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Um percurso psicanalítico pela mística,

de Freud a Lacan
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
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Marlos Gonçalves Terêncio

Um percurso psicanalítico pela mística,


de Freud a Lacan

Prefácio
Marco Antonio Coutinho Jorge
© 2011 Marlos Gonçalves Terêncio
Direção editorial:
Paulo Roberto da Silva
Editoração:
Carolina Pinheiro
Capa:
Maria Lúcia Iaczinski
Revisão:
Flavia Vicenzi

Ficha Catalográfica
(Catalogação na fonte elaborada pela DECTI da Biblioteca Central da Universidade
Federal de Santa Catarina)

T316p Terêncio, Marlos Gonçalves


Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan /
Marlos Gonçalves Terêncio. – Florianópolis : Ed. da UFSC,
2011.
228 p.
Inclui bibliografia.
1.Psicologia. 2. Psicanálise. 3. Mística. I. Título
CDU: 159.964.2
ISBN 978-85-328-0545-4

Este livro está sob a licença Creative Commons, que


segue o princípio do acesso público à informação. O livro
pode ser compartilhado desde que atribuídos os devidos
créditos de autoria. Não é permitida nenhuma forma de
alteração ou a sua utilização para fins comerciais.
br.creativecommons.org
| Agradecimentos |

A primeira versão deste estudo foi apresentada como dissertação de


mestrado ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade
Federal de Santa Catarina, em setembro de 2007.
A atual versão apresenta poucas modificações em relação ao texto
original, porém contou com valiosas contribuições da banca examinadora,
composta pelos professores doutores Marco Antonio Coutinho Jorge,
Kleber Prado Filho e Fernando Aguiar Brito de Sousa. A este último, meu
orientador, dedico os mais sinceros agradecimentos pelo constante incentivo à
produção de uma pesquisa que realmente correspondesse aos meus desígnios
pessoais e profissionais: nesse sentido, sua orientação bem expressou a ética
psicanalítica de possibilitar ao sujeito agir em conformidade com seu desejo.
Ao professor Marco Antonio Coutinho Jorge, em especial, manifesto
profunda gratidão pelo incentivo à publicação deste trabalho.
O imperador Wu da Dinastia Liang, que era um budista
devoto, convidou o grande mestre zen Bodhidharma para o
palácio, de forma a indagá-lo sobre o budismo:
“Qual é a mais sublime verdade da doutrina sagrada budista?”,
o imperador inquiriu.
“Vazio incomensurável... e nenhum traço de santidade”, o
mestre respondeu.
“Se não há nenhuma santidade”, o imperador disse, “então
quem é você?”
“Eu não sei”, o mestre respondeu.

adaptado de Suzuki
(1961, 1991)
Sumário

Prefácio ............................................................................................................11
Introdução .......................................................................................................15

| Capítulo 1 |

A mística na psicologia e na cultura ...............................................................21


1.1 As várias acepções do termo .............................................................................21
1.2 Perenialismo versus construtivismo .................................................................23
1.3 Características da mística .................................................................................25
1.4 Esoterismo e ocultismo.................................................................................... 26
1.5 Mística e religião .............................................................................................. 27
1.6 Algumas escolas místicas ................................................................................. 29
1.7 Estágios da mística ............................................................................................37
1.8 O interesse contemporâneo pela mística ........................................................ 38

| Capítulo 2 |

Freud e a mística: primeiras interações ..........................................................41


2.1 Exorcizando o obscurantismo ..........................................................................41
2.2 Exorcizando a ilusão .........................................................................................45
2.3 O abismo oriental ............................................................................................. 47

| Capítulo 3 |

Freud, Rolland e o sentimento oceânico ........................................................51


3.1 Um amigo muito admirado ..............................................................................51
3.2 Um desafio para Freud ..................................................................................... 52
3.3 Mística e regressão ............................................................................................58
3.4 Oceano narcísico .............................................................................................. 60
3.5 Luto e melancolia ............................................................................................. 64
3.6 O sentimento oceânico não é primário ........................................................... 66
3.7 Regozijos na rósea luz ...................................................................................... 69
3.8 Aproximações entre a psicanálise e a mística ..................................................71
3.9 Modelos de compreensão da mística ................................................................75
| Capítulo 4 |

Mística, amor e sublimação ............................................................................81


4.1 Eros em ação......................................................................................................81
4.2 Debatendo o amor universal ........................................................................... 82
4.3 As pulsões ......................................................................................................... 84
4.4 As pulsões sociais e a sublimação .................................................................... 87
4.5 O amor e a busca pela completude perdida ................................................... 93

| Capítulo 5 |

Mística e estruturas clínicas .........................................................................101


5.1 O sujeito obsessivo e o misticismo .................................................................101
5.2 Estrutura histérica e misticismo ................................................................... 106
5.3 Mística e psicose..............................................................................................113

| Capítulo 6 |

Mística e gozo ...............................................................................................127


6.1 Delimitando o campo do gozo .......................................................................127
6.2 O gozo do Outro.............................................................................................131
6.3 O gozo fálico ...................................................................................................132
6.4 A sexuação masculina e feminina ...................................................................135
6.5 O gozo feminino .............................................................................................141
6.6 O gozo místico ............................................................................................... 144

| Capítulo 7 |

A mística entre o sentido e o não-sentido ....................................................157


7.1 A mística e o real .............................................................................................157
7.2 Lacan, o Tao e a tópica do real .......................................................................159
7.3 A sublimação e a Coisa ................................................................................... 164
7.4 A mística na fronteira entre o sentido e o não-sentido..................................169
7.5 O despertar e a desconstrução do sentido na psicanálise ..............................172
7.6 O despertar e a desconstrução na mística ......................................................176
7.7 O despertar radical do sentido e a pulsão de morte .......................................191

Considerações finais ......................................................................................199


Referências.....................................................................................................203
Anexo: O mergulhador (1797), de Friedrich Schiller.....................................217
| Prefácio |

Esta obra de Marlos Terêncio surpreenderá o leitor pela


qualidade de sua pesquisa, tão ampla quanto original; pelo seu estilo,
claro e conciso; e, sobretudo, por sua coragem, ao abordar um tema por
si só polêmico e que, além disso, solicita um conhecimento da teoria
psicanalítica muito sólido e abrangente.
O que o autor nos apresenta é uma visão ampla, tanto do ponto
de vista histórico quanto conceitual, dos trabalhos psicanalíticos sobre
a mística. Aprendemos, com ele, que a visão do próprio Freud sobre
o assunto está longe de ser unívoca. O eixo principal de seu trabalho
reside na demonstração de que as hipóteses desenvolvidas por Freud
sobre o “sentimento oceânico” dominaram a reflexão psicanalítica
sobre o misticismo até Lacan, na última parte de seu ensino, introduzir
uma abordagem radicalmente nova do problema – através da dimensão
do gozo do Outro.
Talvez por sua complexidade, o estudo dos místicos pela
psicanálise tenha sido deixado de lado durante muito tempo. Freud
se dedicou quase exclusivamente a abordar a religião em seu famoso
ensaio O futuro de uma ilusão, no qual concentra seus esforços em
localizar o poder da religião na dependência do desamparo infantil que
deixa sua marca indelével no adulto. O homem religioso, com seu deus-
pai todo poderoso, se comporta como a criança pequena para a qual o
pai representa uma proteção em relação aos inúmeros perigos que a
vida oferece. Em essência, a religião constitui para Freud a tentativa
mais poderosa de dar sentido à vida e, por isso mesmo, ela é capaz de
fornecer sentido inclusive para a morte. Pois como conciliar o sentido
que a religião prega incessantemente – através, sobretudo, da apologia
do amor e do recalcamento do ódio – com o não senso da morte, senão
dando a esta igualmente uma significação última e essencial?
O diálogo estabelecido entre Freud e o pastor Oskar Pfister foi
bastante ilustrativo disso, ao mostrar que este último renegou de modo
absoluto a derradeira visão de Freud sobre as pulsões, divididas, a partir
de 1920, em dois campos opostos – de vida e de morte. Para Pfister,
12 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

que também era psicanalista e discípulo de Freud, foi totalmente


impossível assimilar a teoria da pulsão de morte, pois como conciliar
com a religião a ideia de que no cerne do aparelho psíquico do homem
impera soberano o desejo de morte?
Mas a religião não é a mística; ao contrário, ambas parecem ter
estruturas bastante diferentes e deduz-se desta obra que tudo se passa
como se o religioso viesse recobrir, a posteriori, aquilo que, no místico,
constituiu uma manifestação autêntica e originária. Se, em seu artigo
“Atos obsessivos e práticas religiosas”, Freud comparou a religião com
a neurose obsessiva e chegou a dizer que ela é a neurose obsessiva da
humanidade, a mística é de outra ordem. Ela está muito mais próxima
das colocações de Romain Rolland – quem Freud tinha em altíssima
conta – sobre o “sentimento oceânico”, o qual é abordado em O mal-
estar na cultura e constituiu objeto de uma amigável discussão entre
eles.
É especialmente notável, nesta obra, a quantidade de elementos
novos que são trazidos à luz, dentro do contexto dos estudos lacanianos
contemporâneos: o artigo de Bruno Goetz sobre seu breve e fulgurante
contato com Freud, que expressa sua inédita opinião sobre o poema
Bhagavad-Gita; o poema de Schiller O mergulhador, citado por Freud
nessas conversas; os trabalhos de William Parsons sobre a questão
do “sentimento oceânico” na obra de Freud; os ensaios de Sudhir
Kakar sobre o místico hindu Ramakrishna; o caso paradigmático de
Madeleine, tratada por Janet e estudada por Cathérine Clément.
Distinções clínicas essenciais são trazidas neste percurso, como,
por exemplo, a diferença, muitas vezes difícil de ser estabelecida, entre
o verdadeiro místico e o delirante místico: a posição do místico é a de
um sujeito que busca algo ativamente na experiência mística, ao passo
que, no psicótico, trata-se de uma posição passiva de objeto invadido
pelo gozo do Outro. A distinção entre loucura histérica e psicose pode
retirar daí, igualmente, vários ensinamentos para a clínica psicanalítica.
Assim, Marlos Terêncio faz um percurso que vai até o último
segmento do ensino de Lacan em torno do conceito de gozo. Com
a elaboração lacaniana, as questões colocadas por Freud sobre o
enigma do feminino e seu “continente negro” encontram um alcance
diferente. Radicalizando as proposições de Freud sobre o núcleo do
inconsciente enquanto atravessado por uma falta de saber em torno
Prefácio | 13

