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Do Estado colonial ao Estado pós-colonial

N
ão sendo propriamente uma a de “território da nação”. A estas duas no- herdadas do tempo colonial nada têm de origem metropolitana, outro, o dos sujeitos
invenção colonial, a partir de ções acrescentou-se ainda, na mesma época, extraordinário. O Estado pós-colonial não (o dos “nativos” ou “indígenas”), englobando
meados do século XIX, concomi- a de “língua da nação”, isto é, introduziu-se só não foi uma invenção concebida de raiz a larguíssima maioria da população africana.
tantemente com a consolidação na rotina gestionária e burocrática do Estado na pós-independência, como ainda herdou Paralelamente a estes dois grupos veio
da dominação territorial colo- colonial a ideia de que a língua com que a muitos dos traços culturais, dos suportes progressivamente a constituir-se um terceiro,
nial, o Estado adquire em África, administração estatal comunica é a língua ideológicos e das técnicas políticas e admi- o dos ditos assimilados. O grupo dos assi-
em termos de dimensão e de complexidade, “que devem falar” todos aqueles que vivem nistrativas que faziam parte da “essência” da milados distinguia-se dos outros dois quer
uma importância desmesurada quando no espaço do Estado e da nação. racionalidade do Estado colonial. pela ambiguidade das relações que tecia
comparado com situações anteriores. Geradora de múltiplos equívocos no tempo No entanto, a formação dos Estados con- com o grupo de onde era originário (o dos
De facto, muito embora numerosas colonial, a ideia de nação é ainda hoje, num temporâneos em África não é um simples sujeitos), quer pela subalternidade de que os
sociedades africanas tivessem conhecido quadro naturalmente muito diferente do fenómeno de transplante do Estado colonial seus membros eram alvo em relação aos de
estruturas políticas centralizadas que, na sua colonial, fonte de grandes debates e mal- para uma nova situação, mas sim o resultado origem metropolitana. Todavia, esta situação
configuração geral, se podem considerar -entendidos e geradora, sobretudo quando de um longo processo de hibridação e de efectiva subalternidade não impediu que
como estatais1, data da consolidação do se cruza no confronto político com a de reinvenção em que se jogam, se afrontam e muitos membros deste grupo nas últimas
territorial colonial a construção do Estado identidade étnica ou religiosa, de conflitos conluiem lógicas e práticas de Estado com décadas do colonialismo ocupassem na
como nós hoje o concebemos. A instituição insanáveis entre os diferentes sectores que origens e tempos de eclosão diferentes, administração estatal e no sector privado
política ao serviço da afirmação e controlo disputam o controle do Estado. Os actuais umas vindas do tempo colonial, outras da economia postos de algum realce e
do poder não só, quando comparada com as conflitos na Somália, no Chade e no Sudão, surgidas a partir da necessidade de dar res- que boa parte dos líderes dos movimentos
situações anteriores, se especializa e reforça o perseverante “irredentismo” tuaregue no postas (possíveis) às transformações de toda independentistas e dos dirigentes políticos
no plano burocrático-administrativo, como Mali e no Níger e a persistente tensão étnico- a natureza que foram ocorrendo desde as pós-coloniais tenham sido e sejam dele
ainda assume, no plano propriamente da do- -religiosa na Nigéria, como os conflitos, independências. Isto é, a formação dos Es- originários.
minação política, novos aspectos e interioriza durante vários anos na década de 1990, entre tados pós-coloniais em África e os aspectos Esta divisão do “povo da nação” e a “separa-
tecnologias de gestão do poder importadas tutsis e hutus no Burundi e no Ruanda ou que eles vão sucessivamente assumindo está ção simbólica” (.... e prática) de locais resi-
das metrópoles coloniais. a guerra civil que quase ininterruptamente, em larga medida dependente dos “arranjos” denciais que dela inevitavelmente decorreu,
Nesta última dimensão, por exemplo, data entre Setembro de 2002 e o início de 2007, entre factores estruturais e conjunturais com é uma das marcas mais duradouras impostas
logo dos alvores da implementação do opôs “marfinenses” a “estrangeiros” (descen- que as sociedades e os Estados africanos se pelo Estado colonial à África subsariana.
