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Como era a vizinhança do livro “O Cortiço”?

Conheça as principais figuras do clássico de Aluísio Azevedo


Por Nina Rahe

1) O AMOR ENLOUQUECE mulata, Firmo feriu o lusitano com uma navalha.


Jerô nimo e sua mulher, Piedade, ficavam no Mas, depois de um tempo, Jerô nimo conseguiu se
quartinho 35. Sua força e cará ter o tornaram recuperar e matou o rival em uma emboscada
respeitado na pedreira onde trabalhava, logo
atrá s do cortiço. Mas sua vida virou do avesso 5) VIZINHOS E RIVAIS
apó s ver Rita dançar. Apaixonado, passou a Miranda era o antagonista de Joã o Romã o.
beber pinga, começou a gastar mais do que devia Morava no sobrado ao lado da venda, e aos
e, no fim, abandonou a esposa e a filha para ficar poucos foi assistindo a seu imó vel ser cercado
com a baiana pelo cortiço. O negociante prezava o status acima
de tudo – casou-se com Dona Estela pelo dote e
2) VOCAÇÃ O PARA SOGRA nã o sabia se era mesmo pai de sua filha,
A viú va Dona Isabel, da casa 15, sacrificou tudo Zulmirinha. Por isso, tinha certa inveja do modo
para educar Pombinha e casá -la com Joã o da como Romã o enriqueceu e de sua relaçã o com
Costa, um moço do comércio. Assim, esperava Bertoleza
reconquistar sua antiga posiçã o social. A mã e só
deixou a menina subir ao altar apó s a primeira 6) A FOGUEIRA DA BRUXA
menstruaçã o, que demorou a chegar. Mas a uniã o Paula era uma cabocla velha conhecida como
foi curta: Pombinha traiu o marido, foi expulsa Bruxa. Em parte, porque era feia, grossa, com
de casa e acabou prostituta olhos desvairados e dentes ameaçadores. Mas
também porque era capaz de curar problemas de
3) PINTOU SUJEIRA pele e febres com rezas e bençã os. Queria
Outra histó ria chocante rolou no nú mero 12, incendiar o cortiço e conseguiu na segunda
onde morava a mulata Marciana. Ela era tentativa. Joã o Romã o teve que reconstruir o
obcecada em limpar a casa, mas enlouqueceu de espaço, que se tornou grandioso e aristocrá tico
vez quando sua bela filha, Florinda, de apenas 15
anos, engravidou de um funcioná rio da venda de 7) O DONO DO LUGAR
Joã o Romã o. Ele nã o assumiu e a menina fugiu Joã o Romã o começou seu “império” ao herdar a
de casa depois de apanhar da mã e. Marciana taverna em que trabalhou por 12 anos. Depois,
acabou expulsa do cortiço num leilã o, adquiriu as terras atrá s de sua
taverna e ergueu três casinhas. Foi o início do
4) O QUE É QUE A BAIANA TEM? cortiço. Ele usou a grana de Bertoleza para
No nú mero 9 morava Rita Baiana. Bonita e boa “expandir o negó cio” (e também era dono de
de samba, ela era amante do capoeirista Firmo, uma pedreira, atrá s do cortiço). Como adorava
mas também conquistou o coraçã o do vizinho, o dar calote, mas sabia cobrar dívidas, enriqueceu
português Jerô nimo. Na disputa pelo amor da
ainda mais. Quando quis subir na vida, livrou-se português lhe deu uma falsa carta de alforria e
de Bertoleza para tentar casar com Zulmirinha usou a grana para ampliar a venda. E isso porque
a coitada fazia de tudo por ele: trabalhava de
8) ETERNAMENTE ESCRAVA manhã até tarde da noite, cuidando da loja e da
Para se libertar de seu dono, a escrava Bertoleza casa que eles dividiam
passou anos juntando 20 mil réis. Mas foi Disponível em: https://super.abril.com.br/mundo-estranho/como-
enganada por seu amante, Joã o Romã o: o era-a-vizinhanca-do-livro-o-cortico

Trecho de O cortiço, de Aluísio Azevedo:

Joã o Romã o foi, dos treze aos vinte e cinco dispunha dos seus pecú lios, e quem se encarregava
anos, empregado de um vendeiro que enriqueceu de remeter ao senhor os vinte mil-réis mensais.