da qual se constrói o saber inconsciente fantasístico, Lacan desvincula


a diferença sexual entre masculino e feminino da mera diferença
anatômica corporal e introduz a noção de uma diferença de gozo: o
gozo masculino é limitado, fálico, regido pela linguagem (o falo é o
significante que sustenta a cadeia de significação) e cernido pela fantasia;
o gozo feminino é ilimitado, ultrapassa as fronteiras da linguagem e
se conecta com o real mais além dela. O gozo feminino participa do
registro fálico, mas não é totalmente recoberto por ele, algo lhe escapa
e cai na dimensão do indizível. A mulher é, assim, não-toda fálica,
conclui Lacan.
Com a renovação da visão psicanalítica sobre o feminino, Lacan
pode se voltar para o místico munido de novas ferramentas: o místico
frequenta essa região do gozo feminino de modo tão particular que
ele acaba representando a mais excelente forma de o feminino se
manifestar, expondo a sua estrutura como nenhum outro. Por isso
Lacan considera que o místico produziu o que há de melhor na poesia
– por exemplo, São João da Cruz, ao dizer “Penetrei onde não soube
e fiquei não o sabendo, toda ciência transcendendo”, parece designar
com precisão o lugar sustentado pelo psicanalista em sua mais radical
relação com o inconsciente.
Não são muitos os livros de psicanálise que se leem como este,
com o prazer que Borges afirmava ser imprescindível em toda leitura.
Nesse sentido, este livro de Marlos Terêncio é uma feliz surpresa
no campo das publicações de psicanálise e se tornará uma leitura
fundamental para os estudiosos do assunto.

Marco Antonio Coutinho Jorge1


Rio de Janeiro, 14 de junho de 2011

1
Psiquiatra, psicanalista, professor adjunto do Programa de Pós-Graduação em
Psicanálise da UERJ, pesquisador do CNPq. Diretor do Corpo Freudiano Seção
Rio de Janeiro, membro da Sociedade Internacional de História da Psiquiatria e
da Psicanálise, membro da Association Insistance (Paris/Bruxelas).
| Introdução |

Algumas das contribuições mais pungentes da psicanálise


freudiana para a cultura são suas análises dos fenômenos religiosos. De
fato, a religião não passou despercebida por Freud desde os primeiros
anos de sua grande invenção, e não foram poucos os trabalhos dedicados
ao tema ou com menções ao assunto. Em termos de repercussões na
cultura, destaca-se a obra de 1927, O futuro de uma ilusão.
Como uma das formas de pensamento mais proeminentes da
modernidade, a psicanálise teve e mantém grande influência naquilo
que Max Weber (1968) denominou o “desencantamento do mundo”,
que pode ser entendido como a separação entre as esferas da arte, da
moral e da ciência (HABERMAS, 1992), de forma que cada qual pôde
seguir rumo próprio sem as interferências, entre outros, de dogmas
religiosos (WILBER, 2002). A modernidade buscou o fim das trevas
medievais por meio das luzes da razão. Nessas trevas inclui-se o
fantasma da ilusão, que Freud igualou à religião.
Apesar dos múltiplos ataques sofridos e do desenvolvimento
vertiginoso das ciências, as religiões resistem e, como consequência, as
análises de Freud rendem debates, estudos e polêmicas até os dias de
hoje. Estes, por sua vez, geram livros, artigos, dissertações e teses em
um processo aparentemente sem fim.
Em contrapartida, as comunidades psicanalíticas, em suas várias
vertentes, têm insistentemente relegado ao segundo plano o fenômeno
místico, que é, aliás, comumente compreendido como sinônimo de
religião – o que não é o caso em absoluto.
Com efeito, esse aparente descaso pelo misticismo – ou mística
– tem origens na própria obra freudiana. Freud dedicou pouquíssimos
parágrafos de seus escritos ao tema, e podemos pensar que, se o fez, isso
se deve, em grande parte, à amizade e respeito com Romain Rolland.
Em 13 anos de correspondências, insistentemente o escritor francês
apresentou a temática ao mestre vienense, convocando sua opinião.
Contudo, se à época de Freud a mística era um tema secundário,
com pouca repercussão social, tal não é o caso nos dias de hoje. Houve,
após a Segunda Guerra Mundial, um ressurgimento do misticismo no
16 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

mundo ocidental. Segundo Rosolato (1980), seu avanço seguiu de mãos


dadas, paradoxalmente, com a redução das crenças religiosas, com a
descristianização do Ocidente, com o ponto de vista francamente
ateu de muitos intelectuais e, ainda, com o avanço do marxismo e
do freudismo. A mística ressurge então, na época contemporânea,
como uma reação contra o avanço da ciência materialista positivista
(o “cientificismo”), mas principalmente em virtude de um interesse
renovado no irracional (ROSOLATO, 1980). A esse respeito, pode-
se inclusive dizer que a cultura atual recupera a corrente artística do
romantismo, a qual também desenvolveu interesse pela mística na
pintura e na poesia (VERGOTE, 2003).
Do ponto de vista materialista e mecanicista, a mística seria puro
nonsense, irracionalismo obscurantista – o suficiente para definir uma
psicopatologia. Tratar-se-ia de um fenômeno a ser tachado e ignorado:
compreensão reducionista que remete ao que era feito da histeria sob o
olhar dos neurologistas (ROSOLATO, 1980).
Não obstante, o advento da modernidade tardia, ou ainda, da
pós-modernidade, trouxe à cena um amplo desencanto com o potencial
universal do projeto iluminista (FEATHERSTONE, 1995). Essa
nova fase do pensamento ocidental, apesar de possuir muitas facetas
que dificultam uma definição generalizante, surge como uma forte
desconfiança a todas as metanarrativas (LYOTARD, 1986) e, em
especial, àquela da ciência positiva.
Nesse novo contexto, muitos intelectuais passaram a se interessar
pela mística, entre eles Jacques Lacan. Segundo a historiadora Amy
Hollywood (2002), intelectuais como Georges Bataille, Simone
de Beauvoir, Jacques Lacan e Luce Irigaray, todos resolutamente
seculares e até mesmo anticristãos, foram raras exceções a uma ampla e
generalizada depreciação das formas afetivas e corporais do misticismo.
Para essa pesquisadora da mística feminina, “Bataille, Lacan e Irigaray
(e algumas vezes Beauvoir) leram essas mulheres [místicas] não como
escapistas emocionalmente excessivas e patológicas, mas como únicas
em suas habilidades de reunir ação e contemplação, emoção e razão,
corpo e alma”2 (HOLLYWOOD, 2002, p. 6).

2
Todas as citações em língua estrangeira foram traduzidas pelo pesquisador e
revisadas pelo professor Fernando Aguiar.
Introdução | 17

Lacan claramente relaciona o gozo dos místicos ao gozo


propriamente feminino, e seu seminário Mais, ainda (1985), de 1972-
1973, é certamente um marco do estudo de ambos os temas. Contudo,
como diz Soler (2005, p. 18) em trabalho recente, “essa série, pouco a
enriquecemos desde então”.
De fato, o estado-da-arte das incursões psicanalíticas na questão
do misticismo é bastante modesto, conforme será visto ao longo
deste trabalho. Isso se reduz ainda mais quando restringimos o foco à
psicanálise lacaniana.
A mística impõe uma série de questionamentos à psicanálise: qual
a natureza do “sentimento oceânico”, tal como descrito por Romain
Rolland? Como se explica o “amor universal” tão comumente encontrado
nos místicos? Como se concebe o gozo dos místicos e de que forma ele
se relaciona com o gozar específico às mulheres segundo as fórmulas
lacanianas da sexuação? Que relações se depreendem da consideração
sobre a sublimação e a pulsão de morte na temática do misticismo? E
acima de tudo, será a mística um fenômeno que se enquadra no âmbito
da pura produção de sentido, tal como a religião, ou a sua alardeada
inefabilidade aponta para o limite do saber – o não-sentido?
Considerando tais questões, este trabalho objetiva explicitar as
elaborações psicanalíticas sobre a mística que podem depreender-se da
obra de Freud, Lacan e comentadores, tomando-se como diretrizes as
incursões dos dois primeiros na temática.
Para tanto, a investigação orienta-se de acordo com três eixos
temáticos: a discussão entre Freud e Romain Rolland a respeito do
“sentimento oceânico”, a articulação entre o gozo feminino e o gozo
místico feita por Lacan e a dialética sentido/não-sentido no misticismo.
Trata-se, pois, de um percurso psicanalítico pela mística, conquanto
outros sejam igualmente possíveis.
Tendo-se em vista que o misticismo é carregado de várias
acepções e, ao mesmo tempo, pouco conhecido, o capítulo 1 serve como
verdadeira introdução esquemática ao tema, apresentando as definições
mais correntes no âmbito da psicologia e considerando sua relação com
a religião, por um lado, e com o esoterismo, por outro. Além disso,
apresentam-se questões epistemológicas para o trato da mística, uma
vez que não há consenso sobre a universalidade desse fenômeno.
18 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

