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A AURORA FNS] NN WD Jacob Tbe JACOB BOEHME A AURORA NASCENTE PAULUS INTRODUGAO EDUCADORES DA HUMANIDADE De todos os seres da natureza, o humano é o unico que se pergunta sobre a sua prépria identidade. E que & humanidade, nascida ha milénios na noite do passado, coube o destino original de reconhecer, a si mesma € ao mundo, a tarefa de emergir progressivamente do paraiso da inconsciéncia para a continua elaboragao da conscién- cia, sendo esta o espelho que tudo reflete. Dessa forma, o grandioso destino da humanidade é desentranhar pouco a pouco a perfeicgdo que existe na estrutura do universo e, através de si mesma, no seu ser e na sua vida, dar uma visibilidade consciente a essa perfeigao, tornando-a huma- na. Assim, tudo o que existe — universo, natureza, historia e, segundo C. G. Jung, até mesmo Deus — passa pelo filtro humano, a fim de se tornar consciente e humanizado. O centro do processo € 0 proprio humano. Mas 0 que € o humano? Conforme os introvertidos, seria o espelho onde o universo se reflete, Conforme os extrovertidos, ao contra- rio, O universo seria o grande espelho onde o humano se reflete. Os dois estao certos, e a verdade final estaria no didlogo entre o humano e o universo, um espelho diante do outro, refletindo-se mutua e infinitamente, sem que se possa dizer exatamente onde comeca um e termina o outro. Mas areflex4o especular sim, comega no humano e é, por exce- léncia, a definigao do humano, a capacidade de refletir, de espelhar. Quem inventou o espelho? Ndo sabemos. Talvez Nar- ciso, contemplando o préprio rosto refletido na Agua. Este 5 € um mito muito significativo. A partir da contemplagao narcisica nasceu a tomada de consciéncia através do jogo de espelhos, e dai por diante ninguém mais péde deter a marcha da consciéncia. Nao sabemos quem inventou o espelho, mas reconhe- cemos logo as pessoas que mais elaboram a reflexao cons- ciente na histéria: os artistas, os sabios e os misticos — todos eles se situando no mesmo ponto. o foco central, en- tre si mesmos e 0 universo, servindo de retorta alquimica para a elaboracao da consciéncia. Sdo eles que caminham a frente na hist6ria, marcha da humanidade. Sao eles que, tateando, descobrem novos caminhos para todos nés. Artistas, sAbios e misticos sao a fornalha onde o chum- bo inconsctente vai alquimicamente se transformando no ouro da consciéncia. Com inspiracao e transpiracao eles vao humanizando o universo, a natureza e o préprio, re- conhecendo e interpretando o impulso infinito que esta no amago da realidade e traduzindo-o em sentido que a tudo ilumina. Sentido que € a verdade, e que significa ver, com- preender e amar a realidade, para, finalmente, viver junto e de acordo com ela. O sentido ultimo, portanto, esta presente em tudo, e no mais intimo do préprio humano. Esté ai, 4 espera de ser descoberto e vivenciado conscientemente. Esta ao alcance de todos. que talvez s6 estejam esperando que alguém lhes ensine o gesto de Narciso: abaixar-se e debrucar-se para ver 0 préprio rosto espelhado na 4gua. Quem poderia lhes ensinar isso? Os artistas, os sabios e os misticos. Sdo eles os grandes educadores da humanidade. O que € educar? Nao é reprimir, mas, ao contrdrio, ex- primir, liberar. Também nao é imprimir, mas, ao contrarto, fazer brotar, fazer emergir. Menos ainda seria formar, im- pondo uma forma; ao contrario, seria desentranhar do mais fundo do ser a sua prépria forma. Com efeito, o verbo edu- car vem do latim educere, e significa tirar fora, levar fora, extralr, desentranhar. Educar 0 homem significa, portanto, desentranhar a forma humana de dentro do préprio homem, extraindo e revelando a sua prépria e intima esséncia. Artistas, sdbios e misticos sao os grandes educadores da humanidade. Sao eles que caminham 4 frente no tem- 6 po, no espaco e na profundidade do préprio ser, a todos revelando os caminhos e os horizontes que todos temos dentro de nés mesmos. Com o trabalho e o suor deles va- mos descobrindo que o que esta dentro esta fora também, e vice-versa; vamos descobrindo que o infinito esta no finito, e vice-versa; vamos desobrindo que o divino est4 no huma- no, e vice-versa. Mas, sobretudo, vamos desobrindo com eles que o cerne da realidade é 0 paradoxo do Uno que se revela no verso, 0 Invisivel, o Ser nos seres, Deus nas cria- turas. Tudo inicia no Uno, multiplica-se nos versos, e de novo se encaminha para o Uno. Tudo nasce de um mesmo Amor, se multiplica em muitos amores, e finalmente se reine de novo no mesmo Amor. Ai est4 a beleza entrevista pelo artista, a verdade tateada pelo sabio e o amor universal cul- tivado pelo mistico. Beleza, verdade e amor que revelam e educam a humanidade a ser humana, sem nada lhe impor ou mandar, mas simplesmente propondo e convidando. Por - que a beleza, a verdade e o amor sdo frutos de liberdade e dom. Se forem impostos, destroem-se a si mesmos. A presente colegao — Educadores da Humanidade — tem como finalidade abrir ao grande publico 0 contato com irm&os nossos que caminharam a nossa frente e podem, portanto, revelar muito de nés mesmos e do nosso cami- nho como seres humanos. Irmaos artistas, sbios e misti- cos, que podem nos revelar a beleza. a verdade e 0 amor que nos rodeiam e em nés habitam, convidando-nos tam- bém a sermos artistas, sAbios e misticos. E uma colecdo ecuménica, aberta para ouvirmos ar- tistas de povos diversos, sabios de ontem e de hoje, misti- cos das diferentes religides, antigas e atuais. Eclética? Na aparéncia, sim; mas, no fundo, falando da mesma coisa, talvez com nomes e nuangas diferentes. O melhor espirito para ler os livros desta colegao sao as palavras secretas de Hermes Trismegisto: Quod est inferius est sicut quod est superius, et quod est superius est sicut quod est inferius, ad perpetranda miracula ret untus ("O que esta embaixo é como o que est4 em cima, e o que esta em cima € como 0 que esta embaixo, para realizar os milagres da Unidade” — Hermes Trismegisto, Tabua de Esmeralda). Em outras palavras, tudo vem do Uno e caminha para 0 Uno. E tempo de descobrir - 7 mos a unidade no meio da pluralidade, pois cada criatura é uma versao do Criador, e 0 mundo seria muito pobre se os seres fossem mera repeticao uns aos outros. Cada um de- Jes € um pequeno espelho, e Deus precisa de todos e de cada um dos seres para refletir-se totalmente, revelando comple- tamente a sua beleza, verdade e amor. E a humanidade tam- bém precisa de todos eles. Com efeito, nao é ela a prépria “imagem e semelhanga” de Deus? (Génesis 1,26-27). Ivo Storniolo APRESENTACAO Jacob Boehme (1574-1625), A aurora nascente. Que dizer sobre um e outro? HA, aqui, algo de espantoso e impronunciavel. Nao foram poucos os homens mais since- ros € austeros, mais qualificados moral, intelectual e espi- ritualmente que, ao se depararem com este autor e esta obra, tiveram, como impressao predominante, 0 assombro. Exemplo disso sao as palavras de Louis Claude de Saint- Martin, um dos grandes nomes da Tradic¢ao espiritual do Ocidente no séc. XVIII, autor de muitas obras ainda hoje consagradas, que comecou a aprender alemao ja préximo dos cingiienta anos, ap6s haver tomado conhecimento das obras de Boehme através das tradugées inglesas, apenas para lé-las no original: “Encontro em suas obras uma soli- dez inabalavel, uma profundidade, uma elevacado e um ali- mento tao pleno e infalivel que considero perda de tempo buscar tais coisas em outro lugar”. “Aconselho-o a, por todos os meios, lancar-se nesse abismo de conhecimento das mais profundas de todas as verdades". “Nao sou digno de desatar os cadarcos desse homem admiravel”. (Cartas a Kirchberger). Jacob Boehme € considerado um dos mais poderosos génios metafisicos da hist6éria da humanidade. Sua obra € © maior monumento de conhecimentos cosmogénicos, cosmolégicos e escatolégicos do cristianismo. Desde seu surgimento o ntcleo mais interior da Tradicao ocidental, judaico-crista, foi sempre alimentado por ela, no seio da qual foi alcunhado “Principe dos Filésofos Divinos”. Ha fortes indicios de que sua influéncia chegou até New- ton e contribuiu inclusive na elaboragao da lei da gravidade. 