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REVISTA BRASILEIRA DE ANÁLISE DO COMPORTAMENTO / BRAZILIAN JOURNAL OF BEHAVIOR ANALYSIS, 2006, VOL.2, N .

1, 21-36 O

MUNDO INTERNO E AUTOCONTROLE

INSIDE WORLD AND SELF-CONTROL

EMMANUEL ZAGURY TOURINHO


UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ, BRASIL

RESUMO
Ainda que uma ciência do comportamento se fundamente em uma concepção relacional, não internalista, dos
fenômenos “psicológicos”, algo que pode ser designado como “experiência de interioridade” (i.e., uma alta
probabilidade de os indivíduos descreverem seus sentimentos e pensamentos como ocorrências internas) constitui
um fato inegável, pelo menos na cultura ocidental moderna, e que merece ser abordado por essa ciência. No
presente artigo, algumas variáveis sociais responsáveis por aquelas descrições são discutidas à luz de contribuições
literárias de sistemas explicativos diversos. São especialmente enfatizadas variáveis sociais relacionadas ao refinamento
do autocontrole nas sociedades modernas e suas implicações no plano das relações interpessoais.
Palavras-chave: Mundo interno, autocontrole, sentimentos, pensamento

ABSTRACT
The science of behavior is grounded on a relational, non-internalist view of psychological phenomena. However,
there is recognition of and the attempt to explain what has been treated as “inside experience” (i.e., the high
probability to describe one’s feelings and thinking as inside experiences). This paper focuses on some social
contingencies responsible for such self-descriptions in the light of diverse literary contributions. Emphasis is given
to social variables related to the refinement of self-control in modern societies and to their impact on the interpersonal
relationships.
Key words: Inside world, self-control, feelings, thinking

Este artigo tem por objetivo discutir al- a constituir um mundo interno,
gumas possíveis explicações para a idéia de que freqüentemente tratado como sua “vida psico-
emoções, sentimentos ou cognições são fenô- lógica”. Ao discutir essa noção de mundo in-
menos internos. Analistas do comportamento terno, o artigo focalizará não apenas uma lite-
aprendem a falar desses fenômenos como rela- ratura analítico-comportamental, mas, tam-
ções comportamentais, mas nem por isso deixam bém, uma literatura externa à psicologia, em
de ser persuadidos pela noção de interioridade, especial externa à análise do comportamento.
como outros indivíduos em sua cultura. Na vida Em diversas áreas das humanidades (por
cotidiana nas sociedades modernas, os indiví- exemplo, a filosofia, a sociologia, a história), as
duos aprendem a dispender uma boa parcela reflexões sobre as sociedades modernas condu-
de tempo observando o que se passa com o pró- zem a uma consideração da experiência de
prio corpo e tomando isso como referência para interioridade e a importância que veio a assu-
muitos julgamentos sobre si mesmos e sobre a mir. O sociólogo e historiador Richard Sennett
realidade à sua volta. Aquilo que observam vem (Sennett, 1998), por exemplo, menciona que

Trabalho parcialmente financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, CNPq (Processos 305743/2004-0 e 470802/
2004-9). Correspondência para e-mail: tourinho@amazon.com.br

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as sociedades ocidentais estão mudando a partir o esforço para conciliar uma visão relacional do
de algo semelhante a um estado voltado para o fenômeno psicológico com o reconhecimento de
outro para um tipo voltado para a interioridade que algo relevante acontece quando um indiví-
- com a ressalva de que, em meio à preocupação duo responde parcialmente sob controle de estí-
consigo mesmo, ninguém pode dizer o que há mulos gerados por seu próprio corpo. Algumas
dentro. Como resultado, originou-se uma con- elaborações bastante consistentes a esse respeito
fusão entre a vida pública e a vida íntima: as são apontadas naqueles trabalhos, embora limi-
pessoas tratam em termos de sentimentos pesso- tadas a um aspecto do problema: as circunstânci-
ais os assuntos públicos, que somente poderiam as sob as quais condições corporais assumem fun-
ser adequadamente tratados por meio de códi- ções de estímulos. O que se discute a seguir é
gos de significação impessoal (p.18). ligeiramente diferente. Trata-se do problema de
definir alguns fenômenos psicológicos como ocor-
Sem aderir às referências teóricas (psica- rências internas ao homem. Quando indivíduos
nalíticas) com as quais Sennett (1998) vem a leigos (e alguns psicólogos) afirmam que seu pen-
examinar a questão da experiência interiorizada, samento e suas emoções são ocorrências internas,
é notável sua argumentação de que, em tais cir- não estão operando com a noção de repostas en-
cunstâncias, certas realizações humanas ficam cobertas ou estímulos privados, constitutivos de
comprometidas. Isto é, quanto mais as realiza- relações das quais participam de modo crítico es-
ções cognitivas, sociais e afetivas, por exemplo, tímulos e respostas que são públicos. Estão con-
no lugar de serem tratadas como relações dos siderando que o que experimentam como ocor-
homens com o mundo (especialmente com rência interna é o que define o fenômeno em si.
outros homens), são vistas como ocorrências Embora possa parecer óbvia a idéia de que no
internas aos indivíduos, ou qualificadas pelo sistema analítico-comportamental não encontra
que representam desse ponto de vista, meno- acolhida tal noção de interioridade, convém re-
res as chances de os homens virem a satisfazer ver algumas razões para isso.
suas expectativas em ambos os domínios. Por
uma ótica comportamental, na medida em que UM MUNDO (PSICOLÓGICO) INTERNO É

se deixa de olhar para os fenômenos psicológi- (IM)POSSÍVEL?