O capítulo 2 discorre sobre as primeiras aproximações de Freud


ao tema do misticismo, considerando que o termo era muitas vezes
utilizado como simples sinônimo de superstição ou derivados. Pondera-
se aqui sobre a formação e o contexto intelectual bastante positivista à
época do inventor da psicanálise, assim como sua necessidade premente
em denunciar e desta afastar o fantasma da ilusão (a religião). Por fim,
cita-se, a partir de relato de Bruno Goetz, palavras pouco conhecidas
de Freud, as quais revelam outra faceta de seu pensamento, como o
respeito e o entendimento sobre a mística oriental.
No capítulo 3, adentra-se no diálogo entre Freud e Rolland,
especificando inicialmente um pouco da vida e obra deste último.
São sucessivamente descritas várias correspondências entre os autores
sobre o tema da mística e, mormente, a carta na qual Rolland refere-se
ao “sentimento oceânico” como diferente do fenômeno religioso, assim
como a resposta de Freud publicada no primeiro capítulo de O mal-estar
na cultura (1930). Para ponderar as análises de Freud, são comentados
conceitos-chave psicanalíticos, como regressão, narcisismo e luto em
suas possíveis relações com o tema desta investigação. Também se traça
um panorama das principais menções de Freud ao assunto, levantando
a hipótese de que o autor foi ambivalente em seus julgamentos, o que,
por consequência, fomentou diferentes caminhos interpretativos nas
análises pós-freudianas.
O capítulo 4 é dedicado a uma primeira análise do amor, tal
como aparece insistentemente nas experiências místicas, assim como
do erotismo que também lhes é patente. Ainda à luz do pensamento
de Freud, serão trabalhadas as pulsões e o conceito de sublimação.
Inaugurando uma abordagem lacaniana para a questão, parte-se para
a análise do amor enquanto ilusão de completude que proporciona ao
místico uma miragem de felicidade perfeita em um suposto mundo
anterior à linguagem.
O capítulo 5, por sua vez, apresenta trechos biográficos de
místicos em diferentes tradições e busca tecer algumas relações com as
estruturas clínicas das neuroses obsessiva e histérica. Finaliza-se com
uma breve análise da questão da psicose no misticismo, debatendo-se as
possíveis aproximações e distanciamentos entre esses dois fenômenos.
O capitulo 6 discute a maior contribuição direta de Lacan ao
tema, qual seja, a abordagem do gozo místico em sua relação com
Introdução | 19

o gozo feminino, conforme exposto originalmente no seminário


Mais, ainda (1972-1973). Características da experiência mística como
a inefabilidade, a suposta passividade e a relação com um Deus são
analisadas nesse âmbito. Mas, para tanto, a temática é introduzida
pela conceituação do gozo em Lacan e pela descrição de algumas
modalidades do gozar; por fim, analisam-se as fórmulas da sexuação.
O capítulo final é dedicado a debater a questão do sentido e do
não-sentido no âmbito da mística, com base na tópica lacaniana do
Real-Simbólico-Imaginário (RSI). Inicia-se comentando as relações
possíveis entre a mística e a tópica do real, inclusive a partir das incursões
do próprio Lacan pelo taoismo. Na sequência, explora-se o conceito de
sublimação em Lacan para trazer à cena a questão do contato com das
Ding. Apresenta-se a hipótese de que a mística não concerne somente
ao campo do sentido – que tampona a Coisa, tal como na religião –
pois que também, por outro lado, ela parece se aproximar da Coisa,
desvelando o não-sentido. Especificamente, verifica-se a possibilidade
de que certas práticas místicas possam atuar desconstruindo o âmbito
do sentido, provocando experiências de despertar. Encerra-se a pesquisa
analisando a hipótese do despertar absoluto do sentido, conforme
preconizado pelo budismo, relacionando aquele à pulsão de morte.
O leitor perceberá que houve esmero na apresentação dos
conceitos psicanalíticos utilizados para a análise do fenômeno místico.
Assim, a obra se destina tanto ao público leigo quanto aos iniciados na
psicanálise freudo-lacaniana.
Conforme já mencionado, a realização deste estudo justifica-se
pela necessidade de aprofundar a investigação psicanalítica acerca de
um fenômeno que não é mais marginal como o fora até o advento da
era moderna, e que inclusive parece assumir no psiquismo coletivo o
espaço do sagrado, gradualmente abandonado pelas religiões.
Por outro lado, na esteira de uma comparação entre o misticismo
e a histeria no que concerne a um descaso generalizado por parte das
ciências (ROSOLATO, 1980), deve-se lembrar que a psicanálise, ao
conceder uma escuta privilegiada à histeria, logrou em troca alcançar
muito do que sabe a respeito do inconsciente e do psiquismo como um
todo. Nesse mesmo sentido, acredito que o campo do saber inaugurado
por Freud tem muito a ganhar com a ampliação de sua escuta a esses
fenômenos singulares que constituem a mística.
| Capítulo 1 |

A mística na psicologia e na cultura

1.1 As várias acepções do termo


Esta investigação não pode começar sem antes definir, tanto
melhor quanto possível, seu objeto. Isso se faz especialmente importante
quando tal objeto é recortado por palavras nas quais deslizam múltiplas
significações. Afinal, o que é um místico? Um crente, um charlatão,
um supersticioso, algum tipo de santo, ou algo ainda pouco explicável?
Vários sentidos circulam pelo mesmo significante.
Em sua acepção mais relacionada ao senso comum e,
ironicamente, também ao discurso científico tradicional e positivista,
o misticismo diz respeito a uma “inclinação para acreditar em forças
e entes sobrenaturais e preocupar-se com eles, em detrimento das
explicações racionais e científicas; credulidade” (HOUAISS; VILLAR,
2001, p. 1935). É o campo da crendice e da superstição. Já na sua
época, o filósofo e psicólogo William James, em seu conhecido tratado
The varities of religious experience (1997 [1902]), lembra que os termos
“misticismo” e “místico” eram muito usados como meras reprovações
a qualquer opinião considerada vaga, incomensurável ou sentimental,
sem base em fatos ou lógica. Esse é um significado frequente na obra de
Freud, por exemplo, conforme será visto no capítulo 2.
Etimologicamente, a palavra misticismo, ou “mística”, deriva
do grego mustikós, que significa literalmente “esconder”. No mundo
helenístico, referia-se aos rituais religiosos secretos. No cristianismo
arcaico, o termo indicava especialmente as interpretações “ocultas” das
Escrituras e presenças simbólicas em rituais, tal como a de Jesus Cristo
na Eucaristia. Somente mais tarde é que o termo passou a denotar
“teologia mística”, na qual se inclui a experiência direta do divino
(GELLMAN, 2005).
22 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

Perceba-se, por um certo ângulo, que todas essas ideias –


credulidade, vagueza, rituais e interpretações secretas – entram em
choque com os ideais de objetividade, secularidade e racionalidade
da era moderna, e desta forma não surpreende que definições tão
“fora de moda” possam assumir faces ainda mais pejorativas, como
as adotadas no verbo “mistificar” e derivados. O significado, nesse
caso, é o de abusar da credulidade de alguém ou ainda o de enganar,
lograr, ludibriar (HOUAISS; VILLAR, 2001). Em síntese, as acepções
apresentadas até o momento definem misticismo como a arte de crer ou
fazer crer que algo explicável em termos racionais seja vago, impreciso
ou sobrenatural. Como tal aproxima-se, portanto, do charlatanismo,
tanto de quem o realiza como daquele que ingenuamente se deixa iludir.
Não obstante, existe para o objeto desta investigação um sentido
mais específico que escapa àqueles de depreciação, pois descreve um
fenômeno humano aparentemente muito comum em diversas culturas
ao longo da História: a experiência direta da divindade. Nessa acepção,
o misticismo está relacionado a uma atitude mental, baseada mais na
intuição e no sentimento do que no conhecimento racional, visando, em
última instância, à união íntima e direta do homem com a divindade. No
dicionário de filosofia de André Lalande, define-se esse fenômeno como a
crença na possibilidade de uma vinculação íntima e direta do
espírito humano com o princípio fundamental do ser, união
que constitui ao mesmo tempo um modo de existência e um
modo de conhecimento estranhos e superiores à existência e ao
conhecimento normais. (LALANDE, 1996, p. 685-686).
Com tais definições, seria mais adequado denominar o fenômeno
de “mística”, de forma a demarcar uma separação dos sentidos
pejorativos já citados. Dentro desse entendimento, a mística comporta
sempre uma vivência muito particular, intitulada experiência mística: o
sentimento de transcender os limites do self (si-mesmo) e estabelecer
uma espécie de fusão com a divindade, com o universo, com o mundo
natural ou simplesmente com algo mais vasto que o próprio sujeito.
Fenomenologicamente, poderiam ser citados ao menos três tipos de
vivências “fusionais” místicas:
1) o estado de sentir-se unido à natureza; 2) a sensação de fusão
do eu com a Divindade mas com a manutenção do senso de si
mesmo; 3) uma perda do senso de si mesmo – a fusão do eu com
Capítulo 1 – A mística na psicologia e na cultura | 23

o outro de modo a existir apenas o elemento uno, que se difunde


em todas as coisas. (PRINCE; SAVAGE, 1993, p. 114).
Porém, ao contrário dos estados de possessão que ocorrem em
determinados contextos culturais, a maioria desses estados parece
ocorrer numa consciência mais ou menos serena, “uma vez que pode
ser relembrada após o retorno da consciência comum” (PRINCE;
SAVAGE, 1993, p. 114). Logo, a definição mais essencial desse fenômeno
se relaciona, segundo Stace (apud WAPNICK, 1993, p. 135), com “a
apreensão de uma unidade não-sensual suprema em todas as coisas, uma
unicidade ou um Um no qual nem todos os sentidos nem a razão podem
penetrar”. Essa é uma das acepções de misticismo a ser investigada no
presente trabalho, com as lentes da psicanálise freudiana e lacaniana.

1.2 Perenialismo VERSUS construtivismo


A título introdutório, convém discorrer mais sobre o tema nos
âmbitos da psicologia e da filosofia. A abordagem nesses campos do
saber começa por um debate aparentemente insolúvel que polariza
pensadores em duas vias de aproximação à mística: o perenialismo
e o construtivismo. Os perenialistas, ou universalistas, defendem a
possibilidade de identificar experiências místicas comuns ou análogas
em diferentes culturas e tradições. Sua premissa básica é a de haver
uma diferença entre a experiência mística em si e sua interpretação,
que seria sempre subsequente e culturalmente determinada. Assim,
os misticismos poderiam ser definidos, comparados e classificados,
pois teriam uma base comum, de forma que sua diversidade tenderia
a existir unicamente no nível das interpretações, determinadas por
valores pessoais, ideológicos e culturais (GELLMAN, 2005).
Por seu turno, os construtivistas (ou relativistas) negam
completamente essas ideias. Para eles, os esquemas conceituais de cada
místico são altamente determinados pela tradição a qual pertencem,
e, como cada tradição é diferente, não poderia haver uma experiência
comum quando se comparam diferentes culturas. Enfim, para eles não
há diferença entre experiência e interpretação, pois entendem que o
aparato conceitual de cada indivíduo já é determinador no próprio ato
da percepção (GELLMAN, 2005).
24 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

Entende-se aqui que ambas as posições supracitadas possuem


tanto alcances como limites. O construtivismo tem razão em denunciar
a inexistência de misticismo “em abstrato”, porém, se essa posição for
levada ao seu extremo, dever-se-á abandonar, em última análise, a
própria possibilidade de teorizar sobre o fenômeno, visto que teorizar
é sempre um esforço para abstrair elementos comuns em diferentes
instâncias do mundo empírico.
É aí que entra a importância da posição perenialista, a ser aprovei-
tada com o cuidado de enfatizar também as especificidades dos misticis-
mos em diferentes tradições. Por ora vale a pena lembrar, ainda, que na
própria concepção do estado místico, em culturas díspares, encontra-se a
meta e a possibilidade de uma vivência que suspende ou atravessa os filtros
linguísticos e, por consequência, o âmbito interpretativo da cultura,
com seus conceitos, valores e ideologias.3 Místicos contemporâneos
como Krishnamurti (1895-1986) e Bhagwan Shree Rajneesh (1931-1990)
também se inclinam a explicar o misticismo como um único fenômeno
com diferentes facetas. Nesse mesmo sentido, Scholem (1972, p. 7)
esclarece haver “algo de peculiar neste múltiplo fenômeno histórico
[que] seria absurdo negar, e é este elemento peculiar, este ‘objeto’ de
toda mística, que é trazido à luz na análise comparativa das experiências
místicas pessoais”. O presente estudo não seria exequível, portanto, sem
o esforço comparativo das experiências místicas.

