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140 DA PINTURA EM PORTUGAL Quando penso na relagao da arte plastica em Portugal com toda imensa criacaio das escolas da Alemanha, de Franca, de Italia e de Espanha, tenho a recordacao instintiva e estranha de um escultor de madeira nos tempos géticos. O artista esculpe o pau, criaum en- trelacamento de figures, de virgens ascéticas, de diabos satfricos, de monges grotescos, de rosdceas e de folhagens, e enquanto a obra toma relevo, se destaca, se anima, toda cheia de ideias, de senti- mentos, de crencas — quase um cantico de madeira — as lascas e as aparas de pau caem no chao, imperceptiveis, chatas, desprezi- veis e inuteis. As obras de arte em Portugal sao estas lascas e es- tas aparas que restam da construgao do pensamento na arte. Portugal, na histéria, é sobretudo um pats de luta, de farga, de acciio material. Na Europa, o Sul representa 0 corpo, a parte ani- mal do homem, a sua maneira de ser exterior, como o Norte repre- senta o vago sentimento intimoe espiritual —a alma. O corpo tem estas manifestagdes principais —a percepgao pelos sentidos, a ac- ¢ao vital, a exaltacdo nervosa, e 0 sono. A alma manifesta-se pela ideia nitida e precisa, e pela vaga imaginagao. No Norte, que é a alma, a Franga representa a ideia nftida, a razao agil, e a Alemanha representa a imaginagao e 0 s0- nho. No Sul, que é 0 corpo, a Italia e a Grécia sao a percepcao ex- terior pelos sentidos, que se traduz sempre, numa ra¢a inteligen- te, pelo culto da forma; a Espanha é a exaltacao nervosa; a Turquia 60 sono animal; Portugal é a vigorosa ac¢ao vital, o movimento es- pontaneo, a decisao violenta do sangue. A Europa é assim um grande corpo simbélico em que cada pa- tria éuma forte qualidade fisica ou uma ambigao inteligente da al- ma. O desequilibrio destas forcas chama-se na ciéncia -—doen¢a, e na historia — guerra. Todas estas qualidades tem um periodo de decadéncia e de exageragio; assim, h4 um momento na Alemanha em que 0 espi- ritualismo se converte no iluminismo; ha um momento em que na Franga 0 excesso das ideias produz a febre cerebal; a transbor- dagao doentia de teorias, a preciso do raciocinio, produz a estéril escolastica, assim o sono (> Turquia tem um perfdo que se torna imbecilidade; na Italia vem um dia, em que o culto da forma se transforma num materialismo sem dignidade; a exaltagao fisica da Espanha exagera-se e torna-se epilepsia politica e revolucio- naria; a accaio vital de Portugal comeca a ser, por uma exageragao de violéncia, um espasmo ininteligente, semelhante ao adormeci- mento que toma um brago robusto depois de um prodigio de forga. E este 0 estado a que chegamos hoje, entre nds. Ora, no passado, a Franga, que é arazao, cria asescolas filoséfi- cas, esboca informemente o seu espfrito critico em Rabelais, e resu- me-o, aperfeicoado, em Voltaire. A Alemanha, que é aimaginagao, cria a musica, a arquitectura espiritualista, a pintura cheia de comocao religiosa de Alberto Durer, e aescola dramaticae pungen- te de Rembrandt. A Italia, que é a percepeao dos sentidos, aforma, produz a magnifica pintura materialista, que durante quinhentos anos teve por inspiragao a beleza do corpo pressentida por Giotto, imperfeita e desgraciosa com Verrocchio e Cailagno e outros, monotona ainda nas figuras de Perugino e de Ghirlandaio, aper- feicoada por Antonello de Massina, que revela o colorido, e depois ainda por Leonardo da Vinci, que da o segredo da luz e dos cla- ros-escuros, chega gloriosamente a um perfodo superior com Cor- reggio e com Ticiano, cercado dos venezianos. A Espanha nervosa e inquieta produz «D. Quixote», os poetas dramaticos, o «Dies Irae», oestranho romance de «Lazarillo de Tormes», que fez escola, e os pintores torturados, misticamente materialistas. A Turquia nao podia produzir nada porque dormia. Portugal, que é a ac¢ao vi- tal, nao podia criar nada porque lutava. E lutou corajosamente. A sua constituigao foi dificil, entre a Espanha inquieta, e a Africa traicoeira. Depois veio a época dramatica das conquistas. Apertados no seu pedaco de terra, estes homens iam através dos mares inexplorados, em nome de Cristo, supersticiosos e herdicos, terrfveis como batalhadores, serenos como apéstolos, desfazendo os temporais com as palavras do Evangelho, iam, conquistavam as ilhas, os