cos como relações dos homens com o mundo,
e passa-se a abordá-los como ocorrências inter- Quando se afirma que um sentimento é
nas, sejam elas físicas ou mentais, menores as uma ocorrência interna ao organismo, há duas
chances de promover relações que definem con- possibilidades interpretativas. Na primeira de-
dições saudáveis ou produtivas de vida. A no- las, o sentimento é visto como um conjunto de
ção de um mundo interno pode ser uma sedu- condições anátomo-fisiológicas, ocorrências
ção e uma armadilha. corporais particulares, sob a pele do organis-
A noção de “ambiente interno” já foi objeto mo. Essa posição corresponde a uma espécie
de análises diversas à luz de afirmações por vezes de reducionismo organicista. O que antes era
controversas de Skinner a esse respeito (e.g., postulado como fenômeno de natureza “psico-
Malerbi, 1999; Matos, 1999; Micheletto, 1999; lógica”, apresenta-se agora como um fenôme-
Tourinho, 1999b). Nessas análises, fica evidente no cuja explicação prescinde da referência a algo

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mais do que as ciências biológicas podem esta- indivíduo, internos a ele. É apenas quando se
belecer. Como resultado, problemas relativos a aborda, por exemplo, o pensar como uma ocor-
essa interioridade serão objeto de uma inter- rência do/no indivíduo, que se é levado a discu-
venção por profissionais das ciências biológi- tir se tem uma natureza material ou imaterial,
cas, não por psicólogos. Que esse tipo de se se confunde com processos neurofisiológicos,
reducionismo circula na cultura deve ser evi- ou se pertence a uma outra dimensão da exis-
dente para todos. Com uma freqüência cada tência humana. Em qualquer caso, há o
vez maior divulgam-se “informações” acerca da distanciamento com respeito a uma perspectiva
“natureza” fisio-química de “transtornos”, emo- relacional de análise (cf. Tourinho, 1999a).
ções etc… Divulgam-se, correspondentemente, As origens do dualismo mente-corpo são
as substâncias capazes de garantir a solução de encontradas na filosofia platônica (cf. Massimi,
problemas nesse domínio. 1986). Platão desqualificava o corpo como a
Uma ciência do comportamento inicia origem do conhecimento seguro. Mas também
com a suposição de que o organismo que se não admitia que os processos de interlocução,
comporta tem uma estrutura anátomo-fisioló- os embates verbais entre indivíduos, conduzi-
gica que é condição para a relação am à verdade. Vivendo em um período de de-
comportamental; uma estrutura, portanto, cuja cadência da democracia grega, quando os de-
especificação contribui para uma compreen- bates públicos serviam a interesses de poucos,
são mais abrangente do fenômeno em prejuízo de homens honestos, Platão foi
comportamental. Para uma ciência do compor- levado a crer que apenas atributos ou faculda-
tamento, porém, aquela estrutura não define a des especiais de indivíduos particulares possi-
relação comportamental propriamente dita. bilitavam a eles transcender o mundo das apa-
Uma segunda versão de internalismo re- rências e das ilusões em direção à verdade. Lo-
futa o reducionismo organicista e preserva a calizados no próprio indivíduo os recursos
idéia de que há um fenômeno interno ao orga- cognoscitivos, e desqualificado seu corpo para
nismo, mas que não se confunde com suas ocor- tal, restava supor a existência de uma dimen-
rências anátomo-fisiológicas. Nesse caso, a ocor- são imaterial do homem como aquela por meio
rência interna não está dotada da materialidade da qual a verdade poderia ser alcançada. Muito
dos fenômenos fisiológicos, e é exatamente sua freqüentemente questiona-se a necessidade pla-
natureza diferenciada, “mental” ou “psíquica”, tônica de recorrer à categoria da “alma” para
que a torna objeto de uma ciência psicológica. explicar o conhecimento humano, assim como
O mentalismo, desse ponto de vista, consiste sua versão moderna no dualismo cartesiano.
em uma tentativa de preservar um internalismo Todavia, dado o fato de que nenhuma condi-
na análise dos fenômenos psicológicos, sem res- ção anátomo-fisiológica explica nossos enunci-
valar para o reducionismo organicista. ados sobre o mundo, a idéia de que enuncia-
A análise do comportamento tem formu- dos verdadeiros são alcançados por meio de
lado críticas sistemáticas ao mentalismo na psi- ocorrências do próprio indivíduo exigirá a su-
cologia, mas é importante observar que a postu- posição da existência de um outro mundo. O
ra mentalista é antecedida pela suposição de que mentalismo vem a ser a alternativa possível ao
fenômenos psicológicos são fenômenos do ou no reducionismo, quando prevalecem visões indi-

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vidualistas e internalistas acerca do homem. O da análise do comportamento, sintetiza a


individualismo e o internalismo é que preci- definição de Skinner afirmando que
sam ser questionados.
É bastante conhecida a afirmação de o comportamento é uma interrelação dinâmica,
Skinner (1945) de que eventos privados, tan- sinergética e ativa, não uma coisa, na qual a res-
to quanto eventos públicos, são dotados de posta é apenas um componente. A unidade de
dimensões físicas. Essa afirmação cumpre uma comportamento inclui não apenas respostas, mas
função de evitar o dualismo metafísico em principalmente as funções daquelas respostas,
uma ciência do comportamento, mas não tanto quanto suas funções de estímulos
deveria ser tomada como uma definição da interrelacionadas em um contexto contemporâ-
natureza dos fenômenos tidos, em outros neo e histórico (p. 300).
contextos teóricos, como “subjetivos”. Em
outras palavras, não é porque sentimentos, Em uma discussão baseada no
pensamentos, emoções, cognições etc. têm interbehaviorismo de Kantor, que desenvolveu
dimensões físicas que a referência a essa di- extensa argumentação contra o reducionismo
mensão tem valor de descrição daqueles even- fisiológico na psicologia (cf. Kantor, 1922,
tos. O debate sobre uma natureza física ou 1923, 1947; Tourinho, 2004), Hayes (1994)
mental dos sentimentos mantém-nos no ter- aborda o mesmo caráter relacional do fenôme-
reno equivocado do internalismo. Enquanto no psicológico salientando que
fenômenos psicológicos, ou
comportamentais, sentimentos, emoções, de uma perspectiva psicológica, partes do orga-
pensamentos, cognições etc. não são exata- nismo, consideradas separadamente do todo, não
mente fenômenos físicos, nem mentais; participam de eventos psicológicos. Em vez dis-
consituem-se em relações, e relações não são so, elas participam de eventos isolados por outras
o tipo de fenômeno com respeito aos quais ciências, isto é a biologia e a fisiologia. Em outras
faz sentido prover uma definição em termos palavras, o baço, o fígado o estômago e os pul-
de dimensões físicas ou mentais (equívocos mões não participam de atos psicológicos – nem
desse tipo exemplificam problemas assinala- o cérebro. Não são os olhos que vêem, os ouvidos
dos por Ryle, 1949/1984, na discussão dos que ouvem, as pernas que caminham, ou o cére-
usos dos conceitos psicológicos). bro que pensa – é o organismo como um todo
Mesmo quando se olha apenas para a que se engaja nesses atos (p.151).
resposta do organismo, trata-se da resposta
do organismo como um todo. “É o organis- Em suma, no que concerne à ciência psi-
mo como um todo que se comporta” (Skinner, cológica, o mundo interno possível consiste
1975, p.44); é o “comportamento do orga- apenas de um aparato anátomo-fisiológico que
nismo como um todo” (Skinner, 1990, é condição para relações comportamentais e que
p.1206) que resulta de processos de variação até pode adquirir certas funções de estímulo,
e seleção. Voltando à relação mas que não define nem mesmo a resposta do
comportamental, Morris (1988), ao apresen- organismo, muito menos as relações
tar o contextualismo como visão de mundo comportamentais. No entanto, se a noção de

