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Resumo:
As sociedades ocidentais atravessam uma grave crise, cujos principais sintomas são o
conformismo generalizado, o desaparecimento gradual do conflito social e político e a
crise das significações imaginárias sociais. Porém, essa situação não fica restrita às
sociedades ocidentais e, de certa forma, afeta as sociedades não-ocidentais também. Com
isso, surge a necessidade de nos debruçarmos sobre essa problemática e nada melhor do
que utilizar a perpectiva de Cornelius Castoriadis para nortear essa reflexão.
Abstract:
INTRODUÇÃO
1
Doutor em Sociologia pela École des Hautes Études em Sciences Sociales e professor do Curso de
Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFMS.
2
Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e professora substituta
do Curso de Ciências Sociais da mesma instituição.
Ao olharmos para nossa sociedade, atualmente, percebemos inúmeras amostras de
que passamos por uma crise aguda e sem precedentes: a crise das significações
imaginárias sociais. Portanto, é impossível fazer uma reflexão acerca dessa situação sem
remetermos à Cornelius Castoriadis (1922-1997). Autor da obra seminal A Instituição
Imaginária da Sociedade e da série As Encruzilhadas do Labirinto, além de uma série de
outras obras, pode ser considerado um ótimo exemplo de intelectual militante.
Para nortear as reflexões aqui realizadas, foram utilizados textos datados das
décadas de 80 e 90, frutos de conferências, entrevistas, discussões e publicações,
compilados na série de livros As Encruzilhadas do Labirinto. Esses textos tem como
temática principal a crise pelo qual as sociedades ocidentais atravessam, sem esquecer ou
deixar de lado as sociedades não-ocidentais. Os subtítulos dos livros Encruzilhadas do
Labirinto 3 e 4, respectivamente O Mundo Fragmentado e A Ascensão da
Insignificância, não poderiam ser mais propícios para caracterizar o mundo em que
vivemos hoje.
CRÍTICA AO “PÓS-MODERNISMO” E A ÉPOCA DO CONFORMISMO
GENERALIZADO
“O mundo – não somente o nosso – está fragmentado. Porém, não cai aos
pedaços. Refletir me parece uma das principais tarefas da filosofia de nossos dias.” 3 Essa
frase mostra de maneira suscinta e precisa o momento pelo qual passamos em nossa
sociedade: fragmentação e setorização da vida societária, desembocando em um
individualismo exacerbado. Apesar dessa grave crise, Castoriadis aponta que existe
solução e que esta dependeria do ressurgimento do projeto de autonomia individual e
social (visto que um é impossível sem o outro), atrelado a novas atitudes humanas e
novos objetivos políticos. Ou seja, uma nova condição da sociedade ocidental deveria
surgir enquanto aspiração de todos os indivíduos, enquanto um projeto global.
Como ponto de partida para essa análise, nada melhor do que traçar a crítica que
Castoriadis faz ao rótulo “pós-moderno”. Segundo ele, esse rótulo caracteriza bem o
estado de decrepitude em que vivemos: uma sociedade incapaz de se auto-definir como
3
CASTORIADIS, Cornelius. As Encruzilhadas do Labirinto III – O Mundo Fragmentado. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1987-1992, pág. 9.
4
CASTORIADIS, Cornelius. A ascensão da insignificância. In: As Encruzilhadas do Labirinto IV – A
Ascensão da Insignificância. São Paulo: Paz e Terra, 2002, pág. 118.
alguma coisa positiva, ou somente de se definir como alguma coisa que não seja
referência ao que ela não é mais. Por si só, o termo “moderno” já é extremamente infeliz,
visto que insinua que a História atingiu seu fim e que vivemos num presente perpétuo,
demonstrando uma atitude extremamente egocêntrica, pois tende a anular todo o
desenvolvimento anterior e a considerar legítimo apenas o desenvolvimento presente.
Posto isso, Castoriadis diz que não tem intenção de propor novos nomes para os
períodos discutidos, e sim uma nova caracterização das divisões mais ou menos aceitas
da história da Europa ocidental (que inclui os Estados Unidos), tendo como pressuspostos
a individualidade de cada período (esboçada nas significações imaginárias sociais criadas
5
CASTORIADIS, Cornelius. A época do conformismo generalizado. In: As Encruzilhadas do Labirinto
III – O Mundo Fragmentado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987-1992, p. 25.
por ele) e a ligação do universo histórico à significação e ao projeto da autonomia (social
e individual).