Estado colonial uma das mais significativas dentes de malinkés) na Costa do Marfim são confrontam desde as independências. Com efeito, as diferentes potências coloniais
alterações ao próprio entendimento de paradigmáticos da incapacidade, em muitas Só situando neste plano de análise o implementaram em África sociedades dualis-
dominação: ao arrepio da situação corrente situações, de o Estado pós-colonial avocar Estado pós-colonial e entendendo-o como tas dotadas de uma parte urbana, usufruída
à época em África. O Estado Colonial, intro- legitimidade suficiente para controlar todas o resultado de um processo dinâmico de por “brancos” e “assimilados”, onde, a par
duzindo a quadrícula político-administrativa, as entidades que existem no espaço dito transformações podemos compreender o das praxes sociais, culturais e económicas,
vai tornar o controle do espaço onde os nacional. seu funcionamento e, em última instância, as regras políticas imitavam as da metrópole
indivíduos residem e circulam num dos A “trajectória africana” da ideia de nação, as suas dinâmicas de “destruição” e de e de uma parte de “mato”, habitada por
elementos centrais da dominação política, não conseguindo, como o fez na Euro- “reinvenção”. “não civilizados”, onde as regras políticas da
social e económica. pa novecentista, em nenhum momento parte urbana, da “praça” como se dizia no
Por outro lado, com o Estado colonial, não verdadeiramente racionalizar o poder, em tempo colonial na actual Guiné-Bissau, não
“Dualismo societal”: marca duradoura
só o número de competências e a comple- pouco tem contribuído para atribuir ao se aplicavam.
imposta pelo Estado colonial
xidade das tarefas que este adjudicou como Estado legitimidade incontestável sobre todo Aplicando a regra da pertença de cada indi-
à África subsariana
suas aumentou significativamente a sua o espaço que as fronteiras, em vários casos víduo a uma parcela determinada da quadrí-
importância, como ainda as noções de fron- desde meados do século XIX, delimitam nos O Estado colonial – o auto-avocado “homo- cula político-administrativa, a administração
teira e de espaço político ganharam novos seus contornos actuais. geneizador” do “povo” que vivia dentro do estatal, para além de impor o seu controlo
entendimentos e significações. A vários títulos, a experiência dos últimos território por ele demarcado, pela própria político global ao conjunto dos residentes,
Todavia, verdadeiramente novo na situação cinquenta anos demonstra que as políticas natureza do empreendimento colonial, ao codificar, ainda antes de finais do século
africana foi, importado da Europa, o apare- estatais foram incapazes de criar a “nação” não vai considerar todos os indivíduos que XIX, o trabalho “indígena” assumiu o con-
cimento do conceito de nação. Acoplado, e que o nacionalismo de Estado não foi em habitam o seu território como portadores trolo da economia, deixando aos africanos
como na Europa novecentista, ao de Estado, nenhum caso sinónimo de Estado-nação. dos mesmos direitos e obrigações. Vai, “não civilizados” a tarefa de produzir, num
formando com ele, ideologicamente, face Nação e Estado-nação dão-se mal em “socie- hierarquizando-os segundo uma escala de quadro político e jurídico em vários aspectos
e reverso de uma mesma entidade política, dades compósitas” como são na sua quase valores assente “no grau de civilização”, diferente do das partes “civilizadas”.
este conceito vai introduzir por mimetismo totalidade as que compõem os actuais países distingui-los, quanto a direitos e obrigações, O dualismo, ou dito de outra forma, a
em África duas outras noções conexas que o da África subsariana. grosso modo, em dois grandes grupos: um política de separação entre «populações
Estado colonial procurará homogeneizar e Todavia, a permanência até aos nossos dias ultraminoritário, o dos cidadãos, agrupando com diferentes estádios de civilização»,
dar sentido político: a de “povo da nação” e de algumas das “perversões estruturais” inicialmente em exclusivo a população de não só marcou a instalação, no século XIX,

JANUS 2010 anuário de relações exteriores


Meio século de independências africanas
Eduardo Costa Dias Configurações políticas 3.2.1

do Estado colonial, como ainda se veio a correntemente apontadas como concorren- escolarizados da população e das diferentes pós-colonial dos sucessivos movimentos
revelar instrumento central na manobra de do para o proclamado falhanço do Estado camadas sociais urbanizadas. de recomposição que ocorrem nos espaços
controle das populações africanas e apetre- pós-colonial em África, a da não coincidên- Aliás a experiência dos cinquenta anos políticos tradicionais.