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interioridade não é consistente aos olhos de uma possam cumprir algo mais do que a formalidade
ciência psicológica, ainda é necessário explicar de um cumprimento. O pai recomenda:
o que a torna persuasiva ao leigo.
vai ali falar do boato do dia, da anedota da sema-
A EXPERIÊNCIA DE INTERIORIDADE NA CULTURA na, de um contrabando, de uma calúnia, de um
OCIDENTAL MODERNA cometa, de qualquer coisa ... Com este regime,
durante oito, dez, dezoito meses – suponhamos
Indivíduos expostos a certas práticas cul- dois anos, - reduzes o intelecto, por mais pródi-
turais das sociedades ocidentais modernas go que seja, à sobriedade, à disciplina, ao equilí-
aprendem a observar a si mesmos e a compor- brio comum. Não trato do vocabulário, porque
tar-se socialmente de modos muito próprios ele está subentendido no uso das idéias; há de ser
dessa cultura. Uma apreciação breve de algu- naturalmente simples, tíbio, apoucado, sem no-
mas dessas práticas e do padrão comportamental tas vermelhas, sem cores de clarim... (Assis, 1882/
resultante pode contribuir para a compreensão 1998, p. 331-332).
da noção de interioridade. Pode-se introduzir
essa questão com a referência a uma obra da A discrição, porém, deve ser menos uma
literatura brasileira do século XIX, a “Teoria virtude sincera e mais uma técnica, que, sem
do Medalhão”, de Machado de Assis (Assis, constranger os outros, promove o nome do
1882/1998). Nesse conto, Machado de Assis medalhão. Mesmo investido de uma função
ironiza a sociedade brasileira do final do século pública cujo exercício imponha a formulação
XIX e a versão brasileira que começava a se ela- de posições, idéias, ou teses, o medalhão não
borar dos hábitos civilizados do mundo mo- deve mostrar mais do que já está bem estabele-
derno. No conto, um pai ensina a seu filho, cido, sem avançar sobre idéias que possam con-
que alcançou a maioridade, um ofício que pode trariar interesses ou preferências alheias: “filo-
garantir-lhe a sobrevivência na vida adulta: o sofia da história, por exemplo, é uma locução
ofício de medalhão. Em uma sociedade na qual que deves empregar com freqüência, mas proí-
“a vida é uma enorme loteria” (Assis, p. 328), bo-te que chegues a outras conclusões que não
“os prêmios são poucos” (p. 328) e “os malo- sejam as já achadas por outros. Foge a tudo que
grados [são] inúmeros” (p.329), um medalhão possa cheirar a reflexão, originalidade, etc., etc.”
deve, antes de tudo, ter cuidado com as idéias: (Assis, 1882/1998, p. 337).
Em uma outra obra, o romance “Hele-
Uma vez entrado na carreira [de medalhão], deves na” (Assis, 1876/1996), Machado de Assis já
por todo o cuidado nas idéias que houveres de nu- havia colocado na voz de um Dr. Camargo (um
trir para uso alheio e próprio. O melhor será não as médico bem preparado para a defesa de seus
ter absolutamente; coisa que entenderás bem, ima- intereses pessoais) a proposição de que “a sensi-
ginando, por exemplo, um ator defraudado do uso bilidade não pode usurpar o que pertence à ra-
de um braço (Assis, 1882/1998, p. 330). zão” (Assis, p.17), um modo elegante de lem-
brar que os atos devem ser pautados por proje-
Trata-se, assim, de adestrar o intelecto para tos de vida bem avaliados e definidos e não por
a evitação das idéias, em particular daquelas que impulsos momentâneos e irrefletidos. Esse pa-

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drão, civilizadamente eficiente de comportamento necessidade maior de observar e pensar antes de