entre as quatro paredes de uma suja e obscura Abriu-lhe logo uma conta corrente, e a
taverna nos refolhos do bairro do Botafogo; e tanto quitandeira, quando precisava de dinheiro para
economizou do pouco que ganhara nessa dú zia de qualquer coisa, dava um pulo até à venda e recebia-
anos, que, ao retirar-se o patrã o para a terra, lhe o das mã os do vendeiro, de “Seu Joã o”, como ela
deixou, em pagamento de ordenados vencidos, nem dizia. Seu Joã o debitava metodicamente essas
só a venda com o que estava dentro, como ainda um pequenas quantias num caderninho, em cuja capa
conto e quinhentos em dinheiro. de papel pardo lia-se, mal escrito e em letras
Proprietá rio e estabelecido por sua conta, o cortadas de jornal: “Ativo e passivo de Bertoleza”.
rapaz atirou-se à labutaçã o ainda com mais ardor, [...]
possuindo-se de tal delírio de enriquecer, que Quando deram fé estavam amigados.
afrontava resignado as mais duras privaçõ es. Ele propô s-lhe morarem juntos, e ela
Dormia sobre o balcã o da pró pria venda, em cima concordou de braços abertos, feliz em meter-se de
de uma esteira, fazendo travesseiro de um saco de novo com um português, porque, como toda a
estopa cheio de palha. A comida arranjava-lhe, cafuza, Bertoleza nã o queria sujeitar-se a negros e
mediante quatrocentos réis por dia, uma procurava instintivamente o homem numa raça
quitandeira sua vizinha, a Bertoleza, crioula superior à sua.
trintona, escrava de um velho cego residente em Joã o Romã o comprou entã o, com as
Juiz de Fora e amigada com um português que tinha economias da amiga, alguns palmos de terreno ao
uma carroça de mã o e fazia fretes na cidade. lado esquerdo da venda, e levantou uma casinha de
Bertoleza também trabalhava forte; a sua duas portas, dividida ao meio paralelamente à rua,
quitanda era a mais bem afreguesada do bairro. De sendo a parte da frente destinada à quitanda e a do
manhã vendia angu, e à noite peixe frito e iscas de fundo para um dormitó rio que se arranjou com os
fígado; pagava de jornal a seu dono vinte mil-réis cacarecos de Bertoleza. Havia, além da cama, uma
por mês, e, apesar disso, tinha de parte quase que o cô moda de jacarandá muito velha com maçanetas
necessá rio para a alforria. Um dia, porém, o seu de metal amarelo já mareadas, um orató rio cheio de
homem, depois de correr meia légua, puxando uma santos e forrado de papel de cor, um baú grande de
carga superior à s suas forças, caiu morto na rua, ao couro cru tacheado, dois banquinhos de pau feitos
lado da carroça, estrompado como uma besta. de uma só peça e um formidável cabide de pregar
Joã o Romã o mostrou grande interesse por na parede, com a sua competente coberta de
esta desgraça, fez-se até participante direto dos retalhos de chita.
sofrimentos da vizinha, e com tamanho empenho a [...]
lamentou, que a boa mulher o escolheu para – Você agora nã o tem mais senhor! declarou
confidente das suas desventuras. Abriu-se com ele, em seguida à leitura, que ela ouviu entre lá grimas
contou-lhe a sua vida de amofinaçõ es e agradecidas. Agora está livre! Doravante o que você
dificuldades. “Seu senhor comia-lhe a pele do corpo! fizer é só seu e mais de seus filhos, se os tiver.