cho duradouro no próprio ordenamento cia (sistemática) entre entendimento de pós-independências tem demonstrado que a Todavia, embora o alargamento do direito
dos campos políticos que coexistem sob a cidadania e de participação política ocupa problemática da cidadania e, por arras- de participação política e o aprofun-
tutela do Estado. lugar de destaque. tamento, a da democratização do Estado damento da cidadania sejam assuntos
Nesta última dimensão, em alguns aspectos, De facto, a participação política pode ser, aparecem frequentemente, mesmo nas que devam ser vistos como resultado da
ainda hoje o dualismo herdado do Estado como na prática o é em inúmeras situações múltiplas situações em que são “agenda- pressão exercida pelos actores políticos
colonial marca o Estado pós-colonial. Marca- contemporâneas africanas, um exercício das” por imposições da dita comunidade nas diferentes arenas políticas, o facto de
-o, por exemplo, fortemente em termos independente do de cidadania. Muitos au- internacional, simplesmente associadas à o Estado ser, hoje, uma entre várias arenas
de relacionamento entre campos políticos tores questionam-se mesmo se os conceitos modernização do Estado e ao aumento da políticas à disposição dos actores não lhe
“modernos” e “tradicionais” ou, mesmo, de de cidadania e de participação política são sua base de apoio, ou, dito de outra forma, retira importância: o terreno estatal é,
formas de representação dos cidadãos nas conceitos que se entrecruzam frequente- agregadas às iniciativas que o Estado toma como sabemos, na actualidade, “alvo” cada
diferentes instâncias e de responsabilização mente na actualidade em África. na procura de alargamento do direito de vez mais evidente dos diferentes actores
dos governantes perante a população. Na verdade, se analisarmos a questão da participação nos assuntos políticos estatais políticos, incluindo dos que tradicional-
Com efeito, passadas várias décadas das cidadania em termos de estatuto, isto é, a um maior número de indivíduos e de mente são vistos como acantonados no
independências, o Estado pós-Colonial não como um conjunto de direitos e obriga- camadas sociais. campo das ditas instâncias políticas étnicas
só não conseguiu desfazer-se totalmente do ções de observância geral geradores de Esta perspectiva de análise, geradora de e étnico-religiosas.
dualismo herdado da época colonial como, poder e responsabilidades inscritas na inúmeros equívocos e mal-entendidos, Os termos do debate sobre a situação
ainda, não conseguiu impor a multietnicida- lei, não restam dúvidas que no essencial situa as alterações de relacionamento do do Estado pós-colonial em África não
de e laicidade ao conjunto da comunidade os seus elementos constitutivos são em Estado com as populações africanas numa se situam mais, nem em torno de duas
nacional que está na origem da própria ideia larguíssimos pontos incompatíveis com os dimensão evolucionista e mesmo redutora: tendências analíticas inconciliáveis que
de Estado moderno. Isto é, o Estado pós- do estatuto de senioridade que tradicional- ao Estado, na sua qualidade de instituição marcaram durante largos anos as análises,
colonial africano, marcado pela endémica mente distingue socialmente os indivíduos “modernizante”, é dada a exclusiva capaci- a “modernista” e a “comunitarista” ou
crise económica e pelo insucesso da sua e rege o direito de participação política em dade de pontuar o sentido das alterações “etnicista”, nem em torno de um qualquer
democratização, continua a caracterizar-se África2. e, naturalmente, de ser o único ganhador. exercício de conciliação entre elas.
como um Estado dualista, formado por um Por outro lado, não só, em inúmeras situa- Por outro lado, este enfoque, para além de O debate sobre a situação do Estado
Estado central hegemónico e frequentemen- ções, o direito de participação política está deliberadamente privilegiar a análise do pós-Colonial em África anda em boa
te violento e por um “estado local campo- muito mais associado aos direitos advindos político via análise do Estado e, decor- parte à volta das razões que suportam o
nês”, dito “étnico” ou “tribal”, e suportado da senioridade do que aos da cidadania, rentemente, dos interesses próprios da generalizado fenómeno de “invasão” da
por uma noção “vazia” de sociedade civil. como ainda, nos contextos africanos, numa governação, restringe o conceito de partici- “cidadela Estado” por actores políticos
Em vários aspectos o Estado pós-colonial não primeira análise, a cidadania é frequen- pação política dos africanos à sua eventual habitualmente vistos como incapazes de se
possui o monopólio do controlo da “nação”, temente vista como uma consequência intervenção na arena política das estru- desprenderem do “casulo” da “tradição”,
das estruturas políticas e da “sociedade civil”. “natural” da modernização das instituições turas estatais, deixando de fora todos os do “comunitarismo” ou do “localismo”.