paises, os barbaros,os continentes, os cabos temerosos, e depois, ensanguentadosemise- réveis, rezavam na praia, devotadamente, de joelhos, diante de — uma cruz de pau! A sua vida era lutar, orar, morrer; nao tinham o amor, 0 riso, o descanso; estavam quase fora do elemento huma- no e das serenas alegrias do pensamento. As suas epopeias eram os didrios de bordo: a sua escultura era armagao dos galedes. Como pintavam eles? Com sangue, nas - muralhas. E a unica musica, deles, herdéis do Sul, sem os frescc amores, sem os olhares celestes, era sob 0 céu, o gemido do mar. E por vezes também 0 grito das aves sinistras: e entao 0 piloto, que seguia atento, no galeao silencioso, a viagem das estrelas di «De joelhos, companheiros, é alma de mestre que passa!» B todos, 1 ua i oI de joelhos, rezavam tristemente, na noite, pela alma 4, mortos na viagem das Indias! a dos | Joao de Barros foi o que contou estes com mens, e era digno de os contar a Deus! Assim Portugal, no pasado, foi estéril na ar bates épicos a quitectura. E no presente é grotesco. Nao quero falar no drama de que apenas ex; f réncia inconsistente e banal, nem da poeisa que, cate at arcédica, ou colorida com sentimentalidades retoricaee eemen dividuais; nao quero de modo algum falar da arquibactos*® iN consiste entre nés na uniforme perfeigao da linha west due escultura, que em Portugal se limita a ser uma suportayel, nem da ria oficial; nem da musica, porque apenas temos a dos reuse masanero falar levemente de pintura, que tem um fingimento q : A arte estuda o homem. Niio como ele existe sob as tray magoes de que o cobre a vida social e momentanea, mas deve ser na Natureza, na pura verdade do corpoe daaimecath turaeamusicaestudam aalmasema sociedade, com toda dade das paixdes, toda a fermentagao e explosao cerebral, tirania do sangue, toda a fatalidade do caracter, 3 E todo 0 livro que nao estudar assim o mistério humano, se a cépia de um costume, a repercussao de uma influéncia tanea, a expressao de uma ordem de caracteres superfi nao sera uma obra ideal. Um exemplo: a epopeia humanad kespeare. Ali, o que surpreende radiosamente, nao sao 0s d enfaticos dos cavalheiros e das damas, as jovialidades os conceitos covardes dos cortesdos, tudoisso que reflecte camente os costumes, as feigdes, os sentimentos efémeros di culo xvi. O que apaixona, 0 que esmaga o espirito de revolu sao as dores do rei Lear, o citime de Otelo, as hesitagdes n cas de Hamlet, a fatalidade do mal em Macbeth, toda essa’ téria da alma, essa consciéncia viva da humanidade, com t suas dores, misérias, e magnificéncias, onde aparece frendo e gemendo a trégica visao da Natureza! Assi obra, tudo que é feic¢ao momenténea do tempo fica it ceptivel, entre os magnfficos estudos do homem e as revelacoes da Natureza — como uma pouca de erva 8 forte fermentagao da seiva vegetal! Ora, se a literatura e a musica estudam a alm: -escultura estudam 0 corpo. Nao o corpo como ele | derna, emagrecido pelo cansago, com as grande curvaturas do trabalho, estancado e torturado Violenta das ideias, com os musculos amoleci mA al a bral, com a pele mérbida, e deformado pelo vestuario, mas 0 corpo direito, ritmico, puro, harmonioso, e sao, perfeito em toda a pure- za da forma. Assim, 0 que se admira na pintura, 0 que é ideal nao sao as fi- guras da arte bizantina, descarnadas, hirtas e monétonas; nao sao 0s quadros primitivos, das catedrais, cheios de uma legiao de fi- guras tristes e maceradas, com todas as consumpgdes do corpo & todos os renunciamentos da vida, nao soos corpos didifanos de Fra Angelico, aparecendo com ttinicas resplandecentes, num fundo tenebroso: nao sao as formas desproporcionais com que Alberto Direr veste as almas que dramatizam a sua criagao: no so as atitudes penosas, as fealdades vulgares, a grossura bestial dos mnisculos nos primeiros pintores da Renascenga: 0 que se admira 6a pintura perfeita de Ticiano e dos venezianos, onde a forma tem abeleza ideal e serena dos antigos deuses de marmore, mas anima- da por uma voluptuosidade delicada, por uma energia inteligente, e por uma fisionomia de estrutura que tem o que quer que seja de aristocratico e de cristao! O que se admira sobretudo é 0 tipo da forma ideal da escola de Florenga que teve os trés cimos da arte: Leonardo da Vinci, que dava ao corpo uma inteligéncia delicada, Miguel