social, exige de cada indivíduo uma rotina de agir, tanto com respeito aos objetos físicos quanto
auto-observação e vigilância sobre o próprio em relação aos seres humanos. Isso deu mais
corpo, que em certo sentido resume-se ao “pen- valor e ênfase à consciência de si mesmo como
sar antes de agir”, isto é, agir em acordo com um indivíduo desligado de todas as outras pes-
uma avaliação preliminar dos possíveis impac- soas e coisas. O desprendimento no ato de ob-
tos sociais da ação. As prescrições éticas, mo- servar os outros e se observar consolidou-se
rais, religiosas, ou científicas que antecedem e numa atitude permanente e, assim cristalizado,
controlam comportamentos sociais, com efei- gerou no observador uma idéia de si como um
tos diversos, constituem exemplos desse padrão. ser desprendido, desligado, que existia indepen-
A teoria do medalhão e outros códigos de eti- dentemente de todos os demais. Esse ato de
queta também, embora formuladas a partir de desprendimento ao observar e pensar
outras referências sociais. condensou-se na idéia de um desprendimento
Esse padrão “civilizado” de comportamen- universal do indivíduo; e a função da experiên-
to social pode ser analisado como diferenciado, cia, do pensar e observar, passível de ser perce-
entre outros, pelo grau de autocontrole requeri- bida de um nível superior de autoconsciência
do. É na medida em que as contingências sociais como uma função da totalidade do ser huma-
são tais que há diversos cursos de ação possíveis e no, apresentou-se pela primeira vez, sob a for-
sanções sociais para a chamada resposta impul- ma reificada, como um componente do ser hu-
siva que os indivíduos aprendem a comportar-se mano semelhante ao coração, ao estômago ou
“civilizadamente”. Antes, porém, de mencionar ao cérebro, uma espécie de substância
a interpretação analítico-comportamental para insubstancial no ser humano, enquanto o ato
o autocontrole, pode ser útil fazer uma incursão de pensar se condensou na idéia de uma “inte-
no pensamento sociológico, desta vez recorren- ligência”, uma “razão” ou, no linguajar antiqua-
do ao trabalho de Norbert Elias, por várias ra- do, um “espírito” (Elias, 1994, p.91).
zões, mas especialmente porque Elias propõe que
o avanço e refinamento do autocontrole nas so- Quando Elias menciona a restrição aos
ciedades ocidentais modernas explica a concep- sentimentos encontrada nas sociedades moder-
ção contemporânea de interioridade de sentimen- nas está remetendo o leitor à promoção do
tos e pensamentos. autocontrole, à restrição a ações impulsivas, em
A abordagem de Elias para o parte devido ao fato de que nessas sociedades
autocontrole é apresentada ao examinar as trans- tornou-se freqüente a necessidade de escolha, a
formações nas relações interpessoais que leva- possibilidade de vários cursos de ação e a con-
ram o homem moderno a se ver como um “in- seqüente exigência de análise das conseqüênci-
divíduo”, um ser autônomo e fechado em si as. Em outra passagem, a restrição à
mesmo, na linguagem de Elias, um homo impulsividade é abordada do ponto de vista de
clausus. Segundo Elias (1994), propriedades formais do comportamento
autocontrolado, especialmente a restrição à par-
a modificação nos estilos de vida social impôs ticipação do aparelho motor na emissão de res-
uma crescente restrição aos sentimentos, uma postas emocionais.

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se perguntarmos ... o que realmente deu origem a caixa torácica. Nestes casos, podemos distinguir
esse conceito de indivíduo como encapsulado “den- claramente o continente do conteúdo, o que se
tro” de si mesmo, separado de tudo o que existe localiza dentro de paredes e o que fica fora, e em
fora dele, e o que a cápsula e o encapsulado real- que consistem as paredes divisórias. Mas se as
mente significam em termos humanos, podemos mesmas figuras de retórica forem aplicadas a es-
ver agora a direção em que deve ser procurada a truturas de personalidade, elas se tornam impró-
resposta. O controle mais firme, mais geral e uni- prias. A relação entre controle de instintos e im-
forme das emoções, característico dessa mudança pulsos instintivos, para mencionar apenas um
civilizadora, juntamente com o aumento de exemplo, não é uma relação espacial. O primeiro
compulsões internas que, mais implacavelmente não tem a forma de um vaso que contenha o
do que antes, impedem que todos os impulsos segundo. ... Rigorosamente falando, todo com-
espontâneos se manifestem direta e motoramente plexo de tensões, tais como sentimentos e pensa-
em ação, sem a intervenção de mecanismos de mentos, ou comportamento espontâneo e con-
controle – são o que é experimentado como a cáp- trolado, consiste de atividades humanas. Se em
sula, a parede invisível que separa o “mundo inter- vez dos habituais conceitos-substância, como “sen-
no” do indivíduo do “mundo externo” ou, em timentos” e “razão”, usarmos conceitos de ativi-
diferentes versões, o sujeito de cognição de seu dade, fica mais fácil compreender que, embora a
objeto, o “ego” do outro, o “indivíduo” da “socie- imagem de “externo” e “interno”, de casca de um
dade”. O que está encapsulado são os impulsos receptáculo contendo algo dentro, seja aplicável
instintivos e emocionais, aos quais é negado acesso a aspectos físicos do ser humano, ela não pode ser
direto ao aparelho motor. Eles surgem na aplicada à estrutura da personalidade, ao ser hu-
autopercepção como o que é ocultado de todos os mano vivo como um todo. Neste nível, nada há
demais, e, não raro, como o verdadeiro ser, o nú- que lembre um continente – nada que possa jus-
cleo da individualidade. A expressão “o homem tificar metáforas como a que fala do “interno” de
interior” é uma metáfora conveniente, mas que um ser humano. A intuição da existência de
induz em erro (Elias, 1939/1990, pp.246-247). uma parede, de alguma coisa “dentro” do ho-
mem separando-o do mundo “externo”, por mais
De modo algum a compreensão que genuína que possa ser como intuição, não
Elias elabora para a noção de interioridade o corresponde a nenhuma coisa no homem que
levará a concordar com aquela visão acerca dos tenha o caráter de uma real parede (p. 247).
sentimentos e emoções. Ao contrário, consis-
tente com sua interpretação dos fenômenos Mas também aqui, pode-se usufruir das
humanos como materializados em redes de contribuições de Elias sem aderir ao seu vocabu-
interdependência com outros homens, Elias lário psicológico, ou à perspectiva teórica que está
argumentará sistematicamente acerca da incon- na origem desse vocabulário. É menos relevante
sistência da interpretação de sentimentos como discutir se o que é controlado são impulsos es-
fenômenos internos. Afirma Elias (1939/1990): pontâneos ou instintivos, e se são estes que no
autocontrole deixam de alcançar o aparelho mo-
há boa razão para dizer que o cérebro humano se tor. O que importa observar é que sob contin-
localiza dentro do crânio e o coração dentro da gências sociais que promovem o autocontrole o