9 Foi lido por todos os mais destacados filésofos alemées como Leibniz, Hegel, Fichte, Schelling e Franz von Baader, cujas obras trazem de maneira mais evidente em uns, me- nos em outros, a marca de sua presenca, sendo que as dos dois Ultimos sao exegeses filoséficas das revelagdes de Boehme. Schopenhauer escreveu: “Por que as mesmas fi- guras e formas que nas obras de Boehme enchem-me de admiracao e espanto, (nos escritos de Hegel me parecem insuportaveis e ridiculas)? Pois nos escritos de Boehme o reconhecimento da verdade eterna fala em cada p4gina...” (Handschriften, Nachlass, p. 261). Os poetas do romantismo, Tieck, Schlegel e Novalis também foram seus leitores e admiradores. Este ultimo, em seguida a morte de sua noiva Sophia von Kiihn, dedi- cou-se a leitura de suas obras e, numa de suas cartas a Ludwig Tieck, escreveu: “Neste momento estou lendo con- tinuamente Jacob Boehme e comeco a entendé-lo como deve ser entendido. Nele vé-se a poderosa primavera com suas forgas que nascem, movimentam-se e misturam-se e de dentro para fora engendram a criagado do mundo; um ver- dadeiro caos de obscuro desejo e vida maravilhosa”. Quando Goethe, aos dezenove anos, estudando direito na Universi- dade de Lipsia, teve uma hemorragia que quase o conduziu A morte, sua familia confiou-o aos cuidados do Dr. Johan- Friedrich Metz, que rapidamente o curou e, vendo suas qualificagdes humanas e intelectuais, revelou-lhe as obras de Paracelso, Van Helmont, Gottfried Arnold e Jacob Boehme. Mais tarde Goethe, falando dessa enfermidade, escreve- ra: "Eu era um ndufrago, mais doente da alma do que do corpo”. Sobre a vida de Jacob Boehme Depois dessa rapida reflex4o da ressonAncia que teve a obra de nosso autor em 4reas hoje tao separadas umas das outras como a Tradicao espiritual, a Filosofia, a Cién- cla e a Arte, nao deixara de surpreender ao leitor que ainda desconhece sua vida saber que Jacob Boehme foi um ho- mem simples e iletrado. 10 Boehme nasceu numa pequena cidade chamada Antt- ga Seidenburg, préximo de Goerlitz, Alemanha, em 1575. Seus pais eram muito simples e honestos. Na sua primeira infancia, eles o encarregaram de cuidar dos animais. Mais tarde, descobrindo nele aspiragées elevadas, enviaram-no a escola, onde aprendeu a ler ¢ escrever, e em seguida ini- ciaram-no na aprendizagem do oficio de sapateiro. Termi- nado o tempo de aprendizado, viajou por dois anos, sobre os quais nada se sabe, até estabelecer-se em Goerlitz para exercer seu oficio, onde se casou e teve quatro filhos. Desde a Juventude Boehme tinha uma alma extrema- mente religiosa, lia assiduamente a Biblia e gostava de fre- qiientar a igreja. Porém, as disputas teoldgicas que entaéo sucediam por toda parte, levando a mituas perseguicées e guerras religiosas, conduziram-no a um estado de grande anguistia. Pouco mais de meio século havia transcorrido desde o surgimento da reforma protestante de Lutero e no- vos ramos cismAaticos dissidentes surgiam em seu interior a todo momento. Todos combatiam uns aos outros e a Igre- ja catélica, que através de seu movimento de contra-refor- ma também os combatia a todos. Conforme relata Abraham von Frankenberg, seu ami- go e discipulo e autor da mais consagrada de suas biogra- flas, como eram muitas as dividas que se levantavam no coragao de Boehme diante de tantas opiniées contrarias a respeito de Deus, da religiado e das Escrituras Sagradas, e tamanho o mal que via ser cometido por todas as faccdes em nome de Cristo, pediu fervorosa e continuamente a Deus que lhe revelasse onde estava a verdade. Algum tempo mais tarde, sua prece fot atendida, pois a Luz divina o envolveu e o manteve por sete dias na mais alta contemplacdo das verdades divinas. Em 1600, aos vinte e cinco anos, teve sua segunda experiéncia de iluminacdéo, quando recebeu um dom de vi- sao através do qual podia ver a natureza mais intima de todas as coisas que estavam a sua volta. Nao falou a nin- guém da Luz que recebera, nem do profundo conhecimen- to de Deus e da Natureza que agora tinha. Continuou a levar a vida comum de pai de familia e a exercer-o seu oficio. "1 Em 1610 teve sua terceira ttuminagao, mediante a qual, nas duas vezes anteriores, vira fragmentariamente, reve- lou-se como uma unidade e péde ver a divina ordem da Natureza. Contemplou a criacdo dos trés mundos: 1, 0 di- vino e luminoso (angélico e paradisiaco), 2, 0 tenebroso e infernal (o nucleo da Natureza), e 3. o material e visivel em que vivemos. Em 1612, para nao esquecer o que vira, pés-se a es- crever seu primeiro livro: A aurora nascente! Se dependesse da vontade de Boehme. esta obra ja- mais viria a publico. Porém, um conhecido que 0 visitava viu casualmente os manuscritos, insistiu para folhea-los e levou-os consigo. Vendo o tesouro de Sabedoria que tinha em maos, dividiu-o em partes, chamou alguns amigos, e puseram-se a copiaé-lo dia e noite, devolvendo-o em segui- da ao autor. Estas cépias comegaram a circular e 0 rumor sobre elas chegou ao pastor-primaz da cidade, que sem té-las sequer examinado, condenou-as do pulpito, fez com que 0 manuscrito original fosse apreendido e 0 magistrado de Goerlttz proibisse Boehme de escrever. Boehme acatou esta ordem e por varios anos nada escreveu. Em 1619 teve sua quarta iluminacao, com a qual a unidade do conhecimento dos mistérios de Deus, do Ho- mem e da Natureza, que despontara em 1612, atingiu o dia pleno, e como varias pessoas versadas nas ciéncias divinas e naturais o incitassem a seguir as palavras de Cristo e a nao esconder a luz debaixo da cama, mas coloca-la sobre a mesa para que todos pudessem ver, voltou a escrever e pro- duziu muitas outras obras. Ainda em 1619 escreveu Os Trés Principios da Essén- cla Divina; em 1620, A Tripla Vida do Homem, As Quarenta Questées sobre a Alma e Sobre a Encarnagdo do Verbo; em 1621, A Assinatura das Cotsas (De Signatura Rerum); em 1623, Mysterium Magnum (uma imensa obra comentando 0 livro do Génesis versiculo por versiculo). Isto para citar aqui apenas suas grandes obras. A lista completa pode ser encontrada no final do livro. O relato completo sobre sua vida escrito por Fran- kenberg pode ser encontrado abrindo a coletanea de trés 12 de seus pequenos tratados recentemente editados no Bra- sil sob o nome de A Sabedorta Divina — 0 caminho da ilu- minacdo, Attar editorial, 1994, Sao Paulo. Sobre a Aurora Nascente e sua presente tradu¢ao para o portugués A Aurora Nascente é uma das obras maximas do Oci- dente; é uma grande porta aberta através da qual € possi- vel vislumbrar o esplendor do conhecimento divino. Nao é por acaso que seu subtitulo € a raiz da _filosofia, da astrolo- gia e da teologia, pois coloca os reais fundamentos destas ciéncias, que nao est4o no tempo e no cosmo visivel, mas na eternidade e no metacosmo. Embora tenha sido escrita antes de sua iluminagao ter alcancado o dia pleno e o préprio autor a considere a mais informe de suas obras, é€ a mais simples e acessivel dentre elas, uma vez que em seguida sua penetragao metafisica cada vez maior torna-as cada vez mais vertigi- nosamente profundas e pormenorizadas. A prépria imper- feicao formal da Aurora Nascente, com suas continuas re- dundancias e repetigdes, que a principio costumam cansar 0 Jeitor, acabam por ajuda-lo a fixar certas de suas idéias basi- cas que retornarao como um moto-perpétuo em todos os li- vros subseqtientes. Além disso, nela Boehme emprega com freqaéncia muito maior que nas outras analoglas naturais de extrema beleza para auxiliar a mente do leitor a compreender as verdades sobrenaturais, inalcangaveis pela razéo. Ainda que contenha em germe quase tudo que apare- cera de maneira mais pormenorizada e ordenada nas obras posteriores, ela se estende de maneira predominante na explicagao de trés temas basicos: 1. a Santa Trindade; 2. a criagdo dos anjos e da Natureza eterna; 3. a criacao da natureza temporal, isto 6, deste mundo material, com tudo que ele contém, como as estrelas, o Sol, nosso sistema so- lar, as pedras, os metais, os vegetais, os animais, etc. Para esta tradugao ao portugués da Aurora Nascente, foram cotejadas a traducdo inglesa de John Sparrow, data- da de 1656 (Sure Fire Press, Edmons, EUA, 1992), e a fran- 13 cesa de Louis Claude de Saint-Martin, de 1800 (Arché, co- legao “Sebastiani", Milao, 1977), de excelente qualidade, consideradas muito fi¢is ao texto e ao espirito do original alemao, como também a recente traducdo para o espanhol (Alfaguara, Espanha). A divisao em versiculos da presente edicao brasileira seguiu a adotada por Saint-Martin, um pouco diferente da empregada por Sparrow. As notas de rodapé (exceto as indicadas) e as palavras entre colchetes que aparecem no texto s4o de minha auto- ria. Também entre colchetes aparecem termos em latim ou em alemao. Ainda preparei um pequeno glossario de ter- mos técnicos empregados por Boehme ao longo da Aurora Nascente, que pode ser encontrado no final do livro, e, além disso, um brevissimo resumo dos principios que fundamen- tam toda a sua obra. O leitor deve recorrer a eles sempre que tiver dificuldades de compreensao. Com esses recur- sos, procurei oferecer ao leitor tudo que gostaria de ter en- contrado em minha primeira leitura da Aurora Nascente. Quero agradecer a Livraria Horus por ter digitado os manuscritos originais desta tradugado e a meus pais pelo total apoio que me deram nestes Ultimos oito anos em que tenho traduzido as obras de Boehme e alguns de seus pa- res a nossa lingua, pois sem eles esse trabalho nao teria sido possivel. Sobre o conjunto de suas obras O restante das obras de Boehme trata, principalmen- te: 1. Da manifestacao divina, isto é, da saida de Deus de Si mesmo para revelar-Se e conhecer-Se. 2. Da criagao da Natureza espiritual e eterna e do mundo angélico. 