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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS - ICH


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO

FLÁVIA RABELO BEGHINI

RELIGIÕES E O MOVIMENTO DOS SEM-TERRA:


Controvérsias entre hermenêuticas católicas e evangélicas sobre a luta pela terra

Anteprojeto de Pesquisa apresentado ao


Programa de Pós-Graduação em Ciência da
Religião como requisito obrigatório para seleção
de Mestrado em Ciência da Religião da
Universidade Federal de Juiz de Fora.
Área de Concentração: Religião, Sociedade e
Cultura.
Orientador Pretendido: Prof. Dr. Emerson
Silveira.

Juiz de Fora - MG
2021
2

DELIMITAÇÃO DO TEMA
Durante nossa trajetória, ligada a vários movimentos sociais, começamos a nos
interessar pelo estudo das conexões entre religião e política, especialmente a luta pela terra,
área em que os dois campos se cruzam desde sua origem. A questão emblemática pela posse
da terra no Brasil, em seus aspectos práticos, de ordem social, religiosa e política, trouxe-nos
várias reflexões. Porém, vale ressaltar que, para estudar tais conexões, é preciso trazê-las à luz
dos estudos da Ciência da Religião, campo acadêmico que, segundo o entendimento de José
(2018), é um "politeísmo-pluralismo metodológico”, ou seja, uma “condição sem a qual não é
possível compreender e explicar a religião ou as religiões com a densidade necessária que os
contextos contemporâneos demandam, tensão e oposição entre os métodos e teorias” (Idem,
p.3259). Assim, é necessário utilizar o caráter multidisciplinar que a Ciência da Religião nos
proporciona, para dar conta das questões religiosas imbricadas à pesquisa, que compreende o
Movimento dos Sem-Terra (MST) como um fenômeno político, religioso e ideológico em
disputa, e a que chamamos de controvérsias hermenêuticas em um assentamento do MST.
O MST constitui um movimento de trabalhadores sem-terra de todo o país, o qual se
juntou a iniciativas de ideologia marxista, tornando-se o principal articulador da Reforma
Agrária no Brasil, conforme descreve Netto (2001; 2007). O movimento teve seu início
marcado pelas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) da Igreja Católica, caracterizando-se,
portanto, por uma gênese intimamente ligada a movimentos religiosos vinculados à Teologia
da Libertação Católica (TLC)1, nas décadas de 1950 e 1960. Essa trajetória resultou na criação
da Comissão Pastoral da Terra (CPT). João Pedro Stédile, antigo dirigente nacional do MST e
assessor da CPT, pontua: “[...] se tu fizeres uma análise crítica da Teologia da Libertação, ela
é uma espécie de simbiose de várias correntes doutrinárias. Ela mistura o cristianismo com o
marxismo e com o latino-americanismo [...]” (STÉDILE apud NETTO, 2007, p. 6). Sobre a
relação existente entre fé e marxismo, o monge Marcelo Barros, em uma entrevista a Netto
(2007), explica:

Marx era judeu. Conforme certos analistas, as intuições, críticas ao capitalismo e


opções propostas por Marx têm então uma fonte cultural comum à Teologia da
Libertação que tem seus fundamentos na Bíblia e na cultura judaico-cristã. [...] O
MST retoma elementos da análise marxista a partir das culturas populares
brasileiras, das quais o cristianismo é elemento integrante. A Teologia da Libertação

1 “O fenômeno da Teologia da Libertação Católica, um movimento religioso muito vinculado às lutas populares
e que buscou, nas análises socialistas, especialmente no marxismo, o escopo material para as suas análises
sociais e econômicas” (NETTO, 2007, p.1).
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parte de uma análise da realidade e por isso tem em comum alguns elementos, mas
de forma própria [...] (p.13).

