste do Mediterrâneo, não
40

sendo isso impeditivo para os fenícios ocidentais, os gregos, sobretudo, exercerem um


papel preponderante (BRESSON, 2005, p. 102-103).
Esse papel de intermediário não foi suficiente para assegurar aos gregos uma
dominação eterna. Por meio das conquistas de Alexandre, eles conseguiram ganhar o
controle sobre a bacia oriental do Mediterrâneo, contudo um ciclo específico de sua
cultura, representado pela Cidade-Estado, começou a chegar ao fim. De fato, logo se
tornou óbvio que, nesse papel de intermediários, os gregos não mais eram necessários e
a herança de sua específica organização de Cidade-Estado até provou ser um obstáculo
radical, quando começou a competir com o estado territorial que Roma desenvolveu na
Itália. Então, as duas bacias do Mediterrâneo foram, finalmente, unidas e nessa época,
uma conectividade geral pôde passar a existir. Primeiramente, essa conectividade,
beneficiou Roma e Itália, como os textos e a arqueologia testam. Mas sob o Império,
essa situação unilateral mudou. Agora sabemos que o mundo romano foi mais
‘multipolarizado’ do que previamente se pensava, contudo Roma e Itália, por muito
tempo, permaneceram o centro (BRESSON, 2005, p. 104).
Ao refletir sobre as formas em que esta conectividade se concretizou, Bresson
levanta a questão entre a relação do transporte de pequena escala, por terra ou por mar, e
o transporte para o exterior. Para o autor, o papel que os gregos exerceram na
concretização de tal conectividade está diretamente relacionado com a desconstrução da
ideia de completa autossuficiência: a autarquia era um ideal, não uma realidade. Diante
dos riscos inerentes a um ambiente imprevisível, a tendência, certamente, era de
certificar-se que um máximo de mercadorias estava à mão. Esta conectividade
conseguiu assegurar no período clássico, para grandes cidades como Atenas, um
suprimento regular de grão por meio de controle político, ou via a ocupação de outros
territórios ou pela criação de pontos de checagem nas principais rotas marítimas.
Também deveria ser salientado que em Platão e Aristóteles uma cidade autárquica não
era concebida como uma zona completamente fechada, mas ao contrário, como um
estado que conseguia administrar o comércio regular com um número pequeno de
cidades com as quais podia mutuamente trocar necessidades básicas, por exemplo, pela
troca de vinho por grão.
Portanto, o interior não foi privado da ligação com a costa. Desse modo, no caso
da Grécia, na Arcádia, no centro do Peloponeso, os aeginetanos podiam se comunicar
com a costa por meio de animais de tração, vindos do porto que eles tinham
estabelecido em Kyllene (deveria ser salientado que Kyllene, perto de Elis, estava
41

localizada na costa oeste do Peloponeso). Heródoto já mencionara que no início de 480


a.C., os aeginetanos exportavam grão para o Peloponeso. O acesso arcadiano ao grão de
Cirene nos anos de 320 a.C. confirma a existência dessas importações. Essa integração
progressiva, com as regiões interioranas tendo acesso normal ao comércio do
Mediterrâneo, permitiu uma rápida acumulação de ganhos. Apesar da instabilidade
“ecológica”, deve ser salientado que o acúmulo de ganhos tornou possível viagens cada
vez mais distantes por todo o Mar Mediterrâneo. Financiar o comércio através do
Mediterrâneo pressupunha capital significativo, possível por um prévio acúmulo,
centrado em sua maior parte no transporte marítimo (BRESSON, 2005, p. 104- 105).
A defesa de que o mercador da Grécia antiga era um homem de classe proletária,
desprovido de qualquer fortuna, incapaz de financiar suas próprias viagens comerciais, a
quem a adversidade da pobreza tinha empurrado para o mar, além de “iletrado”, não
condiz com as evidências. Muitos indícios apontam em uma direção completamente
diferente da que foi antevista por Hasebroek e corroborada por Polanyi.
A recusa explícita de Hasebroek de distinguir entre o vendedor varejista
(kapêlos) e o comerciante de longa distância (nauklêros ou emporos) é uma falha básica
de seu modelo, segundo Bresson. Há informações de várias pessoas bem conhecidas e
(supostamente) ricas que em algum momento de suas vidas engajaram-se em atividade
comercial. Sólon se envolveu com o comércio em sua juventude e depois de ter
promulgado suas leis, novamente exerceu seus talentos nessa direção para facilitar suas
visitas a outros países. Também se envolveram com o comércio o famoso milésio
Thales, o matemático Hipócrates, e Platão, que vendeu óleo no Egito para pagar suas
viagens por lá. O caso do filho de Sopaios, deputado de Sátiro I, o arconte de Bósforos,
que veio a Atenas com vários navios carregados com grão exatamente como Sólon, dá
uma ideia do processo envolvido: não eram uns poucos sacos de grão ou ânforas de óleo
que estavam em jogo. Andócides tornou-se um emporos e nauklêros quando estava no
exílio. Quanto a emprestar dinheiro, o famoso filósofo Zenão de Cítio tinha uma fortuna
de mais de mil talentos, empregados em empréstimos marítimos (BRESSON, 2003, p.
145-146).
Assim o comércio foi uma atividade que poderia ser desempenhada de maneira
permanente, mesmo que supostamente não ocupasse uma vida toda. Podia ser, e
provavelmente muitas vezes assim o era, somente uma atividade que cobria um período
de vida. Quando Sólon desempenhou uma atividade comercial, o que mais era ele se
não um mercador? É importante salientar que quem praticava uma atividade comercial
42

durante parte de sua vida não seria marcado de uma maneira especial, sendo isolado do
resto da sociedade, ou se conferindo a ele alguma indignidade especial ou restrição
social.
Mas o comerciante comum foi tipicamente alguém da “pequena arraia-miúda”?
No período arcaico, o samiano Kolaios e, sobretudo, o egino Sostratos conseguiram
lucros fabulosos com comércio no Mediterrâneo ocidental. Em relação à dádiva
voluntária (epidosis) de 3.000 dracmas feita pelo emporos Herakleides de Salamina em
328/327 a.C., Bresson a coloca em perspectiva no contexto dos empréstimos feitos
pelos emporói. As quantias das dádivas feitas por mercadores no contexto da crise de
328/327 a. C. – 3.000 dr. por Herakleides, mas também uma dádiva de um talento feito
pelo mercador Chrysippos e seu irmão na década de 320 - bastam para mostrar que
esses homens eram pessoas muito ricas. Uma dádiva de 3.000 dracmas representava
entre 15 a 7,5 anos de renda para um típico ateniense ganhando entre 200 a 400 dracmas
por ano. Parece que, na maioria das vezes, a quantia de uma doação de um indivíduo era
de umas poucas dracmas; às vezes alcançava 100 ou 200 dracmas, em alguns casos mais
de 1.000, e muito raramente mais de 10.000 ou 20.000 dracmas. Portanto, longe de
mostrar a pobreza dos mercadores, as doações voluntárias da década de 320 a.C.
mostram que, pelo menos, alguns mercadores pertenciam à camada mais rica da
sociedade ateniense. Parece razoável sugerir que uma dádiva de 3.000 dracmas
pressupõe uma fortuna de pelo menos 3 ou 4 talentos, talvez muito mais. Tais dádivas,
obviamente, foram feitas por pessoas que, se elas tinham sido cidadãos, teriam
pertencido à pequena minoria, menos de um 1% da população cidadã, que possuía uma
fortuna naquele nível. Isso estava muito acima da massa de pessoas comuns (cidadãos e
metecos) para quem umas poucas dracmas já eram uma grande fortuna.
Reconhecidamente, as dádivas dos comerciantes de grão tinham objetivo de financiar a
sitonia, a reserva de grão para o povo, pois a maior parte de sua fortuna foi feita com a
venda de grão (BRESSON, 2003, p. 147-148).
A relação de respeito que os atenienses mostravam em relação aos negociantes
de grão estava ligada à importância vital que eles tinham para a cidade. Mas deve
também ser salientado que a fortuna de alguns envolvidos no comércio podia justificar o
alto nível de honras que eles recebiam da cidade, e tal foi o caso de Herakleides de
Salamina. Pode essa conclusão aplicar-se a todos os mercadores? Certamente que não,
mas isso não significa que as pessoas envolvidas no comércio eram socialmente
43

marginais. A maioria delas provavelmente era muito mais rica do que as pessoas
comuns da cidade.
Sob circunstâncias favoráveis, um lucro significativo podia ser esperado do
comércio, e poderia ser dito que quanto maior o risco (por causa da guerra, do embargo
comercial, etc.), maior é o lucro esperado. Quando as circunstâncias mudavam
(reconhecidamente, na maioria das vezes, por causa da situação política, porém outros
traços poderiam ser incluídos como uma má colheita local, ou uma tempestade que
destruísse um grande número de navios), um lucro muito maior ou uma perda líquida
podia ser esperada. A terra trazia segurança, mas um lucro comparativamente menor.
Essa diferença era a origem da ampla oposição entre engeiostokos, “rendimento de
terra”, e náuticos tokos, “rendimento marítimo”, o primeiro com uma média de taxa de
12% durante um ano, o segundo, frequentemente, com uma taxa entre 20 até 30%, por
uma viagem completa. Comercializar no mar significava incerteza: podia trazer lucro
justo em um período curto, até fortuna iminente sob circunstâncias especiais, ou
completa ruína e até morte no caso de naufrágio. Isso é porque as taxas de empréstimo
de comércio marítimo eram muito mais altas do que para empréstimos regulares
(BRESSON, 2003, p. 150-151).
Esta perspectiva é compartilhada em grande parte por Paul Christesen (2003),
que ao analisar os investimentos feitos pela elite ateniense no século IV a.C., ressalta a
análise racional na busca de receitas maximizadas feita por aquela, com dispêndio de
tempo, energia, dinheiro e tecnologia relativamente avançados a fim de alcançar os mais
altos retornos para seus investimentos. A hierarquia dos lucros estava relacionada com
os riscos das aquisições. Nessa hierarquia, a propriedade imobiliária apresentava os
menores riscos. Os empréstimos ligados à terra e ao comércio representavam maiores
riscos, mas com lucros mais altos, e a mineração de prata representava a aventura
especulativa, por excelência, de Atenas no século IV a.C., contudo os custos altos eram
compensados por um lucro potencialmente espetacular. Uma avaliação qualitativa da
correlação entre os riscos e lucros na Atenas do século IV a.C. indica que os
investidores avaliavam frequentemente os méritos relativos às alternativas abertas e
demandavam um lucro proporcional aos riscos antecipados. Essa correlação não se
originava das ações de poucas pessoas dispersas, mas era a realidade de um ambiente
econômico povoado por investidores que empregavam uma racionalidade econômica
com a maximização de receita como preferência dominante (CHRISTESEN, 2003, p.
53).
44

Um homem com um capital insuficiente para financiar uma viagem tinha de


pegar emprestado para ser capaz de entrar para o comércio. Um homem com capital
modesto, suficiente para financiar uma ou umas poucas viagens, ficaria arruinado se ele
apostasse toda sua fortuna e a perdesse, era melhor aceitar um lucro menor e pegar
emprestado a maior parte do seu capital. Um homem que podia se permitir perder uma
pequena parte de sua fortuna no mar, podia aceitar o risco de financiar suas próprias
expedições. Um homem que tinha ele próprio conseguido no comércio alguma fortuna,
tinha alcançado meia-idade e não mais estava propenso a correr riscos no mar, podia, ao
contrário, emprestar seu dinheiro para recém-chegados que, sucessivamente, esperavam
construir suas próprias fortunas no mar. Parece razoável inferir que a maior parte das
viagens por mar era financiada por empréstimos. Contudo, também deveria ser
salientado que mesmo na prévia reconstrução de uma viagem comercial ao Bósforo,
uma parte do dinheiro inicial necessário deve ter vindo de fontes dos empréstimos
hipotecados (para pagar a viagem ou para parte da carga, despesas menores, etc.). Um
homem desprovido de qualquer capital tinha, desse modo, pouca chance de entrar para o
clube dos comerciantes marítimos.
As fontes literárias sugerem que os mercadores estavam longe de serem
iletrados. Mesmo em um círculo familiar, os empréstimos eram registrados em
documentos escritos: a esposa de Polyeuctos possuía gramata dos empréstimos feitos
para seus genros. Se levarmos em conta a contabilidade privada de Strepsiades no
Clouds (uma categoria de documento, certamente, sem paralelo em qualquer papiro do
período Clássico), especialmente com relação às taxas de troca monetária, é difícil
acreditar que os mercadores permaneceram “iletrados” e completamente ignorantes de
assuntos contábeis. No Econômico, Xenofonte mostra os mercadores como um
exemplo de boa organização. Homero, na Odisseia, mostra Ulisses como
phortoumnêmôn, um homem encarregado da contabilidade do barco. No A vida de
Apollonios de Tyana, Philostratus usa muito uma fórmula para demonstrar que o
jovem espartano que ele critica não deveria entregar-se ao comércio, levando em
consideração somente seu cargo e sua contabilidade nos empréstimos marítimos. De
Homero até Philostratus, era corriqueiro que a primeira obrigação de um comerciante
fosse manter uma contabilidade precisa de suas operações comerciais, ainda mais
quando agia em nome de outra pessoa, como agente ou em nome do senhor, no caso do
mercador ser um escravo. Uma nova classe de documentos comerciais, inscrita em
chumbo, preservados até hoje, que incluem as cartas provenientes de Berezan,
45

Emporion e PechMaho, mostra que os mercadores eram capazes de se comunicar por


meio da escrita (BRESSON, 2003, p. 145).
Para Bresson, a relação entre mercadores e a cidade grega deve ser abordada em
torno da relação mais geral da cidade grega com os estrangeiros. Em Atenas, o comércio
estrangeiro estava parcialmente nas mãos dos estrangeiros, pois os cidadãos tinham sua
parte. Na prática, os atenienses não rejeitavam quaisquer comerciantes, se cidadão ou
estrangeiro. Platão e Aristóteles representavam um ponto de vista tradicionalista que
defendia a separação de cidadãos dos estrangeiros. Para Platão, o comércio estrangeiro
era uma ocupação degradante, que não devia ser desempenhada por cidadãos, mas
somente pelos metecos. Todavia, qualquer que fosse a história de Atenas, não foi a
ideologia da exclusão de estrangeiros e comerciantes estrangeiros que triunfou.
Xenofonte defendia oferecer assentos dianteiros no teatro para os emporoi e nauklêroi
que agiam como benfeitores da cidade. A realidade da comunidade comercial nas
cidades gregas, seja Atenas, Rodes, Cós, ou outra cidade, era de um grupo misto de
estrangeiros que usavam essa cidade como uma base. Em Cós, por exemplo, o grupo
comercial era composto pelos empóroi e nauklaroi que tinham seu ponto de partida na
cidade, uma categoria que abarca tanto os cidadãos como os metecos. (BRESSON,
2003, p. 160-161).
O modelo de uma sociedade mista na classe mais alta de Atenas se aplica
também a círculos comerciais. Isso não significa que a cidadania era sistematicamente
outorgada ao comerciante rico (já vimos um pouco dessa questão mais acima com
Burke), da mesma forma que os atenienses não concediam automaticamente a cidadania
a um filósofo, artista ou qualquer outro profissional estrangeiro distinto. Comerciantes
estrangeiros que comercializavam em outras cidades geralmente eram benvindos. A
exclusão de estrangeiros podia às vezes acontecer, como quando os atenienses baniram
os megarianos de seus portos e daqueles de seu império, mas tal ato era uma forma de
guerra econômica, que não refletia a realidade costumeira das cidades gregas.
Como se tem frequentemente salientado, a separação entre o empório, onde o
comércio externo era realizado, e a ágora, lugar de comércio local, foi fundamental para
a estrutura de intercâmbio e comércio nas cidades gregas. As exigências do “mundo do
empório” estimularam uma importante evolução judicial representada em sua forma
mais avançada pelo sistema ateniense de dikai emporikai (casos comerciais). Essa
evolução tendeu a abolir a distinção legal entre estrangeiros e cidadãos em assuntos
comerciais. O caso era julgado conforme seu objeto, não conforme a nacionalidade dos
46

diferentes partidos. Qualquer que fosse sua nacionalidade, os comerciantes eram


necessários para garantir um nível suficiente de conectividade, que servia aos interesses
tanto de indivíduos (para contatos comerciais, e a oportunidade de comprar mercadorias
e vender seus produtos), como da comunidade-estado (por causa dos impostos
comerciais). Na Grécia antiga, o comércio não era separado das estruturas da pólis e,
portanto, procurar por uma “aristocracia mercantil” não pode ser uma boa forma de
interpretar a evidência. Mas também é igualmente inaceitável ver mercadores e
comerciantes como somente párias pobres, cuidadosamente mantidos pelas cidades à
boa distância. Mercadores e comerciantes não eram “pequenas arraias-miúdas”,
incapazes de se sustentarem sem recorrem a empréstimos, argumenta Bresson (2003,
p.162-163).

O MERCADO LOCAL E OS NOVOS MODELOS

Em relação à definição de mercado propriamente dito, Polanyi afirma que este


tem dois significados correntes: 1. Um lugar tipicamente aberto, no qual os gêneros
alimentícios ou alimentos preparados podem ser comprados em pequenas quantidades,
em geral, por taxas fixas; 2. Um mecanismo de oferta-demanda-preço, por meio do qual
o comércio é conduzido, porém não necessariamente ligado a um local definido ou
restrito ao varejo de alimentos. Na verdade, estes significados são distintos. No primeiro
significado, o fenômeno empírico tangível é um lugar físico, onde multidões encontram-
se para o propósito da troca. No segundo, é um mecanismo específico, uma variante do
comércio. Obviamente o mercado tido como um lugar precedeu a qualquer mecanismo
competitivo do tipo oferta–demanda. Este mecanismo apareceu provavelmente dois mil
anos depois da aparição do mercado como um mecanismo de distribuição de grãos no
Mediterrâneo oriental.
Do ponto de vista formalista, o segundo significado tornou-se a definição
institucional de mercado. Tal definição é oriunda da ideia de que o mercado é o lugar do
intercâmbio. Estes elementos nunca estão dissociados. A vida econômica se reduz a atos
de intercâmbio realizados por meio de regateio que se cristaliza no mercado. Assim, o
intercâmbio é a relação econômica e o mercado é a instituição econômica.
Polanyi nega peremptoriamente que o mercado e o intercâmbio (troca) estejam
inextricavelmente ligados. O intercâmbio é um movimento mútuo de apropriação de
47

produtos entre sujeitos, feito por equivalências fixas ou negociadas. Só neste último
caso, há regateio entre as partes. Portanto, se há intercâmbios, há equivalências, porém
somente o intercâmbio a preços negociados está limitado especificamente a uma
determinada instituição, aos mercados criadores de preço (POLANYI, 1976, p. 311).
Neste sentido, o termo mercado não é definido necessariamente pelo mecanismo
de oferta-demanda-preço, mas sim por uma conjunção de características institucionais,
chamadas de elementos de mercado. Em primeiro lugar, o mercado é constituído por um
lugar, fisicamente presente; em segundo, por uma multidão de ofertantes ou de
demandantes. Essas multidões se definem como uma multidão de sujeitos desejosos de
adquirir ou de desfazer-se de produtos no intercâmbio. A separação entre as multidões
de ofertantes e demandantes configurou a organização de todos os mercados pré-
modernos. Os intercâmbios podem se concretizar por equivalências fixas sob formas de
integração caracterizada pela reciprocidade ou redistribuição, ou por equivalências
negociadas, gerando uma forma específica de integração, com mercados criadores de
preços. Só com estes elementos é que se pode falar de mercado. Finalmente, há os
elementos funcionais, como a situação geográfica, os produtos que se trocam, os
costumes e as leis
A instituição de mercado tem dois desenvolvimentos diferentes: um externo à
comunidade e o outro interno. O primeiro está intimamente ligado à aquisição de
mercadorias de fora, enquanto o segundo, à distribuição local de alimentos.
O desenvolvimento do tipo de mercado local, a ágora, na Grécia clássica, foi,
em primeiro lugar, uma reação às formas de distribuição feitas pelas households
senhoriais, que contribuíram para enfraquecer as relações de reciprocidade tribais e, em
segundo, um meio pelo qual a democracia mantinha a subsistência de seus cidadãos.
O enfraquecimento dos laços tribais já aparece nos poemas de Hesíodo, os quais
retratam a transição de dois eventos díspares: a invasão dos Dórios, que foi uma
catástrofe política, e a chegada do ferro, que foi uma revolução tecnológica. É nesse
contexto que Hesíodo descreve o enfraquecimento dos laços de parentesco e o lento
fortalecimento dos laços de vizinhança, embora procure reforçar em seus poemas a
necessidade de manutenção dos laços de reciprocidade existentes anteriormente. Há
evidência da existência de households senhoriais na Grécia homérica, organizadas em
torno da propriedade familiar, fora da esfera tribal, constituindo uma força dilaceradora
das relações tribais. Segundo Polanyi, a pólis herdou as tradições tribais, tanto
aristocráticas quanto democráticas, e estabeleceu as condições para um tipo de
48

redistribuição que se contrapôs aos efeitos demolidores das households senhoriais


autossuficientes. Tais condições foram criadas, em primeiro lugar, pela convicção dos
gregos de que pólis era sinônimo de civilização e, por isso, a subordinação do indivíduo
à pólis, ao Estado, era completa tanto na esfera política quanto na militar, impedindo
qualquer ideia de direitos individuais. Tal ideia de uma responsabilidade total da pólis
sobre os cidadãos estendeu-se ao plano econômico sendo vital o controle da subsistência
de seus cidadãos. O Estado coletava mercadorias, serviços, dinheiro, tesouro e grãos e
os armazenava nos celeiros do Estado ou, em casos emergências, nas households. Mas,
como redistribuir essas mercadorias em um sistema democrático? Como manter a
igualdade e a participação dos cidadãos na política, sem deixá-los ficar à mercê de
homens ricos sedentos de uma clientela própria por meio de distribuição de alimentos
em suas próprias households? Finalmente, como evitar a instalação de uma burocracia,
considerada como antítese da participação direta de todos os cidadãos na vida política?
A solução para essas questões foi o pagamento em dinheiro a todos os cidadãos
que participavam dos cargos no Estado – tribunais, boulé e forças armadas - ou mesmo
apenas nas assembleias, e a utilização desse dinheiro em um mercado local que
vendesse alimentos a varejo. A distribuição de alimento por meio de um mercado não
foi facilmente aceita pelas facções políticas mais conservadoras, que viam no mercado
local uma forma de fortalecimento da facção política democrática e um
enfraquecimento de seu poder político, pois criava uma alternativa à distribuição de
alimento além das households senhoriais. O contraste entre os dois centros de
redistribuição, o oikos senhorial e a pólis democrática, é mais claramente expresso no
conflito entre Címon e Péricles. O primeiro, um rico líder conservador, convidava seus
vizinhos e dependentes para refeições livres em seus domínios, além de um generoso
desempenho de liturgias, enfraquecendo o poder político de Péricles, também um rico
membro da aristocracia, que via nessas práticas um obstáculo para o desenvolvimento
do sistema democrático. Daí o incentivo de Péricles às práticas do mercado local, a
ágora (POLANYI, 1977, p. 178). Eis aí, a junção do caráter político da pólis, - manter a
subsistência de seus cidadãos -, com o papel redistributivo da ágora.
Desde o século VI a.C., Atenas possuía um tipo de mercado, onde o alimento,
leite fresco e ovos, legumes frescos, peixe e carne, era vendido a varejo. Em geral, esses
artigos eram produtos da vizinhança, vendidos por homens e mulheres camponeses, por
dinheiro ou por barganha. O freguês, que procurava por sua comida no mercado, era o
trabalhador pobre ou transeunte que não tinha household própria. Nem o comerciante
49