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indivíduo é levado a observar o próprio corpo e a nessas sociedades, um grau maior de


emitir respostas tidas como “emocionais” com interdependência passa a requerer uma restri-
reduzida ou irrelevante participação do apare- ção maior à impulsividade. Como discutido por
lho motor. É sob essas condições, que o reco- Elias (1994), paradoxalmente, essa maior
nhecimento do caráter relacional de certos fenô- interdependência vem acompanhada de um
menos dá lugar, na percepção de cada um, a ocor- sentimento de autonomia. Isso acontece por-
rências do próprio corpo como aquilo que defi- que, sendo as relações de dependência muito
ne o fenômeno em si. É sob essas condições que mais complexas e indiretas, tornam-se menos
as ações humanas relacionadas ao tema da sub- visíveis aos indivíduos.
jetividade são reificadas e os verbos, como “pen- Algumas respostas emocionais (as cha-
sar”, “sentir”, “refletir”, “amar”, “imaginar” etc. madas de emoções primárias – cf. Banaco, 1999;
dão lugar a substantivos como o “pensamen- Millenson, 1967, ou básicas – cf. Ekman,
to”, o “sentimento”, a “reflexão”, o “amor”, ou a 1999/2004) foram selecionadas
“imaginação”. Quando o caráter evanescente filogeneticamente e contêm um componente
dessas ações/relações é reconhecido e elevado a motor. Apenas nesse sentido são mais “natu-
uma maior consideração, no máximo a subs- rais” do que respostas autocontroladas. Por
tância interna percebida passa a ser postulada exemplo, o enraivecer-se diante de uma remo-
como imaterial. ção de reforçador positivo, enquanto produto
Quando os indivíduos agem de modo filogenético, inclui respostas de agressão física
autocontrolado (ou em graus e freqüência mais ao organismo usurpador. Esse componente ca-
elevados de autocontrole) tendem a observar racteriza o responder impulsivo e não pode es-
mais sistematicamente o próprio corpo e a res- tar presente no enraivecer-se enquanto respon-
ponder de modos “contidos”, não impulsivos. der emocional civilizado. O enraivecer impul-
Há, de fato, algo que fica “contido” e que ainda sivo, porém, não será mais nem menos
merece uma explicação bem elaborada. Até onde interiorizado do que o enraivecer civilizado.
se vislumbra, porém, o que é possível afirmar é Neste ponto, pode-se referir a aborda-
que o que é contido é a participação do apare- gem analítico-comportamental para o
lho motor e que isso ocorre como função de autocontrole, menos para discorrer sobre como
sanções sociais (talvez venham daí certas rela- o autocontrole é adquirido e o que representa
ções da psicologia com disciplinas que se ocu- em termos de relações comportamentais e mais
pam com o funcionamento do corpo humano, para assinalar como essa elaboração se articula
as terapias corporais e os estudos sobre temas à problematização de emoções e impulsividade.
da “psicossomática”). As sociedades modernas, Segundo Skinner (1953/1965), um indivíduo
por seu turno, tendem a dispor tais sanções controla seu próprio comportamento como con-
porque, por sua complexidade, sua sobrevivên- trolaria o de outros: manipulando variáveis de
cia depende em larga medida da previsibilidade seu ambiente. Mas a questão do autocontrole
do comportamento de cada um, de uma só se coloca para um indivíduo quando dois
regulação mais acentuada e permanente do cursos de ação são possíveis com alguma pro-
comportamento de cada um pelo comporta- babilidade e cujas conseqüências variam quan-
mento de todos os outros. Em outras palavras, to à natureza, magnitude e/ou temporalidade

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(cf. Hanna & Todorov, 2002; Rachlin, 1974, para o grupo. Em contrapartida, respostas
1991; Skinner, 1974/1993). Nesses casos, uma autocontroladas produziriam conseqüências
das respostas possíveis pode ser chamada de atrasadas positivas para o indivíduo e para o
resposta “impulsiva”, a outra, resposta grupo. Skinner (1953/1965) refere-se ao
autocontrolada. A resposta impulsiva seria aque- “autogerenciamento” como sinônimo de mani-
la que produziria uma conseqüência pulação de variáveis. Quando se trata de um
(reforçadores positivos) temporalmente mais tipo de manipulação caracterizada como reso-
próxima, porém de menor magnitude. A res- lução de problemas, a referência é ao
posta autocontrolada produziria uma conse- “autogerenciamento intelectual”; quando a
qüência temporalmente mais atrasada, porém manipulação é uma forma de autocontrole, a
de maior magnitude. Um outra possibilidade é referência é ao “autogerenciamento ético”. Esse
que a resposta impulsiva produza não apenas tipo de adjetivação sugere um reconhecimento
reforçadores positivos (imediatos), mas também da centralidade do conflito entre conseqüênci-
reforçadores negativos (atrasados), enquanto a as para o próprio indivíduo e conseqüências
resposta autocontrolada produziria reforçadores para o grupo na análise do autocontrole.
positivos atrasados (e talvez reforçadores nega- Na medida em que se formula o
tivos imediatos). autocontrole a partir de um conflito de conse-
Em muitos casos, a resposta qüências, assinalando-se que se trata de conse-
autocontrolada só é possível com a mediação so- qüências para o próprio indivíduo e para o gru-
cial. Um indivíduo que não contactou uma con- po, e tratando-se como impulsivas aquelas res-
seqüência temporalmente muito distante não está postas que produzem reforçadores positivos ime-
propriamente sob controle daquela conseqüên- diatos apenas para o próprio indivíduo, há uma
cia, mas sob controle de contingências sociais a aproximação da abordagem que relaciona emo-
ela associadas. Por exemplo, uma criança man- ções e autocontrole. Isto é, embora seja possível
tém-se estudando anos seguidos não exatamen- formular o autocontrole em termos de operações
te porque está sob controle dos reforçadores a ou contingências de reforçamento, trata-se de
que terá acesso por um desempenho profissional relações nas quais sanções sociais para respostas
eficiente, mas porque a sociedade provê contin- impulsivas estão presentes. Desse ponto de vis-
gências que a mantêm estudando todos esses anos ta, o autocontrole em humanos tem componen-
(por exemplo, notas, diplomas, prêmios etc. – tes não encontrados em possíveis instâncias de
cf. Skinner, 1968/2003). autocontrole com outras espécies (embora tal-
Numa outra direção, Skinner (1968/ vez para todas as espécies respostas impulsivas
2003) remete-se ao “autogerenciamento ético”, representem fenômenos mais próximos).
salientando que o conflito entre conseqüências As sanções éticas envolvidas na promo-
pode ser tal que envolva conseqüências para o ção de autocontrole constituem aquele tipo de
próprio indivíduo e conseqüências para o gru- condição social referida por Elias como respon-
po (cf. Nico, 2001). Nessas circunstâncias, res- sáveis pela observação do próprio corpo, pela
postas impulsivas seriam aquelas que produzem reflexão permanente sobre cursos de ação e pela
reforçadores positivos imediatos para o próprio correspondente percepção dos eventos emocio-
indivíduo, mas reforçadores negativos atrasados nais e cognitivos como ocorrências internas. As