1.3 Características da mística


Esclarecidos esses posicionamentos de cunho epistemológico, as
definições e tipificações mais clássicas do objeto podem ser expostas.
William James (1997 [1902]) foi pioneiro naquilo que se pode definir
hoje como uma psicologia do misticismo. Ele classificou em quatro as
características mais essenciais dessa vivência em suas diversas formas
de manifestação:

3
A esse respeito Lalande (1996, p. 688) comenta: “A ideia fundamental do
misticismo parece, portanto, ser esta: nem as imagens nem os conceitos nos dão a
realidade; é preciso passar pelas coisas sensíveis e pelas representações intelectuais
como que por barreiras; e quando, através da vida purgativa e ascética nos despojamos
de nós e das coisas, e nos oferecemos despidos ao vazio, este vazio, esta noite escura
revelam a plenitude de uma vida que apenas parece oculta e ‘mística’ àqueles que,
segundo a expressão de Newman, não emigraram da região da sombra e das imagens”.
Capítulo 1 – A mística na psicologia e na cultura | 25

a. Inefabilidade: uma característica-chave do misticismo, que


impregna a experiência com uma qualidade impossível de definir
em palavras – ela nunca pode ser corretamente comunicada. Como
a linguagem é tida por insuficiente para dar conta da experiência,
apenas a vivência direta pode trazer sua compreensão, a qual
ultrapassa um entendimento meramente intelectual. Segundo
Lalande (1996, p. 687), trata-se aqui da “depreciação e como que
o apagamento dos símbolos sensíveis e das noções do pensamento
abstrato e discursivo” em prol de um “contato direto e imediato
do espírito com a realidade, sem intermediários”.
b. Qualidade noética: os estados místicos parecem ser estados de
conhecimento para quem os experimenta. Trata-se de insights
inacessíveis ao intelecto discursivo. “Elas são iluminações,
revelações, cheias de significância e importância [...] e como regra
carregam consigo um sentido curioso de autoridade por tempos
vindouros” (JAMES, 1997 [1902], p. 300). Logo, por estranho
que pareça, a ausência do pensamento abstrato e discursivo
provoca no místico a impressão de ter não menos, mas antes mais
conhecimento e mais “luz” (LALANDE, 1996).
c. Passividade: muitas das técnicas conducentes à experiência
mística são bastante ativas, contudo a experiência em si parece
relacionar-se a um estado no qual a vontade e o controle, em
termos cotidianos, ficam temporariamente suspensos. Tal
característica leva muitos místicos a interpretarem estar sendo
conduzidos por uma força superior.
d. Transitoriedade: os estados místicos são geralmente descritos
como de curta duração. São momentos fugazes após os quais a
pessoa retorna a um estado de consciência cotidiana normal.
Para além dessas características básicas apontadas por James
(1997 [1902]), outros autores afirmam existir um movimento ordenado
de desenvolvimento nas vivências místicas, que começam por
vislumbres transitórios e espontâneos, mas podem progredir para
experiências contínuas e duradouras (WAPNICK, 1993). É essa,
geralmente, a diferença entre o misticismo casual ou pessoal e aquele
intencionalmente buscado, por meio de técnicas diversas, nas escolas
místicas das religiões.
26 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

A esse propósito, Kakar (1997c) distingue o misticismo esporádico


daquele que é cultivado, incluindo no segundo tipo experiências de
maior regularidade e intensidade, como êxtases, visões e transes. Já
o primeiro caso costuma acontecer entre pessoas completamente
comuns quando, por exemplo, têm algum tipo de “sensação de além”, de
moderada sensação de unidade com outros seres, tal como o chamado
“sentimento oceânico” de Romain Rolland, a ser exaustivamente
trabalhado no capítulo 3. Segundo Kakar (1997c), pesquisas como a
realizada por Andrew Greeley em 1975 nos Estados Unidos indicam
que experiências místicas moderadas são razoavelmente comuns
mesmo em países sem um clima intelectual particularmente propenso
ao pensamento místico.4
Segundo Prince e Savage (1993) e Owens (19993), existem ao menos
mais duas características importantes na definição do misticismo, além
daquelas citadas por William James. A mais decisiva delas é a experiência
de fusão do “eu” com algo mais amplo, a qual, conforme já mencionado,
seria deveras comum. A segunda se refere ao êxtase advindo da experiência
“fusional”: uma sensação de júbilo e de completude com qualidade mais
intensa que a de qualquer outra vivência. É essa extravagância sensorial
a origem de grande parte do problema da inefabilidade pela qual passa o
místico ao tentar socializar sua vivência.

1.4 Esoterismo e ocultismo


Como já mencionado, na cultura helenística o misticismo se
relacionava com rituais religiosos secretos e, portanto, com o esoterismo
e o ocultismo, porém essas vizinhanças devem ser precisadas. Por
esoterismo entende-se um conjunto de conhecimentos, geralmente de
caráter religioso, a ser necessariamente mantido em segredo e transmi-
tido apenas a um pequeno número de iniciados (FAIVRE, 1994). Esses
conhecimentos constituem um corpus de assuntos ocultos de caráter
supranormal ou sobrenatural – o ocultismo. São exemplos de assuntos

4
Para Kakar (1997c, p. 104), a pesquisa de Greeley, intitulada The sociology of the
paranormal, demonstra que as pessoas que tiveram experiências místicas eram mais
instruídas que a média nacional e estariam livres de “quaisquer dificuldades neuróticas
óbvias”. Kakar não dá, entretanto, maiores detalhes sobre os critérios dessa avaliação
psicológica dos participantes.
Capítulo 1 – A mística na psicologia e na cultura | 27

esotéricos e ocultistas: a alquimia, a magia, a telepatia, a astrologia, a


comunicação com espíritos e muitos outros.
Essas definições nos permitem precisar que, enquanto o
esoterismo e o ocultismo tratam de conhecimentos e crenças sobre o
supranormal ou sobrenatural, o misticismo trata especificamente de
vivências “fusionais” com entidades sobrenaturais ou não. Certamente há
místicos que se embrenharam no campo das ciências ocultas, enquanto
outros formaram um conhecimento esotérico a partir de suas vivências
(o chamado “misticismo especulativo”); não obstante, afirma-se que a
relação entre misticismo, esoterismo e ocultismo não é necessária, apesar
de ser, por vezes, dificilmente demarcável. Deve-se lembrar aqui que
Freud pessoalmente se interessou pelo campo do ocultismo por meio da
telepatia,5 mas esse assunto não concerne ao estudo em tela.

1.5 Mística e religião


E o que dizer da relação entre misticismo e religião? Na medida
em que o primeiro comporta essencialmente uma vivência, a qual se
chama êxtase (LALANDE, 1996), considera-se que a mística trata de
uma experiência autoevidente, enquanto a religião pode caracterizar
tão somente a crença na palavra ou vivência de outrem. Nesse sentido,
Lalande afirma:
entre a ciência mística e o conhecimento teológico, metafísico
ou físico há uma diferença análoga àquela que separa como por
um abismo a impressão de um músico escutando uma sinfonia
e o comentário literário de qualquer homem culto (1996,
p. 687).
Destarte, o místico realmente vivencia aquilo que os religiosos
apenas sabem comentar, pois a erudição não é melhor do que a
experiência no que concerne à união do espírito humano com o princípio
fundamental do ser. Sob esse prisma, entende-se o misticismo como
“o núcleo vital da religião, sua forma pessoal ou subjetiva” (ASRANI,
1993, p. 189). As religiões, assim como os esoterismos, nutrem-se do
misticismo, mas este não necessariamente aproxima-se delas.

5
Sobre o assunto ver os textos freudianos Psicanálise e telepatia (1941[1921]), Sonhos
e telepatia (1922) e Sonhos e ocultismo (1933 [1932]).
28 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

Os defensores da mística acreditam que ela estava presente como


fundamento nas pessoas que deram origem a cada uma das grandes
religiões: Cristo, Buda, Maomé, Lao-Tsé, etc. Porém essa base, em
geral, não seria vivenciada por seus seguidores a partir do momento em
que a religião é instituída. Nesse sentido, como diz Abraham Maslow
(1993, p. 286), “a maioria das religiões acabou por negar e hostilizar o
próprio fundamento que, originalmente, serviu-lhes de base”.6
Desta forma, o misticismo é, muitas vezes, dissociado da religião
ortodoxa por possuir um caráter supostamente subversivo, na medida
em que seus adeptos não podem não aceitar qualquer tipo de autoridade
a mediar sua relação com a divindade: a relação buscada por eles é
direta, sendo também possível ser místico sem a submissão a nenhum
dogma religioso em particular. Segundo Asrani (1993, p. 189):
O misticismo [...] também tem sido descrito como a religião
desprovida de seu ritual e de sua teologia. Nem mesmo os
sistemas éticos desenvolvidos pela religião se incluem na esfera
do misticismo enquanto significam meramente submissão aos
códigos morais impostos pelas Escrituras ou pela sociedade.
São exemplos de místicos contemporâneos que não assumem
nenhum posicionamento dentro das religiões, mesmo tendo recebido
alguma influência delas: o russo George I. Gurdjieff (1872-1949) e os
indianos Jiddu Krishnamurti (1895-1986) e Bhagwan Shree Rajneesh
(1931-1990).
Por outro lado, deve-se lembrar que não há necessariamente uma
cisão entre religião e misticismo, pois todas as grandes religiões têm,
além de sua fachada ortodoxa, facetas ou vias místicas: o cristianismo,
por exemplo, possui místicos conhecidos, como Francisco de Assis,
João da Cruz e Teresa D’Ávila; a cabala, por sua vez, é uma via mística
do judaísmo assim como o sufismo é uma via mística do islamismo.
Cada escola tem sua própria forma de entender a experiência mística
e de induzi-la com técnicas específicas, as quais se costuma definir
como “meditação”. Na medida em que possuem um caráter iniciático e
sistematizam crenças a partir de suas vivências, essas escolas podem se
constituir em espécies de esoterismo.