recém-chegado nem o residente próspero frequentavam o mercado local primitivo, uma


prova de que ele servia às necessidades das pessoas comuns. Também figuravam como
características da ágora as fronteiras rígidas, especificações de quem e com quem
poderiam comercializar; os inspetores oficiais de mercado e os tipos de mercadorias a
serem vendidas. Tudo isto nos mostra a preocupação da pólis com o tipo de mercado
que funcionava em seu interior. Portanto, diferente do planejamento burocrático em
larga escala do Egito, o mercado local representava em Atenas um planejamento em
pequena escala, mas ocupava um lugar crucial para a constituição política da
democracia da pólis (POLANYI, 1977, p. 167).
O mercado de alimentos era a resposta para a distribuição de alimentos sem uma
burocracia e se realizava com o pagamento em dinheiro aos cidadãos por serviços
militares, políticos, ou mesmo um pagamento cotidiano. Este pagamento era viabilizado
pelo Império, que significava, em primeiro lugar, o controle da importação de grão e,
em segundo, receitas adicionais para sustentar seus cidadãos. A conexão de poder naval
(talassocracia) ateniense e democracia alcançou seu ápice com as políticas de Péricles
(POLANYI, 1977, p. 167).
Polanyi acreditava que o mercado local nada tinha a ver com o comércio
estrangeiro; eles tiveram origens separadas e independentes. Havia uma separação
institucional não somente entre comércio e comerciantes internos e externos, mas
também entre seus lugares e preços. O empório estava localizado no porto de Atenas, no
Pireu e a sua separação do resto da cidade era simbolizada pelas pedras fronteiriças que
a circundavam e a separavam do próprio Pireu que, legal e institucionalmente, era uma
parte de Atenas. Apesar de não haver dados concretos sobre o movimento de preços de
grãos, é possível inferir que os preços dos grãos vendidos na ágora não variavam de
acordo com as flutuações de preços no empório. Na medida em que o movimento de
preços de grãos estava diretamente relacionado a eventos políticos, sua variação era
proporcional ao poder naval de Atenas em relação ao resto do mundo grego. Dessa
forma, quanto maior o controle de Atenas, maior a possibilidade de monopólio sobre a
compra de grãos, e consequentemente, maior a possibilidade de preços baixos.
Atenas sempre se preocupou em manter o preço do grão na ágora abaixo do
preço do empório, inclusive com mecanismos rígidos de controle, como, por exemplo, a
proibição de intermediários e a imposição de um limite quantitativo de compra de grãos
no empório. Um dos artifícios mais utilizados para isso foi o apelo ao desejo de status e
orgulho dos comerciantes e metecos. Os magistrados persuadiram, ou tentaram
50

persuadir, os comerciantes a venderem seu grão a um “preço justo”, cinco dracmas,


independente de quanto estivesse o preço no empório, em troca de honras especiais
oriundas de decretos da cidade. Além de vender a preços mais baixos, o comerciante era
induzido a contribuir com dinheiro, para que a cidade comprasse grãos para serem
revendidos a cinco dracmas para a população. O resultado dessas políticas era o de
“unir” o preço da ágora ao do empório, o que para Polanyi, constituía um traço de
continuidade do passado redistributivo de Atenas (POLANYI, 1977, p. 236-238).
Polanyi se volta para os escritos de Aristóteles que defende o intercâmbio para
manter a autarquia, sendo assim natural e, consequentemente, justo. Esse intercâmbio
deveria manter a coesão da comunidade, atendendo aos interesses da comunidade, e não
dos indivíduos. O “preço justo” ou fixo identificava-se com o comércio natural e era
fruto de costumes e de fatores extra-econômicos. Já o intercâmbio com ganho era
antinatural, e a flutuação de preços, indesejável. Assim, a troca derivava da instituição
da distribuição dos bens necessários com o propósito de abastecer os membros da
família para que chegassem ao nível de autossuficiência. À medida que se podiam
aplicar termos legais a condições tão primitivas, a transição se referia a uma transação
em espécie, limitada em quantidade às necessidades reais do solicitante, realizada em
termos de equivalência e com exclusão do crédito. O intercâmbio era, nesse contexto,
parte de um comportamento de reciprocidade, em contraste com os critérios comerciais
de ganho (POLANYI, 1976, p. 135-137).
As considerações de Polanyi sobre os mercados gregos complementam sua ideia
sobre comércio administrado, particularmente em relação ao papel do Estado, pólis, na
vida econômica e social daquela sociedade. A sociedade grega, segundo Polanyi, marca
a transição entre as sociedades sem mercado e as sociedades com mercado. Esta
transição é apresentada por ele de forma clara no estudo dedicado ao pensamento de
Aristóteles. Para ele, Aristóteles vive precisamente o momento do surgimento do
mercado de Atenas, um dos primeiros casos de city market (mercado da cidade), “como
uma inovação perturbadora”. Ele ignora a lei da oferta e da procura e assim demonstra
uma ingenuidade total frente ao mercado.
Uma abordagem crítica do topos polanyiano tem sido explorada pela questão da
mentalidade. Christophe Pébarthe escreveu um artigo intitulado La chose et le mot. De
la possibilité du marché en Grèce ancienne (2012) no qual critica a posição primitivista,
particularmente a de Finley, quando este afirma que os antigos não tinham qualquer
conceituação de suas práticas de produção e de troca em virtude da ausência de um
51

sistema econômico com um grande conglomerado de mercados interdependentes.


Segundo Pébarthe, apesar dos trabalhos posteriores aos de Finley e Polanyi
demonstrarem a presença de mercado na Grécia antiga, estes herdaram de forma mais
implicita que explicita, a permanência de uma explicação que endossa a ausência de
conhecimento econômico antigo em termos de mentalidade. Em outros termos, os
gregos tiveram a coisa, mas não a palavra. Dito de outra forma, eles tiveram a
instituição, mas não o conceito. Esta perspectiva demanda um reexame de fontes
literárias, em especial os tratados de oikonomia, que são muito poucos, menos de 10
livros.
O gênero logos oikonomikos apareceu no século V. No século seguinte, muitos
são tratados. Eles, no entanto, permitem desenhar os contornos da oikonomia, o
trabalho, o lucro, a gestão, o dinheiro, os ganhos. Podemos encontrar na Odisseia, não a
palavra, mas a ideia de usar os recursos do oikos. O oikonomos significa a abelha
mulher. E até o século V, o conceito de oikonomos implica ter recebido um oikos,
usando os recursos do oikos com medida, preservar o oikos. A função sempre recai
sobre as mulheres. No século IV a.C., é próprio do homem. A oikonomia torna-se um
aspecto do comportamento global do homem na cidade. Esta evolução está relacionada
com o aparecimento dos logoi oikonomikoi, o nascimento de um novo tipo de logos que
resulta da evolução da economia ateniense (PÉBARTHE, 2012, p. 134-135).
No período clássico, os sofistas vão assumir um papel importante no ensino da
oikonomia. Por meio da arte da retórica, os sofistas estão particularmente interessados
em persuadir os cidadãos, daí seu envolvimento com as questões do cotidiano e o seu
domínio de várias especialidades: astronomia, matemática, história, poesia, música,
arqueologia. Aceitam a relatividade dos valores sem, entretanto, reduzir tudo ao
subjetivismo, e acreditam que nenhum aspecto da vida humana ou do mundo em sua
totalidade possa escapar do conhecimento, que é o resultado de uma discussão racional.
Os sofistas se interessam pelo cidadão na sua cidade, em um contexto de prosperidade
econômica pedindo, pelo menos para alguns deles, somas consideráveis de dinheiro em
troca do benefício de suas lições. Pelos bons conselhos (euboulia) que dão, pretendem
fazer seus ouvintes serem bons cidadãos, tanto em seus assuntos particulares, quanto
nos assuntos públicos. Nesta perspectiva, a reflexão sobre a oikonomia, entendida como
a gestão de seu patrimônio torna-se crucial. A capacidade de bem gerir seu oikos
habilita o cidadão a participar da administração da cidade, quer dizer, entre outras
coisas, enriquecer esta última (PÉBARTHE, 2012, p. 135-136).
52

A oikonomia, sem dúvida, difere da economia do século XXI. Nascida em um


determinado contexto intelectual, não tem por vocação inicial entender os preços, a
produção, ou até mesmo o comércio. É antes de tudo política, no sentido do termo
grego, no cruzamento das instituições e práticas sociais. Deve ser entendido que a
oikonomia não é a economia porque nunca se propôs a ser. Esse não foi o seu objetivo.
Será que isso significa que os gregos não tinham economia, que eles não conheciam o
princípio do mercado?
Se os gregos não tiveram uma palavra para designar o princípio do mercado,
quando surgiu a necessidade, eles recorreram à metonímia. Como compreender o
decreto de Megara? Tucídides, no livro I de A Guerra do Peloponeso (1.144.2), evoca
a decisão ateniense. Durante o debate em Esparta, em 432 a.C., os megarianos se
queixaram do acesso negado às portas do império e da ágora ática. Alguns meses mais
tarde, os espartanos alertaram os atenienses: eles iriam evitar a guerra se eles
revogassem o decreto sobre Megara. A posssível revogação foi debatida em Atenas e
Péricles, cujo discurso é relatado por Tucídides, promete permitir o acesso à ágora e aos
portos, se Esparta, entretanto, não expulsasse os atenisenses e seus aliados
(PÉBARTHE, 2012, p. 136-137). De que ágora se fala então?
Nos Arcanenses (533-534), Aristófanes reserva uma resposta inicial a esta
pergunta. Um megariano não pode ter acesso a Atenas, por terra ou por mar, ele não
pode mais caminhar no espaço controlado por Atenas, em outras palavras, na arche.
Devemos inferir que o poeta cômico designa a ágora de Atenas? Quando Dikaiopolis
declara a paz, ele estabelece a sua própria ágora em que se apresenta logo um
megariano, agora livre para vir comprar e vender. Ao mesmo tempo, a exclusão da terra
implica aquela da ágora. Na verdade, como chegar ao centro da cidade sem entrar no
território da cidade? Portanto, é provável que a referência à ágora de Aristófanes faça
referência direta ao texto do decreto em si (PÉBARTHE, 2012, p. 137).
De modo mais geral, o poeta descreve as consequências da exclusão da ágora e
das portas da arche. O continente, isto é, todas as regiões situadas ao norte de Megara,
está fechado aos megarianos. Isso implica que todas as agorai da ática estão com seus
acessos proibidos. Assim Plutarco parece compreender a decisão de Péricles: “[Os]
megarianos vieram depois que os Corinthianos irritados, acusando os atenienses a
Esparta, eles denunciaram a sua exclusão da ágora e a todos os portos em que os
atenienses tinham autoridade”. Os megarianos estão excluídos de todos as agorai de
Ática e dos portos da arche. A expressão ágorai attikè implica uma proibição geral para
53

os megarianos de vender e comprar qualquer mercadoria em Atenas, ou seja, em toda a


cidade. Ele descreve bem o aparecimento de todo o território cívico como um mercado.
Nesse sentido, ágorai attikè está mais perto do mercado (market principle) que do lugar
de mercado (place market) (PÉBARTHE, 2012, p. 137).
De acordo com Isócrates, se o Pireu, como todo Emporion é um território,
consequentemente, toda Atenas aparece como um espaço de prosperidade para todo o
mundo grego. Um paralelo foi elaborado com o resto de uma passagem Xenofonte, no
qual a cidade é mais ou menos o centro do mundo grego. Por terra ou por mar, para ir de
um lado para o outro da Grécia deve se passar por Atenas, centro de um círculo.
Assim, a afirmação de Isócrates sobre o texto do decreto a respeito de Megara
enfatiza que o Emporion e a ágora significam, ao mesmo tempo, por um lado um
território e um espaço e, por outro, uma instituição que permite a alocação de recursos.
Parece simplista considerar, portanto, que os gregos tinham a coisa, o mercado (ágora
ou market place), mas não a ideia, instituição, mercado (princípio do mercado). Para
Pébarthe, a dimensão mercantil da economia grega é óbvia, uma vez que nenhuma
mentalidade particular pode justificar a falta de conhecimento econômico antigo. O
mercado está claramente dentro das categorias intelectuais dos gregos antigos
(PÉBARTHE, 2012, p. 138).
Como vimos, Poalnyi não negou a presença do mercado na Grécia Antiga. A
análise da ágora como mercado de alimentos e de Aristóteles nos mostra tal
perspectiva. Mas sem dúvida, a ênfase na diferenciação do mercado criador de preços,
interdependente e autorregulável os levou, assim como Finley, a abandonar este aspecto
mental da sociedade grega. Tais autores, ao procurarem realçar as diferenças,
desprezaram tais tratados como possibilidades de tal sociedade de refletir e formular
sobre princípios econômicos. Esse é o mérito de Phébart, mas em nossa opinião, tal
reflexão não é suficiente para caracterizar o mercado no mundo grego. É nesse sentido
que as análises que se voltam para as características institucionais podem ser
extremamente úteis.
A perspectiva de análise dos mercados na Grécia Antiga advogada por Raymond
Descat (2006), se aproxima de Hasebroek e Polanyi, ao relacionar o mercado com a
política da Cidade-Estado, mas se distancia, de Polanyi, ao não aceitar o ponto de vista
metodológico do substantivismo de se apoiar em dois antagonismos: de um lado, o
psicológico; e de outro, a pura racionalidade econômica dominada pelo período
capitalista. Em conformidade com Pébarthe, Descat não aceita a hipótese da oikonomia
54

grega como tratados “pré-mercantis”, hipótese defendida em função de um processo


genético uniforme. A estrutura cultural própria à antiguidade grega não é explicada pela
ausência do mercado, mas pela existência de elementos específicos em um espaço de
mercado em que se faz necessário descrever o seu lugar e o funcionamento.
Descat é enfático: “o mundo grego é um mundo do mercado, não somos nós que
afirmamos, mas os Gregos” (DESCAT, 2006, p. 258). Descat afirma que a constituição
de um lugar de mercado, a ágora, no qual a cidade intervém nas trocas, ocorre desde o
final do período arcaico. Uma forma de apreender o funcionamento dessas trocas é
analisar as intervenções da cidade sobre as condições de compra e venda, os preços e os
aprovisionamentos a fim de compreender a inovação real que esta representa.
Há um fato historicamente excepcional: o mercado sob a forma concreta da
ágora é uma realidade que distingue completamente o mundo grego de seus vizinhos.
Em meados do século VI a.C., os espartanos modificaram profundamente suas
instituições. Eles criaram a magistratura da éphora: os cinco éphoros são colocados no
final da ágora. Para além de suas atribuições políticas e jurídicas, eles tinham o papel de
julgar os processos nascidos dos contratos. Essa é uma função nova, que suscita
interrogações: É provável que, no início, os éphoros tenham sido os supervisores dos
mercados? Descat admite que, na economia antiga, as relações econômicas estão
imbricadas no resto dos comportamentos sociais e a necessidade de pensá-las como um
fato social total deve ser estudada. Daí a impossibilidade de reduzir o mercado grego a
uma simples função econômica. De comum acordo com a perspectiva polanyiana e
mesmo weberiana de demarcar desenvolvimentos desiguais entre o Ocidente e Oriente,
Descat argumenta que a originalidade grega é a associação íntima do espaço das trocas
com o campo da cidade e seus valores (incluindo, neste caso, militares). O fato novo
não é que se pode comprar e vender, porque isso já se fazia também no Oriente, mas
que este espaço é um espaço aberto a todos (comum, koinon) e controlado pela cidade,
que irá intervir sobre as operações que são feitas lá (DESCAT, 2006, p. 258-260).
A manutenção da ideia de éphora (que significa, em grego, o supervisor)
anexado aos responsáveis da ágora que serão na maior parte do tempo nas cidades os
agronomes é um traço constitutivo da ágora grega. Podemos assim constatar que a nova
instituição da ágora configura-se no decurso de um período que vai do século VII a
meados do século VI a.C. Como este espaço social da ágora foi construído? O que
causou esta modificação dos usos, esta nova institucionalização do mercado que a partir
de então vai ser relacionado à cidade na sua essência? Segundo Descat, o melhor ponto
55

de partida é o estudo das leis mais antigas sobre a compra e a venda. Elas vêm de
Atenas e Corinto. Em geral estas leis são em sua maioria proibições e, muitas vezes, têm
por objeto os homens (regulamentação e interdição de sua venda). Estes dois aspectos
são significativos. O primeiro constitui, como quer a tradição dos códigos arcaicos
gregos, um modelo de comportamento que é necessário seguir sob pena de destruir todo
o conjunto de ordem a ser estabelecida. O segundo indica que em torno destes
problemas de troca existia uma situação de conflito que implicava os homens. Não é só
porque as trocas quantitativamente aumentaram: as razões desta mudança são mais
graves para a sociedade (DESCAT, 2006, p. 260-261).
Uma lei soloniana publicada em 594 a.C. marca o certificado de nascimento do
mercado de Atenas. Tal lei submetia a troca ao controle da cidade. Antes de Sólon,
todos aqueles que, na Ática, tinham um excedente, podiam trocá-lo como bem lhes
pareciam com os estrangeiros, quer fora, quer dentro do território, em locais
considerados mais ou menos como “neutros”, os “mercados de fronteira” (agorai
ephoriai, não controlados, ou quase, pela cidade. Sólon elimina a possibilidade de
alienar os seus produtos diretamente (exceto o azeite, porém, mais tarde o azeite irá
acompanhar também a mesma regra). Os atenienses de agora em diante estão obrigados
a vender na Ática os seus produtos em um lugar preciso, na ágora. Os estrangeiros estão
autorizados, conforme decisão da cidade, a entrar no mercado da Ática, sem restrições,
de acordo com os vínculos que eles tenham com a cidade e seus cidadãos. O mercado é
criado em um contexto que define as regras para a cidade, que pode sempre modificá-lo
no interesse da comunidade, por exemplo, proibindo a venda aos estrangeiros se houver
escassez de alimentos (DESCAT, 2006, p. 261).
A razão para esta inovação não é somente as transações sobre os bens, mas
também o comércio de homens. Ele suprime em Atenas a servidão por dívidas,
libertando uma população dominada, os hectómoros, que poderiam ser escravizados na
Ática ou vendidos no exterior. Esta decisão não se dá só em Atenas. Por volta da mesma
altura, em Corinto, o tirano de Périandro estabelece uma lei em que proibia os cidadãos
de adquirir escravos. Essas medidas mostram o papel que as novas elites assumem nas
trocas com o exterior e as demandas pela aquisição de escravos. Essa elite acentua as
formas de pressão social para obter bens de troca, a ponto de até mesmo transformar as
categorias tradicionais de dependentes em escravos. É a esta “liberdade” de ação da elite
social nos intercâmbios que se destina as medidas solonianas: estes comportamentos
podem ser considerados como preocupantes à cidade e se tornarem insuportáveis, na
56

troca dos bens e na confusão do estatuto dos homens. Esta nova situação conduz assim
às medidas relativas à troca dos bens e do estatuto dos homens como a criação de um
mercado em que as regras sejam definidas. O mercado é a salvaguarda da sociedade,
porque ele define os estatutos e os bens. É provável, aliás, que as relações de trabalho a
partir de agora sejam geridas no âmbito da ágora como aparece mais tarde, por
exemplo, no século IV a.C.: nos negócios que devem ser julgados mais rapidamente,
dentro de um período de um mês, há “a ação de restituição de um capital emprestado
para fazer negócios na ágora” (DESCAT, 2006, p. 262-263).
O nascimento da ágora, como espaço institucional de intercâmbio dentro da
cidade está relacionado a uma diferença substancial entre a cidade grega e o Oriente
Próximo, mas que não se refere ao fato da compra e a venda. A diferença diz respeito a
profundas alterações no mundo grego relativo ao estatuto das pessoas. O controle da
“liberdade” individual da transação e o controle da dívida por contrato são as bases da
nova ágora no meio da cidade (DESCAT, 2006, p. 263).
A cidade intervém realmente apenas nos domínios que aparecem como públicos,
ou comum a todos. Esse dado tem uma importante consequência: a cidade está
envolvida muito pouco no campo da produção, que permanece essencialmente sob a
esfera dos proprietários privados, e intervém no campo das trocas, porque esta última é
koinon. Os produtos, logo que saem do oikos, são colocados à disposição dos membros
da cidade, e a sua circulação é parte do espaço koinon, mesmo se a sua propriedade bem
como os lucros ou perdas sejam da ordem privada.
Cada vez que se evoca a ideia de uma intervenção na cidade, deve ser
especificado que as cidades não necessariamente intervêm de uma maneira uniforme; os
seus métodos e as suas motivações podem ser variados. Se pode, assim, procurar ali
características comuns e, também, diferenças substanciais. As intervenções em torno do
mercado propriamente dito constituem uma característica fundamental da cidade.
Inicialmente, existe toda uma série de intervenções na direção dos comerciantes, a fim
de encorajá-los a vender mais barato, até para vender pouco se houver escassez. Em
segundo lugar, se encontra também as intervenções para a redução de intermediários.
No Pireu, vemos um decreto relacionado com o direito de venda concedido apenas aos
próprios produtores ou para os primeiros comerciantes, para evitar o aumento dos
preços, o que pode levar a cidade a decidir sobre uma diminuição do número de
comerciantes autorizados em um lugar. O objetivo desses regulamentos é a luta contra
57

os preços elevados, em particular em situações excepcionais, como durante feriados