Angelo, que lhe dava uma sublimidade violenta, e Rafael, que lhe dava uma docura infinita, o que quer que seja da imortali- dade serena do Paraiso pagao, aquela suavidade luminosa, aquele equilfbrio perfeito de todas as maneiras da alma que mais tarde Mozart teve na musica, e Goethe na poesia. Nesta pintura a expressao moral nao tem ascendente: ha, como na arte grega, o equilfbrio perfeito e ritmico da alma e da forma. Miguel Angelo, todavia, comeca na Capela Sistina a revelar na pintura os dramas da alma que hao-de ser o caracter da escola de Rembradt e dos flamengos Van Ostade, Gerard Dow, etc.,e depois, mais tarde, serao a pintura francesa de 1830, de Delacroix, de De- laroche e de Ary Scheffer. Por consequéncia 0 ideal na pintura é 0 corpo perfeito e a be- lanudez animal. Foi durante quinhentos anos 0 estudo das escolas da Itélia! Foi esse o mistério religioso da Grécia! E essa também a beleza da escola de Flandres, pequeno pais catélico do Sul, perdido nos nevoeiros espiritualistas da Alema- nha. Af, as escolas de que safram Tarberg e Metzu fazem o estu- do do corpo; mas como pintavam a existéncia do seu tempo, nao 0 puderam nunca libertar das deformagées da vida mecanica e pra- tica. A perfei¢ao foi alcancada pela escola de Rubens, apesar da vi léncia bestial, da sensualidade monstruosa, do esplendor brutal da carnagao, das decoragoes do vestuario, das atitudes sanguineas — e carnais dos seus tipos, que parecem representar uma geracao nascida para engordar e para roncar! illo, mesmo, catélico e exaltado, dé As suas Virgens a © melodiosa, 0 olhar vital, 08 cabelos deslumbrantes, oa nguineos, e todo aquele céntico de carne que é o ideal ita. seu «Sao Jodo» 6 uma crianga robusta e perfe er, podera ser Apolo! Em presenga deste ideal da arte, serenidade inteligente ita que um dia, se cre: realizado na Itélia, com a aquela raga, eem Flandres, com a'anima. lidade daquele pais de pastagens, vé—se que importancia poderao ter na arte a pintura dos costumes, os quadros domésticos, arepre- sentagéio por meio de formas das pequenas comédias ou dramas da vida real, os desenhos degénero, as aquarelas, a estatudria oficial, ea paisagem. A mesma importéncia que tem nimagem coloridade um figurino diante da «Jocunda» de Leonardo da Vinci ou uma fi- gura grotesca de biscuit em presenca do Antinotis. Em 1830, em Franca, a pintura tornou-se dramAtica. Dela- croix, Delaroche, Ary Sheffer, Ingres, abandonaram a idealizagao do homem material, pela pintura do homem espiritual. Represen- taram com formas, com atitudes e com coloridos todos os dramas interiores do espirito, todos os fragmentos do homem ideal. Foi a pintura da alma. Os quadros sao epopeias, satiras, idflios, on dra- mas. Nao se compreendiam, entao, quase, os pintores anatomistas da Renascenga, admiradores pagaos dos musculos e da energia animal. Oseu fim era, como o das antigas escolas germanicas, 0 es- tudo da pessoa espiritual, com as profundidades do cardcter, com os sonhos intensos, com a poesia pungente do sentimento. Isto era 0 tempo em que 0 tipo dominante na arte, e na poesia sobretudo, era o homem de paixées espiritualistas, nostalgico, nervoso, cheio de lirismo, lacrimoso pelas dores num fraco, com oa do espfrito e do coracio — no meio de uma gera¢gao is Gees ae aparece em todo teatro de Victor Hugo, em Se dre Dumas, nas elegias de Musset, nos livros mérbidos de Vigny, de Mallefille, de Morice, de Sand, 6 simplesmente o filho popular da revolucao, que, vendo-se livre das servilidades e tendo ag imei ez, no mundo real, o direito de falar e de pensar, faza Rares 6ria das suas pequenas tristezas do peewee Dear eeien pea degeneracao de Fausto, 0 ver- Pe Ee eat ak jIudido da ciéncia, da vida, da arte, dadeiro idealista, o homem desiludido a, ‘dante é fim se refugia num estoicis da filosofia e até da matéria, que not fondo Aooriing ae i vivo no fundo docoracaoom Pence ey eee onde deere e dos desejos nevralgicos. do incorporal das curiosidades » 30 tinham em vis- i tores franceses de 1830 tinham | Era este tipo que os pin ligiosas e nas criagdes historicas. Os ta, ainda mesmo nas pers ISchetfer tém a alma de Fausto, no Cristos de Delaroche, e de Ary Sche' W Sto, quanto se estava longe pier na ex Pree nee a sentimento da vida fisica, do centro luminoso da arte italiana, i al iva, viva es@: da