6
Gregory (1987, p. 677) acrescenta: “Sempre há esta diferença entre o fundador
religioso e o que a fé se tornou”.
Capítulo 1 – A mística na psicologia e na cultura | 29

1.6 Algumas escolas místicas


A seguir serão esboçadas algumas especificidades de caminhos
místicos bem delimitados culturalmente: a cabala judaica, o Bhakti hindu,
o misticismo cristão, o sufismo islâmico, o taoismo chinês, o budismo
Theravada e o zen-budismo. Note-se que não há intenção de abarcar
todos os aspectos históricos e filosófico-conceituais dessas tradições, as
quais são extremamente complexas sob ambos os pontos de vista.

A cabala judaica
A história da cabala consiste em uma longa série de
desenvolvimentos ideológicos, que rastreiam as peregrinações dos
cabalistas e suas crenças em diferentes lugares e países, tendo origens na
França e Espanha por volta do ano 1200. Segundo Idel (1988), é possível
distinguir na cabala uma fórmula “teosófico-litúrgica” de uma fórmula
“extática”. A primeira se relaciona com especulações gramatológicas e
numerológicas cuja origem está no “Livro da Criação” (Sefer Yetsirah) –
importante obra do misticismo judeu (ELIADE; COULIANO, 1995).
Já a cabala extática tem por objetivo o devekut ou unio mystica com Deus.
Conforme descrevem Eliade e Couliano (1995), todas as ações
do cabalista estão na dependência de uma das três metas a que se
propõem: tikkun, ou restauração da harmonia e da unidade primordiais
no praticante e no mundo; kavvanah, ou meditação contemplativa; e,
finalmente, devekut, ou união extática com as essências.
A cosmologia da cabala judaica supõe uma realidade multinivelada.
Esses níveis são dispostos de maneira hierárquica e representam
diferentes planos. O homem comum está preso a um plano inferior, mas
pode galgar outros níveis até a esfera mais alta chamada de Metatron.
Esta compreende um estado de consciência mais elevado, chamado de
paraíso interior (GOLEMAN, 1997).
Descrita de outra forma, a tarefa do cabalista é transcender a
mente ordinária ou egoica, chamada de Yesod, para chegar a um estado
de consciência visto como o reino do espírito, ponte entre o homem e
o divino, chamado de Tiferet. Para isso, o cabalista segue orientações
de seu mestre, ou Maggid, empenhando-se em técnicas de meditação
relacionadas à concentração profunda em um tema particular ou
em nomes sagrados de Deus. “Se seus esforços encontrarem a graça
30 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

de Deus, o eu repentinamente se erguerá para além de Tiferet num


estado de êxtase chamado Daat, ou conhecimento. Aqui sua sensação
de separação de Deus se dissolve, ainda que por só um momento”
(GOLEMAN, 1997, p. 72). Mas a meta máxima do cabalista é estabilizar
sua consciência nesse nível, aderindo a Deus e transformando-se num
homem santo, o Zaddik.

Misticismo cristão
A tradição mística cristã é, conforme declaram Eliade e
Couliano (1995), deveras rica historicamente, abarcando quase toda a
fenomenologia mística possível; enfatiza, porém, mais o êxtase do que
a introspecção.
A mais célebre via mística cristã é aquela do amor ou unidade,
ilustrada nas vidas de Teresa D’Ávila, Teresa de Lisieux, Francisco de
Assis, entre outros. A mística do amor, no cristianismo, também dá
origem a um misticismo feminino por excelência que, relacionado à
imitação da via de Cristo, pode-se denominar “mística da eucaristia”.
São nomes ilustres dessa via: Clara de Assis (companheira de Francisco
de Assis), Catarina de Siena e Ângela de Foligno, entre muitas outras,
que praticavam com intensa dedicação o jejum e outras mortificações.
“Para elas, a eucaristia na qual Cristo se transforma em pão substancioso
torna-se o símbolo de sua própria transformação: ao renunciar à
alimentação, elas mesmas se transformam em alimento” (ELIADE;
COULIANO, 1995, p. 129).
Outra forma da mística cristã ocidental é a via especulativa
ou filosófica, que se ocupava em categorizar as fases da experiência
mística. Exemplos dessa via seriam Dionísio, o Areopagita; Mestre
Eckhart, João de Ruysbroeck, João da Cruz e Jacob Böehme. Ressalte-
se que a via especulativa cristã inaugura uma tradição que insiste no
caráter incognoscível de Deus (teologia negativa ou apofática), a qual
tem semelhanças com a “mística da vacuidade” presente no budismo.
Outra corrente do misticismo cristão propunha exercícios de
visualização, respiração e meditação, os quais lembram a ioga oriental e
aspectos do sufismo. Ela remonta aos eremitas que viveram no deserto
egípcio durante o século IV. Eram os chamados “Padres do Deserto”, que
buscavam isolamento das atividades mundanas e praticavam a concen-
tração profunda, via repetição de uma única frase das Escrituras. Uma
Capítulo 1 – A mística na psicologia e na cultura | 31

tradição mística posterior enfatizava a concentração na chamada “Oração


de Jesus”, que hoje é denominada hesicasma. O resultado da prática é o
êxtase da união com Cristo, que transforma profundamente a vida do
devoto, agora capaz de intenso amor altruísta (GOLEMAN, 1997).

Sufismo
O sufismo, via mística muçulmana, é um modo de vida que busca
a realização da unidade e da presença de Deus por meio do amor, do
conhecimento baseado na experiência, da ascese e da união extática
com o Criador bem-amado (ELIADE; COULIANO, 1995).
As doutrinas e práticas sufis frequentemente ridicularizam os
muçulmanos ortodoxos. “Estes, por sua vez, lançam anátemas contra
o panteísmo dos sufistas, sua libertinagem, seu antinomismo, sua
negligência na prece, no jejum e na peregrinação. Certos regimes
expulsam-nos e perseguem-nos” (ELIADE; COULIANO, 1995, p.
206). Segundo Gardet (2002), já houve uma oposição oficial entre os
místicos sufis e o islã. Para os muçulmanos, Deus revela suas palavras
no Alcorão, mas não se revela. De forma semelhante, o muçulmano
deve amar os mandamentos de Deus, mas não o próprio Deus. Por seu
turno, os místicos sufis acreditam que Deus pode se revelar, e por isso
amam-No diretamente.
Al-Ghazali (1058-1111) foi um dos grandes místicos dessa
tradição. Natural da Pérsia (atual Irã), era um mestre em jurisprudência,
teologia dialética e filosofia que, após uma crise na meia-idade, tornou-
se sufi. Ele renunciou sua própria erudição, ficando conhecido na
história como defensor do conhecimento antes pela experiência direta
e pela revelação do que pelo raciocínio filosófico.
Os sufis reconhecem de bom grado no Alcorão a recomendação
de praticar o dhikr (ou zikr) – meditação ou invocação de Deus. Em
suas práticas, o dhikr pode ser acompanhado pelo uso de um rosário,
pelo controle respiratório, por música e danças extáticas, como a dos
dervixes rodopiantes da tradição de Rumi (1207-1273), o grande poeta
místico da Turquia (ELIADE; COULIANO, 1995).
Para o sufi, o homem comum sofre por ser escravo de seus próprios
condicionamentos, estando profundamente “adormecido num pesadelo
de desejos insatisfeitos” (GOLEMAN, 1997, p. 80). O estado normal
de atenção, disperso e casual, é a própria via do profano. O caminho
32 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

para Deus consiste num treinamento voltado para a intensificação da


atenção através de uma técnica chamada zikr, ou recordação.
A recordação sufi inclui a concentração de cada pensamento em
Deus, assim como a atenção incessante aos próprios hábitos e conteúdos
mentais. Um dos resultados da recordação é o estado chamado de
mahabba, ou “estação da unidade”, na qual o zikr (a recordação), o zakir
(aquele que recorda) e o mazkur (aquele que é recordado) tornam-se um
(GOLEMAN, 1997, p. 81). O estágio final da prática sufi é chamado de
tawhid, a união absoluta com Deus.

O BHAKTI hindu
Uma das escolas místicas do hinduísmo é chamada de Bhakti, que
significa devoção ou amor a um ser divino. Trata-se de um caminho de
liberação da vida material imperfeita através da obtenção de um estado
de comunhão com uma suposta realidade última personificada em uma
deidade (como Vishnu, Shiva e a Grande Deusa), ou mesmo em um
guru (também deificado).
A literatura deixada pelo poeta indiano Kabir7 (1398-1448)
influenciou grandemente o Bhakti. Sua palavra de ordem é o amor,
como se percebe neste verso: “Lendo livro depois de livro, o mundo
inteiro morreu/ E ninguém mais pode tornar-se letrado/ Aquele que
simplesmente decifra uma sílaba de “amor”/ é o verdadeiro letrado
(pândita)” (apud KAKAR, 1997a, p. 184).
Conforme explica Kakar (1997a), no Bhakti as ambiguidades
do pensamento e as angústias da razão podem ser deixadas de lado
com segurança, pois o caminho passa pelo abandono completo e
voluntário à divindade ou ao guru, que assume a responsabilidade total
pela transformação íntima do discípulo. O guru, pois, torna-se deus,
enquanto o discípulo torna-se criança: “o discípulo ideal, o favorito,
tem coração puro, o caráter maleável e renuncia voluntariamente a

7
Kabir – venerado hoje por hindus e muçulmanos – é referenciado como um
daqueles grandes místicos que subverteram a ordem religiosa: “Na realidade, se
Kabir visa a uma unidade religiosa, faz isso rejeitando tanto o hinduísmo quanto
o islamismo, tanto os ensinamentos dos pânditas quanto os dos mollahs. Nem sufi
nem iogue, Kabir exprime-se na linguagem a um só tempo pessoal e intemporal dos
grandes místicos” (ELIADE; COULIANO, 1995, p. 180).
Capítulo 1 – A mística na psicologia e na cultura | 33

todos os atributos adultos, especialmente a curiosidade racional e o


impulso sexual” (KAKAR, 1997a, p. 185).
A essência do Bhakti é, assim, “fazer do objeto de devoção o
pensamento central da pessoa” (GOLEMAN, 1997, p. 63). O devoto
primeiramente deve escolher alguma deidade para ser seu objeto de
devoção, ou ishta. Sua prática começa por recitar e cantar seu objeto
de meditação e se aprofunda através do japa: repetição do nome da
divindade, oral ou mentalmente. Em todos os casos, o mais importante
é manter sempre o ishta como principal foco de sua atenção.
Todo esse esforço é orientado pelo guru, ao qual o discípulo se
submete. O resultado do japa bem-sucedido é o êxtase, o arrebatamento
e a alegria, enfim, uma “intoxicação de amor”. Esse estado é a própria
porta daquilo que os hinduístas chamam de Samadhi, caracterizado
pela profunda absorção meditativa. Porém, como essa experiência
é transitória, o devoto ainda tem a possibilidade de atingir o Sahaj
Samadhi, um amor intenso e todo absorvente, no qual se desfaz de uma
vez por todas a distinção entre o sujeito, o mundo e seu ishta.