religiosos.
Há, certamente nesta política, outro objetivo - a busca de uma certa
transparência dos circuitos das operações. As mercadorias passam mesmo por um certo
número de registros onde elas são examinadas e tributadas. Dois impostos, pelo menos,
devem ser pagos nas cidades: um para a entrada (e a saída) do território da cidade, a
favor do emporion, onde a quinta parte é paga na frente dos magistrados; outro para a
entrada da ágora na frente dos agoranomistas, referente às taxas da ágora que não são
bem conhecidas, pois são muito diversas (DESCAT, 2006, p. 264-265).
Uma lei em Delos impõe, com efeito, que o preço declarado seja o mesmo na
frente dos dois magistrados, o que permite supor que em tempo normal, esse não era o
caso. A mesma lei especifica que o preço declarado será o preço de venda (que não deve
ser nem maior nem menor que o preço declarado). O sistema délio talvez não seja
isolado, visto que em outros lugares testemunha-se uma preocupação semelhante, mas
em circunstâncias excepcionais. É, por exemplo, o que ocorre em Atenas no século II
a.C. com o mercado de azeite. Os agoranomos intervêm na ágora para se vender os
bens importados a preços que foram declarados, ou a um preço baixo. É, certamente, o
sentido de muitas intervenções dos agoranomos, sublinhadas nos decretos honoríficos,
que louvam sua vontade de persuasão e convicção.
Na ágora, os comerciantes estimam o preço de venda do produto, o que induz
um vínculo muito forte entre os preços que são registrados e os preços reais. Esta
estimativa não deve surpreender-nos, ela corresponde ao que é praticado em outros
campos, como a estimativa de fortunas para os impostos. Este conhecimento dos preços,
estimado pelos comerciantes, pode ter dois tipos de consequências da ação da cidade.
Por um lado, ela pode regular as margens de lucro do comerciante, e por outro lado,
pode controlar os preços, particularmente nos casos excepcionais de carência. Portanto,
em caso de falta ou aumento maciço dos compradores, se pode fixar os preços
(DESCAT, 2006, p. 265-266).
A interpretação polanyiana de Aristóteles o vê como um defensor das relações
de reciprocidade nas trocas. Descat procura acentuar a preocupação de Aristóteles com
o mercado e a comunidade. Para Aristóteles, é necessário que os produtos trocados
sejam estimados de uma maneira justa, ou seja, devem ser “igualizados (equalizados)” –
pois os trabalhos utilizados na produção não têm o mesmo valor. O estabelecimento da
igualdade proporcional dos diversos produtos é fundamental, senão o mercado não vai
58

ser igual e a comunidade não irá permanecer. A conclusão do pensamento aristotélico é


a de que a troca que tenha como suporte um conflito de interesses pessoais é uma
anomalia contrária a toda regra e não pode ser a base de um comportamento racional.
Dentro do quadro das práticas tomadas pela sociedade grega, a troca é concebida
diferentemente, como uma comunidade, construída pelos vínculos da philia e é esta
koinônia que ele procura descrever na Ética à Nicomaco. Em suma, Aristóteles quer
dizer que os preços de venda devem ser determinados antes da troca e não deixados à lei
da oferta e da procura (DESCAT, 2006, p. 268).
Nem Aristóteles, nem Platão conceituaram outra coisa em relação ao mercado e
as práticas das cidades. A questão de se saber se a cidade intervém ou não, controlando
os preços é, portanto, uma questão finalmente parcial: se as fixações autoritárias de
preços são, sem dúvida, raras e reservadas a circunstâncias particulares, a cidade, por
outro lado, intervém constantemente em torno da troca para impedir as distorções. Cada
comerciante deve estimar o preço antes de vender. O objetivo é impedir que a troca se
torne uma relação de força, em vez de uma operação organizada. Este projeto visa à
estabilidade dos preços, a fim de evitar os excessos e, tal como a restrição entre os
intermediários, ela não diz respeito apenas a uma situação extrema, mas procura
organizar um mercado durável dos produtos (DESCAT, 2006, p. 268).
A política das cidades orientadas para a manutenção de seus recursos em relação
às vendas constitui um aspecto importante nas áreas que têm produtos específicos. Ela é
de interesse para os produtores “nacionais”, mas é integrada, quase necessariamente, em
uma economia de troca onde, como já se viu, o preço do produto é procurado,
principalmente, em torno do mercado. Isso deve nos orientar no sentido da ideia de
como as políticas das cidades podem variar, por vezes consideravelmente, em função da
situação econômica da região e sua posição nos fluxos de comércio. A cidade pode
intervir nos mercados de uma forma eficaz, em conformidade com os seus interesses,
que são variáveis. Mas a situação dos mercados está longe de ser uniforme. Nem todas
as cidades têm um emporion que atraia os importadores e os compradores. Outras
cidades, em menor número, desenvolvem poucas relações de trocas. Mas, é o mais
preciso conhecimento das relações entre a cidade e o mercado que deve permitir melhor
compreender o que é, sem dúvida, o mundo muito diverso da vida de mercado na
antiguidade e a colocar o mercado em seu justo lugar nas inovações da cidade grega
(DESCAT, 2006, p. 270).
59

Esta interrogação de Descat nos leva ao modelo de Léopold Migeotte (2008), em


nossa opinião, atualmente, a mais fecunda reflexão sobre o papel dos mercados na
Grécia Antiga. Segundo o autor, admite-se geralmente que o conceito moderno não
pode ser aplicado à antiguidade, quaisquer que sejam as divergências entre os
economistas sobre a definição de economia de mercado. Reconhece-se que durante um
milênio, ou seja, do período arcaico ao início do Império Romano, as atividades
comerciais no mundo grego experimentaram um desenvolvimento notável. Migeotte
aborda o problema levantando duas questões: Até que ponto os gregos orientaram suas
atividades de produção para o mercado e qual o grau de integração de suas trocas? Sua
análise se situa sobre um plano geral e na longa duração, aquela da existência das
cidades.
Da Idade das trevas, entre 1200 e 800 a.C., e talvez até mesmo antes, os gregos
provavelmente conheciam o mercado no sentido básico, isto é, como o lugar onde os
indivíduos partilham livremente os bens materiais e serviços. Ao que parece, o embrião
de tal realidade foi tomando forma durante o período arcaico, a partir do século VIII ou
VII a.C.. De fato, na medida em que as cidades eram dotadas de instituições precisas e
diversificadas, o mercado tornou-se um espaço delimitado, desde edifícios e
equipamentos, sujeitos a regulamentações públicas e monitoradas por juízes
especializados. Havia duas versões, o mercado local, ou ágora para o varejo, que
Heródoto apresentava no século V, como característico de cidades gregas, e o
Emporion, que pode ser definido, sem entrar nas nuanças, como o lugar do comércio de
atacado, quer dizer, da importação e exportação. Durante os séculos, a troca de cidades
gregas com elas mesmas e com o mundo em torno delas cresceu relativamente de
maneira regular e na proporção de um mundo que teve várias fases de expansão.
(MIGEOTTE, 2008, p. 71).
É no período arcaico, em conjunto com o que nós costumamos chamar de
“colonização”, que o mundo grego teve sua primeira expansão significativa. Mas seria
imprudente procurar ali os vestígios de uma economia de mercado, mesmo em áreas
limitadas, principalmente porque a documentação é muito rara e muito dispersa para
permitir uma análise desse tipo, e, sobretudo, porque não havia ainda a cunhagem, que
só foi introduzida relativamente tarde, no final do século VII a.C., ou mesmo mais, no
início de VI a.C.. A cunhagem introduziu uma nova comodidade, que se impôs como
único meio de avaliação e monetizou gradualmente toda a economia.
60

Esse processo já estava bem avançado no período clássico, porque uma grande
parte das trocas do mundo Egeu foi organizada em torno de Atenas e do Pireu, sendo os
negócios lá tratados em moeda ateniense. Porém, é no meio do século V que aparece o
primeiro traço de um mercado sistemático. Plutarco diz que Péricles foi vender suas
colheitas do ano e comprar no mercado (ágora) todo o necessário para as suas famílias.
A simbiose entre a cidade e o campo era estreita, especialmente para a produção de
vinho, cuja cultura em ânforas e a exportação foram sistematicamente organizadas.
Além disso, a cidade controlava o comércio de uma vasta zona costeira sobre o
continente vizinho.
A produção artesanal e o mundo dos negócios oferecem exemplos comparáveis.
Do período clássico, algumas empresas atenienses podiam atingir um tamanho
considerável, como a fábrica de escudos de Képhalos, que tinha 120 escravos. No
século IV a.C., a maioria das concessões das minas de Laurio era de ricos cidadãos
atenienses: no final do século anterior, Nícias fez trabalhar ali mil escravos e tinha
acumulado uma fortuna colossal. Em consonância com Bresson e Christesen, já citados
neste trabalho, Migeotte afirma que os ricos sabiam avaliar os riscos e probabilidade de
se beneficiar, como fizeram na exploração das minas. São enumerados nos textos
atenienses do período clássico, cem nomes de negócios relacionados com a produção de
bens materiais, estando um quarto ou um terço dos cidadãos trabalhando nesta área,
além de metecos e escravos. Tal diversidade é apenas explicável pela intensidade do
comércio, cuja uma boa parte foi certamente orientada para a exportação. Poderíamos
multiplicar os exemplos. Mas eles não devem obscurecer a realidade humilde, que não
deixaram vestígios tão explícitos (MIGEOTTE, 2008, p. 71).
Aristóteles revelou que a oikonomia attiké era ainda vista, no final do século IV,
como um método original, cuja característica “moderna” provavelmente atingiu as
mentes dos contemporâneos. Com efeito, o tecido ordinário do mundo grego foi
composto de uma infinidade de pequenas cidades, próximas do que podemos chamar de
vilas rurais onde o modelo dominante continua a ser o camponês estabelecido em suas
próprias terras. Praticando uma agricultura mista, que combinava a policultura e um
pouco de criação, o campesinato procurou explorar sua terra ao máximo, diversificar as
culturas alimentares e, em previsão de más safras, armazenar as reservas por vários
anos: praticava principalmente uma agricultura de subsistência, com base no ideal de
autarquia. Na Ática do século V, para o qual temos dados, sabemos que muitos
cidadãos, hoplitas, possuíam apenas pequenas parcelas de propriedade no valor de mais
61

ou menos cinco hectares em média, aos quais eles poderiam adicionar como terras
arrendadas. As trocas não foram, obviamente, excluídas, mas serviam apenas para
executar uma parte do fluxo excedente e obter o necessário na escala local ou regional.
Um bom exemplo é a das Cyclades e outros pequenas ilhas do mar Egeu que, entre 500
e 200 a.C, viveram dos seus próprios recursos e do comércio nas proximidades. De
comum acordo com Descat, Migeotte também entende que o comércio grego no século
V não pode ser entendido como uma única zona de trocas que funcionava sempre da
mesma forma, mas sim como um conjunto de áreas comerciais regionais que se
relacionam umas com as outras. E Atenas representa uma economia parcialmente de
mercado, que conquistou uma parte dos circuitos econômicos, mas não todos.
(MIGEOTTE, 2008, p. 74).
Quanto ao artesanato, a maioria das oficinas era modesta, respondendo à
demanda e produziando a baixo preço os bens mais comuns. Seus trabalhadores, livres e
escravos, formavam a massa dos banausoi, cujos produtos eram mais apreciados do que
a estima recebida como grupo social. Da mesma forma, na Ática, os oikoi rurais
permaneceram lugares de processamento de produtos agrícolas, da criação, da colheita e
exploração de gado: se praticava a moagem de grãos, a preparação de pão e bolos, o
esmagamento e a prensagem de azeitona e lã, a prensagem de uvas, cardação, fiação e
tecelagem de lã e do linho, o trançado de vime, a preparação das tinturas, a molhagem e
a prensagem das peles, a preparação de carvão, etc. (MIGEOTTE, 2008, p. 75).
Os séculos seguintes viram recuar as pequenas propriedades em favor de grandes
domínios. O fenômeno não tem a mesma intensidade ou o mesmo ritmo, mas somente a
partir do século IV a.C., e intensificado no final do III a.C. crescendo até o período
imperial, na Grécia da Europa e Ásia Menor. Uma parte crescente da agricultura tornou-
se mais especializada, uma vez que muitos dos grandes proprietários tiveram privilégios
com a arboricultura, viticultura e criação de animais e, utilizando uma abundante mão
de obra livre e servil, orientou mais sua produção para o mercado. Eles provavelmente
sabiam dos numerosos livros de agronomia, botânica e dietética que floresceram no
período helenístico e que prolongou o espírito de empreendedorismo dos Logoi
oikonomikoi do período anterior. Verdadeiras empresas se desenvolveram. Por exemplo,
a raça ovina de Mileto, que produzia uma lã de alta qualidade, foi difundida na região e
permitiu a exportação de vestuário reconhecido. Nos anos 167-160 a.C., Mileto
negociou com o rei selêucida uma isenção de direitos aduaneiros para todos os produtos
exportados do seu território para o reino, provavelmente produtos da terra e aqueles de
62

sua indústria têxtil. Em Rodes, muitos dos notáveis foram os proprietários de terras e
estavam engajados nos negócios; nos vales bem irrigados de Hermus e de Meandro, a
criação de ovelhas, a cultura do linho e cânhamo e a fabricação de têxteis, vestuário,
tapetes e cordas foram organizados para exportação. Exemplos desse gênero se
multiplicam no período imperial e refletem o projeto de desenvolvimento dos negócios,
não só entre os metecos, cujas atividades eram naturais, mas também entre os melhores
cidadãos da sociedade. Certamente, eles permaneceram fiéis aos valores do patrimônio,
as rendas das fortunas da terra e as relações pessoais e familiares. Eles continuaram a
acumular os seus excedentes quando eles tinham. Mas, ao mesmo tempo, eles
entenderam a importância das atividades econômicas, conheciam o preço da riqueza e
as regras de desempenho, e sabiam como usar e investir sua riqueza. Eles sabiam gerir e
expandir seus negócios, certamente não com os métodos do capitalismo moderno, mas
de forma racional e consistente com o conhecimento de seu tempo. Nós os vemos como
comerciantes, empreiteiros e proprietários, particularmente nas grandes cidades
comerciais como Rodes, Bizâncio, Éfeso ou Nicomédia (MIGEOTTE, 2008, p. 75-77).
Ao mesmo tempo, os contatos, as viagens, e o comércio aumentaram e se
ampliaram. Apesar de terem sido muitas vezes dificultados ou paralisados localmente,
especialmente na segunda metade do período helenístico, pela instabilidade política e
guerras, além dos perigos do banditismo e pirataria. Mas, de certa forma, a própria
guerra foi um empreendimento econômico destinado a se apropriar da propriedade da
terra, dos bens e das riquezas, e serviu como um estímulo econômico. Quanto à
pirataria, ela foi significativamente reduzida a partir de 67 e a Pax Romana surgiu
gradualmente durante o Império, enquanto Roma construiu uma rede de estradas.
Helenismo e urbanização ganharam cada vez a Ásia Menor ocidental, onde a expansão
das cidades e o número de populações de língua grega estavam no auge no século II
d.C, e no início do século seguinte. Ao mesmo tempo, tornando-se o único meio de
avaliação de bens e serviços, a moeda atingiu mais influência na formação dos preços,
dado um papel mais claro para a lei da oferta e da procura e encorajamento do
desenvolvimento do crédito e dos bancos. Além disso, a despeito da permanência de
moedas locais e tradicionais, o processo de unificação começou com as corujas
atenienses se espalhando para a maior parte do Mediterrâneo Oriental e do Oriente
Médio, cujas cunhagens eram abundantes, depois da moeda imperial a partir de
Augusto.
63

É preciso notar, por outro lado que aumentou a intervenção do governo no


comércio. Certamente, os cidadãos de cada cidade, envolvidos com as decisões
coletivas, sempre deixaram a maior parte do comércio para a iniciativa privada e nunca
tiveram a ambição de controlar ou direcionar esse domínio além das necessidades
relacionadas aos seus próprios interesses e os de sua cidade. Eles não desenvolveram
uma verdadeira “política econômica” e limitaram suas intervenções nas compras e
vendas de bens e contratação de trabalho às necessidades dos negócios comuns:
cunhagem de moeda, celebração de cultos, trabalhos de urbanismo e defesa, expedições
militares, a exploração de terras públicas e sagradas, de minas, pedreiras, salinas e
florestas, abastecimento de grãos e de óleo. Mas eles estavam conscientes da
importância do comércio e depois das transformações do período arcaico - como vimos
com Descat - acompanharam seu desenvolvimento por meio da implementação de
diversas leis e com medidas com o fito de regular e fiscalizar as atividades da ágora e
do emporion para melhor proteger os comerciantes estrangeiros e facilitar o seu
trabalho, às vezes até para restringir o comércio de determinados produtos ou a favor de
rotas de comércio através da celebração de acordos internacionais. No entanto, além de
variantes locais, fica-se impressionado com a semelhança das preocupações e decisões.
Assim se estabeleceu uma cerrada rede de relacionamentos, o que tornou o mundo
grego um conjunto mais fluido e homogêneo, não obstante as muitas fronteiras e a
lentidão dos transportes (MIGEOTTE, 2008, p. 77-78).
No entanto, mesmo se o mercado e a definição do mercado se tornassem cada
vez mais importantes, mesmo dominantes, em áreas abertas, como a costa ocidental da
Ásia Menor, o fenômeno nunca resultou em um grande mercado integrado que tivesse
regulado todas as atividades econômicas de todo o Mediterrâneo Oriental. Na verdade,
como para o período clássico e sem retornar à análise primitivista, não se deve esquecer
as muitas atividades que as fontes costumam deixar na sombra: cada cidade tem
permanecido como um centro urbano e um campo que garanta pelo menos uma parte do
seu abastecimento (modelo weberiano); a agricultura permaneceu como uma atividade
dominante e o modelo do autourgos persistiu amplamente. Mesmo os ricos cidadãos,
apesar de sua ocupação, de um modo geral, se mantêm fiéis aos valores tradicionais da
propriedade da terra; por outro lado, os mercados locais e regionais continuam a
desempenhar um papel importante, especialmente para produtos perecíveis, que eram de
consumo corrente e não podiam cruzar grandes distâncias. Basta citar o exemplo de
Delos durante seu período de independência: a policultura de subsistência perdurou,
64

bem como o comércio com as Cíclades vizinhas, e os preços continuaram a flutuar de


acordo com as condições locais ou regionais. As coisas mudaram radicalmente a partir
de 166, quando o Emporion delio foi declarado porto livre pelo Senado romano: o
contraste entre os dois períodos é eloquente (MIGEOTTE, 2008, p. 77-78).
Uma enorme lacuna persiste entre as cidades comerciantes e as cidades
tradicionais. Nós não temos nenhuma forma de medir o peso relativo de uma e de outra,
mas percebemos o contraste, por exemplo, entre os principais portos do Egeu Oriental e
pequenas cidades das ilhas ou do interior da Ásia Menor. É claro que os fluxos
comerciais foram ampliados em grande escala e que alguns preços, como grãos, têm
flutuado juntos. A economia de mercado era, assim, uma realidade, pelo menos em
algumas regiões e em determinadas proporções. Mas o mundo grego permaneceu
dividido em um grande número de redes de intercâmbio. Os comerciantes tinham,
provavelmente, suas áreas de escolha, conheciam as rotas onde eles tinham suas
vantagens e suas relações de hospitalidade. Eles se aproveitavam das diferenças de
preços de uma área para outra, porque essas redes eram articuladas entre elas e
funcionavam também em conjunto com o comércio à distância. Contudo, o mundo
grego como um todo não experimentou um mercado de trabalho, a não ser em casos
pontuais, criados por empreendimento público. As interações e trocas econômicas entre
as comunidades marítimas do Mediterrâneo Oriental cresceram em intensidade durante
o período helenístico e contribuíram, em certa medida, para a criação de um mundo
único a partir do que era até então um conjunto de zonas econômicas menos íntimas e
superficialmente ligadas.
É verdade que na longa duração a economia do mundo antigo cresceu, embora
de forma irregular, e culminou com a idade de ouro do Império Romano. Sabe-se que,
se os gregos sabiam mostrar, individualmente e em conjunto, o saber fazer e a
criatividade para satisfazer as suas necessidades e daqueles ao seu redor, para melhorar
seus utensílios e procurar enriquecer, eles nunca conceberam as atividades econômicas
como um sistema organizado para o crescimento econômico e bem estar geral
(MIGEOTTE, 2008, p. 80).
Em suma, mesmo nos períodos romano e helenístico, a economia das cidades
gregas era muito diversa, em que podemos, simplificando, reconhecer três níveis
sobrepostos e parcialmente interligados: uma fragmentação de produção e de trocas
locais, variadas e em parte autárquicas; uma multidão de mercados regionais bem
desenvolvidos onde se negociava muitos produtos; e diversas redes de intercâmbio em
65

grande escala para uma série de produtos, incluindo itens de luxo. É claro que os dois
últimos níveis de atividades se encontram principalmente orientados para o mercado.
Esses contrastes não são surpreendentes, porque eles ainda têm caracterizado o mundo
moderno, até o século XVIII e mesmo além. Portanto, a partir dessa constatação,
Migeotte afirma que as cidades gregas se caracterizam como uma “economia de
mercados” (MIGEOTTE, 2008, p. 81), e não uma economia de mercado, com todas as
nuances apontadas.
As perspectivas desses três autores ampliam o horizonte de análise da economia
antiga, no caso particular, a do mundo grego, em relação ao mercado local e comércio
administrado como elementos característicos daquela sociedade. Os autores
paradigmáticos da tradição primitivista-substantivista, Weber, Polanyi e Finley foram
felizes em acentuar o papel da pólis e os interesses políticos daqueles que exerciam o
poder político, como elemento fundamental das relações econômicas. Também estavam
corretos em procurar pontos de diferenciação da realidade econômica e social do mundo
antigo em relação ao capitalismo, fio condutor da tradição de pensamento em que estes
autores se inserem. Porém, incorreram em dois erros: ao diferenciarem as relações
econômicas do mundo antigo em relação ao moderno, subestimaram a capacidade de
formulação e ação dos diversos atores sociais envolvidos nas relações econômicas, ora
acentuando o desprestígio dos homens envolvidos no comércio em prol dos interesses
políticos da cidade, hipótese bem desconstruída por Bresson e Burke; e, como
consequência desse equívoco, defenderam a ausência de racionalidade e de cálculo nas
operações econômicas, obscurecendo as possibilidades de ações e formulações no
campo da economia que implicassem uma ação racional voltada para a satisfação das
necessidades, articulada com os mais diversos interesses políticos. O segundo erro foi
excluir o Antigo Oriente Próximo de atividades econômicas relacionadas com o
mercado. Enquanto a Grécia apresentou manifestações de intercâmbios em um mercado
local e no empório, apesar de nunca totalmente integrados, o Oriente Próximo esteve
totalmente fora de tal realidade devido à forma de integração dominante: a
redistribuição. Polanyi procurou demonstrar tal tese em um estudo sobre a Mesopotâmia
de Hamurabi. Essa perspectiva e suas consequências na historiografia econômica do
Antigo Oriente Próximo é o que passaremos a investigar agora, com o fito de tecermos
um painel amplo da análise polanyiana nas sociedades grega e mesopotâmia e refletir,
por meio de trabalhos posteriores à contribuição do substantivismo para a economia
antiga.
66