contemplacao harmoniosa da beleza corporal, activa, a ==... Este espiritualismo ainda nao cessou de ser a inspiragao doentia cinta da arte moderna. ‘ es Na 6poca gloriosa da Renascenga nao se conhecia a paisagem: mente, uma decoragao, um fundo onde se perdiaa iz. Aarte 6a verdade natural da alma e do corpo, | ‘da vvida real. A Natureza é verdadeira por si, exis- forca e apenas pode ser copiada radiosamen- 7 te. Mas em questies de copia, a fotografia 6 sempre preferivel a a pintura, pelo realismo correcto e pela verdade geométrica. A jdealizacao da Natureza, ou como vegetagao, ou como atmosfera, ou como agua, seria uma transformagao grotesca. Demais, o proceso do colorido nao pode reproduzir toda a cor vital, anima- da, luminosa da Natureza organica. A paisagem hoje é ainda um resultado da pintura espiritualista. Claudio Loreno, Lantara e 0s paisagistas modernos revelam, por meio de perspectivas e de ho- ontes, todo o estado ideal do seu pequenino corac¢aa: querem que as arvores digam as suas contemplacoes, e a agua o seu choro inte- rior. Quando Lantara pintava os grandes luares silenciosos alumiandoas clareiras, queria revelar a sua tristeza vasta e feliz, todo o indefinido da alma. Esta pintura, assim, aceita—se junto da grande arte plastica comoosidilios vegetais de La Fontaine se admitem, por condescen- déncia, ao pé das fortes almas da epopeia shakespeariana. Estou fatigado de escrever, senao dizia o motivo porque hoje temos 0 culto da pintura dramatica e nao compreendemos a pin- tura plastica da Renascenga: mas eu quero dizer ainda como a pintura portuguesa é a apara inutil de toda a imensa criacao ar- tistica. A pintura portuguesa nao tem o grande fim ideal da arte, oes- tudo da beleza nua; nao tem sequer o sentimento dramatico; nao é mesmo imitativa: nem mesmo é€ cépia estéril! A pintura portuguesa, quando pinta o corpo, faz—the a carica- tura; quando quer reproduzir a vida, desentranha-lhe a farsa idio- ta; quando quer imitar a Natureza, fa—la grotesca e absurda. Nao pertence ao numero de tentativas inexperientes, em que se pressente todavia uma futura atitude artfstica, cheia de poder e de vida; nao é também uma decadéncia onde através das degra- dagdes e dos defeitos do gosto, da verdade, da beleza, se descobrem ainda os caracteres superiores que fizeram 0 periodo de florescén- cia. O que é, nao tem nome. Nas outras escolas, quando a arie se transvia nos maus ca-_ minhos e se afasta da idealizagao do corpo e do culto da verdade transfigurada em beleza, a0 menos compensam os seus erros pela correcao do desenho e da forma, pela delicadeza, transparéncia e renlidade do colorido e pela escolha inteligente e original das era ela, simples depradacao da lv sem ainfluéncia te na pureza da sua L. B, 508 — 10 a eee 7 Jn Pe v7 desenho é grotesco, nao tem o« Em nana $'flutuante, tem a confusao obseui rele ativo, nao é real, na pintura portuguesa um rosto 0 colorido é fantastico, e gratuito, nao héaluz, a . réncia, a claridade difusa, a opacidade fort a—ha grandes cea ce tinta! A can ecostuma ser um medalhao de escar! jate, quando. Saeed de amarelo, quando é linfatica, hé a confu das cores desmentindo as realidades e as reses, hé animais ne quadros que tém 0s coloridos visiondrios de flores de legen colorido, nesta arte, 6 sempre opaco morto, pesado, ebago; dros sao apenas [a el]! produgées da paleta suja. Nao ha ideias, ha cépias estéreis que o desenho conhecidas, e 0 colorido fantasticas; estuda—se a imobilid natureza—morta, desenha-se a atitude banal de um boi ap: uma mulher arrastando grandes folhos, no asfalto de ur julga-se ser isto uma criagao e uma ideia! ‘Desconhecem o Belo, estragam o Suportavel, sao pé: Péssimo! Termino. Possa esta geragéo moderna de artistas, netrando-se da religido da Arte, estudar, pensar, viver da. vida espiritual no reftigio e na concepgao do Belo. Nés, ticamos, temos por tinica recompensa destes dsperos e ¢ sacrificios A verdade a glorificagaéo dos que criam: e qi linhas escreve quereria bem, oh meus amigos, artistas e res, apertar—vos a mao, no dia dos triunfos, lembrando—v« jé houve uma raga de homens que deram a este pafs a éoideal do corpo, haja agora uma geracao nova que lhe: que é a forca da alma. aproxi um rosto _tinta, a transpal colorido na sombr:

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