3. Da rebeliao e queda de uma das legides angélicas. 4. Da cria- cao deste mundo material e de tudo que ele contém. 5. Da criagao do Homem. 6. Da queda do Homem. 7. Da verda- deira Religido. 8. Do caminho de retorno do homem caido a Deus. 9. Da encarnagao do Verbo, a encarnagaéo de Jesus Cristo, sua vida, morte, ressurreigdo e ascensdo A direita do Pai. 10. Do sentido interior da Biblia. 11. Do céu, do purgatério e do inferno. 12, Do Juizo Final. 14 Pela profundidade das coisas que lhe foram reveladas e pela extrema minucia com que as descreve, ha alguns cuidados que devem ser tomados para facilitar 0 acesso a compreensao de suas obras. Um deles, de cardter puramente exterior, e que ja esta implicito no que fot dito acima, é sua Jeitura na ordem cro- noldgica, pois cada uma coloca os fundamentos das que as seguem, sempre muito mais profundas que as anteriores, seguindo o aprofundamento de suas fluminacoes. Além disso, ha um fator interior fundamental para lé- las com real proveito: o desejo pela regeneracao e santifi- cacdéo e um estado de simplicidade e humildade. Pois sem isso os principios que fundamentam toda a sua obra, em- bora sejam poucos e, se ouso dizer, extremamente simples, podem parecer obscuros e incompreensivels para a com- plicada, orgulhosa e limitada mente contemporanea. Portanto, que o leitor nado tente compreendé-los com os olhos de sua razao, pois como ela proveio do mundo material visivel, s6 pode apreender 0 que diz respeito ao mundo de que proveio, uma vez que é para isso que foi criada. S6 quem pode apreender os mundos supra-sensi- veis ou supra-racionais: 0 mundo espiritual e o Mundo arquetipico (o Mundo das idéias ou inteligéncias), é o inte- lecto, o olho da unidade, que foi fechado com a queda e s6 pode ser reaberto pela Graca. A unica maneira de tornar-se apto para recebé-la é colocar-se ante a imensa profundidade da Sabedoria divi- na como uma crianga que nada sabe e tudo quer aprender; é deixar-se guiar pela intuigéo do coragaéo de uma alma realmente contrita e sedenta da Verdade. Somente esta matriz podera ser fecundada pelo Espirito divino e dar a luz a verdadeira intuicao intelectual; porém, se isso ocor- rer, aS portas da iluminacao se abrirao e a Aurora divina despontara para o leitor. Este €é o meu mais sincero desejo e a unica meta do meu trabalho. A. Sommerman 15 BREVE RESUMO ESQUEMATICO DOS PRINCIPIOS BASICOS EMPREGADOS POR JACOB BOEHME A) Deus em si mesmo, sem nenhuma diferenclagdo ou distingao; o Absoluto indiferenciado e infinito; 0 Nao-Ser que esta para além do Ser e do Nao ser, que Boehme chama de Ungrund, Sem-Fundo. B) A Tri-unidade divina, anterior 4 manifestagdo. 1, A Vontade do Sem-Fundo de revelar-Se e conhecer- Se. A primeira determinacdo do Indeterminado. A esta pri- meira Vontade Boehme chama de Deus Pai. 2. A Apreensdo da Vontade num centro, através do qual Deus se contempla no espelho da eternidade do Sem-Fun- do. Este centro é Seu Coragao ou Deus Filho. 3. A Exalagao da Vontade, Deus Espirito Santo, raiz do movimento eterno, que exprime e diferencia as idéias ou potencialidades da Sabedoria divina, apreendidas e con- templadas pelo Filho, tornando assim a Sabedoria oculta e indiferenciada, manifesta e diferenciada. C) As sete forgas ou qualidades da Natureza. 1. A Adstringéncia. O desejo obscuro e contrativo que surge na primeira Vontade para manifestar as idéias e potencialidades substancialmente. Como a Vontade-Pai nado tem diante de Si nenhuma substancia com a qual possa manifestar o que contempla na Sabedoria, atrai-Se pode- rosamente a Si mesma e cria um fundo tenebroso. 2. O Amargor. O movimento expansivo que surge na Vontade atraida e aprisionada na treva do desejo adstrin- gente, pois ela quer escapar da escuridao e do aprisiona- 16 mento. Boehme também chama esta forca expansiva de aguilhdo ou aguilhao amargo. 3. A Angustia. A dor e 0 movimento rotatério que re- sultam do combate entre as duas forcas contrarias que surgiram na Vontade. 4. O Calor, Relampago ou Fogo. Do atrito entre as trés primeiras forgas: contrativa, expansiva e rotativa, resulta o Calor e, deste, o relampago, quando a Vontade se liberta das trevas do adstringente e contrativo desejo e introduz a Liberdade na angastia das trés primeiras forgas. 5. O Amor. Quando a liberdade € introduzida nas trés primeiras forgas, elas se abrandam e se entregam suave e amorosamente umas As outras, tornando a constituirem-se numa unidade. De contrarias, tornam-se complementares. 6. O Som ou Tom. Quando a Vontade se liberta e ilumina as forcas severas e contrarias, surge primeiro o estalo do relampago, depois um ressoar das forcas entremes- cladas. Boehme também chama esta sexta forca de mer- curio. 7. A Tangtbilidade ou Corporalidade. A interagdo das seis primeiras engendra a substancialidade, permitindo que as idéias arquetipicas nao substanciais adquiram corpos tangiveis e venham a existéncia manifesta. Estas sete forgas sao responsdveis por todos os niveis de realidade da manifestagao divina; € através de sua agdo que todos os Mundos manifestos sao criados e subsistem: © divino arquetiptco, os espirituais (0 angélico e o infernal) eo mundo material. O que varia de mundo para mundo é a intensidade delas, é a violéncia de seu combate e a corporalidade delas produzida. Boehme também chama estas sete forgas de Deus de qualidades, de fontes, de espi- ritos, fontes-espirito ou formas, dependendo do momento em que sao tomadas. Cabe ressaltar aqui que na Aurora Nascente, e apenas nesta obra, Boehme as apresenta de maneira um pouco diferente: como segunda forga coloca a qualidade doce, como terceira a amarga e nao inclui a an- gustia entre as sete principais. Isto ocorre por as sete for- cas serem tomadas num momento hipoteticamente um pouco posterior. Pols como ele mesmo explica no capitulo 15, versiculo 44, a qualidade doce ou a dgua suave sé sur- 7 ge depois da quebra da rude, fria e atrativa adstringéncia pelo relampago de Fogo. Ver também o Glossario no final do livro, item “Qualidades”. Boehme também divide todo esse processo da mani- festacdo divina em trés momentos basicos, que nesta obra ele chama de geragées. A 1* geracdo, a mais interior, de- senrola-se de A a B-2, e € 0 Coracdo, o Filho ou a Luz de Deus; a 2* geracdo, a intermediaria, desenrola-se de B-3 a C-6 e € constituida pelo combate das sete forcas; e a 3? geragdo, a mais exterior, é a tangibilidade ou coporalidade delas resultante. Ver também o Glossario, item “Geracao”. Todavia, como o leitor poderé ver nesta € nas outras obras, nem sempre a ordem das geragées sera esta, mas variara de acordo com o ponto de vista em que forem tomadas. (Nas préximas obras os trés momentos basicos mudarao até de nome e se chamarao Primeiro, Segundo e Terceiro Principio.) Além disso, Boehme repete muitas vezes que s6 descreve as sete forgas ou qualidades da Natureza uma depois da outra para facilitar a compreensao do leitor, pois nao ha primeira, segunda, terceira etc., mas todas estao juntas em toda parte e engendram-se simultaneamente umas as outras. Américo Sommerman 18 A AURORA NASCENTE ou O DESPONTAR DA AURORA isto é, A Ralz DA FILosoFia, DA ASTROLOGIA E DA TEOLOGIA, A PARTIR DO VERDADEIRO FUNDAMENTO Contendo uma descri¢do da Natureza ena qual é explicado 1. Como tudo foi e veio ser no inicio, Il. Como a Natureza e os elementos tornaram-se criaturais, III. O que sao as duas qualidades, boa e ma, das quais todas as coisas tém sua origem, IV. Como essas duas qualidades encontram-se e agem agora, V. O que elas serao no fim dos tempos, VI. O que 0 reino de Deus € 0 reino do inferno sao, VII. E como os homens operam e agem criaturalmente em ambos. Tudo Isso culdadosamente exposto, a partir de um ver- dadeiro fundamento, no conhecimento do Espirito e pelo im- pulso de Deus. POR JACOB BOEHME O Fildsofo Alemao Escrito em Goerlitz, Alemanha, no ano de 1612, na terca-feira seguinte a Pentecostes. 