O MERCADO NO ANTIGO ORIENTE PRÓXIMO: NOVOS MODELOS


E AS NOVAS PERSPECTIVAS PARA O DEBATE

O debate sobre a presença ou ausência do mercado no Antigo Oriente Próximo,


se encontra em outro patamar em relação à época que Polanyi refletiu sobre o tema,
mais amplo, muito mais contraditório, e mais inflamado: a escolha entre os diferentes
modelos – economia de mercado versus economia de redistribuição – parece estar com
frequência determinado mais pelas concepções ideológicas e políticas específicas de
cada pesquisador, que pelos resultados de uma pesquisa aprofundada.
Consequentemente, a discussão mostra uma tendência a se transformar, por alguns
momentos, em um conflito entre gerações ou entre especialistas de disciplinas
diferentes. Ela se limita por vezes a uma troca de críticas severas entre as partes em
causa, que se acusam, segundo o caso, de incompetência na economia ou ignorante em
filologia cuneiforme. Para explicar o comportamento da parte adversa e a
impossibilidade de uma aproximação dialética qualquer, se evoca de um lado, uma
espécie de repulsão de uma realidade, óbvia e visível na documentação – a economia de
mercado – e por outro lado, a incapacidade de ouvir o que os textos antigos revelam
claramente ainda – as práticas de redistribuição e de reciprocidade – aos quais se prefere
dar uma interpretação moderna e modernista, basicamente histórica.
A polêmica entre modernistas e primitivistas entre os assiriólogos desenvolveu-
se de maneira paralela àquela que agitou os estudos clássicos de história antiga. No
coração do problema reside ainda o fato que uma grande parte dos historiadores, e
inclusive os economistas, estima que a evolução das sociedades do Antigo Oriente
Próximo e o progresso de suas instituições – mesmo se elas podem ser parcialmente
interpretadas como os fenômenos econômicos e explicadas por dados econômicos – de
fato não dependem em nada da economia nem das suas leis. Dependem menos ainda de
uma economia de mercado, que não existia na antiguidade, sendo uma realidade
moderna, instalada e determinada por condições históricas específicas, por exemplo, o
desenvolvimento tecnológico, ou o preço do trabalho. Outros historiadores e
economistas, por outro lado, consideram que as sociedades antigas, como as modernas e
contemporâneas, eram dominadas na sua evolução pelo funcionamento de estruturas
econômicas e de trocas, que governavam a produção. Por razões simplesmente
cronológicas, a história, política e acontecimentos, das sociedades do Antigo Oriente
Próximo têm sido tradicionalmente a disciplina em que se começou a ser
67

sistematicamente debatido, do ponto de vista antropológico e etnológico, o problema da


primeira aparição da economia moderna, quer dizer complexa e não primitiva. O termo
economia é compreendido também como organização da produção e do que é
necessário à vida e a sobrevivência no quadro de uma sociedade, como gestão e troca de
bens que são raros – que são, portanto um valor específico criado na relação entre a
demanda e a oferta (MASETI-ROUAULT, 2008, p. 51-52). Para responder a questão da
existência ou ausência do mercado no Antigo Oriente Próximo, é necessário, portanto
retomar brevemente sobre a origem do problema, e relatar de maneira sintética a
maneira segundo a qual os principais modelos de interpretação econômica foram
formulados, antes, durante e depois de Polanyi.
Um dos problemas, que tornam difícil o avanço deste debate, é o fato dos
modelos mais importantes de interpretação da economia mesopotâmia terem sido
elaborados e colocados em circulação em uma época em que a documentação, tanto
arqueológica quanto epigráfica, no que tange a seus aspectos característicos principais,
não era ainda qualitativamente e quantitativamente suficientemente abundante para
permitir verificá-la e de pô-la a prova. A consequência foi que, na medida em que os
modelos eram úteis para dar um significado aos documentos e aos monumentos que
começavam a invadir os museus ocidentais, estes modelos foram aceitos e integrados de
maneira pouco crítica no discurso histórico. Poderosos na sua dimensão narrativa e na
descrição sociológica, eles adquiriram posteriormente uma autoridade crescente. À
medida que os novos textos eram descobertos, sua leitura e sua interpretação foram
realizadas de maneira a se adaptar à teoria em curso, sem jamais contradizê-las
(MASETI-ROUAULT, 2008, p. 51).
Estes primeiros modelos estão assim preocupados em definir a situação das
origens mesma da história, elaborando uma descrição da organização social e
econômica das cidades estados mesopotâmias do início do terceiro milênio a.C. Os mais
importantes foram fornecidos nos anos de 1950 por A. Deimel, A. Falkenstein, em
seguida por I. J. Gelb, assiriólogos que primeiro estudaram os arquivos cuneiformes
proveniente das cidades sumérias de Uruk e de Lagash, testemunhas das atividades
administrativas das instituições urbanas locais. Eduard Meyer procurou apresentar a
civilização oriental como uma sociedade rica, complexa e fundamentalmente liberal no
seu comportamento econômico – comparável deste ponto de vista ao mundo medieval
europeu -, este é o modelo de A. Deimel e A. Falkenstein, modificado, expandido e
aprofundado em seguida por L. Oppenheim, que terminou por prevalecer e se impor no
68

meio dos estudos orientais, fornecendo a base para os trabalhos teóricos de K. Polanyi.
Os trabalhos desses estudiosos foram retomados em seguida pela maioria dos
historiadores e passado aos estudantes, constituindo uma espécie de vulgata.
Muito esquematicamente, a sociedade e o estado mesopotâmios das origens são
representados segundo estes modelos, como uma comunidade dominada por grandes
instituições, os templos e ou palácio real, que operam nas cidades e permanecem
proprietárias últimas das terras agrícolas, fonte primeira das atividades de produção.
Estas instituições – e as elites que as representam – depois de ter recolhido as riquezas
utilizadas para remunerar, pelas rações ou salários, as prestações pessoais dos serviços
especializados, como o exército, os escribas ou os artesãos, redistribuem o restante da
produção à população da cidade e do campo engajada no trabalho. Esta redistribuição é
feita sobre uma base regular – registrada sistematicamente por uma burocracia e
atestada na documentação cuneiforme – mas unicamente na medida do que é necessário
para a subsistência imediata (MASETI-ROUAULT, 2008, p. 52).
Nessa estrutura econômica, não há lugar para o desenvolvimento de uma
economia de mercado, e do mercado, com ausência de moeda, e de dinheiro, assim
como do capital. Não é mais questão de valor, de preço, nem de regulação de oferta e
demanda, mesmo se a complexidade e o tamanho da organização burocrática, que
localmente podia organizar dezenas de milhares de pessoas, são necessários para o
estabelecimento de sistemas de equivalências para medir os diferentes produtos, por
exemplo, entre a cevada/o dinheiro/ lã. O sistema que predominou foi a autarquia, cada
grupo humano – da casa, ao clã nômade e aos complexos templos ou palácios das
cidades da idade do bronze – tenderam a produzir diretamente para suas necessidades. A
agricultura cerealífera irrigada, de uma parte, e de outra, a criação de ovinos e caprinos,
são em todas as épocas os pilares deste tipo de produção mesopotâmia. Fora os períodos
de crise, muitas vezes devido aos problemas políticos, este sistema é praticamente
inquestionável e indestrutível, e capaz de fornecer largos excedentes.
Por outro lado, a situação geográfica da Mesopotâmia central e meridional torna
absolutamente necessário para os estados locais o desenvolvimento de uma política de
importação de materiais raros e preciosos, como os metais, as pedras duras ou a
madeira, de regiões vizinhas, ou mesmo de muito longe. No discurso historiográfico
moderno, esta dependência dos estados mesopotâmios frente à sua periferia pode
justificar uma parte das atividades militares e de conquista bem como a formação de
impérios desde o fim do terceiro milênio. Do ponto de vista econômico, ela provoca
69

também a criação de um mercado, ou de um circuito comercial, com os países


estrangeiros. Mas este mercado internacional, cuja existência é atestada pelas
descobertas arqueológicas e pela documentação epigráfica, continua isolado em uma
economia de redistribuição. Com efeito, estritamente limitado aos produtos raros, este
tipo de mercado desenvolve as trocas segundo um princípio de reciprocidade de dom e
contra dom entre as elites de países correspondentes, algumas vezes geridos por
comerciantes. Controlado e algumas vezes organizados por tratados entre estados, não
pode ser considerado em nenhum caso como um lugar de troca comercial, onde o valor
das mercadorias seria avaliado pelas relações entre a oferta e a demanda. Na discussão
dos preços, aparentemente tem mais peso os argumentos políticos e diplomáticos.

POLANYI E A MESOPOTÂMIA

Os dados concernentes à civilização mesopotâmia utilizados por K. Polanyi


foram colocados a sua disposição por seus colegas do Instituto Oriental da Universidade
de Chicago, e notadamente por L. Oppenheim. Estes lhes serão úteis para fundar a
teoria econômica da não existência do mercado criador de preços, da moeda e a
regulação dos preços relativa à oferta e a demanda no mundo antigo. A fim de provar de
uma maneira indiscutível a validade de seu modelo da
redistribuição/reciprocidade/troca, ele escolheu como exemplo a sociedade da época de
Hamurabi da Babilônia do início do segundo milênio a. C., ao Bronze Médio II, assim
como o comércio realizado dois séculos antes por mercadores assírios estabelecidos na
Anatólia. Ele os utiliza como exemplos “históricos” de trocas em uma situação sem
mercado, sem riscos e sem moeda. Se a sociedade mesopotâmia não tinha mercado,
então sua economia era distributiva: as trocas ainda eram dirigidas pelo princípio da
reciprocidade, fóssil das relações humanas mais antigas. A ausência de uma economia
de mercado é demonstrada pela argumentação, histórica e arqueológica, de não
existência dos lugares de mercado, ausentes no tecido urbano e arquitetural das cidades
orientais antigas. Ele estima também que a documentação escrita cuneiforme não
fornece exemplos de transações comerciais nem de variações significativas dos preços,
o que seria de se esperar em uma economia de mercado. Portanto não há nada que
pudesse se assemelhar a um sistema de mercado. O que se vê na Babilônia é um
intercâmbio sem mercado, diferente deste no que se refere às pessoas envolvidas no
intercâmbio, aos bens, aos preços e em relação à natureza da atividade do intercâmbio.
70

Os mercadores assírios do Karum (porto) de Kanish, por exemplo, não eram pessoas
que ganhavam a vida com ganhos derivados das compras e vendas, das diferenças de
preços na transação. Eram mercadores por status, em virtude de seu nascimento, de uma
aprendizagem longínqua ou por designação. A menos que a designação fosse
acompanhada de uma concessão substancial de terra, suas receitas derivavam da venda
de bens, sobre a qual ganhavam uma comissão. Os preços tomavam a forma de
equivalências estabelecidas pela autoridade de um costume, um estatuto, um edito. Se
suponha que as necessidades vitais estavam submetidas por equivalências permanentes.
Na realidade experimentavam mudanças, em longo prazo, com os mesmos métodos
pelos quais foram estabelecidos. Isto não afetava a receita do mercador, que não
dependia das diferenças de preços (POLANYI, 1976, p. 66-68).
A diferença fundamental entre o comércio administrado e o comércio de
mercado reside na ausência de riscos para os comerciantes, tanto no relativo às
expectativas dos preços quanto à possível insolvência do devedor. Não há perdas pela
flutuação de preços.
Polanyi enumera algumas características conhecidas das trocas realizadas por
meio do Karum: nenhuma venda que não seja no local; o mercador recebe seu
contingente de produtos contra uma fiança pelo valor destes; as obrigações para com
terceiros devem ser registradas ante a autoridade competente, a Cidade, o Karum ou o
palácio; assim, por princípio os poderes públicos garantiam todas as obrigações;
finalmente, os poderes públicos não aceitavam nenhum risco, pois rechaçam as
obrigações que não oferecem segurança. Tudo isso explica porque não se produz
nenhum pagamento de dívidas; porque as sentenças de arbitragem se executam sem
necessidade de coação; porque um requisito para comerciar é o pertencimento ao Karum
e uma boa reputação ante a Cidade; porque não se exigem depósitos para assegurar o
pagamento; porque não se perde nunca o empréstimo livre de interesse que o
empregado utiliza para comercializar por conta própria; porque nos negócios só se
produzem ganhos e não perdas (POLANYI, 1976, p. 70-71).
As atividades deste comércio administrado são qualificadas de disposicionais,
nas quais os comerciantes atuavam dentro do marco de uma organização governamental
e uma rede de instituições oficiais e semioficiais que lhes dava garantias por meio de
normas legais. Não obstante, as transações privadas não eram proibidas, na medida em
que as normas legais tratavam da separação institucional das disposições comerciais
relativas aos negócios públicos com respeito às transações privadas. O mercador atuava
71

em virtude de seus atributos públicos para negociar o cobre, manejando contingente do


governo ou à margem de suas atividades públicas, privadamente. No primeiro caso, seus
passos estavam formalizados e seus atos eram a plasmação de disposições; na esfera
privada, por outro lado, estas eram informais e podiam descrever-se como transações.
Finalmente, Polanyi define afirma que a chave das funções do tamkarum reside
nos métodos e na organização do comércio. Suas tarefas principais são as de
fideicomissário público; empreende ações legais quando uma pessoa autorizada lhe
mostra a tablita de argila apropriada. Segundo o caso e a situação, seu era adiantar
honorários ou outros gastos pequenos, aceitar fianças, atirar de intermediário nas
compras de bens da cidade pelo comerciante e na entrega de bens à cidade por conta do
mercador, facilitar o transporte aceitando responsabilizar-se pelo dinheiro e bens
encomendados. O tamkarum não recebia nenhuma receita pelos negócios em que
intervinha, ainda que seja possível que cobrasse pequenos honorários aos mercadores de
acordo com uma escala fixa. Seu sustento estava assegurado pela propriedade das terras
que se lhe adjudicavam ao tomar posse do cargo.

A CRÍTICA FORMALISTA

Boa parte das conclusões de Polanyi sobre a Mesopotâmia vem sendo


questionadas, tanto quanto aos princípios, quanto às informações que envolvem a
arqueologia. Numa linha formalista, Gledhill e Larsen (1982), por exemplo, contestam
Polanyi quanto à inexistência de mercados na Mesopotâmia. A ausência de espaços
abertos nas cidades escavadas não se sustenta, visto que nem todas as cidades foram
escavadas, e os portões da entrada das cidades muitas vezes, parecem ter funcionado
como a ágora grega. O conceito e o papel do karum são revistos à luz de novas
descobertas. Segundo os autores, essa palavra, originalmente, denotava um lugar de
ancoragem e posteriormente, se constituiu em uma comunidade de mercadores que
viviam no porto. O karum assírio de Kadesh era, segundo as evidências, um típico
assentamento de casas privadas e lojas habitadas pertencentes a mercadores. Em geral, o
karum babilônico antigo era uma comunidade de mercadores da cidade, com caráter
corporativo e até um aparato administrativo e judicial separado. Referências da relação
entre o palácio e o karum podem ser encontradas em um decreto real publicado no
período babilônico tardio. O palácio podia aplicar metade do capital nas operações
realizadas no karum. Os mercadores eram responsáveis pela coleta de impostos
72

proveniente dos contribuintes que se utilizavam diretamente das atividades comerciais.


O palácio usava os mercadores independentes do karum como agentes, porque seu
objetivo era evitar a administração direta da produção, do comércio e da supervisão e
forçar os comerciantes a correrem os riscos do negócio. Portanto, esses comerciantes
eram livres para acumular riquezas. Além disso, estudos dos preços e salários na antiga
Babilônia mostram um padrão substancial de flutuações nos preços das mercadorias
básicas, o que reflete provavelmente desenvolvimentos no padrão econômico da região
como um todo (GLEDHILL, LARSEN, 1982: 204-208). Portanto, diferente de Polanyi,
esse estudo revela que o mercado operava com lucros e perdas e que a liberdade para
acumular riquezas era uma condição para que eles assumissem os riscos dos negócios.
Para Maseti-Rouault (2008), os exemplos escolhidos por Polanyi não têm mais,
hoje, nenhum valor científico e os resultados das pesquisas arqueológicas e filológicas
realizadas nos últimos cinquenta anos, os tornaram absolutamente obsoletos. As
descobertas e os estudos recentes envolveram, no entanto, a revisão de toda uma série
de interpretações clássicas dos arquivos administrativos e dos sistemas burocráticos
antigos. Se pode mencionar aqui, por exemplo, a descoberta dos arquivos reais de Ebla,
as análises aprofundadas da documentação epistolar dos mercados assírios à Kanesh, ou
as novas interpretações da organização econômica do estado à época da terceira dinastia
de Ur. Se a validade das teses e das teorias econômicas, formuladas por Polanyi,
dependiam verdadeiramente desses exemplos, não vale mais a pena discuti-las
(MASETI-ROUAULT, 2008, p. 55).
Segundo a autora, a topografia urbana antiga comporta lugares de mercado,
como a Babilônia. O léxico babilônico exprimiu essa realidade, tanto de um ponto de
vista estritamente geográfico quanto de um ponto de vista metafórico, indicando
diferentes processos econômicos relativos às trocas. A documentação cuneiforme ilustra
doravante de uma maneira convincente não somente a variação das taxas de interesse,
mas também a formação, desde o fim do terceiro milênio, de uma nova categoria social
que representa um papel econômico diferente e específico. É a extensão e a
complexidade da administração das unidades de produção – propriedades dos templos e
dos palácios – que acabaram por gerar, desde a metade do terceiro milênio, uma nova
categoria de administradores. Os burocratas que trabalharam para sua instituição como
funcionários se transformam progressivamente em empreiteiros e em mercadores.
Garantir à instituição ou ao Estado, uma anuidade fixa, um fluxo constante, fornecidas
pelas diferentes unidades, é a função destes homens que gerenciam os negócios na
73

perspectiva de obter uma vantagem econômica pessoal, e enfim se enriquecer. Eles


especulam assim sobre a produção, exercendo uma pressão cada vez mais importante
sobre a população que trabalha na ou pela instituição, que lhes deve agora uma cota de
produção. Os limites parecem impostos unicamente pelo Estado e pelos reis, que, no
início do segundo milênio, intervêm regularmente, pelos editos de justiça, nas relações
entre estes empreiteiros e banqueiros e seus administrados. Os reis anulam as dívidas
contraídas pelos agricultores frente aos empreiteiros e banqueiros, impedindo assim, ao
menos parcialmente, a venda de campos e casas submetidas a hipotecas e sua passagem
no patrimônio pessoal do credor. A documentação textual mostra que estes empreiteiros
tinham uma mentalidade nova: funcionavam e trabalhavam sobre uma base de busca de
lucros e de enriquecimento pessoal. Eles aceitavam correr os riscos, mas sabiam
diversificar seus investimentos a fim de limitar as eventuais consequências negativas.
Os exemplos mais claros desta nova função e categoria social são os mercadores
assírios instalados na Capadócia, em Kanesh (MASETI-ROUAULT, 2008, p. 55-56).
A crítica mais contundente aos trabalhos de Polanyi partiu do americano Moris
Silver. Seus trabalhos sobre o Antigo Oriente Próximo têm sido uma referência para os
formalistas e também para os críticos do formalismo. Em 1983, Silver escreveu um
artigo para o periódico americano The Journal of Economic History intitulado Karl
Polanyi and Markets in the Ancient Near East: the challenge of the evidence no qual
tece uma série de observações críticas ao trabalho de Polanyi. Neste ensaio, Silver
contesta a posição de Polanyi ao confrontar suas asserções factuais sobre as economias
do antigo Oriente Próximo com a evidência disponível.
Moris Silver contesta a asserção de Polanyi de que o comércio estrangeiro foi
conduzido por um tipo de comércio intitulado “portos de comércio” onde os preços
eram determinados por tratados, não pela oferta e demanda. A especificação de preços,
em particular contratos de longos prazos, serve para limitar a incerteza e oportunismo
ou para preencher lacunas nos mercados. Tratados governamentais, uma forma de
contrato, também podiam ser empregados, todavia ainda se reconheceria as forças da
oferta e demanda. Há ampla evidência de tratados comerciais e correspondência real
tratando de assuntos relacionados ao comércio. Para tomar um exemplo mencionado por
Polanyi, cartas escavadas na Capadócia, na Anatólia central (o nome moderno da
Turquia asiática), revelam que no início do segundo milênio, governantes forneciam
segurança junto às rotas de caravanas a partir de Assíria, uma região ao norte da
Mesopotâmia. Os mercadores assírios pagavam impostos sobre as mercadorias que eles
74

levavam em troca de segurança. Em uma carta datando do século XVIII, um governante


queixa-se com seu colega assírio sobre a quantia insultante de estanho que ele tinha
recebido por seus cavalos, que dificilmente soa como um comércio com preços
administrados (SILVER, 1983, p. 796-797).
A evidência sobre a formação de preço no posto comercial assírio na Capadócia
é totalmente consistente com a operação de forças de mercado do tipo comum. Os
milhares de documentos comerciais provenientes do posto referem-se a trocas com
demanda ou ofertas das principais mercadorias importadas (estanho e têxteis feitos de
lã), os efeitos de sazonalidade e emergência, e mudanças em registro de preços.
Mudanças de preços, incluindo mais de 20 por cento de mudança no preço do estanho
durante um curto período, demonstram a inconsistência da posição de Polanyi. Um texto
datando do reinado de Hammurabi (1792-1750) consigna uma grande quantidade de
tinta para venda em um reino vizinho “de acordo com o mercado (de preço),” e um
tanto mais tarde da cidade de Nuzi no leste da Assíria especifica que um mercador
devolvia o “preço” da mercadoria que ele vende no estrangeiro (SILVER, 1983, p. 797).
Não há evidência de que os governos do Oriente Próximo, em geral,
controlavam o preço do grão. Documentos do terceiro milênio sobre venda revelam
profundas variações em preços de cevada. No final do terceiro milênio, um funcionário
público reporta em uma carta a seu rei que ele comprou para carregamento para a
capital uma quantidade substancial de grão (mais de 72.000 litros), mas agora o preço
do grão dobrou. Os assim chamados registros ponderados de prata datando do século
XXI mostram a variação no preço do grão (presumivelmente cevada) igual a 65 por
cento do preço médio. Os textos provenientes da Babilônia do século VII e do Egito do
século XII mostram profundas mudanças nos preços do grão devido à desordem política
ou a iniciação ou aumento de sítios. Os documentos de venda do terceiro milênio para
cevada, azeite e tâmaras “diferenciam entre os preços do ‘bom ano’ (sumério mu-ḫé-
ǵal-la) e os preços do ‘ano ruim’ (mu-nu-ǵal-la).”
Há evidência de variações sazonais nos preços de grão na Mesopotâmia e
possivelmente no Egito. O modelo sazonal, certamente, é o resultado de mudanças na
curva da oferta do grão devido a evidentes custos de estocagem. Empréstimos de grãos
geralmente eram feitos antes da colheita (em época de semeadura ou depois), quando os
preços estavam relativamente altos, e reembolsados logo depois da colheita quando os
preços estavam relativamente baixos. Forças similares são refletidas em um contrato de
empréstimo no final do século XIX, no qual um indivíduo que tomou emprestado uma
75