Nã o era brinquedo para uma pobre mulher ter de Acabou-se o cativeiro de pagar os vinte mil-réis à
escarrar pr’ali, todos os meses, vinte mil-réis em peste do cego!
dinheiro!” E segredou-lhe entã o o que já tinha junto [...]
para a sua liberdade e acabou pedindo ao vendeiro Entretanto, a tal carta de liberdade era obra
que lhe guardasse as economias, porque já de certa do pró prio Joã o Romã o, e nem mesmo o selo, que
vez fora roubada por gatunos que lhe entraram na ele entendeu de pespegar-lhe em cima, para dar à
quitanda pelos fundos. burla maior formalidade, representava despesa,
Daí em diante, Joã o Romã o tornou-se o caixa, porque o esperto aproveitara uma estampilha já
o procurador e o conselheiro da crioula. No fim de servida. O senhor de Bertoleza nã o teve sequer
pouco tempo era ele quem tomava conta de tudo conhecimento do fato; o que lhe constou, sim, foi
que ela produzia, e era também quem punha e
que a sua escrava lhe havia fugido para a Bahia contemplava de longe com um resignado olhar de
depois da morte do amigo. cobiça. Pô s lá seis homens a quebrarem pedra e
– O cego que venha buscá -la aqui, se for outros seis a fazerem lajedos e paralelepípedos, e
capaz!… desafiou o vendeiro de si para si. Ele que entã o principiou a ganhar em grosso, tã o em grosso
caia nessa e verá se tem ou nã o pra peras! que, dentro de ano e meio, arrematava já todo o
Nã o obstante, só ficou tranquilo de todo daí a espaço compreendido entre as suas casinhas e a
três meses, quando lhe constou a morte do velho. A pedreira, isto é, umas oitenta braças de fundo sobre
escrava passara naturalmente em herança a vinte de frente em plano enxuto e magnífico para
qualquer dos filhos do morto; mas, por estes, nada construir.
havia que recear: dois pâ ndegos de marca maior Justamente por essa ocasiã o vendeu-se
que, empolgada a legítima, cuidariam de tudo, também um sobrado que ficava à direita da venda,
menos de atirar-se na pista de uma crioula a quem separado desta apenas por aquelas vinte braças; e
nã o viam de muitos anos à quela parte. “Ora! de sorte que todo o flanco esquerdo do prédio, coisa
bastava já , e nã o era pouco, o que lhe tinham de uns vinte e tantos metros, despejava para o
sugado durante tanto tempo!” terreno do vendeiro as suas nove janelas de peitoril.
Bertoleza representava agora ao lado de Joã o Comprou-o um tal Miranda, negociante português,
Romã o o papel tríplice de caixeiro, de criada e de estabelecido na Rua do Hospício com uma loja de
amante. Mourejava a valer, mas de cara alegre; à s fazendas por atacado. Corrida uma limpeza geral no
quatro da madrugada estava já na faina de todos os casarã o, mudar-se-ia ele para lá com a família, pois
dias, aviando o café para os fregueses e depois que a mulher, Dona Estela, senhora pretensiosa e
preparando o almoço para os trabalhadores de uma com fumaças de nobreza, já nã o podia suportar a
pedreira que havia para além de um grande residência no centro da cidade, como também sua
capinzal aos fundos da venda. Varria a casa, menina, a Zulmirinha, crescia muito pá lida e
cozinhava, vendia ao balcã o na taverna, quando o precisava de largueza para enrijar e tomar corpo.
amigo andava ocupado lá por fora; fazia a sua Isto foi o que disse o Miranda aos colegas,
quitanda durante o dia no intervalo de outros porém a verdadeira causa da mudança estava na
serviços, e à noite passava-se para a porta da venda, necessidade, que ele reconhecia urgente, de afastar
e, defronte de um fogareiro de barro, fritava fígado e Dona Estela do alcance dos seus caixeiros.