19 PREFACIO DO AUTOR Ao Benévolo leitor 1. Benévolo leitor, comparo toda a filosofia, astrologia, teologia, mais a fonte de que derivam, a uma bela arvore que cresce num soberbo jardim de delicias. 2. A terra onde esta Arvore se encontra Ihe da conti- nuamente sua seiva, que a vivifica, de modo que ela pode crescer por si mesma, tornar-se grande e estender seus majestosos ramos. 3. Ora, assim como a terra, pela sua virtude, opera [ou age] na arvore para que cresca e se desenvolva, assim tam- bém a Arvore com seus ramos age incessantemente com todo o seu poder, para dar bons frutos em abundancia. 4. Mas se a 4rvore vem a dar poucos frutos, e ainda por cima mediocres ou verrugosos, a culpa nao é de sua natureza, nem sua vontade é produzir maus frutos, pois ela € magnifica e de excelente qualidade. A causa disto é ter havido um grande frio, um grande calor, ou outras in- tempéries, ou ter sido atacada por lagartas e insetos, pois as propriedades [ou as influéncias) que as estrelas derra- mam no espaco corrompem-na e nao a deixam dar bons frutos em quantidade. 5. Ora, sua natureza €, a medida que cresce e avanca em idade, dar frutos cada vez mais doces. Da poucos frutos em sua juventude por sua excessiva umidade e pela acerbidade da terra e embora dé muitas belas flores, a maioria de seus frutos caem a medida que crescem, a nao ser que esteja num solo muito bom. ati 6. A 4rvore tem uma qualidade doce e boa, mas por outro lado tem trés outras [qualidades] contrarias aquela, a saber: a amarga, a azeda e a adstringente. Assim tal qual é a rvore, tal sao também seus frutos, até que 0 sol aja neles € os adoce, de modo a thes dar sabor agradavel, ¢ até que tenham for¢a para resistir 4 chuva, ao vento e as tem- pestades. 7. Mas quando a arvore torna-se vetha e seus ramos se ressecam € a Selva nao pode mais elevar-se até as partes mais altas, entéo muitos verdes brotos crescem ao redor do tronco, e, por fim, mesmo sobre a raiz, mostram que esta arvore, outrora um jovem arbusto coberto de soberbos ramos, envelheceu; pois a natureza ou a selva conserva-se até que o tronco tenha se tornado inteiramente seco. Entao deve ser cortado e lancado no fogo. Observa agora 0 que esta comparacao significa. 8. O jardim em que se encontra esta 4rvore significa 0 mundo, o solo significa a natureza; o tronco da arvore, as estrelas; os ramos, os elementos; os frutos que crescem desta arvore, os homens; a seiva na 4rvore, a pura Divin- dade. Ora, os homens sao formados da Natureza, das es- trelas e dos elementos, mas Deus 0 Criador domina ou rei- na em todas estas coisas como a seiva na totalidade da arvore'. 9. Ora, a natureza tem em si duas qualidades, e isto até o julgamento de Deus. Uma amavel, celeste e santa; outra acerba, infernal e colérica. 10. A qualidade boa opera e trabalha continuamente com grande engenho para dar bons frutos* nos quais 0 Espirito Santo reine, e para isso ela da sua selva e sua vida. A qualidade ma também persiste e esforga-se com todo seu poder para sempre dar maus frutos® e para isso 0 deménio lhe fornece seu sumo e sua chama infernal. 11. Agora ambas est4o na 4rvore da natureza, e os homens sao feitos desta 4rvore e vivem neste mundo, neste jardim, entre uma e outra, em grande perigo, expostos ora ao ardor do sol, ora a chuva, ao vento, a neve‘. 12. Ou seja, se o homem eleva seu espirito em diregao & Divindade, o Espirito Santo imediatamente penetra e opera nele; mas se deixa seu espirito mergulhar neste mundo e 22 abandona-o ao poder do mal, entao o deménio e 0 sumo infernal insinuam-se nele e o dominam. 13. Assim como os frutos de uma 4rvore tornam-se verrugosos, enfraquecem e se corrompem quando a geada. o calor ou 0 nevoeiro os atingem, o mesmo se dé com 0 ho- mem quando deixa o deménio e seu veneno reinarem nele. 14. O mal e o bem existem, fermentam e dominam no homem, assim como o fazem na natureza. Mas o homem é filho de Deus, que 0 formou da mais perfeita base ou nucleo [Kern] da natureza, para que reinasse no bem e submetesse o mal. Na natureza o mal esta suspenso ao bem; ele também estA suspenso ao homem, no entanto 0 homem pode submeté-lo. Se eleva seu espirito para Deus, entao o Espiri- to Santo se aproxima dele e ajuda-o a alcangar a vitoria. 15. Assim como na natureza a qualidade boa que vem de Deus e na qual o Espirito Santo tem a soberania esta revestida de poder, para vencer a qualidade ma, assim tam- bém a qualidade colérica [ou m4] tem o poder de triunfar nas almas corrompidas, pois o deménio é um poderoso so- berano na célera e € seu eterno principe®. 16. Ora, pela queda de Addo e Eva o homem lancou-se na qualidade colérica, de maneira que o mal esta suspenso a ele; do contrario® seu impulso e inclinagdo estaria todo no bem. Mas agora ele esta entre ambas {jqualidades], o que fez com que sao Paulo dissesse: Ndo sabets que a quem vos apresentardes como escravos para lhe obedecer, permaneceis escravos daquele a quem obedecets, seja do pecado para a morte, seja da obediéncia a Deus para a jus- tiga (Rm 6,16). 17. Mas como 0 homem tem um impulso ou inclina- ¢ao para ambas as qualidades, isto €, para o mal e para o bem, pode vincular-se Aquela que lhe agradar; pois neste mundo ele vive entre ambas, e as duas qualidades, boa e méa, estao nele. Aquela na qual o homem se move, com esta € imediatamente revestido, seja com a forga santa, seja com a forca infernal. 18. Pois Cristo disse: Meu Pai dard o Espirito Santo dqueles que tho pedirem (Le 11,13). Ademais, Deus orde- nou o homem a fazer o bem e 0 proibiu de fazer o mal, € ainda hoje diariamente o chama, predica, exorta e grita para 23 dirigir-se ao bem. Vé-se bem com isso que Deus nao quer 0 mal, mas quer que Seu reino venha e Sua Vontade se faga assim na terra como no céu. 19. Mas como o homem fol envenenado pelo pecado e deixou tanto a qualidade colérica como a qualidade boa reinarem nele e agora esta meio morto e por sua grande cegueira nao sabe mais reconhecer 0 Deus que 0 criou, nem a Natureza e nem as obras que ela produz; entao, des- de 0 inicio até hoje a Natureza, secundada pelo Espirito Santo que Deus quis the dar, desenvolve toda a sua ativi- dade para gerar e preparar sempre e por toda parte ho- mens sabios, santos e inteligentes, que conheceram a Na- tureza e seu Criador e, através de seus escritos e instru- c6es, foram, em todos os tempos, a luz do mundo. Foi as- sim que Deus estabeleceu a sua Igreja na terra para Seu eterno louvor. Por outro lado, o deménio dirigiu sua raiva e furor contra esta bela arvore’ e destruiu muitos de seus preciosos ramos mediante a qualidade colérica da Nature- za, da qual € principe e deus. 20. Muitas vezes a Natureza preparou esses homens instruidos e inteligentes, notaveis por seus eminentes dons, mas o dem6nio apressou-se em empregar todos os seus esforgos para desgarrd-los pelas paixdes carnais, pelo or- gulho e pela cupidez das riquezas e do poder. Foi assim que dominou neles e a qualidade colérica sufocou a qualidade boa. Foi assim que de seu belo génio, de sua inteligéncia e sabedoria s6 restou maldade e ilusao, e foi assim que vie- ram a desprezar a verdade, a espalhar sobre a terra os maiores erros e a ser os verdadeiros generais do deménio. 21. Pois desde o inicio a qualidade ma na natureza combateu e ainda combate a qualidade boa, e langou-se contra muitos frutos excelentes, que chegou a corromper ainda no ventre materno, como se vé claramente em Caim e Abel, que vieram da mesma mae. Desde o ventre de sua mae Caim era altivo e desdenhoso de Deus; Abel, ao con- trario, era homem humilde e temente a Deus. O mesmo se vé nos trés filhos de Noé, como também nos filhos de Abraao, Isaac e Ismael, e particularmente nos de Isaac, Esati e Jacé6, que lutaram no ventre materno. Por isso Deus disse: Amei a Jaco, e odiei a Esau (Gn 25,23). O que significa 0 podero- 24 so combate que as duas qualidades travaram uma contra a outra na natureza. 