mina de prata para comprar cevada pouco antes da colheita é obrigado a reembolsar não
uma quantidade fixa de cevada, mas o valor de uma mina pouco depois da colheita.
Na Mesopotâmia, no início, há ampla evidência de posse privada de terra e de
um mercado de terra e, como temos visto, de vendas de grão. É difícil, contudo, isolar
os papéis comerciais de produtores e intermediários. É impossível dizer se o registro de
um carregamento de grão representa uma especulação comercial, pagamento de
impostos, ou algum outro propósito. Todavia, os textos que datam do início do terceiro
milênio também se referem ao sumério lú-se-sa-as (acadiano muqallú) que quer dizer
“quem o torrou e vendeu no mercado”. As mercadorias mais frequentemente listadas à
mão nas prestações ponderadas de prata do século XXI são lã e tâmaras. A cevada
também é comum. Um documento proveniente do início do segundo milênio achado no
posto comercial assírio na Anatólia atesta a compra por comerciantes de quantidades
substanciais de cevada e trigo revendidos mediante um lucro. Empréstimos de grão
eram frequentemente feitos por indivíduos descritos como “mercadores” na primeira
metade do segundo milênio, embora o significado da palavra em si seja motivo de
discussão. A venda a varejo de pão na primeira metade do segundo milênio é atestada
por essa passagem em uma carta: “Eu não tenho nenhum assalariado que moesse a
cevada (para mim), assim temos estado comendo pão comprado.” Outros textos revelam
celeiros fazendo negócio com o público em geral declarado ser privadamente possuído
ou pelo menos sem nenhuma ligação aparente com o palácio ou templo. Que indivíduos
privados estocavam grão em celeiros privados é confirmado pelos parágrafos 120 e 121
do Código de Hammurabi legislando falta de pagamento e encargos de estocagem. Um
documento do século XVIII registra o preço pago por uma grande quantidade de cevada
por “Šamašnšṣiro Tilmunite,” provavelmente um mercador que exportava o grão para
Tilmun (Bahrain). No século XIII na Assíria, pelo menos, uma grande firma possuía
grandes quantidades de grão e faziam empréstimos de grão (SILVER, 1983, p. 799-
801).
É bem sabido como os templos do antigo Oriente Próximo serviam como lugares
de adoração e como centros de comércio interurbano e internacional. A evidência
quanto a empréstimos de grão na Babilônia é maior, contudo, na primeira metade do
segundo milênio; os documentos mostram que tanto as pessoas privadas como os
templos emprestavam cevada. Mas isso particularmente supersimplifica a situação,
porque havia três variantes do empréstimo do templo: empréstimos feitos pela deidade
(templo) apenas; empréstimos feitos por pessoas privadas e pela deidade; e empréstimos
76

por nadiātu (sacerdotisas). No norte da Babilônia, as sacerdotisas parecem ter feito a


maior porcentagem dos empréstimos de cevada. Mas a relação exata entre mulheres
(filhas de famílias ricas e dos reis) e o templo é obscura. Muito possivelmente, elas
eram, de fato, emprestadores e negociantes de propriedades reais e escravos. Somente
no caso de empréstimos “pela deidade” fazem taxas de juros parecerem
consistentemente mais baixo do que aqueles por emprestadores privados. Durante a
primeira metade do segundo milênio o silo real, usado para provisão de soldados e de
seus semelhantes, emprestava cevada. A evidência para empréstimos palaciais, contudo,
parece estar limitada ao período depois do reinado de Hammurabi, que é conhecido ter
instituído várias reformas econômicas, incluindo taxas máximas de juros sobre a
cevada.
Conhecemos os nomes e muito sobre as atividades de vários emprestadores
profissionais de dinheiro importantes que operaram durante vários séculos na Babilônia
a partir do final do terceiro até a primeira metade do segundo milênio. De fato, a parte
inicial do segundo milênio fornece numerosos contratos de empréstimos de uma
natureza inteiramente comercial. Nas tabuletas da Capadócia do início do segundo
milênio, os propósitos registrados de empréstimos para assírios correspondiam a
objetivos comerciais, tais como compras de mercadorias e viagens comerciais.
Documentos provenientes de Nuzi no leste da Assíria demonstram que emprestadores
privados faziam empréstimos com juros para “empreendimentos comerciais” para
mercadores. Contratos do século VII escavados na Assíria raramente especificam o
propósito de um empréstimo, mas em um caso, a compra de burros está envolvida e em
outro o mutuário parece ser um líder de caravana comercializando grão. Documentos
babilônios quase da mesma época não somente registram empréstimos comerciais (ou
investimentos), mas frequentemente especificam o tipo de negócio em um
empreendimento comercial. Finalmente, Tabuletas provenientes do noroeste da Síria
tratam de empréstimos de prata “para capital” (“para propósitos comerciais”?) durante o
século XVIII (SILVER, 1983, p. 803).
Realmente o antigo Oriente Próximo conhecia muito bem dinheiro no sentido
genérico. Textos babilônios oriundos no final do terceiro milênio já nos mostram
vendedores ambulantes e, de acordo com Foster, o uso de prata para pagar
arrendamentos e comprar tâmaras, azeite, cevada, animais, escravos e bens imóveis.
Além disso, nos é contado que a prata era amplamente usada em empréstimos pessoais e
era frequentemente achada em posse de cidadãos privados e funcionários. Um
77

negociante poderia ter prata no depósito em vários lugares. Documentos oriundos do


final do terceiro milênio fazem referências à “prata de entregas” (para pagar por
entregas), bem como prata para comprar “canela”, sal e estanho. Lamber que estudou
moedas de troca, documentos de empréstimo, e recibos de cobranças de impostos
datando desse período, achava que a prata era usada como pagamento por muitos níveis
de sociedade incluindo pessoas comuns, não somente mercadores. A prata também
serviu como um meio de troca durante a primeira metade do segundo milênio. De fato,
nos códigos de leis datando para a época (Código de Hammurabi, Código de Eshnunna)
a lei civil às vezes requer restituição em espécie, mas geralmente exige pagamento em
prata (SILVER, 1983, p. 817-818).

RENGER E A RELEITURA DE POLANYI

A teoria de Polanyi – sobretudo no seu aspecto descritivo do sistema de


redistribuição- resistiu bravamente a todos os ataques que lhes foram dirigidos por estas
novas realidades e descobertas epigráficas. Ainda hoje ela encontra um grande sucesso
frente aos assiriólogos especialistas dos textos econômicos e administrativos, e também
historiadores, talvez na medida onde ela corresponda a uma visão integrativa de todos
os aspectos da cultura mesopotâmia. O alemão Johannes Renger é, sem dúvida, o
assiriólogo que mais investiu na aplicação dos modelos polanyianos na economia
assírio-babilônia, e que continua a ser o defensor mais fiel da teoria original da
redistribuição. Ele o modificou e o alargou a fim de que ela pudesse inteirar-se de toda a
documentação nova. Ele insiste que nem Oppenheim, nem Polanyi tenham excluído a
possibilidade de existência do mercado, se este termo identifica simplesmente uma
forma qualquer de economia. Por outro lado, eles rejeitaram a existência, no mundo
oriental, de uma economia de mercado e de um mercado pré-capitalista, que se regesse
de maneira mecânica e autônoma a partir das relações entre oferta, demanda e preço.
Em dois artigos, Renger apresenta seus argumentos sobre a economia e
sociedade da Mesopotâmia. Central em seus trabalhos é a descrição das atividades
econômicas como parte das estruturas e processos característicos de uma economia
particular. Tais atividades - as trocas, o comércio e os comerciantes – são
contextualizadas na estrutura econômica da sociedade mesopotâmia.
No artigo intitulado Trade and market in the Ancient Near East. Theorittical and
Factual Implications, publicado em 2003, no livro Mercanti e política nel mondo
78

antico, organizado por Carlo Zaccagnini, Renger afirma que os elementos estruturais
dominantes da vida econômica e social na antiga Mesopotâmia podem ser percebidos
sob a base de uma dicotomia entre a economia de oikos do terceiro milênio e uma
economia caracterizada por formas tributárias a partir do segundo milênio em diante.
Este artigo é fundamental para entendermos os elementos centrais da crítica de Renger a
Moris Silver, feita em outro artigo.
A maioria das economias antigas é de certo modo tripartida, isto é, baseada
primeiro lugar em agricultura e criação de animais, segundo na produção de
mercadorias fabricadas, e terceiro em diferentes formas de troca das mercadorias. Como
é indiscutível, a maioria das economias de qualquer civilização antiga é baseada
primeiramente em agricultura e criação de animais. Ambos estão interligados em um
modo sistemático. Mercadorias fabricadas feitas dos materiais resultantes da produção
agrícola e da criação de animais bem como aquelas vindas da exploração de recursos
naturais são mais uma parte integral de tal economia. A troca interna e o comércio de
longa distância representam um terceiro elemento de tal economia. A produção de
mercadorias fabricadas por artífices ou artesãos, bem como todas as formas de troca e
comércio representam – em termos quantitativos – somente um papel suplementar
dentro de tal sistema econômico. Economias antigas baseadas na agricultura e na
criação de animais são economias de subsistência. Portanto, é necessário indagar como
os produtores tomam parte nos resultados de seu trabalho e como eles têm acesso ao que
eles têm produzido? (RENGER, 2003, p. 16-17).
A economia do final do terceiro milênio é caracterizada por um tipo de
economia que tem sido denominada economia do oikos, como uma household
autárquica. Todas as mercadorias necessárias e consumidas pelos membros da
household são produzidas dentro da household. Somente umas pouquíssimas
mercadorias e objetos têm de vir de fora – metais e outros materiais raros, bem como
objetos prestigiosos. O tamanho do oikos de um governante é idêntico em termos
espaciais com o tamanho de seu reino. Max Weber o denominou de oikos patrimonial,
um tipo de patrimônio de estado. Portanto, as estruturas da sociedade e economia na
Baixa Mesopotâmia, isto é, na antiga Suméria, que fica muito ao sul do atual Iraque, a
partir do final do quarto milênio – como revelado pelos arquivos administrativos de
Uruk, contendo os registros mais antigos da humanidade – até aproximadamente 2500
a.C. podem ser descritas em termos de uma economia do oikos. Exemplo disso é a
dinastia de Urnanshe, um estado patrimonial, mais ou menos uniforme, no qual os oikoi
79

dos diferentes templos chefiados por membros da família governante eram unidos sob a
autoridade suprema do governante que era ele mesmo o chefe do oikos da cidade-deus
Ningirsu (RENGER, 2003, p. 18).
A forma mais sucinta da economia de oikos é documentada nos quase 40.000
registros administrativos da época da III dinastia de Ur (2112-2004 a.C.). O sistema da
economia de oikos da III dinastia de Ur pode ser descrito por meio de 4 tipos de
households ou oikoi: 1. Senhorios ou houseolds agrícolas; 2. Ergasteria produzindo
têxteis e outras mercadorias ou artefatos; 3. Households de serviço, e 4. Households de
altos funcionários do estado ou dos templos.
Os senhorios agrícolas são – pelo menos na terra de Lagash – administrados
pelos templos. Eles têm, em média, de 50 a 200 hectares, dependendo do status do
templo. Os templos também são responsáveis pela administração dos rebanhos.
Um número de households manufatureiras é conhecido. As mais importantes
entre elas são as oficinas têxteis, porque produzem não somente artigos de vestuários e
têxteis distribuídos para os membros de todas as households no reino, mas também
têxteis e peças de roupas da mais alta qualidade destinadas para troca em comércio de
longa distância. Outro tipo de oficina de household da qual conhecemos é responsável
pelo processamento de cereais em farinha. Todas essas households estão organizadas
como ergasteria ou casas cujo pessoal é composto por trabalho dependente, em geral de
mulheres.
As households de serviço abrangem os chamados centros de distribuição tais
como o centro de distribuição de animal em Puzrish-Dagan. Essas households estão sob
a supervisão direta do rei ou o s u k k a l . m a h, o grão-vizir, a personalidade
administrativa mais alta do reino, segundo na hierarquia, abaixo somente do rei. O
centro de distribuição em Puzrish-Dagan criava a maioria dos animais – a maioria
carneiro e cabra, mas também boi –, recebida como dívidas e impostos procedentes da
parte norte da região passando pelo rio Tigre. A partir de Puzrish-Dagan, eles eram
então distribuídos para seu local final de destino, ou para os templos vizinhos de Nippur
para oferendas, ou para consumo na corte real, ou para disposição das massas populares
reais, ou para uso nos senhorios agrícolas como animais de tração.
Altos funcionários, isto é, a elite governante dos templos e do palácio e suas
várias unidades de households, o rei, sua família direta, membros do clã real, bem como
a elite funcional dentro dos pequenos estados territoriais os quais compunham o estado
de Ur III como um todo, eram designados às households grandes o bastante para
80

sustentar suas famílias e séquito. Tais households eram ligados ao cargo público ou
status mantido por uma pessoa, e desse modo não herdado (RENGER, 2003, p. 19).
A população era integrada dentro dessas households como trabalhadores
dependentes. Eles recebiam diariamente ou mensalmente rações como sua subsistência.
Essas rações consistiam de cevada ou pão e azeite. Em adição a essas rações, lotes
muito pequenos de campo sustentável eram rateados para alguns dos trabalhadores. Eles
eram destinados a suplementar o que eles recebiam como rações (RENGER, 2003, p.
19).
A partir do início do segundo milênio, a economia do oikos do terceiro milênio
foi gradualmente substituída por formas tributárias. Tributário – um termo cunhado por
Pierre Briant – descreve uma economia na qual o palácio e os templos se despojaram de
grandes partes da atividade econômica. A economia tributária é um modo distinto e
diferente no qual as instituições centrais como templo ou palácio organizavam suas
operações e seus interesses econômicos: households institucionais individuais ou a
agregação de todas as households institucionais dentro do estado constituíam uma
household institucional idêntico ao estado como um todo. Integrados dentro de tal
household patrimonial estava toda a terra incluindo seus recursos naturais e humanos.
Necessidades não encontradas em um segmento da household patrimonial eram
satisfeitas por ordem administrativa e contabilizada por um complexo sistema contábil
(RENGER, 2003, p. 20).
Na economia tributária as atividades econômicas eram individualizadas. As
necessidades do palácio – ou de qualquer outra household institucional – não eram
satisfeitas por meio da produção dentro de uma household autossustentável. A produção
era entregue a outros, isto é, privilegiada a indivíduos que tinham imediatamente de
entregar parte dos resultados de seus esforços produtivos para a instituição em forma de
impostos ou tributos. A emergência e a formação da economia tributária aconteceram
gradualmente e com diferenças significativas entre o norte e o sul da Babilônia, isto é,
os reinos da Babilônia, Isin e Larsa (RENGER, 2003, p. 20).
As atividades econômicas despojadas de instituições centrais são três: a primeira
envolve a produção agrícola e criação de animais. A terra dos grandes senhorios do
templo era distribuída em forma de campos de aluguel e de subsistência. Os campos de
subsistência dados aos súditos do rei, que ofereciam serviços, tinham um tamanho
médio de aproximadamente 6,5 hectares. Isso era suficiente para sustentar uma família
de 5 a 7 pessoas. Campos de aluguel eram loteados a indivíduos com o único propósito
81

de produzir grão para o palácio. A terra reservada também era dada a empresários
agrícolas de várias centenas de hectares, até mesmo mais de 3.000 hectares. Em Larsa,
no sul da Babilônia, estamos cientes de grandes operações de rebanho empreendidas por
empresários individuais (RENGER, 2003, p. 20-21).
O segundo tipo de atividades envolve a exploração de recursos naturais – pesca e
caça, a colheita de junco no pântano e a fabricação de tijolos. Campos de subsistência
eram dados, por exemplo, a pescadores e caçadores para remunerá-los. O terceiro tipo
inclui vários tipos de funções de serviço: coleta, transporte, estocagem e eventual
distribuição de produtos agrícolas, seja cevada, tâmaras, lã, mas também a coleta e
distribuição de peixe, ou de couros e cascos de animais abatidos; pagamento e alocação
de trabalhadores para trabalho sazonal ou especial (contratação de trabalho); a coleta de
impostos e tributos; e, atividades de comerciantes de longa distância organizadas como
uma atividade empresarial. Os elementos típicos de tal atividade empresarial são os
seguintes: o palácio incumbe um empresário de uma atividade econômica particular,
que assume os riscos; a relação entre palácio e empresário é estabelecida em um
contrato. O contrato consiste de um número de cláusulas que regulam as obrigações do
empresário de desembolsar ou cumprir seu contrato nos termos da época, e da quantia a
ser paga que é ou fixada antecipadamente em termos absolutos, ou fixado
proporcionalmente em relação ao total da colheita determinada por estimativa logo
antes da colheita (RENGER, 2003, p. 21).
Formas de uma economia tributária podem ser observadas em Lagash pré-
sargônica, isto é, no século XXIV a.C.. Contudo naquele momento esta economia não
constitui um elemento decisivo na vida econômica daquele período. De fato, as formas
da economia tributária estão principalmente presentes na relação com a produção
agrícola: funcionários das propriedades do templo recebem campos alugados. Mas
parece que esses campos alugados representam uma parte insignificante da terra arável
disponível dentro de um senhorio do templo. Formas tributárias de atividade econômica,
contudo, dominam a vida econômica no sul da Mesopotâmia do Período da Antiga
Babilônia dos séculos XIX/XVIII a.C. em diante até épocas posteriores ao período
acamênida.
Durante o período da Antiga Babilônia – isto é mais ou menos entre os séculos
XVIII e XVII a.C.. as atividades dos mercadores e empresários estavam intimamente
ligadas ao interesses e necessidades das households institucionais, na maioria das vezes
do palácio. Os mercadores eram organizados como um grupo ou colegiado de forma
82

regional ligados com o distrito portuário o kārūm. Nessas circunstâncias, não há muito
espaço para um mercado nos moldes da ágora ateniense. Os modelos mesopotâmicos de
abastecimento de alimento para a população depõem contra a existência de um mercado
por meio do qual todos os alimentos necessários para o sustento de alguém poderia ser
obtido. O fato de que os artífices estavam integrados às households institucionais na
economia de oikos, bem como na economia tributária do período da Antiga Babilônia
tem um impacto sobre as necessidades de troca. As mercadorias produzidas necessárias
dentro da household institucional eram produzidas interiormente. Até no que diz
respeito às households privados, particulares – muito do que era necessário era
produzido ali. Uma situação diferente é observada nos centros urbanos durante as
épocas da Neo-Babilônia (sexto/quinto séculos a.C.): a produção de mercadorias e
serviços produzidos por artífices e artesãos parecem estar acontecendo em duas esferas
distintas: Por um lado, os artífices estão ligados às grandes households dos templos, por
outro lado, escravos treinados como artífices especializados trabalhando em suas
próprias oficinas são obrigados a pagar uma taxa anual a seus mestres. Os artífices
escravos obviamente produziam mercadorias para uso geral da população urbana. Os
artífices ligados às grandes households dos templos serviam predominantemente às
instituições para as quais eles estavam ligados. Mas é concebível que eles também
produziam sozinhos para «clientes» particulares, um padrão presumivelmente operativo
no período de Ur III.
O entendimento dessa estrutura é fundamental para a compreensão da
contundente crítica que Renger tece a Moris Silver no artigo intitulado On economic
structures in ancient Mesopotamia, publicado no periódico Orientalia, em 1994.
Renger esquadrinhou os trabalhos de Silver, apontou suas falhas e esboçou outra
perspectiva, de matriz polanyiana, não voltada para a descrição de simples fatos
econômicos, mas para a compreensão da economia antiga como sistemas econômicos
complexos e integrados, ou seja, concebidos como um todo.
Segundo Renger, o principal defeito de Silver, certamente, é que como
economista e não um assiriologista especializado, ele é incapaz de avaliar as fontes
fundamentais provenientes da Mesopotâmia escritas em sumeriano e acadiano, tendo
que apoiar-se em escritos de outros estudiosos. Apesar das dificuldades, Silver
surpreendeu seus leitores pela fina soma de literatura especializada que ele reuniu, leu e
usou. Contudo, inevitavelmente, ele compreendeu mal ou interpretou mal a evidência
em numerosos exemplos, especialmente nas muitas vezes em que cita aprobativamente
83

as interpretações de assiriologistas que – refletindo um estado inicial de pesquisa –


