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04/04/2023, 13:21 Stálin é o único leitor que tinha na estante autores que mandara matar - 06/03/2023 - João Pereira

João Pereira Coutinho - Folha

João Pereira Coutinho (/colunas/joaopereiracoutinho/)


Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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Stálin é o único leitor que tinha na estante autores


que mandara matar
Em relação aos santos do seu relicário, nunca há uma palavra de discórdia

6.mar.2023 às 19h47

EDIÇÃO IMPRESSA (https://www1.folha.uol.com.br/fsp/fac-simile/2023/03/07/)

Sempre tive uma curiosidade mórbida pela biblioteca dos ditadores. Mórbida
porque sei que vou encontrar lixo, não obras refinadas de autores refinados.
Mas insisto no meu masoquismo literato.

Anos atrás, escrevi nesta Folha sobre a biblioteca de Hitler.


O velho
(https://www1.folha.uol.com.br/colunas/joaopereiracoutinho/2015/05/1624654-adolf-hitler-leitor.shtml)

Adolfo teria uns 16 mil volumes. Sobreviveram 1.200, hoje nos Estados Unidos.
Mas uma análise do espólio e das anotações que ele foi espalhando pelas
páginas permitia reconstruir a cabeça do personagem. Conclusões?

Hitler era um mau leitor. Não apenas pelo lixo que consumia (obras de
ocultismo, espiritismo, prosa racista de Madison Grant, o nacionalismo rasteiro
de Otto Dickel), mas porque gostava de canibalizar o trabalho dos outros para
reforçar os seus preconceitos e delírios de base.

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Um bom leitor é um ser omnívoro, que gosta de nadar onde não dá pé, movido
por uma curiosidade vadia. A curiosidade de Hitler era nula porque os fanáticos
são desprovidos de curiosidade ou imaginação.

Podemos dizer quase a mesma coisa sobre Stálin. Nos 70 anos da morte do
tirano, resolvi espreitar a sua biblioteca através do livro recente de Geoffrey
Roberts ("A Biblioteca de (https://zigurate.pt/a-biblioteca-de-estaline)Estaline (https://zigurate.pt/a-
biblioteca-de-estaline)", edição portuguesa pela Zigurate). Aconselho vivamente.

Stálin vence Hitler em quantidade: teria 25 mil livros, periódicos e panfletos.


Mas depois, quando vemos a lista, confirmamos que o mundo de Stálin era tão
estreito como a sua cabeça.

Tirando algumas concessões ao romance e à historiografia ocidental, a


biblioteca é esmagadoramente soviética, ou seja, pós-1917. Poesia, nem vê-la
(idem para Hitler). Em termos de idiomas, temos o russo e o georgiano, nada
mais.

Ilustração de Angelo Abu para a coluna de João Pereira Coutinho de 6.mar.23 - Angelo Abu

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E, na galeria de autores, lá encontramos a fauna do costume: bolcheviques,


marxistas diversos, socialistas. Por ordem decrescente, Lênin leva a copa;
depois vem o próprio Stálin, Zinoviev, Bukharin, Marx, Kamenev, Molotov,
Trotsky, Kautsky, Engels, Rykov, Plekhanov, Rosa Luxemburgo. Originalidade?

Apenas uma: Stálin é talvez o único leitor que tinha na estante autores que
mandara assassinar. Imagino que isso seja o sonho úmido de muitos críticos
literários.

Mas é quando abrimos os livros e nos confrontamos com os sublinhados e as


anotações de Stálin que as afinidades com Hitler se tornam manifestas. Em
relação aos santos do seu relicário, nunca há uma palavra de discórdia, de
dúvida, de hesitação. Os textos de Marx ou Lênin aparecem imaculados.

Como conta Geoffrey Roberts, a fidelidade de Stálin ao cânone era tão intensa
que, muitas vezes, nas discussões políticas, o ditador tinha por hábito tirar da
estante um volume de Lênin e proclamar: "Vejamos o que tem Vladimir Ilyich a
dizer sobre essa questão". Um televangelista não diria melhor.

Já sobre os inimigos, reais ou imaginários, a marginália era generosa em


sarcasmos e grosserias. Um exemplo revelador da "forma mentis" de Stálin
acontece na leitura de Karl
(https://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/k/kautsky.htm)Kautsky

(https://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/k/kautsky.htm),
esse "renegado" que cometeu a
heresia suprema de criticar a seita. Para Stálin, Kautsky era um "tolo" por
sugerir que o conhecimento humano é sempre limitado e provisório.

Não era. O catecismo marxista-leninista era a última palavra –e só em questões


de pormenor, mais por conveniência do que por discórdia substancial, Stálin se
desviava do carril.

No fundo, e tal como Hitler, os livros serviam para reforçar dogmas


previamente adotados, o que nos leva para um território que não é mais
político nem filosófico, muito menos "científico", mas religioso.

São vários os autores que sempre olharam para o nazismo e para o comunismo
como "religiões seculares": escatologias que mimetizam a velha religião cristã,

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substituindo apenas o reino de Deus pelo reino da raça ou do proletariado. A


biblioteca e os hábitos de leitura de Hitler e Stálin confirmam.

Escusado será dizer que ambos deixaram seguidores. Não falo dos seguidores
mais óbvios –neocomunistas ou neonazistas.

Falo de uma parte da esquerda e da direita contemporâneas, fechadas nas suas


bolhas cognitivas, com as suas crenças constantemente reforçadas pelo "echo
chamber" (câmera de eco) das redes sociais.

É assim que os vejo: pequenos Hitlers e pequenos Stálins, sem mundo, sem
abertura ao mundo, sem curiosidade pelo mundo, cada um com a sua fé. Ou,
como na piada, cada um com as suas fezes.

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