22. Pots quando naquele tempo Deus se moveu na natureza e quis manifestar-se ao mundo através dos san- tos homens Abraao, Isaac e Jacé. € erigir sobre a terra uma igreja para Sua gloria e soberania, entao a maldade, junto com seu principe Lucifer, também moveu-se na natureza. Ora, como no homem havia bem e mal, entaéo as duas qua- lidades puderam exercer nele seu regime; por isso na mes- ma mae foram gerados ao mesmo tempo um homem mau e um homem bom. 23. Também se vé com clareza no primeiro mundo’, assim como no segundo’, e isto até a época do nosso tem- po, como 0 reino celeste e o reino infernal tém sempre com- batido um contra o outro na natureza e tem estado numa grande angustia, como mulher no parto. 24. Vemos isto claramente em Adao e Eva. Pois no pa- raiso elevou-se uma 4rvore de ambas as qualidades, boa e m4, com a qual Addo e Eva deviam ser provados para saber se poderiam permanecer na qualidade boa, segundo o angélico modo e forma. Com efeito, o Criador proibiu Adao e Eva de comerem do fruto; mas a qualidade ma na Natureza combateu a qualidade boa e fez nascer em Adao e Eva 0 desejo de comer de ambas. Por isso, receberam no mesmo instante a impressao e forma animal, comeram do mal e do bem, tive- ram de multiplicar-se e viver segundo a maneira dos animais, e muitos preciosos ramos provenientes deles pereceram. 25. Vé-se além disso como Deus agiu na natureza atra- vés do nascimento dos patriarcas no primeiro mundo: Abel, Sete, Enés, Caina, Malaleel, Jared, Enoc, Matusalém, Lamec e o santo Noé, que espalharam no mundo o nome do Se- nhor e pregaram o arrependimento, pois o Espirito Santo agia neles. 26. Por outro lado, o deus infernal também agiu na natureza, e fez nascer profanadores e escarnecedores da verdade, particularmente Caim e sua posteridade. E ocor- reu com esse primeiro mundo como com uma jovem 4rvore que cresce, verdeja e floresce belamente, mas da poucos frutos bons, por ser de espécie selvagem. Assim, a nature- za deu poucos frutos bons no primeiro mundo, embora te- 25 nha florescido muito no conhecimento mundano € na lu- xuria, que nao puderam tocar o Espirito Santo, o qual con- tudo agia entao na natureza tanto como hoje. 27. Por isso Deus disse: Arrependo-me de ter criado 0 homem (Gn 6,6), e agitou a natureza a tal ponto que todaa carne que vivia na face da terra pereceu, exceto as raizes € plantas, que permaneceram. Com isso podou e talhou a arvore selvagem, para que ela pudesse dar frutos melho- res. Porém, quando esta Arvore cresceu de novo, tornou a dar bons e maus frutos. Entre os filhos de Noé tornaram a ser encontrados profanadores e escarnecedores de Deus, e taramente brotou na arvore um bom ramo que desse al- guns frutos bons e celestes. Os outros ramos sé produzi- ram frutos selvagens, isto €, os pagaos. 28. Mas quando Deus viu que o homem estava assim pervertido em seus conhecimentos, agitou uma segunda vez a natureza e mostrou aos homens como ela continha o bem e 0 mal, para que pudessem evitar o mal e viver no bem. Por Sua ordem o fogo da Natureza precipitou-se so- bre Sodoma e Gomorra, e queimou-as para dar um terrivel exemplo ao mundo. 29. Mas quando a cegueira dos homens tornou-se pre- dominante e eles nao quiseram se deixar ensinar pelo Es- pirito do Senhor, Deus Ihes deu uma lei e preceitos, mos- trando como deveriam conduzir-se, e confirmou essa dadiva com prodigios e sinais, para que o conhecimento do Deus verdadeiro nao se extinguisse. 30. Apesar de tudo isso, a Luz nao se manifestou, pois as trevas e a célera que estao na natureza e sao poderosa- mente governadas pelo seu principe combateram contra esta Luz. 31. Todavia, quando a 4rvore da natureza chegou ao meio da sua Idade, produziu alguns frutos doces e agrada- veis, para mostrar que dali para frente s6 queria dar frutos deliciosos. Pois foi entao que de um doce ramo da arvore foram engendrados os santos profetas, que falaram e pre- garam sobre a vinda da Luz, a qual na seqiiéncia deveria vencer a célera na natureza. 32. Também entre os pagaos uma luz se elevou na natureza, pela qual conheceram a Natureza € suas obras, 26 embora tenha sido apenas uma luz na natureza selvagem e ainda nao a Luz santa, pois a natureza selvagem ainda nao tinha sido sobrepujada. E a luz e as trevas combate- ram-se até que o Sol tivesse aparecido e, com seu calor, tivesse feito com que esta Arvore desse doces e excelentes frutos. 33. Isto é. alé que o principe da Luz tivesse saido do Coragaéo de Deus e tivesse se tornado homem na natureza, eem seu corpo humano tivesse combatido na natureza sel- vagem com a virtude ou forga da Luz divina. 34. Este Ramo principal e Real'® cresceu e tornou-se uma arvore na natureza, estendeu seus galhos do Oriente ao Ocidente, abracou toda a natureza, e combateu contraa célera que estava na natureza e contra aquele que € seu principe", até ter vencido e triunfado como convém a um rei da Natureza, e ter aprisionado o principe da célera em sua propria casa (SI 98). 35. Quando isto ocorreu, saiu da 4rvore real que havia brotado na natureza quantidade inumeravel de ramos agra- daveis e doces. que tinham todos 0 odor e sabor dessa pre- ciosa 4rvore'®. E embora a chuva, a neve, os granizos e tempestades tenham atingido e arrancado muitos dos ra- mos dessa 4rvore, outros tornavam continuamente a bro- tar em seu lugar. Com efeito, a cdlera na natureza e seu principe suscitaram tantas intempéries e excitaram tantas tempestades mescladas com relampagos, granizos e tro- voes, que muitos dos principais ramos dessa excelente ar- vore foram quebrados. Mas esses mesmos ramos tinham um sabor tao celestial, doce e delicado que a lingua de ho- mem algum, sequer a de anjo algum, seria capaz de expres- s4-lo. Pois tinham em si a poderosa virtude que devia ser- vir para a cura do selvagem pagao. Ao comer dos ramos dessa 4rvore o pagao era libertado do selvagem fermento da natureza no qual tinha nascido, tornava-se um delicio- so ramo dessa deliciosa 4rvore, florescia na arvore e dava frutos suculentos como a propria arvore real. 36. Por isso muitos pagdos correram para essa admi- ravel 4rvore & qual pertenciam os soberbos ramos que 0 principe das trevas havia arrancado pela forga de suas tem- pestades. Aqueles dos pagéos que sentiram o odor desses 27 ramos arrancados foram curados da selvagem cdlera que receberam de sua mae’?. 37. Mas quando o principe das trevas viu que os pa- gaos lutavam e contendiam pelos ramos e esqueciam a arvo- re, percebeu o enorme prejuizo e dano que eles se faziam, suspendeu suas tempestades contra 0 Oriente e 0 Meio-dia [ou Sul], e colocou sob a Arvore um comerciante que apa- nhava os ramos que caiam da preciosa 4rvore. 38. E quando os pagaos vinham e pedtam os virtuosos € suculentos frutos, esse comerciante apresentava-os e ofe- recia-se para vendé-los por dinheiro, fazendo assim dessa preciosa arvore uma especulacao de usurdrio. Pois o prin- cipe da cdélera assim o exigia de seu comerciante, porque a arvore brotara em seu campo’? e era muito contraria ao seu solo. 39. E quando os pagaos viram que os frutos da precio- sa arvore estavam expostos para serem vendidos por dinhei- ro, vieram em grande numero ao comerciante e compraram do fruto da arvore; e também vieram de ilhas distantes e das extremidades do mundo com o mesmo objetivo. 40. E quando o comerciante viu que sua mercadoria era estimada e desejada, procurou um meio pelo qual pu- desse amontoar para seu mestre'' um grande tesouro e enviou mercadores para todos os paises, para oferecerem e€ elogiarem sua mercadoria. E vendeu frutos que nao eram provenientes da boa arvore como sendo bons, buscando apenas aumentar 0 tesouro do seu mestre. 41. Mas todos os pagaos, todas as ilhas e povos que moravam na terra haviam nascido da 4rvore selvagem que era boa e ma, por isso eram meio cegos e nao discerniam a arvore boa — que no entanto estendia seus ramos desde 0 Oriente até o Ocidente —, do contrario nao teriam compra- do da mercadoria falsificada. 42. Mas como eles nao conheciam a preciosa arvore, que no entanto estendia seus ramos sobre todos eles, uma multidao deles correu atras dos mercadores e comprou da mercadoria alterada e falsificada no lugar da boa. presu- mindo que seria util para sua satide. Mas como era a boa arvore que todos eles ardentemente buscavam, muitos da- queles que se haviam dirigido a ele {ao comerciante] foram 28 curados, pelo grande poder de seu desejo. Foi a fragrancia da Arvore, que pairava sobre eles, que os libertou da célera e da sua selvagem origem, ¢ nao a mercadoria falsificada dos mercadores. Isto continuou por muito tempo. 