traduzem e explicam as fontes em uma forma modernista, orientada para o mercado
(RENGER, 1994, p. 165-166).
Moris Silver, muitas vezes indiscriminadamente, cita a evidência em todo o
Antigo Oriente Próximo e até o mundo egeu e o clássico sem considerar as diferenças
temporais, culturais e ecológicas. Para Ranger, não é possível juntar simples fatos
provenientes do litoral sírio do I milênio com aqueles do sul da Mesopotâmia do III,
sem falar do Egito antigo ou da Grécia clássica. As diferenças nos estágios de
desenvolvimento histórico e econômico e a discrepância nos sistemas políticos e do
background cultural e intelectual (o qual influencia a maneira com que as fontes
“falam” para nós) em todas essas regiões não permitem a simples abordagem seguida
por Silver. A descrição diacrônica em termos de estrutura requer uma apresentação mais
sofisticada dos fatos, de mudanças e de desenvolvimento. Além disso, tal descrição
deveria incluir a reflexão dos diferentes regimes agrícolas nas várias regiões do Antigo
Oriente Próximo, visto que a agricultura é a base da vida econômica: assim temos de
distinguir entre áreas onde a agricultura tem de se apoiar somente na irrigação de grande
escala daquelas onde a agricultura de sequeiro representa um papel fundamental.
Ademais, o tipo de regime agrícola restringe as formas de direito de posse da terra.
Desse modo, fatores ecológicos têm um impacto nas sociedades, em sua organização
econômica e em seu comportamento econômico. Por outro lado, os vários tipos de
sistema político relacionam-se com diferentes modos de organização econômica em
uma forma dialética. Portanto, não é suficiente descrever, em poucas palavras, as
características geográficas e ecológicas e os diferentes recursos naturais encontrados no
Mediterrâneo oriental e o resto do Antigo Oriente Próximo, a fim de provar o
argumento sobre especialização regional e a vantagem comparativa que isso possa
oferecer (RENGER, 1994, p. 166-167).
Renger questiona o papel do mercado como um elemento estrutural da economia
da antiga Mesopotâmia. Qualquer que seja o tipo determinante de distribuição das
necessidades de subsistência em um dado período ou sistema econômico, tal alocação
seria extremamente importante como um elemento estrutural básico de tal sociedade e
sua forma de organização econômica. Quando Silver fala de mercados de crédito,
escravidão, e terra, suas palavras transmitem a impressão de uma economia
particularmente similar à nossa própria. Mas, segundo Renger, Silver não consegue
demonstrar que o trabalho escravo constituiu um fator quantitativamente decisivo no
84

processo de produção na Antiga Mesopotâmia. Ele não mostra que ali existiu um
mercado de terra agrícola como os meios básico de produção. E suas observações sobre
mercado de investimento e crédito não são convincentes. O que não se compreende em
seus argumentos sobre a existência de mercados é um claro relato ou explicação dos
critérios que poderiam servir como prova para existência deles. É um método
completamente inaceitável de pesquisa histórica assumir que uma simples referência a
algo vendido ou comprado, a um contrato de pagamento ou a um empréstimo, seja
evidência suficiente para crédito, trabalho, terra ou mercados de mercadorias. É
necessário dar atenção ao contexto político, social e histórico, ou investigar, por
exemplo, o papel quantitativo desses fenômenos dentro do sistema econômico todo de
um dado período. Deve ser provado que os mercados existiram como reflexões de um
processo instituído; que eram tangíveis em termos pessoal, espacial e temporal; e que
refletiam um elemento estrutural viável da economia da Antiga Mesopotâmia
(RENGER, 1994, p. 174-175).
O conceito de redistribuição está relacionado com os meios de alocação das
necessidades diárias, principalmente alimento. O conceito de redistribuição teve ampla
aceitação entre os historiadores e antropólogos sociais. Gelb dedicou um artigo
fundamental a uma das principais características ou modos operacionais de um sistema
redistribucional na Antiga Mesopotâmia, isto é, a alimentação de dependentes em
households grandes e institucionais, por meio da distribuição de rações diárias, mensais
ou mesmo anuais em mercadorias. Silver, segundo Renger não aprofunda a discussão
sobre o conceito em virtude de suas limitações com o manejo das fontes. Ele sustenta
que “recentes estudos” têm arruinado a premissa instável, de que a maioria, se não toda
a terra agrícola, era possuída pelos templos. Isso significaria que os templos e os estados
(principalmente a Dinastia Ur III) não eram de forma alguma os únicos proprietários de
terra. Entretanto, contrária a tal afirmativa, o argumento sobre templo versus posse
privada de terra arável no período pré-sargônico e durante o período Ur III não pode ser
usado a fim de refutar a “hipótese redistribucionista ou de templo-estado”. Como prova
adicional, Silver cita alguns exemplos onde o estado ou templos agem como
empresários ou inovadores familiarizados com as necessidades e circunstâncias dos
mercados relativamente distantes e tinham acesso ao capital necessário para
implementar seus insights, especialmente quanto à adoção de novos produtos para
novos mercados. As atividades desses empresários tornam-se mais claramente visíveis
na forma de ‘firmas’. O funcionário que age como empresário e suas atividades
85

organizadas dentro de uma ‘firma’ (sum. é = Akk. bitum “casa”) não pode servir como
evidência contra a bem conhecida hipótese templo-estado. Além disso, Silver interpreta
mal o problema quando ele une redistribuição à questão da ‘cidade-templo’ (Falkenstein
e anteriormente Schneider e Deimel). A redistribuição implica um modo de realocação
dos produtos do trabalho produzidos coletivamente, centralmente colhidos e estocados.
Não há nenhuma implicação à igualdade de tratamento, ‘partes justas’, ou pagamento
pelo valor do trabalho. O padrão social é caracterizado pela centralidade: os pontos
periféricos estão todos ligados ao ponto central. A redistribuição pode, portanto, ocorrer
em uma variedade de sistemas políticos. Estudiosos de várias disciplinas têm
reorganizado o princípio de redistribuição como um determinante econômico, social e
político no estado Inca e têm sustentado que a redistribuição representou um papel
decisivo em momentos da história do Egito Antigo, Chipre e Creta (RENGER, 1994, p.
176-177).
A armazenagem está tão intimamente ligada ao conceito de redistribuição que
uma economia redistributiva é muitas vezes descrita como economia de armazenagem.
Armazenagem e redistribuição de mercadoria durante períodos prolongados de tempo
dão confiança e segurança. É a necessidade por segurança que impele grandes
households ou o ‘estado’ a aumentar os estoques para os maus tempos, ao invés de
considerações comerciais e de intercâmbios. Infelizmente, evidência direta em prol de
armazenagem de grandes quantidades de grão ou outras matérias primas é muito
escassa. E muito pouco tem sido feito sobre o assunto. Dessa forma, muito
frequentemente se tem de recorrer à evidência indireta. A terminologia particularmente
diversificada concernente à armazenagem e facilidades de armazenamento em fontes
sumérias bem como acadianas até agora espera um tratamento sistemático. Referências
textuais mencionando grandes dispêndios ou receitas de mercadorias de matéria prima
permitem uma estimativa da quantidade envolvida. Desse modo, o texto RTC 407 de
Girsu (período de Ur III) trata da área de colheita de aproximadamente 5.000 bùr
(aproximadamente 318 km2) e uma colheita de grão de cerca de 22.500 toneladas que
bastariam para 62.150 rações anuais de 2 silos por dia (aproximadamente 1,68 litros =
aproximadamente 1 kg de cevada). Outro texto indica a colheita total do distrito de
Girsu (aproximadamente 15.000 toneladas), cerca da metade dos quais é para serem
entregues a uma autoridade mais alta. Evidência clara da existência de sistemas
redistributivos aparece em número considerável nas listas pessoais desde os períodos
pré-sargônico, de Ur III e babilônico antigo (especialmente a partir de Mari) que
86

indicam a quantidade de rações distribuídas a grandes números de dependentes nas


households institucionais. Certamente, é verdade que além daqueles diretamente
dependentes dessas households, aí existiam outros segmentos da sociedade que não
faziam parte do sistema redistributivo. Mas aqui temos de distinguir, cuidadosamente,
entre períodos e regiões. Durante o período de Ur III – e principalmente baseado nos
textos de Girsu – o sistema, obviamente, incluía a maioria da população. Durante o
período babilônico antigo, somos confrontados com uma situação diferente. Uma
grande parte da população não era abastecida por meio de rações, mas era dado seu
sustento na forma de áreas que garantiriam a subsistência. Mas households
institucionais – templo bem como palácio – também existiram e mantinham seus
dependentes com rações. Também parece haver diferenças entre a própria Babilônia e
Mari, onde grandes oficinas ou ergasteria estavam ligadas aos palácios – talvez um
vestígio do sistema de oikos de Ur III (RENGER, 1994, p. 178-180).
Silver presume que a existência de mercados é fundada, principalmente, em
documentos que registram a venda de bens imobiliários, ou a concessão de empréstimo.
Mas tais deduções simplistas não podem servir como prova suficiente, visto que elas
não levam em consideração os princípios básicos da pesquisa histórica, segundo
Renger. Silver não trata das possíveis razões que podem ter impelido a venda de bens
imobiliários; ele não considera a observação de Diakonoff sobre os preços
espantosamente baixos para terra ou a extensão das flutuações de ‘preços’; não examina
os indivíduos que tomam parte nessas transações de bens imobiliários ou investiga o
tamanho das parcelas vendidas nem os tipos de bens imobiliários envolvidos. Ele
também não compreende as atividades regulares de funcionários com relação às
transações de bens imobiliários. Ele negligencia distinguir claramente entre as várias
regiões do Antigo Oriente Próximo. Desse modo, ele deixa de lado a influência de
fatores ecológicos no padrão de posse de terra, por exemplo, na Assíria ou Nuzi com a
agricultura de sequeiro – em contraste com a Babilônia com irrigação artificial em
grande escala organizada pelo estado. Além disso, Silver não reconhece a diferença
entre o Norte da Babilônia (área a partir de Sippar descendo até Nippur e Isin) e o Sul
(Kutalla, Larsa, Ur) durante o período babilônico antigo. Considerando que a venda de
áreas é bem-atestada para o Norte, fica claro que no Sul, a venda de áreas somente
ocorreu sob circunstâncias excepcionais (RENGER, 1994, p. 184-186).
Aproximadamente 800 contratos documentando a venda de bens imobiliários
(campos, pomares, casas) são conhecidos desde o período babilônico antigo. Por volta
87

de 250 originam-se a partir das cidades do sul da Babilônia: Kutalla, Larsa e Ur. Dentre
elas, achamos somente treze pertencentes a campos, que eram pedaços de terra
particularmente pequenos, sem grande importância ou devastados ou algumas vezes
uma combinação dos dois. Em uns poucos casos, áreas de lote foram vendidas; estamos
tratando aqui da venda de usufruto. O que é notável nesse contexto é a ausência quase
total de áreas entre os objetos listados em documentos de herança proveniente do Sul da
Babilônia. Mais reveladora é a documentação registrando a divisão dos bens paternal de
uma família muito rica durante três gerações. Aqui também, nenhum campo foi
mencionado! Mesmo a venda de casas dentro da cidade de Ur foi supervisionada por um
funcionário. Evidência comparável existe para Kutalla. Em contraposição, 46 dos 116
documentos de venda de bens imobiliários provenientes de Nippur concernem a
campos.
Silver rejeita a posse de terra coletiva. Renger entende que deve se esclarecer a
relação quantitativa entre as diferentes formas de posse de terra, quer isso signifique
posse por indivíduos ou famílias, controle coletivo sobre os campos de uma comunidade
de vilarejo, propriedades de terra de grandes households institucionais ou direitos
restritos sobre a terra arável concedida a indivíduos ao dividir ou arrendar campos para
eles. As várias formas de posse de terra têm de ser compreendida como funções de
condições sociais e políticas distintas bem como de condições ecológicas. Parece que
sob a dinastia de Ur III, a maioria das terras estava sob o controle estrito do estado. Esse
regime aparentemente continuou no sul da Babilônia durante o período babilônico
antigo, visto que no território do reino de Larsa (Kutalla, Larsa, Ur) somente um
punhado de vendas de campos é atestado para o período, até que registros dessa área
cessam de existir por volta de 1720 a.C.. No norte da Babilônia, contudo, um regime
diferente de posse de terra existiu atestado por um grande número de documentos de
venda de campo. Uma questão à parte é como o acesso a bens de raiz era possível.
Tomados simultaneamente, os documentos existentes registrando a alienação de terra
arável referem-se somente a umas pequenas terras vendidas por acre comparada à área
vidente cultivada em qualquer período dado. Também não sabemos quem e sob que
circunstâncias podiam vender ou comprar terra arável. Ademais, não há nenhuma
indicação seja qual for que o acesso a terra geralmente era obtido por meio de um ato de
compra, isto é, por meio de um mercado de terra. O termo mercado de terra somente é
justificado, se o mercado é a forma dominante de acesso à terra necessária pela
população para garantir sua subsistência. Mas, como compreendemos as fontes, acesso à
88

terra era possível ou por meio da família, isto é, herança, ou por meio do rei na forma de
lote ou aluguel de campos. Além disso, tem de se estar ciente do fato de que em
qualquer sociedade agrária baseada em pequenas unidades de produção, cultivadas por
família, uma limitação adicional a um mercado em terra arável existiu: a perda da terra
estava automaticamente associada ao empobrecimento e ao desastre econômico em
relação da família envolvida. Assim, um regime agrário desse tipo, implicitamente,
constitui um impedimento para a consolidação da terra resultante de fatores puramente
econômicos, isto é, da lógica de oportunidades de mercado e uma inclinação para o
crescimento econômico por aqueles buscando tal consolidação de terra como Silver
especula (RENGER, 1994, p. 188-189).
O papel e as formas de crédito em uma dada economia podem servir como um
importante indicador da complexidade e sofisticação prevalecente em tal sistema
econômico. Para Polanyi, o crédito representou um papel diferente na antiguidade, pois
não eram regidas pelos mercados criadores de preços, no qual sua emergência assume
“funções de um novo caráter”. A discordância de Silver da posição de Polanyi gira em
torno da questão da existência ou não de empréstimos comerciais não agrícolas.
Contudo, o problema parece ser mais complicado. Para Renger origem de empréstimos
e crédito em uma economia camponesa, isto é, uma economia determinada por
produção de subsistência é diferente das sociedades modernas. O crédito sob tais
condições sociais específicas pode também ser concebido como parte de um sistema de
reciprocidade. Os princípios de solidariedade tradicional exigiam assistência mútua
observando serviços necessários ou mercadorias. Empréstimos e serviços, certamente,
estão acoplados com a obrigação para ação eventual recíproca, ou por restituição em
espécie o que era recebido, ou por substituição. Visto que a reciprocidade é somente
esperada depois de algum tempo, se poderia descrever a situação inteira em termos
econômicos (modernos) como crédito. Parece, contudo, que uma análise só em termos
econômicos não é adequada para explicar as implicações sociais fundamentais.
Poucos contratos de empréstimo – em sentido estrito do termo – antes do
período Ur III são conhecidos. Mais de 500 documentos de empréstimo são conhecidos
desde a época da 3ª Dinastia de Ur ( 2100-2000 a.C), e um número até maior do período
babilônico antigo (2000-1600 a.C.). São usados termos diferentes para distinguir vários
tipos de empréstimos. O formulário é abstrato, praticamente nunca mencionando o
propósito para qual um empréstimo tinha sido concedido. As dificuldades em interpretar
corretamente as fontes existentes são óbvias. A despeito da aparição de um número de
89

importantes artigos e de estudos geográficos cobrindo períodos particulares e de


aspectos específicos ligados aos problemas de crédito, nenhuma investigação
abrangente incluindo a vasta quantidade de documentos de empréstimo em sua
totalidade está disponível. Como a diversidade da evidência mostra, tal tarefa requer a
distinção meticulosa entre áreas (Babilônia, Assíria, Síria etc.) e períodos com as
diferenças características em condições sociais e políticas. Cláusulas específicas
relativas aos termos de pagamento (reembolso) de um empréstimo, dívida ou obrigação,
ou com referências à cauções ou garantias pessoais dadas a fim de obter um empréstimo
ou uma dívida pendente também esclarecem as condições econômicas e específicas que
criaram um débito ou eram úteis em conceder ou requerer um empréstimo. Em relações
de empréstimo impessoal, cauções e garantias pessoas representam um papel maior do
que quando os empréstimos eram dados dentro de grupos sociais estritamente coesos.
Neste último caso, a estigmatização dentro do grupo tende a impingir os reembolsos de
dívidas ou a reciprocidade de favores concedidos; dessa forma, cauções ou garantias
similares geralmente são necessárias (RENGER, 1994, p. 192-194).
O crédito na Mesopotâmia Antiga é em geral de dois tipos: crédito dado em
espécie, isto é, na forma de objetos tangíveis, mercadorias ou matérias primas
(incluindo metal); e o crédito de mercadorias ou matérias primas, de modo fictício, dado
em provisão para reembolsar em espécie o que era de modo fictício dado. As relações
de crédito podiam ser estabelecidas entre indivíduos, um como credor, o outro como
devedor; entre indivíduos e households institucionais (o último geralmente era o
credor); e finalmente entre duas instituições. O tipo de crédito, e sua forma, que
determinava as relações de crédito entre credor e devedor – sejam eles indivíduos ou
instituições – dependia das circunstâncias do empréstimo. É a formulação altamente
abstrata de crédito ou documentos de empréstimo que os tornam facilmente adaptáveis a
uma ampla variedade de circunstâncias, mas também dificultam reconhecimento de suas
causas e consequências básicas (RENGER, 1994, p. 195).
Empréstimos de consumo ou “de colheita” são fundamentais em sociedades
agrícolas que contam com a produção de subsistência. Em sistemas redistributivos, tais
empréstimos de consumo são necessários na medidad em que boa parte da população
está direta e completamente sob os cuidados das household institucionais. Contudo, em
tempos de dificuldades, as pessoas que estavam à margem do sistema redistributivo
podiam virar-se para o templo (geralmente em Ur III) ou para indivíduos privados
(melhor atestado para o período babilônico antigo) no intuito de pedir empréstimos de
90

colheita ou de consumo. Assim, o fato de que os templos bem como os indivíduos


concediam empréstimos não justifica discordar da afirmação de Polanyi de que no
estado arcaico, o templo e o palácio eram os principais provedores de crédito de
colheita. A observação pessoal de Steinkeller de que praticamente todos os documentos
de empréstimo a partir do fim do terceiro milênio concernem a empréstimos feitos por
pessoas privadas não constitui prova por si. Também sabemos que empréstimos de
colheita dados pelo templo ou palácio, muitas vezes, não eram registrados em contratos
legais, mas por meio do sistema de registro contábil das households institucionais.
Pode-se chamar atenção nessa ligação para a obrigação (ideologicamente determinada)
dos templos amparem os mais necessitados. Um exemplo notável que vai além de atos
efêmeros de assistência para a necessidade é a instituição a.ru.a. Aqueles incapazes de
sobreviver por si só ou por meio das famílias em apuros podiam dedicar-se (a.ru) ou
dedicar membros de sua família a um templo que os incorporaria dentro de seu pessoal
e proveria a subsistência deles. Desse modo a concessão de empréstimos de colheita
pelos templos parece ter o mesmo background ideologicamente motivado: cuidar dos
mais fracos.
Durante a maior parte do período babilônico antigo, déficits antes da colheita
atingem duramente aqueles que viviam e trabalhavam sob condições de produção de
subsistência. E “quanto mais fraco uma household, mais certa era essa necessidade”
para empréstimos de colheita. Os efeitos do endividamento derivando de tais
empréstimos de colheita e uma crescente incapacidade de reembolsar os empréstimos
ainda que as condições naturais adversas continuassem por mais de um ano, no final das
contas, levavam à perda do usufruto da terra, porque a terra pode ter sido dada como
uma caução contra crises para o credor; isto pode ter levado à necessidade de vender a
terra e finalmente à servidão por dívida. Combinado, isso podia resultar em desordem
social e instabilidade se, por exemplo, a população inteira de um vilarejo deixasse de
evitar a servidão por dívida (RENGER, 1994, p. 196).
Certamente, empréstimos de cevada para indivíduos eram concedidos tanto pelo
palácio ou pelos templos e por indivíduos durante o período babilônico antigo. A
natureza específica do formulário de documentos babilônicos antigos de empréstimo
pode criar dificuldades em distinguir entre empréstimos dados por indivíduos ou
instituições, visto que os contratos registrando empréstimos institucionais, muitas vezes,
nomeiam como credor não a instituição, mas o responsável oficial com intuito de
conceder o empréstimo. Dessa forma, um arquivo completo é necessário para
91

reconhecer que um grupo de contratos de empréstimo são empréstimos institucionais.


Deve se acrescentar que os empréstimos dados por nadiātum, mulheres destinadas por
seus parentes ricos a levar uma vida religiosa rezando por seus familiares em templo de
sua deidade, nada têm a ver com os empréstimos de templo. Há ampla evidência a partir
do período babilônico antigo (século XVII a.C.) de que o palácio concedia empréstimos
de consumo. Não está claro, contudo, se os beneficiários desses empréstimos
permaneciam em relação direta com o palácio, por exemplo, como empregados ou
membros da household palacial, e assim naturalmente recebiam tais empréstimos do
palácio, ou se esses empréstimos eram dados a estrangeiros (RENGER, 1994, p. 197).
É o ambiente social que determina, a um grau maior, as condições de acordo
com as quais os empréstimos são concedidos ou outras obrigações contratuais aceitas. É
obvio que o crédito representava um papel importante na economia da Antiga
Mesopotâmia. Está plenamente claro, contudo que as diferentes formas de crédito têm
de ser meticulosamente distinguidas e toda atenção tem de ser prestada para as
diferenças em época, ambiente social e esferas econômicas. Empréstimos de consumo
são amplamente atestados; adiantamentos, crédito e contratos de empréstimos fictícios
eram usados para promover operações econômicas dentro de households institucionais e
ao tratar de terceiros fora da household. Empréstimos comerciais eram restritos a
empreendimentos comerciais. Isso é bem documentado para o começo do segundo
milênio tanto na Assíria como na Babilônia, bem como para o período neobabilônico
(séculos VI-V a.C.). Mas nada prova a existência de empréstimos dados para propósitos
lucrativos, isto é, produção manufatureira ou agrícola, que induza a crescimento
econômico. Muito pelo contrário! Possuir superávit adquirido, tal como, em um
empreendimento comercial, a partir de reinvestimento, e convertê-lo, por exemplo, em
bens de raiz serve para aumentar o status social de alguém. Finalmente, não possuímos
qualquer prova para um mercado de empréstimo onde oferta e demanda tenham
influenciado as condições para empréstimos (por exemplo, taxas de juros, etc.).
Também, a escravidão ou servidão contratual, isto é, o direito de um indivíduo livre
para afiançar-se ou a um membro familiar como garantia para um empréstimo não
requer a existência de um mercado de crédito. A taxa invariável de juro durante os
séculos constitui um forte argumento contra a existência de um mercado de crédito. Se
tivesse havido um mercado de crédito, no verdadeiro sentido da palavra, se esperaria
taxas variáveis de acordo com a oferta e a demanda.
92

Segundo Renger, quando se fala de estrutura, se espera uma discussão sobre os


tipos de atividade econômica, modos de comportamento econômico e as possíveis
variações da organização econômica. Constituem elementos de estrutura as diferentes
formas de posse de terra em sua relação dialética com tipos distintos de organização
política e ambiente natural. Uma discussão do impacto sobre estruturas econômicas de
uma economia de subsistência do campesinato combinada com a economia de oikos de
households institucionais é fundamental. Ademais, fazem parte das estruturas
econômicas os termos imateriais: necessidades cerimoniais ou rituais e consumo de
prestígio contribuem consideravelmente para a compreensão e discrepância de
estruturas econômicas. Os meios nos quais o comércio e a troca são organizados
também representam elementos estruturais refletindo a natureza de um sistema
econômico dado. Comércio de longa distância pode aparecer na forma de troca de
dádiva entre governantes, mas também pode ser compreendido na forma de
empreendimento empresarial para os quais os mercadores da Assíria antiga são um
modelo primordial. O modo como o comércio ou a troca dentro da própria Babilônia
funcionava durante os vários períodos de sua história ainda permanece obscuro.
Todavia, parece apropriado não descrevê-los em termos de mercado de troca, pois há
muitas indicações de que a troca institucional, as formas de escambo, troca recíproca e
outros substitutos para o mercado de troca representavam um considerável papel no
abastecimento da população com mercadorias para além do que era produzido dentro da
esfera autossuficiente de subsistência (RENGER, 1994, p. 206-207).