Taoismo
O taoismo é o mais antigo ramo místico-religioso da China,
cujas fontes remontam às histórias míticas dos Três Soberanos e Cinco
Imperadores que governaram o território entre 2852 e 2205 a.C.
Contudo o mais importante tratado taoista – o Tao Te Ching – teria
sido escrito por volta do V século a.C. pela figura também lendária
de Lao-Tzu (o Antigo Sábio), primeiro grande mestre do Tao. Outros
importantes textos são o I Ching (O livro das mutações) e os escritos do
segundo grande mestre taoista: Chuang Tzu.
A mais antiga forma do ideograma Tao é composta de três
elementos: um caminho, uma cabeça e um pé. Significariam, assim,
a imagem de um mestre (a cabeça) e um discípulo (o pé) que, juntos,
procuram o caminho (MIYUKI, 1995). Porém, segundo Blofeld
(1990), Lao-Tzu ensinou que Tao não passa de um termo aceitável para
o que se chamaria melhor “o Inominado”: ele é “incognoscível, vasto,
eterno. Como vazio indiferenciado, puro espírito, é a mãe do cosmos;
como não-vazio, é o receptáculo, o amparo e, num certo sentido, o ser
dos objetos inumeráveis, que permeia a todos. Como alvo da existência,
é o Caminho do Céu, da Terra, do Homem. Não-ser, é a fonte do ser”
34 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

(BLOFELD, 1990, p. 16). O Tao representa a coincidentia oppositorum


par excellence. Ele abrange todos os opostos, formando uma totalidade
paradoxal, ao mesmo tempo dinâmica e harmoniosa (MIYUKI, 1995).
Simplificadamente, o taoismo é o caminho místico em que o
homem apreende e unifica-se ao Tao, retornando à Fonte indiferenciada
do Ser. Essa senda envolve a prática do wu wei (não-ação), ou seja,
uma ação desinteressada e espontânea, plena em intensidade e focada
apenas na necessidade presente (semelhante à ênfase no “aqui-e-agora”
característica do zen-budismo que, aliás, deve parte de suas origens ao
taoismo), e que se nutre de uma profunda reverência pela simplicidade
do mundo da natureza.
O sábio taoista é aquele capaz de praticar a ação desinteressada e
ser profundamente sereno, isto é, pouco se abalar diante das constantes
mudanças da vida; uma vez que ele percebe serem tais mudanças
originadas invariavelmente da mesma fonte, o Tao, a este se aferra. Uma
das maiores ênfases da prática taoista é a meditação em posição sentada,
chamada de “sentar-se em silêncio”. Unida a exercícios respiratórios
especiais, a meditação contemplativa objetiva silenciar o pensamento
e propiciar a experiência última em que o psiquismo apreende o vazio
da existência: “Se avançares até o mais extremo vazio, na quietude
do coração puro, contemplarás a fuga dos fenômenos para o eterno
retorno. [...] se te entregares a ele, estarás de fato em paz” (LAO-TZU
apud MIYUKI, p. 32). Trata-se da vivência inefável de união ao Tao,
através da qual o sujeito não se vê mais como indivíduo, senão como
Tao imutável encarnado numa forma transitória (BLOFELD, 1990).

Budismo THERAVADA
O budismo Theravada corresponde a um grande ramo budista
que é praticado especialmente no sul e sudeste da Ásia. A literatura
Theravada tradicional descreve duas técnicas principais para desenvolver
estados místicos: Samatha ou concentração e Vipassana ou atentividade.
Segundo o mestre budista Gunaratana (2002), todas as grandes
tradições místicas do mundo, tais como a cristã, a judaica (cabala) e a
hindu, usam a concentração como principal método de obtenção de
estados de consciência superiores. Com o budismo isso seria diferente,
pois o principal foco é o desenvolvimento de atenção, e a concentração
é apenas uma ferramenta para tanto.
Capítulo 1 – A mística na psicologia e na cultura | 35

Assim, a mais antiga das técnicas budistas de meditação, o


Vipassana, diz respeito unicamente ao aprendizado em prestar atenção.
A técnica se utiliza de um foco qualquer, tradicionalmente a respiração,
mas objetiva globalmente uma atenção intensificada nos processos
mentais do sujeito e, ao mesmo tempo, neutra no sentido de não buscar
nem rejeitar conteúdos (GUNARATANA, 2002).
A meta última budista é chamada de nirvana, ou extinção, um
estado obtido por meio da dissolução da identidade pessoal: o “ego”
ou “eu”. Através da atentividade, o budista percebe que o “eu” não
possui, em si mesmo, nenhuma concretude ou essencialidade, o que foi
denunciado pelo próprio Buda histórico por meio da noção de anatta
(não-eu) (SILANANDA, 1999).
Assim como a identidade pessoal carece de substancialidade, para
o budista a própria realidade última é vazia, sem nenhuma essência – o
que é chamado de sunnyata. A plena compreensão de anatta e sunnyata
faz parte da apreensão do nirvana. Percebe-se, assim, que a mística
budista não enfatiza a unidade, mas, ao contrário, a dissolução e a
vacuidade.

Zen-budismo8
O zen é um dos principais ramos da escola budista Mahayana.
Foi fundado na China do século VI, onde é conhecido até hoje como
Chan – abreviação do termo channa, correspondente a dhyanna em
sânscrito, que significa meditação (POWELL, 1999). Nos séculos
XI e XII, monges budistas japoneses viajaram à China para estudar o
Chan e, quando retornaram, fundaram templos e disseminaram o novo
ensinamento em todo o Japão (FADIMAN; FRAGER, 1986), onde se
adotou o nome zen.
Segundo D. T. Suzuki (1991), o zen não afirma nem nega
a existência de um deus, pois objetiva se levantar acima da lógica e
encontrar uma afirmação maior em que não há antítese. Essa afirmação
maior é o próprio objeto da disciplina zen e recebe o nome de satori
em japonês ou wu em chinês. Enquanto estado de consciência, o satori
é indicado como uma experiência que transcende a dualidade do

8
O zen-budismo é analisado em maiores detalhes no capítulo 7, item 7.6.
36 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

pensamento comum, o qual distingue “eu” e “outro”, palavra e coisa,


sujeito e objeto.
Um dos métodos mais documentados para conduzir o discípulo à
experiência do satori é o zazen, que corresponde a uma prática meditativa
em posição sentada. Geralmente o estudante dedica um período do dia
para sentar-se imóvel, com o objetivo de “interromper o fluxo ordinário
dos pensamentos, sem se deixar cair num estupor” (MAUPIN, 1993, p.
178). Maupin também lembra que o zazen parece definir uma atitude
particular de observação imparcial dos conteúdos mentais.
Analisando-se essa breve descrição de algumas das grandes escolas
místicas do mundo, é possível notar uma série de similaridades em relação
a objetivos e métodos para atingi-los. Como diz Goleman (1997, p. 17):
“Todos os sistemas de meditação têm por meta o Um ou o Zero – a união
com Deus ou o esvaziamento. A via para o Um é através da concentração
n’Ele; para o Zero é a penetração no vazio da própria mente”.
As escolas místicas que enfatizam o “Um” podem ser classificadas
em dois grandes tipos. O primeiro é o misticismo da unidade (ou do
amor), que busca uma forma de transcendência por meio da união
completa entre o “buscador” e seu objeto de contemplação ou sua
divindade. Este é o caso do hinduísmo devocional clássico, ou Bhakti.
O segundo tipo é o misticismo teístico, no qual se busca a união
com um Deus pessoal, mas de uma forma em que permanece uma
separação com o buscador. Trata-se aqui das tradições cristã e judaica.
Finalmente, a mística que tem por meta o Zero é também chamada
de mística da liberação ou vacuidade, pois não costuma envolver
um discurso de união a divindades ou ao mundo, mas simplesmente
enfatiza um tipo de introspecção muito profunda, por meio da qual
é dissolvida a crença em um “eu” separado do exterior. Isto, por sua
vez, provoca o mergulho na experiência última da realidade – que seria
vazia. Os grandes protótipos dessa vivência são o taoismo e o budismo
em suas várias formas.
Destaca-se que, apesar de as definições clássicas da mística
referirem-se apenas às “vias do Um”, esta pesquisa pretende
também analisar as “vias do Zero”, ou seja, a mística da liberação
ou vacuidade.
Capítulo 1 – A mística na psicologia e na cultura | 37