29
MUNDO INTERNO E AUTOCONTROLE

repercussões dessas contingências sociais em Quando um trabalhador, enfurecido com uma


problemáticas do campo psicológico apenas ordem comunicada rispidamente por seu che-
começam a ser discutidas. fe, responde-lhe calmamente que talvez a me-
dida que ele pretende tomar não seja a mais
SENTIMENTOS, AUTOCONTROLE, ASSERTIVIDADE E eficaz, não está ele se comportando de forma
TOMADA DE DECISÃO autocontrolada? Em que medida essa resposta
“assertiva” corresponde mais proximamente ao
As relações entre a problemática de sen- que pensa e sente? Para além disso, o que signi-
timentos e pensamentos e a questão do fica exatamente “expressão adequada de emo-
autocontrole encontram expressão em temas ções”? Não sem motivos, a definição de
que têm merecido atenção nos sistemas psico- assertividade pressupõe que sentimentos e pen-
lógicos, inclusive comportamentais. Pode-se samentos são algo do/no indivíduo, que podem
mencionar brevemente dois desses temas, a ser tornados públicos de diferentes modos (os
assertividade e a tomada de decisão, como últi- modos de torná-los públicos em si não consti-
mo ponto da presente discussão, com o objeti- tuem o próprio evento “comunicado”), alguns
vo de salientar que na medida em que esses te- mais eficazes socialmente, outros menos efica-
mas se relacionam com o autocontrole são tam- zes. Na tradicional classificação do comporta-
bém pertinentes para uma discussão da noção mento interpessoal como assertivo, passivo, ou
de interioridade. agressivo, se há um padrão menos
Definições contemporâneas de autocontrolado trata-se do padrão agressivo,
assertividade fazem referência a uma adequada exatamente aquele que se considera inaceitável
expressão de sentimentos, de tal modo que a nas relações interpessoais. Como assinalado por
resposta produza reforçadores positivos diver- Marchezini-Cunha (2004), as relações entre
sos, contrastando com as conseqüências usuais assertividade e autocontrole são mais próximas
de respostas agressivas ou passivas (cf. do que podem parecer à primeira vista, consi-
Marchezini-Cunha, 2004). Na definição de derando-se na definição do autocontrole tanto
Rich e Schroeder (1976), assertividade é “a o conflito entre conseqüências imediatas e atra-
habilidade para buscar, manter ou aumentar o sadas como o conflito entre conseqüências para
reforçamento em uma situação interpessoal por o indivíduo e para o grupo. Segundo
meio da expressão de sentimentos ou desejos Marchezini-Cunha,
quando tal expressão envolve o risco de perda
de reforçamento ou até punição” (p. 1082). A (a) assertividade e autocontrole são relações
assertividade assim formulada parece uma con- comportamentais produzidas em ambientes so-
quista sobre os rigores da civilidade, sobre as ciais, que (b) envolvem a produção de conseqü-
exigências de autocontrole, uma vez que final- ências para o indivíduo e para o grupo, (c) são
mente os sentimentos e pensamentos poderão função de contingências que compartilham uma
ser tornados públicos. mesma origem histórica e (d) funcionam para
Examinando-se mais de perto a questão favorecer o grupo. Também os padrões de res-
da assertividade, no entanto, não seria ela um posta concorrentes ou alternativos ao autocontrole
exemplo mais refinado ainda de autocontrole? e à assertividade (comportamento impulsivo, no

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E. Z. TOURINHO

caso do autocontrole e comportamentos agressi- ções interpessoais cotidianas. Ao lado disso, po-
vo e passivo, no caso da assertividade) partilham rém, modificou substancialmente aquelas rela-
aquelas características, à exceção do favorecimento ções na direção de um afastamento entre os in-
do grupo ... Ao se comportar assertivamente o divíduos, ou de uma maior formalidade no tra-
indivíduo emite uma resposta mais vantajosa para to com os outros. As conseqüências dessas mo-
o grupo do que uma resposta impulsiva (a res- dificações são inúmeras e a preocupação com a
posta agressiva) ou ineficaz para a produção de assertividade constitui um modo de se voltar
conseqüências em geral (a resposta passiva), ambas para elas. Promovendo o comportamento
concorrentes. Poder-se-ia supor que a resposta assertivo o que se está buscando é evitar o
passiva representa vantagem maior para o grupo autocontrole típico da passividade, que funcio-
do que a resposta assertiva, mas nesse caso torna- na contra o indivíduo, e a ausência de
se importante observar como se articula ao con- autocontrole própria da agressividade, que fun-
flito de conseqüências a questão temporal assina- ciona contra o ambiente social. No caso especí-
lada por Rachlin (1974, 1991). Isto é, respostas fico da assertividade positiva, em que pese as
passivas são mais vantajosas para o grupo apenas ponderações sobre variáveis contextuais, é mais
do ponto de vista imediato. A longo prazo, a provável que promova uma condição de satis-
passividade representa uma dependência onero- fação pessoal com impacto positivo sobre o am-
sa do indivíduo em relação ao grupo (considere- biente social (pp. 68-69).
se, a propósito, as conseqüências atrasadas, para
os pais e para a sociedade, do fortalecimento de No que diz respeito à tomada de deci-
um padrão passivo de comportamento de crian- são, há um poema ilustrativo do que se preten-
ças na infância). Considerando-se as conseqüên- de salientar, de autoria de Robert Frost, o es-
cias atrasadas, portanto, será mais vantajoso para critor dos versos “simples” (Pound, 1994, p.
o grupo, pelo menos em uma cultura 52), que “[fala] com naturalidade e [descreve]
“ocidentalizada”, contar com indivíduos que se as coisas tal como as vê” (Pound, p. 49). Skinner
comportem assertivamente (pp. 65-66). teve contato e foi encorajado por Frost quando
ainda pensava em trilhar uma carreira literária.
Com essas considerações, não se está su- Bem mais tarde, Julie Vargas (Vargas, 1989)
gerindo que o comportamento assertivo não inspirou-se no poema para falar dos caminhos
cumpre uma função importante nas relações percorridos pela análise do comportamento. O
entre os homens, mas apenas que um olhar crí- texto remete-se a uma encruzilhada em um
tico sobre essa questão é necessário. Como sali- bosque e à escolha do autor pelo “caminho
entam Neno e Tourinho (2003), menos percorrido”:

não se pode dizer que a emergência e difusão do Eu deveria proferir isso com um suspiro
autocontrole para muitas esferas da nossa vida Em algum lugar, tempos e tempos atrás,
teve um valor negativo nas sociedades moder- Dois caminhos divergiram no bosque, e eu
nas. Ao contrário disso, possibilitou conquistas Eu optei pelo menos percorrido,
sociais importantes, como uma maior seguran- E isso fez toda a diferença.
ça (e os sentimentos correspondentes) nas rela- (Frost, 1916/s/d, p.271).

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MUNDO INTERNO E AUTOCONTROLE

Na referência de Vargas (1989) ao poe- Já em sociedades complexas como a nos-


ma, os analistas do comportamento são reco- sa, a história de vida e o cotidiano de cada um
nhecidos como uma minoria, mas que têm al- é rica em bifurcações, em situações que deman-
cançado grandes realizações profissionais. “O dam decisões, circunstâncias nas quais contin-
nosso caminho é o menos percorrido. Mas já gências do mundo físico e social evocam res-
fizemos a diferença, estamos fazendo a diferen- postas diversas e concorrentes. Indivíduos nes-
ça e, em um mundo cercado de problemas, te- sas sociedades são levados a tomar decisões que
mos que fazer a diferença” (p. 130). vão do que comer em uma refeição ao que fazer
Encruzilhadas, bifurcações de caminhos, como função profissional, de como deslocar-se
constituem, nas sociedades modernas, uma re- de um ponto a outro a quantos filhos gerar e
alidade rotineira. Em pouquíssimas situações, criar. Na avaliação de Elias (1994),
nessas sociedades, os indivíduos são expostos a
contingências que evocam um único curso de quer o indivíduo recorde ou não, o caminho que ele
ação. Mais freqüentemente são expostos a ar- tem que trilhar nessas sociedades complexas – com-
ranjos diversos e concorrentes de contingênci- parado ao que se abre para o indivíduo nas socieda-
as, que evocam respostas com probabilidades des menos complexas – é extraordinariamente rico
muito próximas e que demandam um processo em ramificações e meandros, embora não na mes-
decisório. Decisões que, como ilustrado no po- ma medida, é claro, para os indiví-duos de diferen-
ema de Frost, podem fazer toda a diferença. Esse tes classes sociais. Ele passa por grande número de
fato aparentemente de pouca importância tem bifurcações e encruzilhadas em que se tem que de-
um efeito extraordinário no favorecimento de cidir por este ou aquele caminho. Quando se olha
uma auto-imagem de autonomia e interioridade para trás, é fácil deixar-se tomar pela dúvida, Eu
do indivíduo. Elias (1994) discute esse pro- não deveria ter escolhido um rumo diferente? Não
blema, salientando que terei desprezado todas as oportunidades que tive
naquela ocasião? (pp. 109-110).
Nas sociedades mais simples, há menos alternati-
vas, menos oportunidades de escolha, menos co- Ao lado das implicações dessas contin-
nhecimento sobre as ligações entre os aconteci- gências para a visão interiorizada do homem
mentos e, portanto, menos oportunidades passí- moderno, coloca-se uma questão quanto às re-
veis de parecerem “perdidas”, quando vistas em lações entre tomar decisões e autocontrole. Para
retrospectiva. Nas mais simples de todas, é fre- Skinner, em ambos os casos os indivíduos estão
qüente haver diante das pessoas um único cami- diante de arranjos de contingências concorren-
nho em linha reta desde a infância – um caminho tes. Uma possível diferença (cuja relevância é
para as mulheres e outro para os homens. Raras discutível) residiria no conhecimento ou não
são as encruzilhadas; raramente alguém é coloca- das conseqüências de cada curso de ação. Nico
do sozinho diante de uma decisão. Também nesse (2001) sintetiza essa possível distinção entre
caso, a vida traz seus riscos, mas a margem de esco- autocontrole e tomada de decisão afirmando:
lha é tão pequena e tão grande a exposição ao
poder caprichoso das forças naturais que os riscos O que caracteriza a tomada de decisão é o desco-
mal chegam a depender das decisões (p. 110). nhecimento prévio, por parte do sujeito que se