frigia sardinhas, que Romã o ia pela manhã , em Dona Estela era uma mulherzinha levada da
mangas de camisa, de tamancos e sem meias, breca: achava-se casada havia treze anos e durante
comprar à praia do Peixe. E o demô nio da mulher esse tempo dera ao marido toda sorte de desgostos.
ainda encontrava tempo para lavar e consertar, Ainda antes de terminar o segundo ano de
além da sua, a roupa do seu homem, que esta, valha matrimô nio, o Miranda pilhou-a em flagrante delito
a verdade, nã o era tanta e nunca passava em todo o de adultério; ficou furioso e o seu primeiro impulso
mês de alguns pares de calças de zuarte e outras foi de mandá -la para o diabo junto com o cú mplice;
tantas camisas de riscado. mas a sua casa comercial garantia-se com o dote
[...] que ela trouxera, uns oitenta contos em prédios e
E o fato é que aquelas três casinhas, tã o açõ es da dívida pú blica, de que se utilizava o
engenhosamente construídas, foram o ponto de desgraçado tanto quanto lhe permitia o regime
partida do grande cortiço de Sã o Romã o. dotal. Além de que, um rompimento brusco seria
Hoje quatro braças de terra, amanhã seis, obra para escâ ndalo, e, segundo a sua opiniã o,
depois mais outras, ia o vendeiro conquistando qualquer escâ ndalo doméstico ficava muito mal a
todo o terreno que se estendia pelos fundos da sua um negociante de certa ordem. Prezava, acima de
bodega; e, à proporçã o que o conquistava, tudo, a sua posiçã o social e tremia só com a ideia de
reproduziam-se os quartos e o nú mero de ver-se novamente pobre, sem recursos e sem
moradores. coragem para recomeçar a vida, depois de se haver
Sempre em mangas de camisa, sem domingo habituado a umas tantas regalias e afeito à
nem dia santo, nã o perdendo nunca a ocasiã o de hombridade de português rico que já nã o tem
assenhorear-se do alheio, deixando de pagar todas pá tria na Europa.
as vezes que podia e nunca deixando de receber, [...]
enganando os fregueses, roubando nos pesos e nas Durante dez anos viveram muito bem
medidas, comprando por dez réis de mel coado o casados; agora, porém, tanto tempo depois da
que os escravos furtavam da casa dos seus primeira infidelidade conjugal, e agora que o
senhores, apertando cada vez mais as pró prias negociante já nã o era acometido tã o
despesas, empilhando privaçõ es sobre privaçõ es, frequentemente por aquelas crises que o arrojavam
trabalhando e mais a amiga como uma junta de fora de horas ao dormitó rio de Dona Estela; agora,
bois, Joã o Romã o veio afinal a comprar uma boa eis que a leviana parecia disposta a reincidir na
parte da bela pedreira, que ele todos os dias, ao cair culpa, dando corda aos caixeiros do marido, na
da tarde, assentado um instante à porta da venda,
ocasiã o em que estes subiam para almoçar ou Este cã o era pretexto de eternas resingas com
jantar. a gente do Miranda, a cujo quintal ninguém de casa
Foi por isso que o Miranda comprou o prédio podia descer, depois das dez horas da noite, sem
vizinho a Joã o Romã o. correr o risco de ser assaltado pela fera.
A casa era boa; seu ú nico defeito estava na – É fazer o muro! dizia o Joã o Romã o,
escassez do quintal; mas para isso havia remédio: sacudindo os ombros.
com muito pouco compravam-se umas dez braças – Nã o faço! replicava o outro. Se ele é questã o
daquele terreno do fundo que ia até à pedreira, e de capricho, eu também tenho capricho!
mais uns dez ou quinze palmos do lado em que Em compensaçã o, nã o caia no quintal do
ficava a venda. Miranda galinha ou frango, fugidos do cercado do
Miranda foi logo entender-se com o Romã o e vendeiro, que nã o levasse imediato sumiço. Joã o
propô s-lhe negó cio. O taverneiro recusou Romã o protestava contra o roubo em termos
formalmente. violentos, jurando vinganças terríveis, falando em
Miranda insistiu. dar tiros.