Essa análise reforça o elemento religioso presente na questão da posse da terra no


Brasil, já que o tema foi incluído ao movimento católico progressista, a saber: a Teologia da
Libertação Católica. Andrade e Gomes (2011), em uma análise histórica do movimento,
demonstraram que, embora estivesse presente em grande parte das lutas sociais desse período,
em situações de conflito, a Igreja Católica colocava-se, preferencialmente, ao lado dos grupos
dominantes. Seus estudos concentram-se no final do século XX, momento em que as questões
sociais adentraram na Igreja.
A década de 1960 trouxe à tona debates a favor de reformas, tais como: agrária,
cultural, educacional, dentre outras. Todavia, a Ditadura Militar sufocou qualquer tentativa de
sucesso destes movimentos. Além disso, após o golpe de 1964, toda forma de alinhamento
com ideias marxistas foi suprimida e reprimida. Já na década de 1980, movimentos pela volta
da democracia ganharam fôlego e culminaram com as Diretas Já. A Nova República deu
origem à Constituição de 1988, com forte matriz social, inclusive no que se referia ao uso
social da terra2.
Nos últimos anos, ocorreu um crescimento de grupos evangélicos no MST, o que, para
Ferreira (2016), em uma entrevista concedida à revista IstoÉ, “trata-se de um novo agente
religioso que reivindica políticas sociais para o desenvolvimento rural”. Nesse sentido, no
seio da luta pela terra, nota-se um crescente agrupamento de pessoas das mais variadas
crenças, dentre as quais podemos destacar as igrejas protestantes pentecostais, tais como a
Assembleia de Deus, a Congregação Cristã do Brasil e algumas vertentes batistas. No entanto,
"apesar de vários evangélicos participarem do movimento, nenhuma denominação apoia
oficialmente o MST”, esclarece Ferreira, na mesma entrevista. Netto (2007) diz que “o
crescimento das Igrejas Pentecostais Evangélicas se mostra vinculado mais à dimensão
espiritual do que com as lutas políticas comprometidas com a transformação social'' (p.331).
Para ele, esses indivíduos passaram a fazer parte do MST em busca de uma coletividade, num
contraponto em relação às religiões consideradas mais individualistas, como é o caso de
algumas igrejas cristãs evangélicas.
Portanto, conceitualmente, esses grupos religiosos evangélicos se opõem às ideais
marxistas, baseando-se em narrativas que combatem a relação entre cristianismo e marxismo,

2 “Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que
não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com
cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua
emissão, e cuja utilização será definida em lei” (BRASIL, 1988).
4

como explica o doutor em Sociologia Thadeu Silva, em entrevista à Revista Guiame (2018).
De acordo com ele, a ideologia marxista, tal como proposta por Karl Marx, não é compatível
com a visão cristã, o que faz com que protestantes e evangélicos não se identifiquem ou se
engajem com movimentos de propostas marxistas. Entretanto, não foi possível identificar
nenhuma fonte científica defendendo tal ideia, o que justifica a necessidade de uma pesquisa
mais aprofundada.
Apesar dessa dicotomia, é notável a presença de grupos evangélicos no MST. Com
base nestas informações e diante desta nova realidade, marcada pela presença religiosa plural
no MST, entramos em contato com a coordenadora geral do assentamento Denis Gonçalves,
no município de Goianá, cidade próxima a Juiz de Fora-MG. Num primeiro momento, por
contato telefônico, a coordenação regional relatou-nos dificuldades em lidar com a questão
religiosa, em vários sentidos. Semanas depois, pudemos participar de uma reunião de
coordenação no assentamento, conhecendo integrantes da coordenação local e os próprios
assentados. Nesse momento, pudemos explicar nossa hipótese de pesquisa, que deu origem a
este anteprojeto. Nossa pergunta principal consistia em entender como os evangélicos lidavam
com a questão marxista da TLC.
Uma senhora de meia idade, evangélica, disse não haver dificuldades em lidar com a
questão da dicotomia entre religiosidade e ideologia dentro do MST. Sobre a questão dos
LGBTQIA +, assunto que surgiu espontaneamente, ela relatou: “apesar de não concordar com
as práticas sexuais dos LGBTQIA +, por questões religiosas, eu os respeito”. Logo em
seguida, outra assentada pediu a palavra. Ela demonstrou conhecer profundamente a teoria
marxista, a mística e sua relação com a Teologia da Libertação3. Nesse momento, percebemos
que o assunto já fazia parte de conversas oficiais e não oficiais, uma vez que os grupos
evangélicos discutiam assuntos relativos à religião e à política no assentamento em questão.
Mais adiante, um coordenador local do assentamento, que esteve, naquela época,
organizando uma ocupação em Coronel Pacheco (localidade também próxima a Juiz de Fora-
MG), relatou que os evangélicos que estavam na ocupação tinham dificuldade, na