OS NOVOS MODELOS: A PERSPECTIVA DE LIVERANI

Para compreender a coexistência de modelos de interpretação diferentes e que


conduzem a conclusões históricas tão contraditórias, é preciso considerar que os textos
econômicos mesopotâmios são difíceis de ler e interpretar. Seu formato, seu léxico, as
práticas de verificação e legalização, embora repetida por vezes sobre milhares de
documentos, não nos são muito claros. De mais, somente as relações econômicas
associadas à acumulação e a redistribuição de bens no quadro de instituições urbanas
foram sistematicamente registradas pela escrita cuneiforme e conservadas nos arquivos:
não se deve inferir que elas representaram todas as trocas no mundo antigo. Embora
sendo proporcionalmente bem inferior em quantidade, uma documentação relativa a
outros tipos de relações e de estratégias econômicas existe também, e continua muito
93

significativa: para além do corpus das cartas dos comerciantes assírios na Capadócia, já
citados, se pode mencionar, por exemplo, os contratos de venda que refletem a
propriedade privada da terra e bens imobiliários. Pela própria natureza privada, entre os
indivíduos, esses textos econômicos têm uma estrutura mais complexa, articulada e
variável. Eles foram conservados por razões diferentes daquelas dos textos
institucionais, e eles têm sobrevivido mais aleatoriamente. Esta realidade convida a ter
cautela na interpretação e na explicação dos fatos e das estruturas econômicas, e explica
também como os mesmos dados textuais podem oferecer possibilidades de leitura
diferentes e mesmo contraditórias. Desde a década de 1970, vários assiriólogos e
historiadores do Antigo Oriente Próximo, como Mário Liverani, Carlo Zaccagnini, M.T.
Larsen, K. Veenhof, N. Yoffe, N. J. Postgate, M. van de Mieroop, G. Van Driel têm
começado a reconstituir o desenvolvimento econômico do mundo mesopotâmio no seu
quadro histórico. Usando todas as fontes documentais arqueológicas e textuais, em
diferentes níveis, eles procuraram destacar as fases da evolução da economia e do
mercado. Enfatizando diferentes aspectos da mudança do sistema econômico antigo –
mas, basicamente sem renunciar completamente todos os pressupostos polanyianos –
esses historiadores estão tentando restaurar uma imagem da economia mesopotâmia
como aquela de economia de mercado. Mas é evidente que eles acreditam que, no
contexto da economia do mundo sírio-mesopotâmio, não houve mercado, nem pode
haver, as propriedades e características do mercado moderno e contemporâneo.
Estas reconstruções, apesar das diferenças significativas, apresentam pontos em
comum. Todos parecem concordar que o Estado, por meio de sua política e suas
instituições, ainda pesa sobre o funcionamento do mercado, que não pode ter o aspecto
mecânico e independente em relação às estruturas sociais que lhes são atribuídos pela
teoria econômica moderna. Eles também levam em conta a falta, na Mesopotâmia
antiga, de uma medida comum, de uma moeda para quantificar o valor das matérias
primas, os produtos e, sobretudo, do trabalho humano, e para expressá-lo por preços
determinados pelo equilíbrio entre a oferta e a demanda. Em segundo lugar, todos já
admitem a existência e a relevância de um mercado comercial, autônomo das redes de
intercâmbio “recíprocas” entre Estados e instituições. Este mercado se estabelece no
seio de uma categoria de especialistas, os mercadores, que têm códigos de
comportamento com procedimentos profissionais determinados.
Dentre estes historiadores, tomemos como exemplo Mario Liverani, um autor
influenciado pelo marxismo, mas que, para além do instrumental marxista, tem
94

avançado muito na análise da economia e sociedade do Antigo Oriente Próximo em


uma perspectiva histórica. Liverani escreveu um capítulo na coletânea organizada por
Ian Morris e J. Manning intitulada The Ancient Economy: Evidence and models, em
2005, no qual procura apresentar uma visão geral da economia do Antigo Oriente
Próximo do terceiro ao primeiro milênio, mesmo considerando a enorme série de dados
e as diferenças das unidades culturais – de estepe e verdadeiro deserto até montanhas
arborizadas, de clima mediterrâneo até árido, de agricultura sustentada por chuva até
redes de irrigação, de centros urbanos até acampamentos pastorais, de estados
burocráticos até tribos esparsas. O modelo de Liverani complementa e aprofunda o de
Ranger, investigado anteriormente e é, em nossa opinião, o mais sofisticado, pois
articula as estruturas econômicas da Mesopotâmia com as transformações históricas
relacionadas com a política e o comércio.
Segundo Liverani, as estruturas básicas das economias do Antigo Oriente
Próximo foram estabelecidas desde a revolução urbana, no final do IV milênio a.C. e
ficaram estáveis até a grande crise do final do II milênio a.C.. A “Idade do Bronze”,
criada como um recurso classificatório para ferramentas e armas, pode ainda ser usada
como um rótulo histórico, abrangendo similarmente sistemas socioeconômicos
estruturados e oposto aos períodos precedentes e subsequentes (LIVERANI, 2005, p.
48).
O modelo da “cidade-templo”, desenvolvido pelo assiriologista Anton Deimel
(1931, baseado em estudos anteriores) e pela historiadora Anna Schneider (1920), com
algumas divergências, foi mantido quase incontestável até meados dos anos cinquenta
(Falkenstein, 1954). Deimel enfatizou os fatos de que nas cidades-estados sumérias,
todas as terras agrícolas pertenciam ao templo, e toda população trabalhava sob a
administração do templo. Schneider enfatizou o fato de que a economia suméria era
mista, incluindo traços de uma economia estatizante lado a lado com traços de relações
feudais e traços do mercado livre, negando a trajetória evolucionista de Karl Bücher e o
modelo do oikos. O assiriologista marxista e historiador Igor Diakonoff, em 1954 e
1982, criticou a teoria da “cidade-templo” reexaminando os dados técnicos a fim de
mostrar que as propriedades do templo cobriam somente uma parte do território da
cidade. Na visão de Diakonoff, o espaço deixado livre foi ocupado pelas comunidades
locais, isto é, as vilas e as famílias extensas. A existência de dois setores na estrutura
socioeconômica do Antigo Oriente Próximo era moldado de um modo não muito
diferente do assim chamado Modo de Produção Asiático, mesmo se Diakonoff não
95

usasse esse termo, que era tabu na União Soviética na época. Os dois setores se
encontram em um sentido análogo, visto que as terras do setor do templo/palácio são
administradas diferentemente e mantidas separadas das terras das comunidades locais,
mas em outro sentido, as comunidades aldeãs estão ligadas ao setor templário/palacial
por subordinação, visto que as comunidades locais são “contribuintes” do templo ou do
palácio, no qual se encontra o poder político unificador.
Entre os assiriologistas ocidentais, a crítica de Diakonoff foi apreciada e
contrariada ao mesmo tempo. Por um lado, foi apreciada porque apresentou um quadro
mais matizado do que o modelo simplista de “cidade-templo”, concebido em torno das
teorias estatistas da Alemanha do século XX. Por outro lado, de acordo com estudiosos
ocidentais, em particular Gelb, o espaço deixado livre foi ocupado não pelas
comunidades locais ou famílias extensas, mas pela propriedade privada e administração
privada. Em todo caso, a rejeição do modelo totalizante provocou a rejeição de seu
rótulo também, negando-se hoje a própria existência de uma economia baseada no
templo para o terceiro e segundo milênios a.C., com a exceção da Terceira Dinastia de
Ur. Além disso, a própria existência de comunidades aldeãs, apoiada por estudiosos
neomarxistas da Europa Ocidentais, foi fortemente posta em dúvida, visto que os traços
específicos que definem uma “comunidade aldeã” na Europa medieval não são
encontrados no Antigo Oriente Próximo. Finalmente, o papel da irrigação ao originar a
administração agrícola centralizada – já presente no modelo de Deimel, e que se tornou
a base das visões totalizante de Karl Wittfogel – foi descartado como um fator principal
seguindo a análise mais precisa de Robert McC Adams. Com o templo reduzido a um
papel secundário e as comunidades aldeãs vistas como ficções das imaginações de
historiadores marxistas, abriu-se espaço para a propriedade privada (e pessoal), para
administração privada da rede de irrigação, para um mercado livre de terra, e assim por
diante (LIVERANI, 2005, p. 49-50).
A denominação “cidade-templo” significa um modelo de economia em que um
setor específico relevante modela a economia inteira da cidade ou do estado. Um dado
setor é o mais importante em comparação aos outros, desse modo influencia de vários
modos e graus os outros setores também. Em termos gerais: se queremos avaliar um
modelo de uma economia, nós temos de avaliar os estudos quantitativos de suas partes
componentes e compreender o funcionamento interno da cidade como uma “cidade-
templo”, não porque o templo era a única representação econômica, mas porque era de
96

longe o maior agente, capaz de influenciar os outros, menores (LIVERANI, 2005, p.


50).
Em relação ao conceito de posse “privada” de terra, Liverani o compara com o
conceito de posse (templo/palácio) “pública” de terra, definindo os dois setores básicos
na economia do Antigo Oriente Próximo. A identificação de posse “privada” com
“pessoal” (de propriedade) lhe parece ser totalmente equivocada. Toda sociedade tem
suas próprias regras (ou costumes) dentro da posse e administração de propriedade, e na
Idade do Bronze a propriedade privada era possuída pela família ao invés de pessoas
individuais. Posses pessoais emergem no templo/palácio e nos setores familiares,
especialmente durante a Idade do Bronze Tardia, por meio de processos de usucapião
(LIVERANI, 2005, p. 50).
As comunidades aldeãs eram “contribuintes” do templo ou palácio, mas não com
uma cota de sua produção, característica das tribos. O fluxo mais importante de recursos
não era sobre produtos, mas sobre trabalho. As representações de templo/palácio usaram
trabalho compulsório barato vindo das aldeias, em forma de corveias, acarretando a
maioria dos custos sociais para as comunidades aldeãs.
Parece haver consenso entre Assiriologistas e historiadores da Antiga
Mesopotâmia com a ideia de que as propostas de Polanyi sobre comércio estavam
erradas – embora outra proposição principal de Polanyi, sobre a natureza redistributiva
da economia do Antigo Oriente Próximo, tenha sido mais bem recebida. Para Liverani,
a afirmação de comércio administrado versus privado é uma questão de quantidade e
qualidade. A troca local de alface e legumes certamente existiu, mas como uma parte
menor do comércio mesopotâmico. Tal avaliação deveria também ser diferenciada de
acordo com período. O papel do templo foi especialmente relevante durante o início da
Idade do Bronze, e o comércio administrado culminou sob a Terceira Dinastia de Ur. O
papel da empresa privada foi relevante durante a Idade do Bronze intermediário, com a
atividade dos mercadores dos antigos períodos assírio e babilônico. Finalmente, o
comércio administrado pelo palácio experimentou um aumento renovado durante a
Idade do Bronze Tardia, especialmente na forma de troca cerimonial entre a corte real
(LIVERANI, 2005, p. 53).
Um segundo ponto, e mais importante, é que o comércio pode ser subdividido
em dois segmentos básicos. O primeiro concerne à relação entre o templo ou palácio e
seus agentes de comércio; o segundo segmento está relacionado com as atividades dos
mercadores, uma vez que eles deixavam seu país natal e se aventuravam em terras
97

estrangeiras: o segmento final está relacionado aos ajustes de contas entre mercadores e
representações centrais no final do processo. A relação administrativa, usando valores
fixos e buscando materiais indisponíveis na pátria, se modificava no final do processo:
agentes do comércio obtinham prata e/ou materiais processados (principalmente metais
e têxteis) vindo da representação central e tinham de trazer de volta depois de seis
meses ou um ano o equivalente em produtos exóticos ou matérias primas. A balança
econômica entre a representação central e os agentes do comércio não podia, contudo,
ser regulada por valores de troca fixos. Mas a atividade dos mercadores logo que eles
deixavam o palácio era completamente diferente: eles podiam livremente comercializar,
tirando proveito dos diferentes preços dos vários itens em vários países, mesmo usando
sua moeda em atividades financeiras (tais como empréstimos) nesse tempo à sua
disposição, e procurando lucro pessoal máximo possível. Documentos pertinentes à
relação entre o templo ou palácio e seus agentes de comércio, no início e no final do
processo, certamente, nos darão a impressão de um comércio administrado, enquanto
que os documentos pertinentes aos segmentos intermediários, isto é, aqueles
relacionados com as atividades dos mercadores no exterior, nos darão a impressão do
comércio livre. As duas impressões estão ambas corretas e não se contradizem
(LIVERANI, 2005, p. 54).
A relação entre ofícios e representações centrais é também o assunto de um
debate similar (embora menos intenso), que pode ser resolvido junto com as mesmas
linhas. No antigo modelo da cidade-templo, os artífices eram arrolados dentro de grupos
da representação central, processando matérias primas dadas pela própria representação,
que sucessivamente apoiava os artífices por meio do sistema de ração (nos primeiros
estágios) ou por meio de loteamentos de terra (nos últimos estágios). Em sua última
formulação, esse modelo representa a representação central como o único “cliente” dos
artífices e representa todos os artífices como dependentes íntimos (tempo integral) da
agência central, deixando para a população “livre” somente a tarefa de produzir
alimento. Porém, marcas de ofícios especializados (metal, escórias, objetos de cerâmica,
lascamentos líticos, e assim por diante) estão, de fato, presentes em sítios menores, e
elementos dos centros administrativos, como cones de argila em Uruk tardia, são
encontrados em pequenos assentamentos. A objeção da visão de concentração urbana é
a referência a ofícios nas vilas e em ambientes familiares, com uma pluralidade de
compradores, visto que seus produtos não eram somente destinados a atividades de luxo
98

(ou a evidente consumo) pela elite, ou para armazenamento em palácios ou templos,


mas também para as necessidades normais e frequentes da população toda.
Liverani formula um quadro mais geral da habilidade artesanal no Antigo
Oriente Próximo segundo o qual o dilema sobre a centralização versus dispersão não
admite nem uma resposta positiva, nem negativa, mas uma afirmação diferenciada. A
fabricação de cerâmica exige uma matéria prima ubíqua (argila) e habilidade técnica
mínima, e tem uma variedade de “compradores” (tanto das representações centrais
como famílias). Portanto, tende ser especialmente comum. Joias são demandadas para
um mercado mais seletivo, requerem níveis mais altos de habilidade técnica, e as
matérias primas necessárias são caras e predominantemente exóticas; são, portanto,
produzidas mais eficientemente em oficinas centralizadas. A produção têxtil tem um
mercado potencial amplo e uma matéria prima facilmente acessível (lã), mas a produção
em larga escala somente é possível com uma concentração considerável de trabalho
barato. Do ponto de vista técnico, pode ser praticada tanto por famílias como pelas
oficinas do templo ou do palácio, mas do ponto de vista econômico, as oficinas
centralizadas são mais convenientes e provavelmente substituíam a produção familiar.
De forma mais detalhada, a produção têxtil é o estágio final de uma sequência
complicada: criação de ovelha, tosa, fiação, tecelagem, e a produção de roupas têm
naturezas muito diferentes e exigem formas diferentes de administração. Uma
representação central pode ser conveniente por confiar os rebanhos a pastores “livres”
(de uma maneira não muito diferente daquela usada por agentes comerciais), mas usam
a corveia para a tosquia (de uma maneira não muito diferente daquela usada para a
colheita) e oficinas para fiação e tecelagem (com alto número de mulheres e jovens,
pagos por meio de ração de alimento). A variedade de compradores pode ser
administrada de duas maneiras básicas: primeiro, pela duplicação, isto é, a existência
paralela de dois setores, um privado para consumo familiar, e um público para as
necessidades da representação central; e segundo, por complementaridade, isto é, pela
atividade secundária dos artífices “públicos” com o fito de satisfazer necessidades
privadas (LIVERANI, 2005, p. 55).
Essa análise deturpa o modelo de concentração urbana de ofícios especializados?
Certamente que não. A avaliação final deve levar em conta tanto a quantidade como a
qualidade. Enquanto alguns ofícios eram comuns em aldeias e conduzidos por famílias
individualmente, os mais importantes e mais complexos estão localizados dentro, em
torno ou ligados à representação central – por si mesmo, o maior consumidor de
99

produtos finais, a maior concentração de trabalhadores, e de longe, a reunião mais eficaz


de matérias primas (locais e exóticas igualmente) (LIVERANI, 2005, p. 56).
A perspectiva de Liverani complementa a análise de Ranger ao incluir setores
não palaciais/templários na estrutura econômica. Ranger focou as estruturas centrais,
autárquicas, mas não aprofundou, para este período o papel de outros setores. A
inclusão do setor comunal, inicialmente desenvolvido por Diaknoff, trouxe ao debate
um novo ator econômico e político. Mesmo com todas as dificuldades que as fontes
apresentam, essa perspectiva relativizou o papel do setor “privado” e esclareceu melhor
o papel das instituições centrais. Em outro artigo, intitulado The influence of political
institutions on trade in the ancient near east (late bronze to early iron age), no livro
organizado por Carlo Zaccagnini, Mercanti e politica nel mondo antico, Liverani
contextualiza historicamente a influência das instituições políticas no comércio no final
da idade do bronze e início da idade do ferro, com uma abordagem estrutural focada nos
impactos das políticas nos modelos de comércio. Liverani explora a transição do
período do Bronze para o ferro para contrapor dois cenários particularmente diferentes
tanto na tipologia política como nos modelos comerciais. O primeiro cenário, cobrindo
os séculos XIV ao XIII, é bem documentado, enquanto o segundo cenário se torna
totalmente documentado somente no decurso do tempo. As diferenças são marcantes, e
é uma suposição razoável que a transição tem sido particularmente rápida e levou não
mais do que alguns séculos para se materializar totalmente (LIVERANI, 2003, p. 120).
Durante a Idade Tardia do Bronze, os estados centrados na organização do
Palácio tinham uma população dividida em duas classes: os dependentes do rei e a
população “livre”. Esta era de longe a maior (até 80% da população total), mas os
«homens do rei» eram mais ativos em habilidades especializadas na administração, e no
comércio. Em uma primeira abordagem, o comércio na Idade Tardia do Bronze estava,
na maioria das vezes, concentrado no palácio real. Embora tal concentração seja
parcialmente devida ao desequilíbrio de fontes, o controle exercido pelo palácio na
economia inteira e especialmente em habilidades especializadas e no comércio foi
durante esse período um dos pontos culminantes na história toda do antigo Oriente
Próximo. Tanto os reis “pequenos” quanto os “grandes” tinham seus próprios
mercadores (tamkāru), que costumavam deixar o palácio com um dote real (mandattu) e
tinham de trazer de volta matérias primas e mercadorias indisponíveis em sua pátria. No
caso mais específico de itens preciosos de comércio, o Palácio e os membros da elite do
Palácio parecem ter sido mais ativos em requerer e usar produtos de luxo de artífices
100

locais ou estrangeiros, e em procurar por metais preciosos (especialmente o ouro


egípcio) a fim de financiar os programas de construção públicos. Os reis pessoalmente
negociavam o estabelecimento de relações comerciais, pediam isenções fiscais para seus
próprios mercadores, e oficialmente protestavam contra roubos e assassinatos que
aconteciam no território de seus parceiros. Mercadores estrangeiros eram regularmente
hospedados nos palácios reais, recebendo comida e bebida durante o estágio deles. Em
alguns casos, os mercadores realmente estavam atuando como agentes para o palácio
real (financiado pelo rei, comercializando em seu nome), mas em outros casos, o rei
simplesmente cuidava dos mercadores privados que eram seus súditos, membros do
regime regido por ele. A mistura de negócios públicos e privados pelos mercadores reais
é particularmente óbvia, mas compõe um cenário mais complexo e menos distinto.
As relações de comércio oficiais entre Palácios reais no período do Bronze
Tardio eram em grande parte efetuadas sob a forma de uma troca de presentes. Os
“presentes” trocados por reis se encontravam em um nível cerimonial, contudo, embora
aparente e formalmente seguindo em suas afirmações as “normas” desinteressantes de
troca de presente cerimonial, de fato, os soberanos procederam de acordo com regras
opostas, muito mais orientadas para lucro por natureza. Presentes nunca deveriam ser
pedidos – entretanto os reis de Armana insistentemente pediam por itens precisos.
Presentes sempre deveriam ser oferecidos – entretanto o oposto é verdadeiro para as
cartas de Armana. Presentes deveriam ser gratamente aceitos – entretanto os reis de
Armana criticam o valor e a qualidade do que eles recebem. Ao invés de educadamente
compreender o valor do que eles estavam dando, e enfatizar o valor do que deveria ser
permutado para um valor maior (e esse princípio é formalmente afirmado em muitos
casos), na prática o valor do contra dom estava sujeito a negociações muito impolidas e
tendiam ser igual se não inferior em valor. Agora, embora seja razoavelmente verdade
que uma grande parte das transações eram realizadas fora da troca cerimonial de
presente, e embora a mesma parte cerimonial da troca estivesse praticamente
contrariando as normas de etiqueta, a um certo ponto, o comércio é um negócio real,
amparado em comportamento formalizado, e encaixado em uma estrutura de amor
fraternal, amizade, desinteresse, troca de cumprimentos, cuidado com a saúde do
parceiro, e alianças de casamento (LIVERANI, 2003, p. 124-125).
Nesse contexto, comerciantes estrangeiros eram recebidos nos palácios reais,
recebendo comida ou bebida e dormindo em acomodações, de acordo com as regras de
hospitalidade. Mas, de acordo com as mesmas regras, eles não podiam sair sem o
101

consentimento do rei, e certamente eles não podiam atravessar o território de um grande