– O senhor perde seu tempo e seu latim! – Pois é fazer um muro no galinheiro!
retrucou o amigo de Bertoleza. Nem só nã o cedo repontava o marido de Estela.
uma polegada do meu terreno, como ainda lhe Daí a alguns meses, Joã o Romã o, depois de
compro, se me quiser vender, aquele pedaço que lhe tentar um derradeiro esforço para conseguir
fica ao fundo da casa! algumas braças do quintal do vizinho, resolveu
– O quintal? principiar as obras da estalagem.
– É exato. – Deixa estar, conversava ele na cama com a
– Pois você quer que eu fique sem chá cara, Bertoleza; deixa estar que ainda lhe hei de entrar
sem jardim, sem nada? pelos fundos da casa, se é que nã o lhe entre pela
[...] frente! Mais cedo ou mais tarde como-lhe, nã o duas
Travou-se entã o uma lata renhida e surda braças, mas seis, oito, todo o quintal e até o pró prio
entre o português negociante de fazendas por sobrado talvez!
atacado e o português negociante de secos e [...]
molhados. Aquele nã o se resolvia a fazer o muro do Era Joã o Romã o quem lhes fornecia tudo,
quintal, sem ter alcançado o pedaço de terreno que tudo, até dinheiro adiantado, quando algum
o separava do morro; e o outro, por seu lado, nã o precisava. Por ali nã o se encontrava jornaleiro, cujo
perdia a esperança de apanhar-lhe ainda, pelo ordenado nã o fosse inteirinho parar à s mã os do
menos, duas ou três braças aos fundos da casa; velhaco. E sobre este cobre, quase sempre
parte esta que, conforme os seus cá lculos, valeria emprestado aos tostõ es, cobrava juros de oito por
ouro, uma vez realizado o grande projeto que cento ao mês, um pouco mais do que levava aos que
ultimamente o trazia preocupado – a criaçã o de garantiam a dívida com penhores de ouro ou prata.
uma estalagem em ponto enorme, uma estalagem Nã o obstante, as casinhas do cortiço, à
monstro, sem exemplo, destinada a matar toda proporçã o que se atamancavam, enchiam-se logo,
aquela miuçalha de cortiços que alastravam por sem mesmo dar tempo a que as tintas secassem.
Botafogo. Havia grande avidez em alugá -las; aquele era o
Era este o seu ideal. Havia muito que Joã o melhor ponto do bairro para a gente do trabalho. Os
Romã o vivia exclusivamente para essa ideia; empregados da pedreira preferiam todos morar lá ,
sonhava com ela todas as noites; comparecia a porque ficavam a dois passos da obrigaçã o.
todos os leilõ es de materiais de construçã o; O Miranda rebentava de raiva.
arrematava madeiramentos, já servidos; comprava – Um cortiço! exclamava ele, possesso. Um
telha em segunda mã o; fazia pechinchas de cal e cortiço! Maldito seja aquele vendeiro de todos os
tijolos; o que era tudo depositado no seu extenso diabos! Fazer-me um cortiço debaixo das janelas!…
chã o vazio, cujo aspecto tomava em breve o cará ter Estragou-me a casa, o malvado!
estranho de uma enorme barricada, tal era a E vomitava pragas, jurando que havia de
variedade dos objetos que ali se apinhavam vingar-se, e protestando aos berros contra o pó que
acumulados: tá buas e sarrafos, troncos de á rvore, lhe invadia em ondas as salas, e contra o infernal
mastros de navio, caibros, restos de carroças, baralho dos pedreiros e carpinteiros que levavam a
chaminés de barro e de ferro, fogõ es martelar de sol a sol.