estatais ou, para ser mais concreto, como outros palcos de intervenção política. Isto Entre outras conveniências heurísticas,
um ganho das camadas sociais “implica- é, não só deixa de fora a relação de opo- centrar nestes termos parte do debate
Cidadania, participação política
das” no “sector moderno” das sociedades sição estabelecida em termos identitários permite recentrar a discussão do falhanço
e “sociedades compósitas”
africanas, caso, entre outros, no passado desde o tempo colonial entre os sectores do Estado pós-colonial no essencial, as
De entre as questões incluídas nas colonial, do sector dos “assimilados” e, tradicionais e o Estado, como também não razões, e afastá-la do acessório, as mani-
chamadas “especificidades africanas” mais na actualidade, dos sectores mais jovens e assinala a “não domesticação” pelo Estado festações. ■

1 A África subsariana conheceu, antes do advento da dominação colonial, um le- à representação através da luta e do protesto político e não a direitos estatu- COOPER, Frederick (2002) — Africa Since 1940: The Past and the Present.
que muito variado de sociedades dispondo de órgãos de poder mais ou menos tários. A cidadania supõe a representação de todos os cidadãos em todos os Cambridge: Cambridge University Press.
centralizado ou de aparelho estatal, alguns deles com estruturas políticas e buro- sectores da sociedade e a plena responsabilização dos governantes perante os HERBST, Jeffrey (2000) — States and Power in Africa. Princeton: Princeton
crático-administrativas bastante sofisticadas e dotados de exércitos com comando cidadãos. University Press.
centralizado. Referenciem-se, entre as largas centenas de exemplos possíveis, os MBEMBE, Achille (2000) — De la Postcolonie – Essai sur l’imagination politi-
casos dos impérios do Gana, do Mali e dos Mwenemutapas, dos reinos Ashanti, Referências que dans l’Afrique contemporaine. Paris: Karthala.
Zulu, do Congo, do Daomé e o merino de Madagáscar, dos Estados teocráticos do M’BOKOLO, Elikia (2007) — África Negra – História e Civilizações – Do século
Fouta Djalon e do Futa Tooro e os diferentes Estados «tardios» – alguns surgidos BAYART, Jean-François (1989) — L’Etat en Afrique: la poltique du ventre. Paris, XIX aos nossos dias. Lisboa: Colibri, ( Volume II).
na segunda metade do século XIX – nos actuais Chade e Sudão. A estes exemplos Fayard. MÉDARD, Jean-François (ed.) (1994) — Les États d’Afrique Noire – Formation,
foge em grande parte o da Etiópia que, no século XIX, constrói, sob a capa de BELLAGAMBA, Alice e KLUTE, Georg (eds) (2008) — Beside the State – Emer- mécanismes et crises. Paris: Karthala.
“restauração” da “monarquia mais antiga do mundo”, um Estado em vários as- gent Powers in Contemporary África. Colónia: Rudiger Kopp Verlag. ROTHCHILD, Donald e CHAZAN, Naomi (eds.) (1988) — The Precarious
pectos devedor do modelo europeu de Estado, devido aos contactos regulares CHÂNTAIGNER, Jean-Mark e MAGRO, Hervé (eds) (2007) — États et Balance – State and Society in Africa. Boulder: Westview Press.
mantidos com países europeus. Sociétés Fragiles – Entre conflits, reconstruction et développement. Paris: ZARTMAN, Ira William (ed.) (1995) — Collapsed States: The Disintegration and
2 A ideologia da cidadania está, como é sabido, associada à expansão do acesso Karthala. Restoration of Legitimate Authority. Nova Iorque: Lynne Rienner Publishers.

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