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E. Z. TOURINHO

comporta, das conseqüências a serem produzi- postas cujas conseqüências vêm a longo pra-
das por um e outro comportamento. Assim, di- zo, por exemplo a decisão sobre uma carreira
ferentemente do autocontrole, o comportamen- universitária ou profissional, o que coloca a
to de tomar decisão não consiste na aplicação de tomada de decisão no mesmo terreno do
um conjunto de técnicas de modo a tornar mais autocontrole com respeito a muitos aspec-
provável uma resposta antecipadamente tos. Na discussão de Elias (1994) sobre as
identificada. O que define a tomada de decisão é exigências decisórias em sociedades comple-
a emissão de certos comportamentos que aumen- xas, encontra-se essa articulação:
tam a probabilidade de optar por, decidir qual
curso de ação será tomado. Dessa forma, um in- A oportunidade que os indivíduos têm hoje de
divíduo torna-se mais capaz de tomar uma deci- buscar sozinhos a realização dos anseios pessoais,
são quando se comporta de modo a produzir predominantemente com base em suas próprias
conhecimento acerca das conseqüências envolvi- decisões, envolve um tipo especial de risco. Exi-
das em um e outro comportamento (p. 16). ge não apenas considerável volume de persistên-
cia e visão, mas requer também, constantemente,
Pode-se indagar se há grande diferença que o indivíduo deixe de lado as chances mo-
entre autocontrole e tomada de decisão no mentâneas de felicidade que se apresentam, em
que concerne à antecipação das conseqüênci- favor de metas a longo prazo que prometam uma
as dos possíveis cursos de ação. É possível que satisfação mais duradoura, ou que ele as sobrepo-
no autocontrole o indivíduo tenha informa- nha aos impulsos a curto prazo ... A maior liber-
ções sobre as conseqüências de sua ação, po- dade de escolha e os riscos maiores andam de
rém quanto mais distantes temporalmente mãos dadas ... O esforço da longa jornada pode
essas conseqüências, menores as chances de ser tão grande que a pessoa perca a capacidade de
que correspondam (formal ou funcionalmen- desfrutar a realização ou de vê-la como uma rea-
te) àquilo que era conhecido. Também é pos- lização satisfatória. A capacidade pessoal de sen-
sível que em algumas circunstâncias descri- tir alegria e realização pode ter sido sufocada na
tas por Skinner como situações decisórias o infância, através de relações familiares. Há mui-
indivíduo manipule variáveis para produzir tas dessas possibilidades. A abundância de opor-
informações adicionais sobre as conseqüên- tunidades e metas individuais diferentes nessas
cias de seu comportamento, mas não se trata sociedades é equiparável às abundantes possibi-
de situações nas quais os indivíduos desco- lidades de fracasso (p.109).
nheçam inteiramente as conseqüências dos
possíveis cursos de ação. Por exemplo, quan- Olhar para autocontrole e tomada de
do um indivíduo busca informações no jor- decisão como dois fenômenos muito aproxima-
nal sobre os programas culturais disponíveis, dos significa, portanto, dentre outras conseqü-
está aumentando a probabilidade de decidir- ências, que os processos de tomada de decisão,
se por um ou outro, mas algum conhecimen- as variáveis sócio-culturais aí envolvidas, mere-
to prévio sobre as conseqüências de cada um cem também ser levadas em conta em uma apre-
já existia. Por último, freqüentemente as si- ciação da noção de interioridade no mundo
tuações que requerem decisões envolvem res- moderno.

33
MUNDO INTERNO E AUTOCONTROLE

CONSIDERAÇÕES FINAIS diferente sobre o homem. Se é verdade que uma


cultura terá mais chances de sobreviver se plane-
Este artigo faz referência a conjuntos de jar seu futuro com os instrumentos conceituais
leituras ou informações externas à análise do com- de uma ciência do comportamento, também é
portamento. É possível que o leitor se pergunte verdade que uma mudança nessa direção depen-
o que se ganha com uma apreciação desse tipo de de uma melhor compreensão das contingên-
(especialmente, em um texto dirigido a analis- cias que operam em sentido oposto.
tas do comportamento). A maior vantagem de Algumas dessas contingências podem ser
um diálogo com análises originadas em outros acessadas com uma análise de fenômenos como
espaços disciplinares consiste no fato de que com autocontrole, tomada de decisão e mesmo
isso passa-se a atentar para variáveis culturais re- assertividade (que não é um conceito propria-
levantes e perspectivas diversas de interpretação mente analítico-comportamental), desde que
dessas variáveis. Algum critério deve existir para esses fenômenos sejam vistos de forma não na-
que essa aproximação favoreça uma abordagem turalizada, isto é, sejam vistos como fenôme-
analítico-comportamental dos problemas huma- nos dependentes de contingências culturais es-
nos. Obviamente, não faria sentido estabelecer pecíficas. O jeito de evitar uma naturalização é
como critério para conversar com autores de ou- voltando-se para instâncias concretas de fenô-
tras origens que eles adotem o sistema conceitual menos comportamentais humanos desse tipo,
analítico-comportamental. Alternativa mais efi- em suas relações com contingências sociais.
ciente consiste em buscar a interlocução com
análises que interpretam os problemas psicoló- REFERÊNCIAS
gicos como relações do homem com o mundo. Do
ponto de vista desse critério, há muito a usu- Assis, M. (1876/1996). Helena. São Paulo: Ática.
fruir das obras mencionadas. Assis, M. (1882/1998). Teoria do medalhão. Em M.
Não é por desconhecimento ou ingenui- Assis (Ed.), Contos/Uma Antologia. São Paulo: Com-
dade que alguns homens percebem suas panhia das Letras.
cognições, sentimentos e emoções como fenô- Banaco, R. A. (1999). O acesso a eventos encobertos na
menos internos, únicos e referência para suas prática clínica: Um fim ou um meio? Revista Brasileira
realizações (como também não é verdade que de Terapia Comportamental e Cognitiva, 1, 135-142.
apenas a análise do comportamento esteja na Ekman, P. (1999/2004). Basic emotions. Em T. Dalgleish
contramão dessas crenças, como ilustrado). In- & M. Power (Eds.), Handbook of cognition and
divíduos em nossa sociedade estão inclinados a emotion. Sussex, U.K.: John Wiley & Sons. [Obti-
admitir que seus sentimentos, cognições e emo- do no endereço http://www.paulekman.com/
ções são fenômenos internos como função de frame.html, em 12 de março de 2004].
variáveis culturais a que estão expostos (e conti- Elias, N. (1939/1990). O processo civilizador: Uma his-
nuam expostos mesmo quando recebem uma tória dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
formação em análise do comportamento). Com- Elias, N. (1994). A Sociedade dos indivíduos. Rio de Ja-
preender as determinações dessa imagem neiro: Jorge Zahar.
interiorizada que cada um tem de si mesmo é Frost, R. (s/d/1916). The road not taken. Em R. Frost
condição para a promoção de uma concepção (Ed.), The road not taken: A selection of Robert Frost’s

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