rei e continuar sua viagem para outro grande rei, sem o consentimento do último.
Grandes e pequenos reis do mesmo modo estavam interessados em receber e hospedar
comerciantes estrangeiros, e nesse meio tempo eles parecem ter sido geralmente hostis
em deixá-los continuar para um destino mais longe, a fim de obter um tipo de
“monopólio” das mercadorias comercializadas. Consequentemente, o “Sistema
Regional” foi um obstáculo para o comércio a longa distância: viagens eram na maioria
das vezes limitadas a grandes reinos vizinhos. Resumindo, o comércio público foi
intenso entre reinos vizinhos, e difícil entre áreas mais distantes. Não sabemos se, e até
que ponto, o mesmo se aplicava também ao comércio privado; é provável que se
aplicasse, visto que a distinção entre comerciantes públicos e privados era um tanto
flexível e nem sempre clara.
Esta realidade começa a muda com a crise do século XII, que finalizou na Idade
do Bronze e foi, pelo menos em parte, causada por aqueles grupos que no período
anterior tinham estado agindo fora ou contra o sistema comercial: piratas no
Mediterrâneo Oriental, pastores na estepe síria. Indubitavelmente, a atividade deles
paralisou o comércio durante o período mais forte da crise. Em todo o caso, a crise
começou no final do século XIII com a fome alastrada, especialmente na Anatólia, e
com as primeiras levas dos povos marítimos. A crise alcançou seu ápice na segunda
década do século XII com maciças destruições de cidades centradas no Palácio,
especialmente as costeiras, devido à principal leva dos povos marítimos. A crise
continuou durante um par de séculos, especialmente no interior da Síria e Palestina, e na
Alta Mesopotâmia, por meio da infiltração das tribos arameias (ou próximas) as quais
com o passar dos anos encontraram seu caminho até a fronteira elamita. Um fenômeno
paralelo é a infiltração de tribos líbias no Egito, especialmente a oeste do Delta e do
Fayum.
Durante e logo depois dos “anos da crise”, o cenário político do Antigo Oriente
Próximo foi profundamente afetado e modificado, especialmente na área entre o
Mediterrâneo e o rio Eufrates (Egeu, Anatólia, Chipre, Síria e Palestina). O colapso dos
poderes regionais nessa área foi completo: o mundo micênico e o império hitita
desapareceram, e o Egito teve de dispensar seu domínio na Palestina, Líbano e sul da
Síria. A maioria das cidades centradas no Palácio na área foi destruída, e as atividades
centradas no Palácio chegaram ao fim. É interessante comparar a sorte de dois
relevantes grupos dos dependentes do Palácio, os cocheiros maryannu e os comerciantes
102

tamkāru. O primeiro grupo tinha adotado durante os séculos XIV-XII uma estratégia de
exoneração, feliz o suficiente com a obtenção de isenções de serviço em troca de
pagamentos de prata. Eles consequentemente tornaram-se um grupo inútil e o colapso
dos Palácios ocasionou seu completo desaparecimento do cenário social. O último
grupo, ao contrário, tinha adotado uma estratégia diferente, isto é, apoiar seu serviço
público com atividades privadas (na maioria das vezes financeiras). Quando os palácios
desmoronaram, eles foram capazes de sobreviver e continuar suas atividades em uma
base privada somente (LIVERANI, 2003, p. 128-129).
Mas também temos de levar em conta, além das mudanças sociopolíticas,
também as melhorias tecnológicas, que mudaram o uso de território e o modelo de
colonização, um fator adicional que reformou o comércio e os sistemas de tráfico.
Melhorias náuticas, possivelmente introduzidas pelos povos marítimos, e a
domesticação do camelo repentinamente expandiram o alcance dos tráficos. A
tecnologia do ferro (presumivelmente usada nos desmatamento e aberturas de estrada) e
novas tecnologias hidráulicas (canais subterrâneos, construção de terraço nas ladeiras
montanhosas) foram também eficazes em expandir a zona assentada para as áreas
montanhosas e em facilitar comunicações. Em termos gerais, os modelos de
povoamento tornaram-se menos centrados nas melhores terras agrícolas e mais
homogêneos, menos centrados em grandes cidades e mais fragmentados dentro de vilas
muradas. Finalmente, a expansão da escrita alfabética (já “inventada” desde o meio do
segundo milênio a.C.) e a liberação da escrita babilônica cuneiforme nas áreas
ocidentais ocorreram depois da crise como uma consequência do colapso das escolas
escribas nos palácios reais. A escrita alfabética, acessível a um círculo muito maior do
que os escribas profissionais da Idade do Bronze, logo se tornou uma ferramenta
apropriada para as atividades dos mercadores, como demonstrado pela básica
coincidência de sua difusão com as principais rotas do comércio do Início da Idade do
Ferro (LIVERANI, 2003, p. 130).
Na área ocidental, dois novos tipos de políticas substituíram o estado centrado
no Palácio: cidades-estados e estados étnicos. As cidades-estados são a herança mais
direta dos “pequenos reinos” da Idade Tardia do Bronze, com a diferença que o rei era
apoiado, de uma maneira efetiva, por representantes da comunidade local: anciãos e
assembleia. A ideologia real tornou-se mais atenta às necessidades e interesses da
população (invertendo a tendência da Idade do Bronze), enfatizando justiça e
benevolência. O palácio real tornou-se simplesmente a casa do rei, e não mais, o local
103

para vários ofícios especializados, atividades de troca, administração e arquivos, e etc.


A evidência arqueológica é muito clara ao testificar a redução em tamanho e função dos
palácios da Idade do Ferro quando comparado àqueles da Idade do Bronze. As cidades-
estados ficavam especialmente na costa (cidades fenícias, quase intocadas pela crise, e
filisteus e outros povos do mar que adotaram a ordem política local), e na área neohitita.
Os estados étnicos, ao contrário, foram heranças das tribos pastoris, recentemente
imigrados ou recém-estabelecidos. Eles acharam seu espaço no interior da Síria
(aramacos), na Palestina (israelitas na Cisjordânia; moabitas, amonites, edomitas na
Transjordânia), na Anatólia (frígios e outros). Os estados étnicos de origem nômade
tinham seus títulos em genealogias tribais e sagas, e aceitos como membros de um
estado aquelas pessoas que estavam relacionadas com descendência ou casamento ao
epônimo tribal ou aos seus descendentes. O estado, de certo modo, era uma família
ampliada – em nítido contraste com os estados territoriais da Idade Tardia do Bronze,
onde todas as pessoas habitando o território estatal foram consideradas membros (ou
melhores sujeitos) do estado, com nenhuma concernência com elos de língua ou religião
ou origem ou parentesco. Voltando ao estado tribal, logo a população local (pré-
existente ou não tribal) foi inserida no privilégio: as vilas tornaram-se “filhas” do
epônimo tribal, e vários eventos fictícios foram narrados para explicar a presença de
grupos estrangeiros, de alianças e inimizades, etc. (LIVERANI, 2003, p. 130-131).
A mudança de uma política comercial ditada pelo rei e executada por seus
próprios agentes comerciais da Idade Tardia do Bronze para uma política ditada pela
oligarquia dos mercadores e executada pela cidade-estado da Idade Inicial do Ferro
significa também uma mudança de um comércio motivado pela busca por materiais
indisponíveis à vontade para um comércio motivado pela busca para lucro financeiro.
Certamente, as duas motivações estavam presentes na Idade Tardia do Bronze, e até
muito tempo depois, visto que reais agentes além de pegar de volta as mercadorias
pedidas e regulamentar suas contas com o Palácio, também estavam engajados em
negócios pessoais e procura de lucro. Todavia a mudança na ênfase é ideologicamente
relevante: provavelmente nas cidades-estados a segunda motivação prevalece, enquanto
os impérios tradicionais (como Assíria, Babilônia, e Egito) mantinham a ênfase na
primeira.
Resumindo, no período Tardio do Bronze, a parte mais significativa do comércio
estava centrada no Palácio real, conduzido por agentes reais, e as trocas aconteciam nas
cidades reais. Na Idade do Ferro, o comércio era realizado por grupos especializados:
104

oligarquias de mercadores na costa mediterrânea, tribos criadores de camelo na zona


árida. As estratégias comerciais, uma vez subordinadas às decisões políticas, agora estão
em condição de influenciá-las. A existência de cidades inteiras ou comunidades
especializadas e devotadas ao comércio é algo novo na Idade do Ferro: completamente
novo comparado com a Idade Tardia do Bronze, e novo em valor ou grau comparado
com as condições iniciais dos períodos Antigos da Assíria e da Babilônia. Contudo, as
principais rotas comerciais na Idade do Ferro aparentemente evitavam passar através
dos principais mercados e das principais concentrações de pessoas nos antigos estados
regionais do Egito e da Babilônia. As principais rotas passavam entre elas, ligando os
portos e as cidades de caravana com as remotas fontes de metais e mercadorias exóticas.
As mercadorias comercializadas chegavam aos principais mercados somente de forma
secundária, mas a primazia das empresas comerciais definitivamente deixou os antigos
estados regionais e focaram nas novas e muito menores comunidades comerciais. Tal
completa reestruturação da organização comercial é um dos traços mais importantes em
época de crise no final da Idade do Bronze, em todo Oriente Próximo e nas áreas
adjacentes.
A análise de Liverani demonstra que um tipo de comércio diferente do período
do bronze, o comércio em que o lucro e a autonomia dos comerciantes era forte, não
estava centrado na região mesopotâmia, mas fora dela. A mesopotâmia pode ter sofrido
influência, dia a perspectiva de comerciantes saírem dos palácios e terem liberdade para
comercializar, inclusive com lucros. Mas as rotas do comércio amparado no ganho
estavam em outra região. Este é um elemento importante para se acreditar que os
formalistas trazem para o interior da Mesopotâmia um tipo de comércio que não tinha
seu centro lá. As mutações ocorridas no final da idade do bronze não são suficientes
para afirmarmos que elas atingem estruturalmente o comércio na Mesopotâmia.
105

CONCLUSÃO

Polanyi demarca uma linha divisória entre o “antigo” e o “moderno” por meio
do mercado. Mais especificamente pelo mercado criador de preços, recente e artificial,
produto de transformações históricas e sociais. O “antigo” é contraposto ao “moderno”
pela ausência do intercâmbio regido pelo regateio, efetuado em uma instituição
específica, o mercado. O antigo é pensado a partir de um quadro teórico moderno, no
qual a diferença é demarcada e acentuada pela ausência do mercado.
Sem dúvida, Polanyi conseguiu mostrar de forma satisfatória “a grande
transformação”, localizada na Europa, no século XIX, de uma realidade diferenciada
responsável por uma mudança no papel do mercado no seio das atividades econômicas.
Característico desse mercado é o aspecto integrador, regido pela flutuação de preços,
decorrentes da oferta e demanda. Tal mercado regula todas as esferas da economia,
dando-lhe uma autonomia jamais conseguida no passado. Polanyi afirma que as trocas
(intercâmbio) regidas pelo regateio, com finalidades de ganho, criam uma instituição
específica: o mercado criador de preços.
Mesmo com divergências sobre a importância do mercado na conjuntura da
sociedade, bem apresentadas por Caillé e Latouche, é inegável que Polanyi mostrou um
contraponto interessante ao domínio da ideologia neoclássica defensora da ideia da
lógica mercantil como algo natural e universal.
Mas ao se reportar ao mundo antigo, como diferente e distinto em relação ao
papel do mercado, Polanyi incorre em um equívoco grave, advindo da antropologia
funcionalista, preocupada com os aspectos integrativos da sociedade: acredita que o
homem é “naturalmente” propenso às relações de reciprocidade e redistribuição. Se não
estamos no mundo moderno, então as relações de reciprocidade e redistribuição são
predominantes, porque tais sociedades não se encontram dominadas pela ficção e
artificialidade da sociedade regida pelo ganho e lucro. É certo que a sociedade moderna
cria uma série de ficções em trono da troca e do mercado. Mas é certo, também, que
muitas características do mercado moderno, o Mercado com “m” maiúsculo, se
encontram em sociedades “primitivas”, muito distintas entre si. É um erro colocar todas
estas sociedades primitivas no mesmo cadinho. As relações de reciprocidade e
106

redistribuição podem conviver “lado a lado” com as relações de mercado sem


necessariamente serem subordinadas ou dominantes.
Contudo, entre o “antigo” e “moderno”, as diferenças são qualitativas e não
quantitativas. Encontrar elementos do Mercado nos mercados antigos: impessoalidade,
flutuação de preços, não significa classificar tais sociedades como mercantis no sentido
moderno do termo, porque o “grau” de integração de tais mercados na sociedade é
diferente.
Dito isto, pensar o lugar do mercado nas sociedades grega antiga e mesopotâmia,
ou as divergências entre Ocidente e Oriente, não se reduz a presença do mercado em
uma sociedade – ágora na Grécia – ou a ausência de mercado na Mesopotâmia. A
Grécia, do período clássico, abordada por Polanyi, é a Grécia da Idade do Ferro,
enquanto a Idade do Bronze cobre boa parte da história da Mesopotâmia usada como
exemplo dos modelos formulados pelos assiriólogos. Isto é um importante elemento dos
desenvolvimentos divergentes. A Grécia, do período clássico, com realidades mercantis
sobrepostas, está mais próxima das rotas comerciais advindas do fim da Idade do
Bronze, enquanto a Mesopotâmia está mais afastada do epicentro de tal rota.
As formas de redistribuição orientam Polanyi a traçar diferenças entre a
democracia grega e as monarquias do Oriente. A pólis tem na ágora um contraponto
fundamental as households aristocráticas, hostis às trocas desenvolvidas no mercado
local. Porém tal perspectiva é parcial, em um mundo de várias gradações como mostrou
Migeotte, no qual o mercado regido pela oferta e demanda, sem comercio administrado,
era uma realidade em uma escala razoável, em um dado período, mas não totalmente
integrativo daquele mundo. Portanto, o mercado grego não se esgota apenas pelo
contraponto às households aristocráticas.
Por outro lado, na Mesopotâmia, as formas de integração redistributivas tendo as
instituições centrais – templo/palácio – como atores políticos fundamentais não
eliminaram a possibilidade de ganhos privados. A esfera “privada” da propriedade de
terras, algo peremptoriamente negado por Weber, Polanyi e Finley, coexistiu com a
esfera “central”, não se constituindo em um monopólio exclusivo dos palácios.
Portanto, o mercado é diferente no mundo antigo e no moderno, pois está
inserido em realidades sociais e históricas diversas. Mas tais diferenças e
descontinuidades não se explicam pela propensão natural à reciprocidade e a
redistribuição em oposição ao intercâmbio realizado no mercado, mas sim pelo caráter
cultural específico que cada sociedade atribui às suas atividades de intercâmbio,
107

articuladas com o papel desempenhado pelas permutas nos diferentes modos de


produção. Aí residem as diferenças de desenvolvimento entre o antigo e o moderno, e
entre Grécia e Mesopotâmia.
Mas apesar das divergências entre essas duas sociedades, convergências têm
despertado a atenção de especialistas atuais. Uma delas é o papel da cidadania no
mundo grego e nas cidades estados babilônicas. Na Babilônia do primeiro milênio, os
cidadãos não eram economicamente iguais, mas, teoricamente, eram legalmente iguais.
Possuíam propriedade imóvel dentro do distrito público de terra sob a jurisdição da
assembleia popular. Se esses não desempenham o mesmo papel político dos cidadãos na
democracia grega, também não se encontram totalmente dependentes e passivos ante ao
poder central. Mas essa já é uma outra história.
108

BIBLIOGRAFIA

BRESSON, A. “Merchants and Politics in Ancient Greece: Social and Economic


Aspects”. In: ZACCAGNINI, C. (ed.). Mercanti e Politica nel Mondo Antico. Roma:
L‟Erma”. 2003. p. 139-163.
___________. Ecology and beyond: the Mediterranean Paradigm. In: HARRIS, W.V.
Rethinking the Mediterranean. New York: Oxford University Press, 2005.
BÜCHER, K. Études d’histoire et d’economie politique. Bruxelas; Paris: Henri
Lamertin Éditeur & Félix Alcan Éditeur, 1901.
BURKE, E. The economy of Athens in the Classical Era: some Adjustments to the
Primitivist Model. Transactions of the American Philological Association, Baltimore,
122, 1992.
CAILLÉ, A. Notes sur la question de l’órigine du marche et de ses rapports avec la
démocratie. In: SERVET, J-M, MAUCOURANT, J; TIRAN, A. La modernité de Karl
Polanyi. Paris: éd. L'Harmattan, 1998. p. 131-146
CARVALHO, A. G. 2007. Historiografia e paradigmas: a tradição primitivista-
substantivista e a Grécia antiga. Tese (Doutorado). Universidade Federal Fluminense,
Niterói, 2007.
CLANCIER, Ph. ; JOANNÈS, F. ROUILLARD, P. ; TENU, A. (Ed.). Autour de
Polanyi. Voccabulaires, théories et modalités des échanges. Paris : De Boccard, 2005.
CHRISTESEN, P. Economic rationalism in fourth-century Bce Athens. Greece and
Rome, 50, 1, April 2003, p. 31-56.
DESCAT, R. Le marche dans l’économie de la Gréce antique. Revue de synthèse. 2,
2006, p. 253-272.
FINKELSTEIN, M. Еμpοrος, Naύκληrος, and Κάpηλος: A prolegomena to the study
of athenian trade. Classical Philology. Chicago: The Universityof Chicago Press, 30,
1935.
FINLEY, M. A Economia Antiga. Porto: Ed. Afrontamento, 1980.
GLEDHILL, J.; LARSEN, M. T. “The Polanyi paradigm and a dynamic analysis of
archaic states”. In: RENFREW, C.; ROWLANDS, M. J.; SEGRAVES, B. A. (Ed.).
Theory and explanation in archaeology. New York: Academic Press, 1982.
GOODY, J. O roubo da História. São Paulo: Contexto, 2008.
HASEBROEK, J. Trade and politics in Ancient Greece. London: Biblo and Tannen,
1993.
LATOUCHE, S. Le concept de marché societés marchandes et société de marché. In:
SERVET , J-M, MAUCOURANT, J; TIRAN. La modernité de Karl Polanyi. Paris:
éd. L'Harmattan, 1998. p. 147-158.
LIVERANI, M. (Ed.). The influence of political institutions on trade in the ancient near
East. In: ZACCAGNINI, C. Mercanti e politica nel mondo antico. Roma: L’Erma di
Bretschneider, 2003.
109

___________. The Near East: The Bronze Age. In: MANNING. J. G.; MORRIS, I. The
ancient economy. Evidence and models. Stanford, California: Stanford University
Press, 2005. p. 47-57.
MANNING. J.G.; MORRIS, I. The ancient economy. Evidence and models. Stanford,
California: Stanford University Press, 2005.
MASETI-ROUAULT, Économie de redistribution et économie de marché au Proche-
Orient ancien. ROMAN, Y.; DALAISON, J. L’économie antique, une économie de
marché? Actes des deux tables rondes tênues à Lyon les 4 février et 30 novembre 2004.
Paris: Soc. des Amis de J. Spon, De Boccard, 2008.
MAUCOURANT, J. Le marché, une institution entre économie et histoire. Manuscrit
auteur, publié dans Cahiers lillois d'économie et de sociologie, N° HS-2006 (2007) 87-
108. Disponível em: http://halshs.archives-ouvertes.fr/halshs-00190874/fr/.
MAUCOURANT, J. Avez vous lu Polanyi? Paris : Flamarion, 2011.
MAUSS, M. sociologie et anthropologie. Paris: PUF, 1968.
MEYER, E. Estudios sobre la teoría de la Historia y la Historia económica y
política de la Antigüedad. México - Buenos Aires: Fondo de cultura económica, 1955.
MIGEOTTE, L. Les cites grecques: une économie à plusieurs niveaux. In: ROMAN,
Y.; DALAISON, J. L’économie antique, une économie de marché? Actes des deux
tables rondes tênues à Lyon les 4 février et 30 novembre 2004. Paris: Soc. des Amis de
J. Spon, De Boccard, 2008.
NAFISSI, M. Ancient Athens & Modern Ideology. Value, theory & evidence in
historical sciences. Max Weber, Karl Polanyi & Moses Finley. London: Institute of
classical studies, 2005.
PÉBARTHE, C. La chose et le mot. De la possibilité du marché en Grèce ancienne. In:
KORAY, K. Stephanèphoros de l’économie antique à l’Asie Mineure. Bordeaux:
Ausonius, 2012, p. 134-135.
POLANYI, K. A grande transformação: as origens da nossa época. Rio de Janeiro:
Campus, 2000.
POLANYI, K.; ARENSBERG, M.; PEARSON, H.W. Comercio y mercado en los
imperios antiguos. Tradução de Alberto Nicolás. Barcelona: Labor Universitaria, 1976.
POLANYI, K. The livelihood of man. New York; San Francisco; London: Academic
press, 1977.
POLANYI, K. On the comparative treatment of Economic Institutions in Antiquity
with Illustrations from Athens, Mycenae, and Alalakh. In: DALTON, G. Primitive,
Archaic and modern economies. Essays of Karl Polanyi. Boston: Beacon Press,
1968, p. 306-334.
REED, C. C. M.. Maritime traders in the ancient Greek world. Cambridge,
University Press, 2004.
RENGER, J. On economic structures in ancient Mesopotamia. Orientalia, p. 157-208,
1994.
_______. Trade and market in the ancient Near East. Theoretical and factual
implications. In: ZACCAGNINI, C. (Ed.). Mercanti e politica nel mondo antico.
Roma: L’Erma di Bretschneider, 2003.
110

ROMAN, Y.; DALAISON, J. L’économie antique, une économie de marché? Actes


des deux tables rondes tênues à Lyon les 4 février et 30 novembre 2004. Paris: Soc. des
Amis de J. Spon, De Boccard, 2008.
SERVET, J-M, MAUCOURANT, J; TIRAN, A. La modernité de Karl Polanyi.
Paris: éd. L'Harmattan, 1998.
SCHEIDEL, W; VON REDEN, S. (Org.) The ancient economy. New York:
Routledge, 2002.
SILVER, M. Karl Polanyi and markets in the ancient Near East: the challenge of the
evidence. Journal of Economic History, n. 53, p. 795-829, 1983.
TANDY, D.W; NEALE, W.C. Karl Polanyi’s distinctive approach to social analysis
and the case of ancient Greece: ideas, criticism, consequences. In: TANDY, D. W;
DUNCAN, A.M. From political economy to anthropology. Situating economic life in
past societies. Montreal, Black Rose Books, 1994.
WEBER, M. Economia e sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva.
Tradução Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa, 4. ed., Brasília: UnB, 2004. 2v.
ZACCAGNINI, C. (ed.). Mercanti e Politica nel Mondo Antico. Roma: L‟Erma”.
2003.

Você também pode gostar