Com isso, ele distingue três períodos, sendo o primeiro deles a emergência
(constituição) do Ocidente, que se inicia no século XII e termina no século XVIII. No
campo da criação de significações imaginárias temos o surgimento da protoburguesia;
construção, crescimento e mudanças das cidades; novas atitudes psíquicas, mentais,
políticas, intelectuais, artísticas; descoberta e recepção, num primeiro momento, do
direito romano, em seguida de Aristóteles e, posteriormente, da herança grega
subsistente; perda do caráter sagrado presente na tradição e na autoridade. Com relação
ao projeto de autonomia social e individual, percebe-se seu ressurgimento após quinze
séculos, embora de maneira embrionária devido a necessidade constante de estabelecer
compromissos com os poderes religiosos e monárquicos.
Mas, será que a crítica funciona nos dias de hoje? Castoriadis afirma que a crise
da crítica é apenas uma das manifestações da crise geral e profunda que se estabeleceu
em nossa sociedade. As críticas não são mais censuradas e sim abafadas pela
comercialização geral. “Eis um livro que revolucionou seu campo”, sendo esse adjetivo
utilizado para qualquer produto. Ou seja, a palavra “revolucionário” (da mesma forma
que palavras como “criação” ou “imaginação”) tornou-se slogan publicitário.
7
Rótulo esse erroneamente sustentado pelos países líderes do bloco ocidental, no sentido de oposição ao
comunismo e ao fascismo e de assimilação à democracia. Para uma discussão mais ampla, ver:
CHÂTELET, François & PISIER-KOUCHNER, Évelyne. As Concepções Políticas do Século XX –
História do Pensamento Político. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.
sim com a sua capacidade de vender sua imagem, sua habilidade em ser carismático8. Nas
palavras do autor, essa seleção é feita entre os mais aptos a se fazerem selecionar.
10
Para uma discussão mais ampla, ver: CASTORIADIS, Cornelius & COHN-BENDIT, Daniel. Da
Ecologia a Autonomia. São Paulo: Brasiliense, 1981.
A primeira esfera a ser analisada é a família, considerado o principal ateliê de
fabricação de indivíduos adequados. A crise da família contemporânea apresenta-se na
degradação e desintegração dos papéis trtadicionais (homem, mulher, pais e filhos). Ou
seja, antigamente os papéis tradicionais eram sabidos por todos, nos mais diferentes
níveis da sociedade, de categoria, de grupo, mesmo que fossem questionáveis, criticáveis
e alienantes (“lugar de mulher é na cozinha e quem manda em casa é o homem”). O
mesmo ocorre com as relações entre pais e filhos: ninguém sabe hoje o que significa ser
mãe, pai ou filho, estampando claramente a crise de significações imaginárias sociais que
enfrentamos contemporaneamente.
Porém, Castoriadis indica que aí reside o problema, pois esses novos tipos não
chegam a se definir, a se afirmar ou a se propagar. Logo, encontramos novamente a crise
das significações imaginárias. Contudo, essa não é a crise mais aguda pelo qual o sistema
educativo passa:
Mas todas essas observações permaneceriam ainda abstratas caso não
estivessem ligadas a mais flagrante e perturbadora manifestação da crise
do sistema educativo, aquela que ninguém ousa sequer mencionar. Nem
alunos nem professores se interessam mais pelo que se passa na escola
como tal, a educação não é mais investida como educação pelos
participantes. Ela se tornou um penoso ganha-pão para os educadores, uma
imposição tediosa para os alunos – para quem ela deixou de ser a única
abertura extrafamiliar- alunos que não têm idade (nem estrutura psíquica)
necessária para ver nela um investimento instrumental (cuja rentabilidade,
aliás, se torna cada vez mais problemática). Em geral, trata-se de obter
um ‘papel’ que permita exercer um ofício (caso se encontre trabalho).13
12
MANNHEIM, Karl. A Democratização da Cultura. In: Sociologia da Cultura. São Paulo: Editora
Perspectiva, 2001, págs.141-208.
13
CASTORIADIS, Cornelius. A Crise das Sociedades Ocidentais. In: As Encruzilhadas do Labirinto IV –
A Ascensão da Insignificância. São Paulo: Paz e Terra, 2002, pág. 18.
Na fase atual do capitalismo, a educação adquire um caráter utilitarista e
imediatista, ou seja, o sistema educacional passa a ser encarado como o recurso máximo
para um acesso mais facilitado ao mercado de trabalho. A especialização de seus
trabalhadores faz com que o ritmo de desenvolvimento continue acelerado, e logo, para
acompanhar essa aceleração o indivíduo contemporâneo tem como única opção uma
atualização contínua. Esse fato faz com que inúmeras pessoas não consigam adentrar ao
mercado de trabalho, por falta de qualificação adequada para desempenhar determinada
função no processo produtivo.