1.7 Estágios da mística


Alguns autores consideram que todos os místicos parecem estar
submetidos “ao mesmo e básico ‘movimento ordenado’”, sendo “esse
denominador comum que une o místico cristão ao hindu, o ateu ao sufi”
(WAPNICK, 1997, p. 136). Desta forma, definiram-se estágios para
a experiência mística “típica.” Underhill (2003 [1961]), por exemplo,
descreveu cinco fases importantes:
1. Chamado de “Despertar do Eu”, no primeiro estágio o sujeito
tem a compreensão súbita de suas experiências místicas no
sentido de entendê-las como “mais elevadas”, ou simplesmente
mais atraentes que a vida comum.
2. No segundo estágio, o sujeito sente seu padrão de vida anterior
às vivências místicas como insatisfatório. Deseja então se
depurar dos antigos padrões de comportamento para facilitar
a permanência dos estados extáticos. Underhill (2003) nomeia
essa fase de “Purificação do Eu”, que diz respeito principalmente
às práticas ascéticas de muitos místicos, incluindo o isolamento
social, sempre com o objetivo de mortificar o “antigo eu” para
possibilitar o nascimento de uma nova individualidade.
3. Após a depuração, o místico chega finalmente a um aprofun-
damento de sua experiência extática, a qual Underhill (2003)
denomina “A Iluminação do Eu”. Trata-se da “apreensão jubi-
losa daquilo que o místico experimenta ser o Absoluto”, que
culmina em “extravasamentos refulgentes de êxtase e arroubo”
(WAPNICK, 1997, p. 137). Entretanto, o sujeito ainda se
experiencia como uma individualidade separada do todo ou do
Supremo.
4. O estágio seguinte é mais detalhadamente descrito nas
tradições ocidentais e se relaciona àquilo que São João da Cruz
chamou de “Noite Escura da Alma”. Aqui o júbilo desaparece;
em seu lugar ergue-se o sentimento de isolamento, depressão
e desesperança. O sujeito é assolado pelo medo da loucura e
da morte, o qual pode ser visto como expressão do processo
doloroso da dissolução de sua individualidade – a última
barreira para a união mística definitiva.
5. Chega então o ponto culminante da busca mística, “A Vida
Unitiva”, que consiste na completa e definitiva absorção do
38 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

sujeito no Absoluto. Experimenta-se a sensação de uma unidade


com o universo que, paradoxalmente, é definida também como
um estado de consciência pura, no qual o indivíduo não
experimenta nada – nenhuma coisa. O indivíduo aparentemente
fez contato com as regiões mais profundas de sua consciência e
experimenta o processo como tendo sido concluído. Emocio-
nalmente, o indivíduo sente-se totalmente tranquilo e em paz.
(WAPNICK, 1997, p. 137).
6. Existe ainda um sexto estágio importante, o qual, embora
não mencionado por Underhill (2003 [1961]), é assinalado por
Wapnick (1997). Trata-se do retorno do místico ao mundo social,
agora acolhido com vitalidade e força renovadas. Esse retorno é
observável, por exemplo, nas vidas de Francisco de Assis, Teresa
de Ávila e Inácio de Loyola, e também na tradição budista que
enfatiza a existência dos chamados Boddhisattvas: indivíduos que,
após atingirem a meta mística, retornam ao seio da comunidade
unicamente para auxiliar outros no caminho para a mesma
libertação. Esse estágio final demonstra que o místico não nega
completamente a vida do homem comum, apenas afasta-se dela
pelo período necessário a sua própria depuração psíquica. Após
seu retorno, o místico é descrito como aquele que está no mundo
sem, entretanto, pertencer ao mundo (GOLEMAN, 1997).

1.8 O interesse contemporâneo pela mística


Finalizando esta introdução ao tema, vale dizer que a psicologia
e a filosofia do misticismo, após adquirirem fôlego com os estudos de
William James, ganharam célebres interessados ao longo do século
XX. Citemos alguns.
Abraham Maslow, figura proeminente da chamada Psicologia
Humanística (ou “Terceira Força”), visualizou as experiências místicas
sob um prisma positivo e desejável. Ele acreditava ser essa vivência
comum nos relatos de pessoas “autoatualizadas” – termo cunhado para
designar indivíduos com pleno uso de seus talentos e potencialidades, aos
quais dedicou grande parte de suas pesquisas e teorizações (FADIMAN;
FRAGER, 1986). Note-se que o pensamento de Maslow também foi
determinante na criação da chamada Psicologia Transpessoal, que traz
influências diretas de práticas místicas ocidentais e orientais.
Capítulo 1 – A mística na psicologia e na cultura | 39

O médico suíço Carl Gustav Jung (1996), por sua vez, investiu
grande parte de sua obra ao estudo psicológico da religião, espiritualidade
e esoterismo. Rompendo com Freud por questões conceituais e
metodológicas,9 ele configurou um campo do saber intitulado “psicolo-
gia analítica”. Sua visão do desenvolvimento psicológico foi sistemati-
zada no conceito de “processo de individuação”, o qual reúne muitas
semelhanças com um caminho místico.
Ainda no campo dos pensadores pós-freudianos, sabe-se que Erich
Fromm e Karen Horney alimentaram forte estima e interesse precisa-
mente pelo zen-budismo. Seus estudos sobre o tema são contemporâneos
do início da difusão do zen nos Estados Unidos pelo erudito D. T.
Suzuki, que foi convidado por Fromm para, num esforço conjunto,
promover um ciclo de conferências em 1957, mais tarde publicadas na
obra Zen-budismo e psicanálise (SUZUKI; FROMM; MARTINO, 1970).
Frederick Perls, criador da Gestalt Terapia, foi bastante cativado
pelo misticismo oriental, em especial, pelo taoismo e zen-budismo.
Perls teria sido iniciado no zen ainda nos Estados Unidos pelo amigo
Paul Weisz; tendo, em seguida, realizado viagem ao Japão, onde visitou
um mosteiro zen. É dito que essas formas de mística influenciaram
conceitos de sua abordagem psicoterapêutica (GINGER, 1995).
Aldous Huxley, escritor inglês reconhecido por seus romances e
ensaios com profundas reflexões filosóficas, interessou-se bastante pelo
misticismo oriental em sua última fase intelectual, tendo buscado nessa
fonte inspiração para ideias sobre as potencialidades do ser humano.
Alguns trabalhos nesse sentido são As portas da percepção (1954), Céu e
inferno (1956) e A ilha (1962).
O psiquiatra Ronald D. Laing, mais conhecido pelo movimento
da antipsiquiatria, interessou-se pelas experiências místicas na medida
em que elas apontavam para certa lógica em relação à normalidade,
a qual era comparável àquela da psicose no âmbito de suas ideias
antipsiquiátricas. Ou seja, o misticismo não seria uma fuga da realidade
ou um desvio patológico da normalidade, mas uma modalidade de
experiência válida que fragiliza a noção de normalidade enquanto única
vivência saudável e desejável (LAING, 1974).

9
Ver, a respeito, o artigo de Freud: “Contribuição à história do movimento psica-
nalítico” (1914).
40 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

Segundo Rosolato (1980), a mística foi fonte de inspiração para


autores do movimento artístico surrealista, assim como foi tema
importante da obra de Georges Bataille. Este desenvolveu um projeto
para um misticismo “a-teológico”, um tipo de busca que revela o
fascínio por uma transgressão das barreiras do pensamento racional e
utilitarista (VERGOTE, 2003).
Análises sobre a vida e obra do filósofo alemão Martin Heidegger
permitem inscrevê-lo como um grande interessado no misticismo,
seja ocidental ou oriental (CAPUTO, 1982). É certo que o filósofo
desenvolveu uma tradução de importante obra taoista – o Tao Te Ching
– com o auxílio de um erudito chinês (HSIAO, 1987). Conta William
Barrett, em famoso relato, que Heidegger, ao travar contato com os
livros de D. T. Suzuki sobre o zen, teria exclamado: “Se eu compreendi
esse homem corretamente, isto é o que eu tenho tentado dizer em todos
os meus escritos” (SUZUKI; BARRETT, 1996, p. xi).
Para a historiadora e professora de teologia Amy Hollywood (2002),
houve no século XX uma fascinação com formas emocionais, corporais
e excessivas de misticismo. Para a autora, a mística tem influência no
trabalho de intelectuais franceses como Henri Bérgson, Maurice
Blanchot, Michel Foucault e Jacques Derrida. Mais especificamente,
Georges Bataille, Simone de Beauvoir, Jacques Lacan e Luce Irigaray
prestaram atenção às formas de misticismo associadas às mulheres,
sendo que alguns teorizaram explicitamente sobre essa relação.
Todo o interesse dos autores aqui apresentados parece bastante,
mas, quando comparado ao volume de produção em outros temas, perce-
bemos que relativamente não são muitas as pesquisas sobre a mística,
e especialmente no âmbito da psicanálise. Os sentidos depreciativos já
mencionados influenciam de forma tão pungente que se torna difícil para
muitos encarar o tema com seriedade e tomá-lo como objeto de estudo.
Esse dilema, aliás, pode ser verificado nas primeiras aproximações de
Freud à temática, como se verá a seguir.
| Capítulo 2 |

Freud e a mística: primeiras interações

2.1 Exorcizando o obscurantismo


Ao vasculhar a obra freudiana em busca de referências à mística,
percebe-se que a mais insistente abordagem do autor insere-se no âmbito
de uma concepção pejorativa utilizada pelo discurso científico tradicional
ou positivista, ou seja, de credulidade, obscurantismo e superstição –
um tipo de conhecimento inferior e falacioso. Seu abandono do uso do
hipnotismo, por exemplo, encontra nessa acepção uma justificativa: “Ora,
a hipnose logo começou a desagradar-me, como um recurso incerto e,
por assim dizer, místico”10 (FREUD, 1998 [1910], p. 19).
As referências desse gênero continuam por conta da problemática
dos sonhos. Freud mencionou por várias vezes que suas teorias
privaram a vida onírica do caráter supersticioso e profético que tinha
até então: “Eu sei, por certo, que é impossível desarraigar no homem
a necessidade de uma mística, e que ela faz incessantes esforços por
recuperar o âmbito do qual a ‘interpretação dos sonhos’ a tirou [...]”
(FREUD, 1998 [1920], p. 158).
Também aqui vemos sentido análogo:
Confesso que não tenho necessidade alguma de hipóteses
místicas para preencher as lacunas do nosso conhecimento
presente, e por isso nunca pude achar nada que corroborasse
uma suposta natureza profética dos sonhos. (FREUD, 1998
[1910], p. 30).
Vale dizer que ele próprio arriscou suas definições sobre o tema.
“Mística, ocultismo, o que se designa com esses nomes?”, pergunta

10
Todas as referências às obras de Sigmund Freud utilizadas neste trabalho foram
traduzidas do castelhano pelo autor a partir das Obras completas publicadas pela
Amorrortu Editores.
42 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