3Segundo Netto (2007, p.337), “as atividades místicas começaram a ter influência no MST desde as primeiras
ocupações de terra. Por sua estreita vinculação com as Igrejas, os rituais místicos eram muito vinculados à fé.
Essa vinculação entre a luta pela terra e a Igreja Católica obviamente implicou o envolvimento de padres e
bispos nas lutas do MST, sendo que em 1980, em Itaici, eles elaboram um documento, pedindo o envolvimento
de agentes pastorais na luta pela terra. Porém, na trajetória de sua consolidação, o MST passa a usar a mística
com caráter laico, centrado nas questões políticas e na organização para as conquistas da terra. Assim, os
símbolos do MST, como a bandeira, o hino, o boné, as músicas, as palavras de ordem, os teatros e o jornal, as
marchas e os frutos do trabalho, como as sementes, tornam-se símbolos presentes em todas as manifestações.
Este ecletismo, que ume fé religiosa, atividades místicas para conquistas materiais e luta pelo socialismo. [...]
não existe contradição nenhuma nisso. Ao contrário, a nossa base usa a fé religiosa que tem para alimentar a sua
luta, que é uma luta contra o estado e contra o capital”.
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compreensão moral, com a ocupação de uma terra que não os pertencia. O sentido da dúvida
seria, segundo o coordenador, “de se estar tomando o que seria de outra pessoa”, no caso, a
terra.
Para os evangélicos, a abordagem teológica que trata da posse da terra é colocada
como algo novo, especialmente em um contexto institucional protestante, que tende a
“demonizar” movimentos como o MST. Diante desse fato, o coordenador local relatou que,
para resolver o problema, agora teológico, utilizou da história bíblica de Gênesis, 12, em que
Abraão recebe uma ordem divina para lutar e conquistar sua terra e para nela cuidar de sua
família.
Esta narrativa permite vislumbrar a ideia defendida por Ferreira (2016), que também
acredita em algum tipo de mudança na interpretação da Bíblia por parte dos evangélicos que
abraçaram a luta do MST. Na mesma entrevista à Revista IstóÉ, ele sinaliza que talvez esses
indivíduos tenham começado “a interpretar a Bíblia pelo próprio olhar e não mais pelo viés do
líder religioso”. Após nossa participação na reunião in loco, alguns assentados, antigos
empregados da fazenda, descreveram fato semelhante em relação ao sentimento conflituoso
de ocupar uma terra que pertencia ao antigo patrão.
Passados quatro anos desse primeiro contato com o MST, experimentamos uma
mudança no cenário político brasileiro, a partir da ascensão de um governo contrário aos
movimentos sociais. O atual presidente Jair Messias Bolsonaro, eleito em 2018, nunca
escondeu sua rejeição a esses movimentos. Inclusive, sempre externou comentários contrários
ao MST, como: “a propriedade privada é sagrada. Temos que tipificar como terroristas as
ações desses marginais. Invadiu? É chumbo!”, afirmou Bolsonaro, em palestra sobre política e
economia na Associação Comercial do Rio de Janeiro (RIBEIRO, 2018). Mesmo depois de
eleito, Bolsonaro não mudou o tom, continuando a fazer declarações e tomar atitudes políticas
que visam atacar as comunidades dos trabalhadores do MST em todo o país. Assim, o número
de ocupações do MST, após o governo Bolsonaro e seu discurso de criminalização, perdeu
força.
Em conversas com a atual e a antiga coordenação regional do assentamento, desde a
eleição de Bolsonaro, pudemos constatar que está instalado um mal-estar entre os assentados,
devido à polarização política e social. Nesse sentido, “a religião que parecia ter se restringido
à esfera privada e individual pelo processo de secularização reconfigurou-se e atua sobre
aquilo que se define como público, mais especificamente as normas em forma de lei ou de
costumes” (ALMEIDA, 2019, p.208). Essa situação levou alguns trabalhadores a romperem
com suas igrejas evangélicas, para continuarem no movimento. Mas há, também, aqueles que
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votaram no atual presidente. Dados revelam que dois terços dos evangélicos votaram desta
forma (DATA FOLHA apud ALMEIDA, 2019, p. 206).
É importante registrar que o atual governo se aproxima de movimentos religiosos
cristãos considerados mais conservadores, desde o período anterior à eleição (ALMEIDA,
2019). Como afirmam Dalmoli e Frigo (2007), “no Brasil, atualmente, é visível a ascensão do
conservadorismo político entrecruzado com o fundamentalismo religioso. Aos poucos, a
direita liberal e conservadora foi garantindo a liderança em espaços políticos utilizando a
violência, mesmo que simbólica, como estratégia de afirmação neste campo” (p. 7).
Com base em referências como Netto (2001; 2007; 2019), Boff (1987) e Ferreira
(2006), dentre outros, fica visível que o objeto religião está presente em toda a construção
ideológica do MST. Hoje, o movimento é plural, contando com evangélicos que, no novo
cenário político, encontram-se divididos, a favor ou contra o novo governo. Essa nova política
de Estado tem impactado diretamente as ações nos assentamentos e ocupações. Segundo o
atual dirigente nacional do MST, João Paulo Rodrigues, “os primeiros da lista são os
indígenas, mas vão chegar em nós da mesma forma que chegaram neles” (DOLCE, 2019).
Esta pluralidade gera conflitos de cunho principalmente ideológico no MST, assim
como declara Berger (1985): “o pluralismo cria uma condição de incerteza permanente com
respeito a quem vem se estabelecendo e conversando com o novo modo que se deveria crer e
ao modo como se deveria viver [...]” (apud BERGER, 1985, p.195). Segundo Ribeiro (2005),
nos anos de 1980, os encontros ecumênicos entre evangélicos e católicos tinham como
esforço a construção de uma teologia voltada principalmente para as causas sociais.
Assim, no contexto do catolicismo, o diálogo entre cristãos e marxistas foi
inaugurado, dando origem ao que, hoje, conhecemos como TLC. Esse movimento é o ponto
de partida histórico para os movimentos da Reforma Agrária no Brasil, segundo Netto (2017).
Um marco para o avanço e organização da questão agrária aconteceu em 1980, na 18ª
Assembleia do Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em que foi formulado e
aprovado um documento intitulado Igreja e Problemas da Terra. Este documento de apoio às
lutas dos camponeses demonstrava uma nova ótica da Igreja Católica perante a Reforma
Agrária. Esse é o passo essencial para formação do MST, encabeçado, na época, pela
Comissão da Pastoral da Terra (CPT).
A CPT teve sua origem em 1975, durante o Encontro de Bispos e Prelados da
Amazônia, convocado pela CNBB. Em plena Ditadura Militar, ela foi uma resposta à grave
situação vivida pelos trabalhadores rurais, posseiros e peões, sobretudo na Amazônia. Esses
indivíduos eram explorados em seu trabalho, submetidos a condições análogas ao trabalho
7