desmantelados, pilhas e pilhas de tijolos de todos os [...]
feitios, barricas de cimento, montes de areia e terra Prontas, Joã o Romã o mandou levantar na
vermelha, aglomeraçõ es de telhas velhas, escadas frente, nas vinte braças que separavam a venda do
partidas, depó sitos de cal, o diabo enfim; ao que ele, sobrado do Miranda, um grosso muro de dez
que sabia perfeitamente como essas coisas se palmos de altura, coroado de cacos de vidro e
furtavam, resguardava, soltando à noite um fundos de garrafa, e com um grande portã o no
formidável cã o de fila. centro, onde se dependurou uma lanterna de
vidraças vermelhas, por cima de uma tabuleta rico três vezes do que ele, nã o teve de casar com a
amarela, em que se lia o seguinte, escrito a tinta filha do patrã o ou com a bastarda de algum
encarnada e sem ortografia: fazendeiro freguês da casa!
“Estalagem de Sã o Romã o. Alugam-se Mas entã o, ele Miranda, que se supunha a
casinhas e tinas para lavadeiras”. ú ltima expressã o da ladinagem e da esperteza; ele,
As casinhas eram alugadas por mês e as tinas que, logo depois do seu casamento, respondendo
por dia; tudo pago adiantado. O preço de cada tina, para Portugal a um ex-colega que o felicitava,
metendo a á gua, quinhentos réis; sabã o à parte. As dissera que o Brasil era uma cavalgadura carregada
moradoras do cortiço tinham preferência e nã o de dinheiro, cujas rédeas um homem fino
pagavam nada para lavar. empolgava facilmente; ele, que se tinha na conta de
Graças à abundâ ncia da á gua que lá havia, invencível matreiro, nã o passava afinal de um
como em nenhuma outra parte, e graças ao muito pedaço de asno comparado com o seu vizinho!
espaço de que se dispunha no cortiço para estender Pensara fazer-se senhor do Brasil e fizera-se
a roupa, a concorrência à s tinas nã o se fez esperar; escravo de uma brasileira mal-educada e sem
acudiram lavadeiras de todos os pontos da cidade, escrú pulos de virtude! Imaginara-se talhado para
entre elas algumas vindas de bem longe. E, mal grandes conquistas, e nã o passava de uma vítima
vagava uma das casinhas, ou um quarto, um canto ridícula e sofredora!... Sim! no fim de contas qual
onde coubesse um colchã o, surgia uma nuvem de fora a sua Á frica?...
pretendentes a disputá -los. Enriquecera um pouco, é verdade, mas como?
E aquilo se foi constituindo numa grande a que preço? hipotecando-se a um diabo, que lhe
lavanderia, agitada e barulhenta, com as suas cercas trouxera oitenta contos de réis, mas incalculáveis
de varas, as suas hortaliças verdejantes e os seus milhõ es de desgostos e vergonhas! Arranjara a vida,
jardinzinhos de três e quatro palmos, que sim, mas teve de aturar eternamente uma mulher
apareciam como manchas alegres por entre a que ele odiava! E do que afinal lhe aproveitar tudo
negrura das limosas tinas transbordantes e o isso? Qual era afinal a sua grande existência? Do
revérbero das claras barracas de algodã o cru, inferno da casa para o purgató rio do trabalho e
armadas sobre os lustrosos bancos de lavar. E os vice-versa! Invejável sorte, nã o havia dú vida! [...]
gotejantes jiraus, cobertos de roupa molhada, Feliz e esperto era o Joã o Romã o! esse, sim,
cintilavam ao sol, que nem lagos de metal branco. senhor! Para esse é que havia de ser a vida!... Filho
E naquela terra encharcada e fumegante, da mã e, que estava hoje tã o livre e desembaraçado
naquela umidade quente e lodosa, começou a como no dia em que chegou da terra sem um
minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo, uma vintém de seu! esse, sim, que era moço e podia
coisa viva, uma geraçã o, que parecia brotar ainda gozar muito, porque, quando mesmo viesse a
espontâ nea, ali mesmo, daquele lameiro, e casar e a mulher lhe saísse uma outra Estela, era só
multiplicar-se como larvas no esterco. mandá -la para o diabo com um pontapé! Podia fazê-
[...] lo! Para esse é que era o Brasil!