43. Quando o principe das trevas, que é a fonte da célera, da maldade e da corrupg¢ao, viu que os homens eram curados de seu veneno e de sua qualidade selvagem pela fragrancia da excelente Arvore, ficou furioso e plantou, para os lados do Norte, uma 4rvore selvagem, que brotou da célera da natureza, ¢ fez esta proclamagao: "Eis a arvore da vida. Quem quer que comer dela sera curado e vivera eter- namente”. Pois era selvagem o lugar onde a arvore selva- gem crescera, e ali os povos nao haviam conhecido a verda- deira Luz de Deus desde 0 inicio [do mundo] até hoje; e a arvore brotou sobre a montanha de Agar, na casa de Ismael o detrator. 44, Mas quando saiu dessa arvore a seguinte procla- macao: “Olhai, eis a arvore da vida", entao os povos selva- gens, que nao nasceram de Deus, mas da natureza selva- gem, correram para essa 4rvore, apreciaram-na e come- ram de seu fruto. E a arvore se desenvolveu muito pelo sumo da célera da natureza e estendeu seus ramos desde 0 Norte até o Oriente e o Ocidente. Todavia, essa 4rvore tinha sua raiz e sua fonte da natureza selvagem, que era boa e ma, e seus frutos eram semelhantes a ela. 45. Mas como todos os homens desse lugar haviam nascido da natureza selvagem, entdo a 4rvore cresceu so- bre todos eles e tornou-se tao grande que seus ramos che- garam até a preciosa regiao ou pais e até debaixo da arvore santa. 46. O que fez com que a 4rvore selvagem se tornasse tao grande foi o fato de todos os povos que estavam sob a arvore boa terem corrido atraés dos mercadores que ven- diam as mercadorias falsificadas, terem comido do fruto corrompido que era ao mesmo tempo bom e mau, acredi- tando que com isso seriam curados, e terem abandonado totalmente a excelente Arvore que estava repleta de celeste virtude. Com isso s6 se tornaram mais cegos e fracos, € eram incapazes de deter o crescimento da 4rvore selvagem do lado Norte, pois haviam perdido o poder. Bem viam que 29 era uma 4rvore selvagem e md, mas estavam muito fracos para impedi-la de crescer; contudo, se nao tivessem corri- do atras da mercadoria falsificada que os mercadores ven- diam e tivessem comido do fruto bom em vez de comerem do mau, ter-se-iam tornado fortes o bastante para se opo- rem a arvore ma. 47, Mas como por seus conceitos e opiniées humanas prostituiram-se com a natureza selvagem nas cobicas de seus coragoes e na hipocrisia, esta natureza selvagem pre- dominou neles e a arvore selvagem cresceu muito sobre eles, sombreou-os a todos e envenenou-os com sua cor- rompida seiva. 48. Pois o principe da célera na Natureza deu de sua seiva a arvore, para infectar os homens que comiam do mau fruto do comerciante. Como abandonaram a 4rvore da vida e seguiam sua propria fantasia, como Eva no paraiso, suas préprias qualidades inatas os subjugaram e os induziram a poderosas ilusées, como disse sAo Paulo (2Ts 2,11). 49. E o principe da célera suscitou guerras e tempes- tades da parte da arvore selvagem. dos lados do Norte, con- tra os povos que nao tinham nascido desta 4rvore selvagem, os quais, em sua fraqueza e impoténcia, foram derrubados por estas tormentas que provinham da arvore selvagem. 50. Ora, o comerciante que se colocara sob a arvore boa usou de hipocrisia com os povos do Sul, do Ocidente e do Norte, exaltou muito sua mercadoria, enganou os sim- ples com suas seduc6es e fez dos que tinham perspicacia seus corretores e mercadores, para também apropriar-se dos ganhos deles. Levou isto tao Jonge que ninguém mais viu ou reconheceu a 4rvore santa, e assim tornou-se pos- sessor de todo o pais. 51. Entéo fez esta proclamagao (2Ts 2): “Eu sou o tronco da 4rvore boa; repouso sobre sua raiz, estou enxertado so- bre a arvore da vida. Comprai da mercadoria que tenho para vos vender; ela vos libertara da vossa origem selva- gem e vivereis eternamente. Sai da raiz da Arvore boa e possuo os frutos da arvore santa; assento-me sobre 0 trono da forca divina e o meu poder se estende desde a terra até o céu. Vinde a mim e obtende por dinheiro os frutos da vida”. 30 52, Entao todos os povos vieram, compraram e come- ram até se fartarem. Todos os reis do Sul, do Ocidente e do Norte comeram do fruto do comerciante, € no entanto vive- ram em grande fraqueza, pois a arvore selvagem do Norte cresceu cada vez mais sobre eles e assolou-os por muito tempo. E houve sobre a terra um tempo de tal desolagao como nao houvera semelhante desde 0 inicio do mundo. Mas os homens viam aquele tempo como ditoso, a tal pon- to se deixaram cegar pelo comerciante que estava sob a arvore boa. 53. Mas ao entardecer a misericérdia divina comoveu- se com os sofrimentos e a cegueira dos homens, e impulsio- nou uma segunda vez a boa, poderosa e divina arvore. En- tao um ramo dessa excelente 4rvore brotou perto de sua raiz, ao qual foram dados a seiva e o Espirito da Arvore; ele falou a lingua dos homens, mostrou a cada um a precio- sa Arvore e sua voz foi ouvida em muitas nagées distantes. 54. Logo os homens correram para ver e ouvir 0 que se passava, entao lhes foi mostrada a preciosa e€ virtuosa Ar- vore da Vida, da qual os homens tinham comido no inicto e os libertara de sua origem selvagem. 55. Ficaram muito satisfeitos e comeram da Arvore da Vida com muita alegria e grande alivio. Esta Arvore da Vida lhes deu novas forcas, eles cantaram um novo cantico em homenagem a verdadeira Arvore da Vida, foram libertados de sua origem ou natureza selvagem e passaram a odiar 0 co- merciante, seus mercadores e sua falsificada mercadoria. 56. E todos aqueles que tiveram fome e sede da Arvore da Vida, e aqueles que estavam sentados no pé, comeram da Arvore santa e foram libertados de sua origem selvagem e da célera da Natureza na qual viviam, aproximaram-se e foram enxertados sobre a arvore da vida. 57. Apenas os mercadores do comerciante, seus parti- dartos na hipocrisia, e aqueles que haviam exercido a usu- ra em seu nome com mercadorias falsificadas, acumulan- do-lhe tesouros, nd4o se aproximaram; pois tinham sido engolfados na usura e na prostituigaéo do comerciante, € estavam mortos de morte. Viviam apenas na natureza sel- vagem. O que os mantinha afastados era sua angustia e vergonha por terem cooperado por tanto tempo com a 31 corrupcgao do comerciante e terem desgarrado as almas humanas, vangloriando-se de estarem enxertados sobre a 4rvore da vida, de viverem na santidade e na virtude divi- na, e de venderem os frutos da vida. 58. Ora, como sua vergonha, suas enganagées e mal- dade foram descobertas, ficaram quietos e permaneceram atras; tinham vergonha de se arrepender de suas abomi- nagées e idolatrias, e assim nado se aproximaram com os que tinham fome e sede da Fonte da Vida Eterna. Por isso sua prépria sede fez com que desfalecessem, sua angustia eleva-se de eternidade em eternidade e sao dilacerados pela sua consciéncia. 59. Quando o comerciante viu que a enganagao de suas mercadorias falsificadas tinha sido descoberta, foi tomado de furor e desespero, dirigiu seus golpes contra o sabio povo que nao queria comprar mais nada dele, fazendo gran- de numero de pessoas santas perecerem, e blasfemou con- tra o verde ramo que brotara da Arvore da Vida. Mas o grande principe Miguel, que esta diante de Deus, veio e combateu em favor do povo santo e venceu. 60. Mas quando o principe das trevas viu que seu co- merciante fora derrubado e sua velhacaria fora descoberta, fez nascer da Arvore selvagem dos lados do Norte tempes- tades contra 0 povo santo, contra o qual o comerciante dos lados do Sul também investiu. Com essas torrentes de san- gue 0 povo santo sé cresceu ainda mais, tornando-se entao o que havia sido no inicio, quando a celeste e preciosa 4r- vore cresceu € subjugou a célera na natureza. 61. Quando a nobre e santa Arvore fol assim revelada a todos os povos, de modo que puderam ver como ela os cobria a todos e derramava sobre todos sua boa fragrancia, € que todos que quisessem comer dela podiam fazé-lo, en- tao 0 povo apressou-se em comer dos frutos que vinham dessa 4rvore e também desejou comer de sua raiz. Os eru- ditos e doutores buscaram esta raiz e tornaram-na objeto de suas disputas. Tao grandes foram as contendas sobre a raiz dessa 4rvore que fizeram com que esquecessem de co- mer do fruto dessa excelente arvore. 