escravo e expulsos das terras que ocupavam. O objetivo da Conferência foi reafirmar a
espiritualidade e o caráter pastoral da Igreja, além de fortalecer as comunidades e seu
protagonismo (COMISSÃO PASTORAL DA TERRA, 2010).
Apesar do marco legal de 1988, os governos democráticos que se sucederam tiveram
tímidos avanços na área da reforma agrária. Hoje, com o agravamento das desigualdades
sociais, a luta pela terra (que, no passado, ganhou força e atraiu pessoas que se encontravam
em situação de desemprego ou subemprego) tem se tornado espaço perigoso, devido aos
constantes ataques efetuados ou incitados pelo atual governo. Este não tem medido palavras
para atacar o movimento de inspiração marxista.
Como afirma Brandão (2014, p.2), “[...] para grande parte dos religiosos, o suposto
ateísmo inato a essa filosofia representa o cerne de sua oposição aos pressupostos do
materialismo histórico e dialético”. Também é possível perceber interpretações que
questionam a luta de classes e consideram o marxismo “[...] praticamente uma convocação às
pessoas para que lutem unidas contra o capitalismo” (LEMOS, 2018). Chamo novamente a
atenção para a falta de fontes científicas para sustentar tais argumentos contrários à TLC e ao
marxismo.
Na TLC, temos Dom Tomás Balduíno4, que teve um papel de destaque no que se
refere a questões referentes à reforma agrária. Em uma entrevista a Netto (2006), Balduíno
caracterizou o capitalismo como o inverso do socialismo, considerando-o o inverso das
propostas cristãs, por ser um sistema baseado no individualismo, na concorrência e na
exploração do outro, ou seja, completamente contrário à solidariedade pregada no evangelho.
Neste ponto, a ideia protestante, defendida no clássico A Ética Protestante e o Espírito
do Capitalismo, de Max Weber, esbarra nas ideias da TLC. O livro descreve um modelo
socioeconômico em que os “crentes” (protestantes ou evangélicos) seriam considerados bons
trabalhadores e, portanto, aptos para o acúmulo do capital. Em uma análise deste entrelaço,
Netto (2006) destaca:

Constitui parte dos estudos sociológicos a recuperação da história das lutas


camponesas motivadas e impulsionadas por motivações religiosas, assim como o
papel que as religiões desempenham no conformismo e na conformação de novas
éticas, como se encontra no clássico trabalho de Max Weber acerca da ética
protestante no início do capitalismo. Quase sempre vinculada ao poder dominante,
as igrejas buscaram adequar os sujeitos sociais às normas das sociedades nas quais
eles se encontravam (p. 33).

4 D. Tomás Balduíno foi um dos responsáveis pela fundação do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e da
Comissão Pastoral da Terra (CPT).
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Diante de fatos controversos, o princípio pluralista, pelo seu caráter relativizador,


ganha destaque e sugere um caminho. Ele leva a refletir sobre a necessidade de uma
espiritualidade social, para que se possa compreender os “processos sociopolíticos de
aprofundamento democrático, de consolidação de direitos, de crítica as mais variadas formas
de dominação, e a busca de alternativas à lógica imperial econômica" (RIBEIRO, 2014, p.19).
As ideias de espiritualidade social e política se efetivam, na prática, através da defesa
da justiça socioeconômica, da cidadania e dos direitos humanos, que inclui o direito à terra e à
dignidade. Apesar dos ataques sofridos, o MST continua recrutando novos “camponeses”:
pessoas de diversas religiões à procura de terra ou moradia, oriundas de um cenário de
diversidade, sincretismo e pluralismo (NETTO, 2007).
Essa nova realidade faz com que a dimensão missionária das religiões se revele.
Porém, alguns autores (RIBEIRO, 2004; FAUSTINO, 2014; TILLICH, 1967; BOFF, 1985)
destacam que, para se atingir uma sociedade justa e igualitária, não se deve optar pela força
imperial e pela supremacia de uma religião sobre a outra. Devemos, segundo eles, nortearmo-
nos pela cooperação ecumênica e pelos diálogos inter-religiosos, a fim de viabilizar meios
mais democráticos de garantia dos direitos humanos.
Desse modo, partimos do pressuposto de uma crise social oriunda do capitalismo,
especialmente na questão da luta pela terra, deparando-nos com a necessidade de
compreender as interpretações possíveis sobre o tema. Assim, julgamos necessário analisar o
cristianismo presente nos movimentos sociais, especificamente no MST, representado tanto
pelos grupos católicos, cuja união da teologia/ideologia realizou-se na TLC, quanto pelos
grupos evangélicos, que, apesar de discursos contrários ao ideário marxista, também lutam
pela terra via MST.
Precisamos compreender como as religiões disputam o campo religioso, ideológico e
político que se instalou em torno do tema da Reforma Agrária no Brasil. Nesse sentido, é
preciso responder: Quais argumentos hermenêuticos são utilizados para justificar a posse da
terra no assentamento Denis de Carvalho, entre os dois grupos, a saber: católicos e
evangélicos?
A hipótese desta pesquisa centra-se no entendimento de que existe uma compreensão
de aspectos morais e éticos, tanto no catolicismo, quanto no protestantismo, para justificar a
ocupação da terra. Partimos da observação do atual cenário religioso, político e ideológico,
dentro e fora do assentamento. Além disso, recorremos a autores, como Fábio Py, Marcos
Pedlowski e Rossana Rocha Reis, dentre outros, que, ano a ano, intensificaram o interesse
pelo tema.
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A partir da compreensão de que a posse da terra pode ser influenciada por aspectos
teológicos, ideológicos e políticos, a questão que nos colocamos consiste em saber quais
elementos contidos na leitura (e/ou releitura) realizada por católicos e evangélicos são
tocantes à questão da posse da terra. Além disso, é pertinente analisar as contraposições entre
os dois grupos, oriundas das distintas cosmovisões religiosas e ideológicas e acentuadas
diante da atual polarização sociopolítica no país.
Atualmente, existem cerca de 130 famílias ocupando pequenos lotes no assentamento
da cidade de Goianá-MG, oriundos da divisão da antiga fazenda Fortaleza de Santana. Vale
lembrar que, ainda que em menor número, existem pessoas de religiões afro-brasileiras e
indígenas ocupando, também, o local. Minha hipótese é que existem diferentes compreensões
sobre aspectos morais e éticos da religião que justificam a ocupação da terra. Assim, tais
aspectos despertam a curiosidade acerca das alteridades ali colocadas: estarão elas em conflito
ou em confluência?