E durante dois anos o cortiço prosperou de - Fui uma besta! repisava ele, sem conseguir
dia para dia, ganhando forças, socando-se de gente. conformar-se com a felicidade do vendeiro. Uma
E ao lado o Miranda assustava-se, inquieto com grandíssima! No fim de contas que diabo possuo
aquela exuberâ ncia brutal de vida, aterrado eu?... Uma casa de negó cio, da qual nã o posso
defronte daquela floresta implacável que lhe crescia separar-me sem comprometer o que lá está
junto da casa, por debaixo das janelas, e cujas enterrado! um capital metido numa rede de
raízes, piores e mais grossas do que serpentes, transaçõ es que nã o se liquidam nunca, e cada vez
minavam por toda a parte, ameaçando rebentar o mais se complicam e mais me grudam ao estupor
chã o em torno dela, rachando o solo e abalando desta terra, onde deixarei a casca! Que tenho de
tudo. [...] meu, se a alma do meu crédito é o dote, que me
E depois, fechado no quarto de dormir, trouxe aquela sem-vergonha, e que a ela me prende
indiferente e habituado à s torpezas carnais da como a peste da casa comercial me prende a esta
mulher, isento já dos primitivos sobressaltos que Costa d’Á frica?
lhe faziam, a ele, ferver o sangue e perder a
tramontana, era ainda a prosperidade do vizinho o Vocabulá rio:
que lhe obsedava o espírito, enegrecendo-lhe a alma Pespegar: iludir
com um feio ressentimento de despeito.
Tinha inveja do outro, daquele outro AZEVEDO, A. O cortiço. Sã o Paulo: Á tica, 1997. Disponível em:
português que fizera fortuna, sem precisar roer <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraFo
rm.do?select_action=&co_obra=1723>. Acesso em: 02 ago
nenhum chifre; daquele outro que, para ser mais 2023.
A partir da leitura do trecho e também dos documentá rios, como você relaciona o texto de Aluísio Azevedo ao
tema: O direito à moradia e a luta por habitação?
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Na sua opiniã o, ainda há cortiços no Brasil? Como eles sã o retratados? Qual a realidade desses locais?
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Na sua opiniã o, por que ainda existem cortiços no Brasil?


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O Cortiço, escrito em 1890, é considerada a obra-prima de Aluísio Azevedo. Escolha nas colocaçõ es que seguem
a que melhor caracteriza a obra:
a) um dos melhores retratos que já se levantaram do Brasil do II Império, em que a sobrevivência da
estrutura colonial punha à mostra uma numerosa mostragem de portugueses enriquecidos a empolgar
as posiçõ es de comando e uma regiã o mal definida de pretos, mulatos e brancos em pleno processo de
caldeamento e formaçã o, constituindo o escalã o mais inferior da sociedade;
b) retrata a falência da sociedade patriarcal nordestina que, tendo por base sempre a atividade econô mica
açucareira, pouco se modificara desde os fins do século XVIII;
c) reflete as transformaçõ es que afetaram a regiã o da campanha na segunda metade do séc. XIX. Nã o há
nele nenhum delineamento saudosista, ao contrá rio de outros textos ficcionais da época;
d) no plano da temá tica, o rompimento com a tradiçã o narrativa brasileira se dá pela inserçã o, ao longo
dos relatos, de elementos inverossímeis;
e) fixando a regiã o de campanha, a obra descreve a crise e as divisõ es entre os estancieiros do sul do
Brasil. O protagonista tenta colocar em prá ticas certas ideias reformistas, mas fracassa em seus
objetivos.

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