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Poesia com elos

43ª edição

Pamela Facco
Poesia com elos

ÁGUA

A revista de Dezembro chega com dois ensaios que


se somam a composição das gotas do céu. Parece
presente de Deus, e é.
De fato um dia fora da curva se fez nesses registros
onde o tempo também é protagonista.
Podemos dançar na chuva, ou dançar com a chuva:
e escolher a segunda opção é como uma reza, é
um encontro secreto da nossa alma com o que a
natureza traz de mais emotivo e por essa razão
todos nossos poros se acendem.
Se entregar, se envolver, se derreter junto a
poética do choro de Deus é se conectar com a dores
do mundo e sentir piedade pelo sofrimento do menor
de nós. Desligar os telejornais não vai nos livrar
de sentir o gosto de sangue que escorre pela
terra, eu choro junto com os céus pela tristeza da
guerra e entrego meu corpo desprotegido e nu aos
gritos que foram silenciados.
A arte é a última esperança do imaginário humano,
seguir criando em todos os tempos é nossa sobrevida
e configura a nossa história.

Esse texto é como as minhas fotos, pedaços do que


sinto e que entram em contradição e oposição a
cada instante.
Eu não sou linha, eu não sou curva, eu sou água.
Terapia a sós

Dezembro chega e com ele vem aquele sabor na boca de missão cumprida,
misturado com um retro-gosto de “será que fui o bastante?”.
Hoje presa num trânsito bem mais denso do que o comum, e quase
feliz por estar interrompida de prosseguir minhas atividades (por
estar confortável dentro de um espaço frio nesse verão insuporta-
velmente escaldante), deparei-me com os olhos cheios de lágrimas
e o peito apertadinho ao pensar na menina que fui e que tanto o
mundo machucou.
Comecei o pensamento imaginando a Pamela de agora, aos 37 anos se
encontrando com a Pamela de 10 anos atrás e essas duas versões se
abraçando, a de agora consolando com um zelo de mãe e colando todos
os pedaços daquela que fui e hoje não encontro mais.
Aquele diálogo, afeto e cuidado que é tão impossível de acontecer
me fez querer acolher as dores daquilo que nunca pude suportar.
Eu vou confessar aqui em voz baixa, quase sussurrando, que eu não
me sinto uma guerreira, uma vitoriosa, ou uma mulher que superou
e enfrentou tudo que era preciso para existir em totalidade. Eu
sinto que morri algumas vezes nessa minha jornada de ser alma
porosa e cada vez que eu renascia eu enxergava uma cor a menos. Eu
me encontro com mais recursos, com mais armaduras mas eu não tenho
mais aquela ingenuidade, aquela doçura, aquela crença no amor e no
mundo que fazia meus dias serem espantosamente bonitos.
Eu não me sinto forte. Eu olho para as minhas cicatrizes, repenso
na minha história e apesar de ter muito orgulho de quem me tornei
eu dava tudo para aquela menina, que hoje eu olho em terceira
pessoa, não ter sofrido daquele jeito.
Choro copiosamente, ao pensar nas minhas rupturas, enganos,
agressões e decepções.
Acolho-me, acalmo-me e tenho vontade sair desse lugar, mas me
propus a escrever sobre esse encontro, então levanto, lavo meu
rosto, tomo um copo de àgua bem gelada e volto a ele.
Volto no abraço e nas colagens, volto passando merthiolate nas
feridas daquela que fui, mas loucamente me transformo nela e já
não sei mais racionalizar com maturidade minha história. Não
entendo, não me conformo, não aceito, não perdoo.
Como eu gostaria que tivessem me tirado daquele lugar, eu vou
hoje, tirar a Pamela do passado de lá, será que funciona?
Eu vou fazer minhas malas e vou morar com ela, não vou sair do lado
dela até ela conseguir respirar de novo.
Eu não vou deixar ela se matar para conseguir seguir sozinha, eu
vou mostrar que a gente pode curar o que machucou.
Consertar, arrumar, restaurar, será que junto comigo ela consegue
me deixar viver nesse futuro, ainda vendo cor, sentindo sabor e
tendo capacidade sonhar?
Será que se eu ajudar, ainda que tarde demais a gente se conserta?
Junho de 2020

Poesia com elos


43ª edição
Pamela Facco

Dezembro de 2023

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