Após toda essa discussão, Castoriadis conclui que nós somos cidadãos sem
bússola e discorda que isso seja explicado pela complexidade dos desafios. A
desorientação se deve à decomposição das significações imaginárias sociais. E aqui
encontramos o que talvez seja a consequência mais grave de todo esse processo: a ruína
da auto-representação da sociedade. Para o autor, não pode haver sociedade que não seja
alguma coisa para si mesma, que não se represente como sendo alguma coisa, que se
representa através de uma série de atributos que surgem através da cunhagem das
significações imaginárias sociais, que tem por missão atribuir sentido a tudo o que pode
se apresentar tanto no interior da sociedade quanto fora dela. Castoriadis as considera
imaginárias pois não se reduzem à referências “racionais” ou “reais” e sociais pois só
existem por serem instituídas e compartilhadas pela sociedade como um todo. A
significação imaginária social faz determinada coisa existir enquanto tal coisa, apresenta-
as como sendo isso que elas são: Estado, dinheiro, Deus, homem, mulher, criança, jovem,
etc. Com isso, a sociedade consegue (ou pelo menos tenta) explicar e dar sentido às
coisas que estão a sua volta e poder mascarar o Caos do qual ela surgiu, e que permanece
do seio de cada sociedade e de cada indivíduo.
Isso significa dizer que todo indivíduo deve ser portador desta representação de si
da sociedade, visto que é condição vital para a existência do indivíduo singular e da
própria sociedade. O fato de se representar como alguma coisa dissimular para si mesmo
o abismo psíquico sobre o qual ele vive e isso é possível graças às significações
imaginárias e à constituição do mundo (natural e social), criadas por sua sociedade. Esse
esforço de auto-definição do indivíduo é que faz com que a instituição de sua sociedade
viva e exista. E é nesse ponto que a crise das sociedades ocidentais contemporâneas pode
ser percebida: a ruína da auto-representação da sociedade, o fato que essas não possuem
mais uma imagem de si própria e nos casos em que possui, é de maneira degradante,
vazia e contraditória. Tudo isso nos remete ao que Castoriadis nos diz sobre o pós-
modernismo e que foi discutido anteriormente.
Castoriadis aponta que tudo isso é fruto da crise das significações imaginárias
sociais, pois essas não mais fornecem valores, motivações e normas que permitam aos
indivíduos fazer funcionar a sociedade. Porém, não significa que as sociedades antigas
proporcionavam felicidade e verdade irrestritas a seus cidadãos, mas sim que as
significações imaginárias sociais devem fazer funcionar e reproduzir a sociedade que os
fez existir. E o hoje, o que vemos é uma sociedade que mal se suporta, que não se deseja
enquanto sociedade.
O primeiro é fruto de uma discussão com Edgar Morin, acerca da Primeira Guerra
do Golfo e suas consequências, bom como sobre a tão conhecida divisão entre o Ocidente
e o mundo árabe. E Castoriadis inicia a discussão apontando que, ao optar pela guerra,
não houve a preocupação com o risco de aprofundar ainda mais o abismo cultural, social,
política e imaginária existente entre os países ocidentais e o mundo árabe. Com os
atentados de 11 de setembro e a guerra declarada dos Estados Unidos ao mundo árabe,
vimos esse abismo se tornar mais profundo e caminhar para um processo de ódio e
destruição que pode ser irreversível.
14
Para maiores informações sobre a temática, sugerimos: LEWIS, Bernard. O que deu errado no Oriente
Médio? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002
MASSOULIÉ, François. Os Conflitos do Oriente Médio. Editora Ática
15
CASTORIADIS, Cornelius. As Encruzilhadas do Labirinto IV – A Ascensão da Insignificância. São
Paulo: Paz e Terra, 2002.
os turcos, durante séculos; enfim, da semicolonização ocidental durante
um período comparativamente bem menor.16
Logo, para manter a identidade, somos forçados a nos agarrar tanto ao passado
fundador quanto ao futuro libertador. Porém, vemos destruir-se a imagem de um futuro
que trouxesse emancipação; isso ocorre não somente entre os árabes como também entre
16
Ibid, pág. 60
nós, graças ao “progresso” e a racionalidade extremada. Se o futuro está morto, resta
relacionar-se com o passado e com o presente. No caso das sociedades ocidentais,
desvincula-se do passado e vive-se o presente através do consumismo. Mas, o que resta
para aquele que não podem consumir as mesmas cifras e os mesmos artefatos que as
sociedades ocidentais? Voltar-se para o passado e é justamente esse círculo histórico, que
carrega o crise da modernidade e do “progresso”, que causa o fundamentalismo.
BIBLIOGRAFIA
CASTORIADIS, Cornelius. A Instituição Imaginária da Sociedade. Rio de
Janeiro: Editora Paz e Terra, 1982.