62. Mas logo ndo se importaram mais nem com a raiz nem com a 4rvore, pois o principe das trevas tinha outro 32 designio. Quando viu que eles nao queriam mais comer da arvore boa, mas disputavam sobre a sua raiz, compreen- deu bem que tinham perdido as suas forgas e caido e a natureza selvagem predominava de novo neles. Por isso despertou neles o orgulho e cada um acreditou ter esta raiz em suas méos, de modo que deviam olhar para ele, escuta- lo e cumulé-lo de honras. Com isso edificaram para si mag- nificos palacios, em cujo interior serviram seu Deus Mamom’. Isto corrompeu os leigos e fez com que vivessem nas paixées da carne € nos desejos da natureza selvagem, pois passaram a acreditar que, embora se abandonando a dissolugao e a devassidao e estando enterrados na perdi- cao, bastaria confiarem na 4rvore que pairava sobre todos eles que recuperariam a satide. Até chegar o momento de tomarem esta atitude, serviam o principe das trevas se- undo o impulso da natureza selvagem e a preciosa arvore nao passava de uma peca de teatro. Muitos viveram como animais selvagens e se entregaram ao orgutho, a ostenta- cao, a devassiddo. O rico consumiu o suor e o trabalho do pobre, e ainda por cima o atormentou com humilhacoées. 63. Mediante suborno, todas as mas acées eram apro- vadas, as leis eram tiradas das mas qualidades da nature- za, e todos corriam atras do ouro, dos bens, do orgulho, da pompa e da ostentagao. Os pobres nado recebiam nenhum alivio. Os ultrajes, maldigées e pragas nao eram desapro- vados nem considerados como vicios, e assim corrom- piam-se nas qualidades coléricas como os porcos chafur- dam na lama. Assim conduziram-se os pastores com seu rebanho. Mantiveram apenas o nome da preciosa arvore. Seus frutos, virtude e vida eram apenas um véu para seus pecados. 64, Assim 0 mundo viveu naqueles tempos, com exce- gao de pequeno ntmero que germinara entre cada povo da terra, desde o Oriente até 0 Ocidente, em meio a tribula- goes, desprezos e grandes aflicdes. Exceto este pequeno numero que fora tirado de todos os povos, a corrupgao abra- ¢gava o mundo. Todas as nagées estavam sem forga e vi- viam no impulso da natureza selvagem. Aqueles tempos eram como antes do diltvio e do aparecimento da prectosa 4rvore na natureza. 33 65. Mas por que perto do fim [dos tempos] os homens foram tao atraidos pela raiz da arvore? Isto é um mistério que até hoje permaneceu oculto aos sAbios e prudentes, e n@o se revelara sobre os lugares elevados, mas nas humil- des profundezas de uma grande simplicidade, do mesmo modo que a preciosa arvore, com seu cerne e seu coracdo, sempre esteve oculta aos sAbios do mundo. Embora pen- sassem estar sentados sobre sua raiz ou sobre sua copa, tinham diante dos olhos apenas mero fantasma. 66. No entanto, desde 0 inicio até hoje a preciosa Arvo- re nao cessou de trabalhar com a maior atividade em vista de se revelar a todos os povos € a todas as linguas; contra o que o demdnio enfureceu-se como um leao furioso e deba- teu-se com todas as suas forcas na natureza selvagem. Porém, quanto mais os frutos da preciosa arvore demora- vam a vir, mais eram doces; quanto mais tardavam em manifestar-se, com mais abundancia mostravam-se con- tra toda essa maldade e furor do deménio; e isto até o fim, que era o tempo da Luz. 67. Pois da raiz da preciosa arvore brotou um verde tamo, que continha a seiva e a vida da raiz; 0 Espirito da arvore lhe foi dado e ele manifestou com clareza a forca e magnifica virtude da preciosa arvore, como também a Na- tureza na qual havia crescido. 68. Quando isto ocorreu, duas portas se abriram na natureza, a saber, o conhecimento das duas qualidades, boa e ma, e entdo a Jerusalém celeste, como também o reino do inferno, foram manifestados a todos os homens da terra. A Luz e a Voz irromperam nos quatro ventos e 0 ve- lhaco comerciante dos lados do Sul foi posto totalmente a descoberto, mesmo os seus o abandonaram e desenrai- zaram-no de toda a terra. 69. Com este acontecimento a arvore selvagem que esta para os lados do Norte também se ressecou e todos os povos, até nas ilhas mais distantes, viram com espanto e admira- gao a Arvore celeste. O principe das trevas foi descoberto, seus segredos foram desvendados e, como a Luz havia che- gado, os homens que estavam sobre a terra viram e reco- nheceram sua prépria vergonha, ignominia e perdigao. Mas isto durou pouco tempo. Logo os homens abandonaram a 34 Luz e viveram nas atracées da carne, mergulhando na per- dicao. Pois assim como a porta da Luz fora aberta, a porta das trevas também o fora, e de ambas sairam toda espécie de forcas e propriedades que estavam fechadas. 70. Assim como desde o inicio os homens tinham se alimentado da seiva da natureza selvagem e tinham busca- do apenas as coisas terrestres, assim também foi no fim. As coisas nao melhoraram, mas apenas pioraram. 71. No meio desse tempo, grandes tempestades se ele- varam no Ocidente, no Oriente e no Norte. Do Norte veio uma grande torrente, que se dirigiu contra a arvore santa € arrancou muitos de seus ramos; mas no meio da torrente havia uma luz, e com isso a arvore selvagem que estava para os lados do Norte se ressecou. 72, Entao o principe das trevas ficou furioso com a grande comogao da natureza; pois a arvore santa movia-se na natureza como querendo elevar-se pouco a pouco, vivi- ficar-se na gloria da santa majestade divina e expulsar de sia célera que por tanto tempo lhe fora contraria e comba- tera contra ela. 73. A arvore das trevas, da célera, da angustia e da perdicgao também se movia da mesma maneira, como que- rendo inflamar -se a qualquer momento; e ali o principe [das trevas] apresentou-se com as suas legides para corromper o nobre fruto da arvore boa. 74. O estado em que ficou a natureza na qualidade colérica, onde mora o principe [das trevas], foi apavorante, para falar segundo as linguas humanas. Foi como quando vemos se aproximar um tempo ameagador e pavoroso, que se anuncia com muitos relampagos e tempestuosos ven- tos, trazendo com eles 0 terror. 75. Por outro lado, nas qualidades boas em que estava a celeste Arvore da Vida, tudo era doce. gracioso e amavel, como no santo reino da alegria. Estas duas forgcas comba- teram-se poderosamente, até que num piscar de olhos as duas qualidades inflamaram toda a natureza. 76. A Arvore da Vida foi inflamada em sua prépria qualidade pelo fogo do Espirito Santo, e sua qualidade bri- Ihou no fogo do celeste reino de alegria com uma Luz e claridade inexprimiveis. Todas as vozes das alegrias celes- 35 tes, que desde toda a eternidade tinham estado nas quali- dades boas, qualificaram-se, mesclaram-se ou harmoniza- ram-se nesse Fogo, e a Luz da Santa Trindade manifestou- se na Arvore da Vida e preencheu todas as qualidades nas quais residia. 77. A arvore da qualidade colérica, que é a outra parte da Natureza, também foi inflamada, e ardeu no fogo da célera de Deus numa chama infernal. A fonte colérica ele- vou-se para a eternidade e o principe das trevas ficou com suas legides na qualidade colérica, como em seu préprio reino. Nesse fogo foram consumidos a terra, as pedras e€ os elementos, pois queimou-os todos de vez, cada um no fogo de sua propria qualidade, e tudo sofreu a dissolugao'®. 78. Pois entao o Anciao dos Dias, no qual residem to- das as forcas, todas as criaturas e tudo o que pode ser nomeado, pés-Se em movimento, e as virtudes ou forgas dos céus, das estrelas e dos elementos retornaram a sim- plicidade e foram modeladas segundo a forma que tiveram antes do inicio da criagao'®. As duas qualidades, boa e ma, que haviam sido reunidas na natureza foram apenas sepa- radas uma da outra e a qualidade ma foi dada ao principe da maldade e da célera para servir-lhe de eterna morada. Isto € chamado de inferno ou reprovacao, e nao pode mais alcancar nem tocar a qualidade boa, mas € um esqueci- mento de todo o bem, e isto por sua eternidade. 79. Na outra qualidade ficou a Arvore da Vida Eterna, sua fonte provém da Santa Trindade e o Espirito Santo brilha nela. Entao todos os homens que provieram da raga do primeiro homem Adaéo compareceram, cada um segun- do a virtude e qualidade em que haviam crescido sobre a terra. Aqueles que sobre a terra haviam comido da Arvore boa, que se chama JESUS CRISTO, foram desassedentados na fonte da misericérdia de Deus, que Ihes comunicou a alegria eterna. Obtiveram a virtude da qualidade boa, fo- ram recebidos na qualidade santa e perfeita, e cantaram 0 cantico de seu Noivo, cada um segundo o seu tom € o grau de sua santificagao. 