OBJETIVO GERAL
Compreender como os grupos católicos e evangélicos do assentamento percebem
variantes teológicas, ideológicas e políticas, no que se refere à questão da posse da terra,
diante da atual polarização entre eles. Para isso, recorreremos à pesquisa bibliográfica e a à
investigação empírica no assentamento Denis de Carvalho do MST, localizado na região rural
de Goianá-MG.

OBJETIVOS ESPECÍFICOS
1. Compreender a teoria e a bibliografia referente ao MST, à TLC e ao marxismo;
2. Pesquisar sobre a visão da TLC no ramo protestante;
3. Compreender as disputas de narrativas construídas pelos assentados, a partir de suas
religiosidades, no que tange temas como: os direitos humanos, a justiça social e a
posse da terra;
4. Entender como que, em um movimento de orientação marxista, como o MST,
encontramos indivíduos oriundos de cosmovisões ditas antimarxistas.

JUSTIFICATIVA
O tema proposto neste anteprojeto é cientificamente relevante, pois visa colaborar
com pistas sobre a crise que vive a “pós-modernidade”, em cinco aspectos: a crise da
racionalidade científica, a crise da democracia, a crise do capitalismo, a crise do comunismo
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e a crise do individualismo (ANDRADE; GOMES, 2011). Nesse cenário, estudar questões


que envolvam religião, direitos e pluralidade torna-se um desafio para várias áreas do
conhecimento, dentre elas a Ciência da Religião. Assim, essa pesquisa busca contribuir para
o enriquecimento do debate de um tema pouco explorado. A pergunta será respondida à luz
da Ciência da Religião, pois toda a problemática está entrelaçada por elementos religiosos,
ideológicos e políticos vivos.
A problemática nos instiga, pois o MST é um movimento que se propõe a dar um
retorno para a sociedade no que se refere à luta pelo direito à terra no Brasil. Entretanto,
percebemos que o movimento tem se tornado plural, recebendo integrantes contrários à
concepção ideológica marxista. Os ânimos se acirraram desde a última eleição para a
presidência do país. Agora, temos um presidente que também se declara contra o MST.
A principal pergunta é saber como os assentados lidam com essa nova realidade e
quais leituras/releituras permitem que grupos contrários [evangélicos] ao MST se adentrem
no movimento. Para tentar entender e responder à questão, nos debruçaremos sobre autores
que tratam temáticas relacionadas. Além disso, iremos a campo, tendo em vista tentar
compreender como esses sujeitos elaboram, ou não, uma perspectiva de diálogo. Tais
contornos justificam um estudo bibliográfico e empírico, embasado na Ciência da Religião,
dentro da linha de pesquisa “Religião, Sociedade e Cultura”.

METODOLOGIA
O primeiro passo consiste em elaborar um levantamento bibliográfico sobre as
questões históricas do MST, além daquelas que englobam o protestantismo e o catolicismo.
Também será necessário um aprofundamento teológico e ideológico nas duas vertentes. Para
realizar a investigação, pretendemos utilizar a pesquisa tanto qualitativa quanto quantitativa.
Para cumprir a etapa qualitativa, procuraremos entender as questões através da análise
de roteiros, questionários, grupos focais, observação e/ou conversas espontâneas. Já a
pesquisa quantitativa será, a priori, submetida ao comitê de ética. Assim, de posse de dados
empíricos, iremos comparar as propostas teológicas e ideológicas do MST com as intenções
dos indivíduos, estando elas entrelaçadas às suas cosmovisões religiosas ou não. A partir daí,
poderemos verificar, na bibliografia disponível, chaves de explicação para as tensões,
comprovadas ou não, entre os dois grupos.
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CRONOGRAMA DE EXECUÇÃO
2022 2023

BIBLIOGRAFIA BÁSICA
ALMEIDA, Ronaldo de. Bolsonaro presidente: conservadorismo, evangelismo e a crise
brasileira. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, v. 38, n. 1, 2019. Disponível em:
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