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AFRODITE EM KASSEL

“…dans notre societé tellement civilisé c’est necèssaire pour moi vivre la vie d’un sauvage.”
(Gustave Courbet)

Newton Scheufler
Coordenador da Casa da Mão
Professor de Elementos de Estética e Comunicação
Curso de Comunicação Social da
Universidade Católica de Brasília

Final da década de 90, final do século XX; cidade de Kassel, Alemanha, a


“Documenta” , um dos mais importantes eventos de arte contemporânea da Europa. Em
uma das salas de exposição, enormes painéis de quase 5 metros de altura exibem a atriz
pornô italiana, Cicciolina, em pleno desenvolvimento de suas atividades cinematográficas.
A instalação é complementada por bonecos em fibra de vidro, da atriz e de seus
coadjuvantes, apresentados em situação de “embate corporal”.
Estão ali o sexo e a arte “[pós]modernamente” associados. Contemporaneamente,
explícita-se aquilo que no ocidente sempre esteve [e nunca esteve] nas entranhas do reino
das artes plásticas. Terá a Vênus de Botticelli se transformado em atriz pornô? Tornaram-se
as Musas entidades pornográficas? Estaria o “Sentido da vida”, pintado por Courbet no
século XIX, manifesto entre as pernas de uma italiana no século XX?
O quê, em alguns milênios de produção artística da humanidade, transformou a busca
grega da bela forma, da perfeição do corpo, do prazer erótico e estético, em prazer sensual
da carne exposta? Pensar nos painéis fotográficos de Cicciolina, montados em uma mostra
de arte contemporânea, é pensar em nós mesmos, em nosso tempo, no espaço que nos
envolve, é pensar em nossos desejos e rejeições: arte e erotismo, arte e pornografia, arte e
desejo, arte e prazer estético, arte e prazer carnal...
Meu pai era desenhista de nus artísticos femininos, vários livros sobre o assunto
estavam nas estantes de minha casa, alguns deles guardo até hoje. Quando menino eu os
tomava escondido e recolhia-me em algum canto tranqüilo. Avidamente eu os folheava,
maravilhado com o mistério e a beleza. Quase todas as noites tinha sonhos eróticos... Foi
minha iniciação ao corpo feminino, mas também aos estudos anatômicos e à arte. Mas, o
que era mistério e revelação tornou-se, nos dias de hoje, uma manifestação reveladora de
nossas incertezas, de nossa falta de esperança no humano[?]... Em minha infância os
primeiros contatos com a arte fizeram-me ver mais longe, fizeram-me buscar a distância e o
conhecimento. Talvez seja pertinente perguntar: a que tipo de conhecimento a sedutora
vagina rosada exposta na Documenta de Kassel pode nos conduzir?!?
Algumas verdades são sérias, outras são serenas, algumas choram, algumas riem e
outras até mesmo sabem dançar. O bom e velho Nietzsche deixou-nos uma pequena
verdade, mas acolha-a junto ao peito para que não grite: ver a ciência com a ótica do
artista, mas a arte, com a da vida... Que os gregos nos perdoem, mas Afrodite está morta e
enterrada sob os alicerces de algum sex-shop.

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