80. Porém, aqueles que embora tendo sido engendra- dos nas luzes da Natureza e do Espirito Santo nao tinham conhecido a Arvore da Vida perfeitamente sobre a terra, 36 mas haviam germinado em sua virtude, que cobre com sua sombra todos os homens da terra, como € 0 caso de tantas nacoes, de pagaos e de tantas criancas de pouca idade; es- tes também foram recebidos na mesma virtude em que ha- viam germinado, seus espiritos foram por ela vestidos, e cada qual cantou 0 cantico correspondente a espécie de dom que recebera da poderosa Arvore da Vida Eterna: pois cada qual foi glorificado segundo a sua virtude, medida e proporcao. 81. A Natureza santa. depois de ter produzido na terra bons e maus frutos nas duas qualidades terrestres, produ- zlu apenas frutos deliciosos e celestes. Aqueles dentre os homens que tinham se tornado semelhantes aos anjos, comeram cada qual dos frutos de sua prépria qualidade, e cantaram 0 cAntico de Deus e o cantico da Arvore da Vida Eterna. E no Pai isto foi como um espetaculo ou jogo santo e uma alegria de triunfo; pots todas as coisas tinham sido feitas assim pelo Pai no inicio, e a partir de entao devem permanecer assim em sua eternidade. 82. Quanto Aqueles que sobre a terra haviam germina- do na propriedade [ou qualidade] da Arvore da célera, isto é, aqueles que se deixaram sobrepujar pela qualidade colérica, e endureceram em seus pecados e na maldade de seus espi- ritos, estes também compareceram cada qual em sua forga ou faculdade e foram recebidos no reino das trevas, e cada qual fot revestido pela forca em que havia germinado; e 0 seu rei chama-se Lucifer, um exilado ou expelido da Luz. 83, E a qualidade infernal também produziu frutos, como havia produzido sobre a terra; apenas a qualidade boa foi separada dela, por isso agora esta qualidade infer - nal produziu frutos segundo sua prépria qualidade. E os homens, que entaéo haviam se tornado semelhantes aos espiritos, comeram cada qual do fruto da sua propria qua- Ndade, assim como faziam os deménios. Pois assim como sobre a terra os homens diferem em suas qualidades, tam- bém é assim em meio aos espiritos reprovados. Esta dife- renca também se encontra na gloria celeste dos anjos e dos homens, e isto deve durar em sua eternidade. Benévolo leitor, esta € uma curta introdugao sobre as duas qualidades que est4o na Natureza desde o inicio e nela estarao até o fim. Ela nos ensina como delas resulta- 37 ram dois reinos, um celeste, outro infernal, como elas se movem e se combatem neste tempo, e 0 que elas se torna- rao no porvir. Os contetidos deste livro 84. Dei a este livro o nome de A raiz ou Mae da Filoso- fia, Astrologia e Teologia. Para saber do que ele trata, ob- serva 0 que segue. A Filosofia" trata: I, da forga divina; II. do que Deus é; Ill. de como no inicio a Natureza, as estrelas € os elementos foram criados na esséncia de Deus, da qual todas as coisas tiveram sua origem; IV. de como foram criados 0 céu, a terra e o inferno, como também os anjos, o homem e o deménio, e tudo quanto existe criaturalmente; V. do que sao as duas qualidades da Natureza. Tudo a partir de um verdadeiro fundamento no conhecimento do Espirito, se- gundo o impulso e movimento de Deus. 85. A Astrologia’’ trata: I. das forgas da Natureza, das estrelas e dos elementos; II. de como todas as criaturas provieram dessas forgas; II]. de como essas mesmas forgas estimulam, governam e agem em todas as coisas; IV. de como por meio delas o mal e o bem agem no homem € nos animais; V. de onde vem que o mal e o bem estejam neste mundo" e o governem; VI. e de como os reinos do céu e do inferno subsistem nele'®. 86. Meu propésito nao é descrever o curso, lugar e nome de todos os astros, nem como se dé anualmente suas conjungées, oposigdes ou quadraturas e outras coisas se- melhantes, nem como atuam a cada ano e a cada lua. 87. Coisas que, durante longa seqiiéncia de séculos, pessoas instruidas, inteligentes e entendidas tem subme- tido As suas cuidadosas observacées, seus profundos co- nhecimentos e seus calculos. Ademais, nao estudei essa ciéncia e devo deixar que seja tratada pelos entendidos. Meu proposito é escrever segundo o Espirito € 0 sentido, e nao a partir de especulacées. 88. A Teologia”’ trata: I. do reino de Cristo; Il. do que constitui este reino; III. de como ele foi estabelecido para 38 contrapor-se ao reino infernal; IV. de como ele se agita e combate na Natureza contra 0 reino infernal; V. de como os homens, pela fé e pelo Espirito, podem submeter 0 reino infernal, triunfar na virtude divina e obter no combate a eterna bem-aventuranca como penhor de vitéria; VI. de como o homem langa a si mesmo na perdicao pela agao da qualidade mA, VII. e de qual sera no final a saida de ambas {as qualidades]. 89. O titulo inicial: A Aurora Nascente € um mistério oculto aos sAbios e prudentes deste mundo, que em breve eles préprios experimentarao. Por outro lado, sera um co- nhecimento muito claro, e nado um mistério, para aqueles que lerem este livro com simplicidade, no desejo do Espiri- to Santo, e puserem sua esperanga [de compreendé-lo] ape- nas em Deus”. 90. Nao me proponho a explicar este titulo, mas sub- meté-lo ao juizo imparcial do leitor que neste mundo com- bate na qualidade boa. 91. Se o douto critico que caminha na qualidade colé- rica tomar este livro em suas mdos € 0 ler, 0 livro € ele serao tao opostos quanto o reino do céu e€ o do inferno, que sem- pre se combatem. 12 dira que subo muito alto na Divinda- de e isto nao me convém. 2° que me vanglorio de ter o Espi- rito Santo e que entado teria de agir de acordo com isso e confirma-lo com prodigios ou milagres. 3° que ajo assim por um desejo de obter reputagao. 42 que nao sou bastante instruido para isto. 5° langar-se-a sobre a grande simplici- dade do escritor, como é costume no mundo que sé olha para o alto e despreza tudo o que € simples e pequeno. 92. A estes prudentes criticos oporei os patriarcas do primeiro mundo, que também eram pessoas simples e€ pe- quenas, contra os quais 0 mundo e o deménio se enfure- ciam, como no tempo de Enoc. Quando pregavam podero- samente o nome do Senhor, nao eram arrebatados ao céu com os seus corpos de modo a verem tudo com os seus préprios olhos, mas o Espirito Santo apenas se manifesta- va aos seus espiritos. Vé-se em seguida, no segundo mun- do, que os santos patriarcas e profetas eram todos homens simples e comuns, a maioria deles sendo, inclusive, pasto- res de gado. 39 93. E quando o Messias, Cristo, 0 heréi no combate, revestiu-se da humanidade na natureza, embora fosse o Principe e o Rei do homem, manteve-se na terra numa con- digdo baixa, como um simples criado deste mundo. Assim também seus apéstolos, que em sua maioria nao passa- vam de pobres pescadores. Sim, o proprio Cristo agradece ao seu Pai celeste por ter ocultado estas coisas aos sabios e entendidos deste mundo, e té-las revelado aos pequenos (Mt11[,25)). 94. Vé-se, ademais, como eles também eram pobres pecadores e tinham em si ambos os impulsos, bom e mau, que agem na natureza. Ora, se eles também reprovaram e pregaram contra os pecados do mundo e mesmo contra seus proprios pecados, foi apenas pelo impulso do Espirito Santo e nao pela gléria va. Com efeito, pela sua propria forga e virtude eles nada tinham e nao podiam entrar nos mistérios de Deus, mas tudo ocorria neles pelo impulso divino. 95, Eu também nao posso me vangloriar de nada, nem dizer ou escrever outra coisa de mim, sendo que sou um homem simples e, além disso, um pobre pecador, que dia- riamente deve dirigir a Deus esta prece: Senhor, perdoa as nossas ofensas!, e dizer como os apéstolos: O Senhor, tu nos redimiste com teu sangue! Tampouco subi ao céu, nem vi todas as obras e criagdes de Deus, mas esse céu revelou- se em meu espirito para que eu reconhecesse em espirito as obras e criagées de Deus. A vontade que me impeliu nao foi uma vontade natural, mas o impulso do Espirito, e por isto também tive de suportar muitas desastrosas investidas do deménio. 96. Mas 0 espirito do homem nao provém apenas das estrelas e dos elementos, também ha oculta nele uma cen- telha da Luz e da forga divina. Nao é palavra vazia a do Génesis (1,27): E Deus criou o homem a Sua imagem; a ima- gem de Deus o criou. Pois tem um sentido preciso, a saber, que o homem é criado da esséncia da inteira Divindade. 97. O corpo provém dos elementos, por isso também precisa de alimento elemental. A alma nao tem sua origem apenas do corpo, e embora nasca no corpo e seu primeiro inicio seja o corpo, contudo em si também tem sua fonte do 40

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