Freud em uma de suas Novas conferências de introdução à psicanálise (1998


[1933-1932]), precisamente aquela dedicada à relação entre sonhos e
ocultismo. O autor fornece uma resposta: “De uma maneira geral e
indeterminada, todos sabemos a que se referem. É um tipo de ‘mais
além’ do mundo luminoso, governado por leis imutáveis [...]” (p. 29).
Nessa curta referência podemos ver que o inventor da psicanálise
tendia a igualar misticismo e ocultismo. Para ele, ambos se referem ao
“mais além”, ao sobrenatural, ainda que reconhecesse ser essa acepção
“geral e indeterminada”. Mas havia, certamente, motivos para Freud
colocar-se, com frequência, em defesa da ciência e contra os avanços
da superstição.
Assoun (1980) propõe-se a aclarar as bases epistemológicas dessa
situação em artigo dedicado exclusivamente à análise da relação entre
Freud e a mística. Inicialmente ele afirma que a mística renana dos
séculos XIII e XIV teve grande influência no pensamento filosófico
alemão – em verdade, teria sido por meio da especulação mística de
Mestre Eckhart11 (1260-1327) que a especulação filosófica em língua
alemã teve seu début. Após esse passo inicial, a mística reencontrou
expressão nos séculos XVIII e XIX por meio do romantismo e
idealismo alemães.12
Ainda de acordo com o filósofo e psicanalista francês, nesse
mesmo período há um grande acerto de contas com a consciência
filosófica idealista – encarnada por Hegel – assim como o surgimento
da onda cientificista. Nessa reação, a filosofia idealista é associada ao
misticismo, sendo esse o momento decisivo em que o termo “místico”
torna-se pejorativo e usado eletivamente para designar Hegel. Para o
autor, Freud se situa exatamente em tal contexto epistemológico.
De acordo com a hipótese de Assoun (1980), o conceito filosófico
de misticismo do qual Freud se apropria ter-lhe-ia sido apresentado
nas aulas de filosofia do mestre Franz Brentano, entre 1873 e 1876, na

11
Mestre Eckhart foi um teólogo alemão, filósofo e místico de forte influência
neoplatônica. Foi reconhecido como “mestre” devido ao título Magister in theologia
obtido na Universidade de Paris. Nos últimos anos de vida foi acusado de heresia pelo
Papa João XXII.
12
A esse respeito, o autor comenta: “De fato, o que está em jogo nesse retorno [da
mística] não é outra coisa senão o grande movimento do romantismo e do idealismo
alemães que assim retornam às suas raízes e se dão títulos de legitimidade teórica”
(ASSOUN, 1980, p. 44).
Capítulo 2 – Freud e a mística: primeiras interações | 43

Faculdade de Medicina de Viena. Para Brentano, o misticismo seria


“uma forma última de decadência da racionalidade, mas também [...]
a expressão inadequada de uma necessidade febril e prematura de
conhecimento ilusório que deve levar ao ciclo da verdadeira pesquisa”
(ASSOUN, 1980, p. 47).
A título de curiosidade, Assoun declara ainda que o jovem
Freud, anteriormente a sua conversão ao cientificismo dos mestres
da fisiologia, teria passado por uma fase que pode ser considerada
um tipo de “tentação mística”. Trata-se de um período de filosofia da
natureza (Naturphilosophie) panteísta, influenciado pelo romantismo de
Goethe. Contudo, Freud viria a se entusiasmar pela fisiologia física e se
converter à doutrina inversa, tornando-se radicalmente materialista.13
Deste modo, devemos lembrar que Freud é, tal como explicam
Assoun (1983) e Mezan (2002b), um pensador extremamente influen-
ciado pela racionalidade científica positiva do século XIX. Era até
mesmo um “adepto tardio” do postulado reducionista dos mestres da
fisiologia Helmholtz, Brücke e Du Bois-Reymond. Datado de 1842, esse
postulado pode ser entendido como a afirmação de que o organismo é
exaustivamente investigável segundo o método físico-químico.
De fato, segundo os dois autores, Freud acreditava na psicanálise
como uma ciência equivalente à física e à química. Não por acaso, como
demonstra Assoun (1983), o pai da psicanálise afirmava que sua invenção
era uma ciência natural – de caráter “explicativo”, em contraposição às
nascentes ciências do espírito, de enfoque “compreensivo”. Com essa
delimitação, Freud desejava definir a psicanálise como uma ciência
empírica, análoga às ciências naturais que têm por objeto uma região da
realidade e determinam relações de causa e efeito num sentido explicativo.
Além disso, afirma Mezan (2002b, p. 483) que a ideia de
ciência “permite um acesso à universalidade o qual torna irrelevante
a individualidade do cientista, [...] e também expulsa o fantasma da
ilusão, cuja expressão máxima se encontra na religião”. Destarte,
pode-se considerar que Freud, homem de sua época, assumia como
13
Acima de tudo, o encantamento freudiano de caráter místico teria a ver com um
tipo de monismo, ou seja, a tentação de buscar um princípio universal de compreensão
da realidade imediatamente decifrável. Foi necessário o frio rigor de um Ernst Brücke
para desiludi-lo desse gozo monista. E essa desilusão foi duradoura, pois se sabe o
quanto Freud, já no advento da psicanálise, torna-se fervoroso defensor dos dualismos
que transparecem ao longo de toda sua obra.
44 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

essencial para a criação de uma ciência o exorcismo do fantasma da


religião – este grande guarda-chuva sob o qual se inclui o misticismo
e o ocultismo em acepção pejorativa –, tal como o pensaram e fizeram
outros cientistas desde o advento do Iluminismo e da era moderna.
E vale notar que esse “exorcismo” fazia-se especialmente difícil
para a psicanálise que, interessada em sonhos e na vida psíquica como
um todo, era – ela própria – vista com desconfiança nos círculos
científicos da época:
A psicoterapia segue parecendo a muitos médicos um produto
do misticismo moderno, e por comparação com nossos recursos
terapêuticos físico-químicos, cuja aplicação se baseia em
conhecimentos fisiológicos, um produto diretamente acientífico,
indigno do interesse de um investigador da natureza. (FREUD,
1998 [1905], p. 248).
Em interessante passagem de Psicanálise e telepatia (1998 [1941]),
Freud confirma que esse desdém dos cientistas atinge igualmente a
psicanálise e o ocultismo:
Não é tão certo que esse acrescido interesse no ocultismo
signifique um perigo para a psicanálise. Ao contrário,
esperariam-se recíprocas simpatias entre ambos. Sofreram
o mesmo tratamento depreciativo e arrogante por parte da
ciência oficial. Ainda hoje se olha a psicanálise como suspeita de
mística, e seu inconsciente é, entre o céu e a terra, uma daquelas
coisas com que a sabedoria acadêmica não se atreve a sonhar.
(FREUD, 1998 [1941], p. 170).
Contudo, Freud conclui sua ideia, simplificadamente, afirmando
que a parceria entre ocultistas e analistas não vai muito longe, já que
os primeiros seriam crentes convictos e prontos a professarem sua fé,
enquanto os segundos não repudiam sua descendência e comunhão
com a ciência exata.
Vale ainda destacar que o termo alemão Mystik, segundo Assoun
(1980, p. 50), “reenvia de maneira muito geral, no vocabulário freudiano,
ao registro do irracional, que recobre práticas diversas aparentadas ao
ocultismo, com a suspeita irredutível de obscurantismo”. Com todas
essas considerações e referências, pretende-se mostrar as bases da
predileção freudiana por uma referência ao misticismo como caminho
falacioso para o conhecimento.
Capítulo 2 – Freud e a mística: primeiras interações | 45

2.2 Exorcizando a ilusão


Escapa dessas afirmações freudianas, contudo, a noção de misti-
cismo enquanto vivência que transcende ou dissolve as fronteiras do eu,
justamente a que se pretende aqui averiguar. Nesse âmbito, os caminhos
da investigação do mestre são mais modestos, mas ao mesmo tempo
complexos e nuançados. Possivelmente, Freud jamais teria escrito sobre
o tema por iniciativa própria, visto estar muito mais interessado em
denunciar a ilusão das práticas religiosas em sentido bastante genérico.
Suas análises psicanalíticas da religião estendem-se por muitos
trabalhos, mas destaca-se aqui o famoso escrito de 1927, O futuro de
uma ilusão (1998 [1927]).14 Nele o autor relaciona a origem das ideias
religiosas com a necessidade humana de tornar tolerável seu desamparo
em relação aos perigos da natureza, do destino e contra as ameaças que
emanam da própria sociedade. Nesse sentido, o protótipo da relação do
homem com um deus é visto como a relação da criança com a figura
paterna: o infante sente-se desamparado e indefeso diante de uma
miríade de ameaças e deseja de seu pai proteção contra elas.
Além disso, como a criança também teme a figura paterna –
conforme demonstrado pela psicanálise por meio de suas teorias sobre
o desenvolvimento da sexualidade infantil, a ambivalência e o complexo
de Édipo –, tem-se aí o protótipo do temor ao Deus “todo-poderoso”
da tradição judaico-cristã.
Deste modo, Freud define as ideias religiosas em torno de três
pressupostos básicos que não encontram absolutamente nenhuma base
empírica: a existência de uma Providência divina, a existência de uma
ordem ética universal que deve ser idêntica a de nossa própria cultura
(que é, diga-se de passagem, uma marca dos fundamentalismos atuais)
e a existência de vida após a morte. Haveria, seguindo o fio de seu
raciocínio, realizações de desejos inconscientes na base de todas essas
proposições, que são bem sintetizados em suas próprias palavras:
O reinado de uma Providência divina bondosa acalma a angústia
frente aos perigos da vida; a instituição de uma ordem ética

14
Esse trabalho é destacado particularmente pela importância que terá no debate
com o escritor francês Romain Rolland e com a escrita de obra posterior, O mal-estar
na cultura (1930), todos analisados a partir do capítulo 3. São também importantes
trabalhos de Freud sobre a religião: Atos obsessivos e práticas religiosas (1907), Totem e
tabu (1913), Moisés e o monoteísmo (1939), entre outros.
46 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

do universo assegura o cumprimento da demanda de justiça,


tão frequentemente descumprida dentro da cultura humana; a
prolongação da existência terrena em uma vida futura fornece os
marcos espaciais e temporais em que estão destinados a consumar-
se tais realizações de desejo. (FREUD, 1998 [1927], p. 30).
Essas explicações, em termos de motivações psicológicas
inconscientes, habilitam Freud, na sequência de seu artigo, a afirmar
que as ideias religiosas são ilusões. Mas faz questão de precisar o que
entende por ilusão: não é equivalente a um erro (embora também
possa sê-lo), é um derivado dos desejos humanos, tal como os delírios
psicóticos e os sonhos, ainda que as ideias religiosas sejam bem mais
elaboradas em termos de processo secundário, ou seja, elaboradas em
maior acordo com o pensamento consciente e o princípio de realidade.
Não se dando por satisfeito, Freud ainda compara a religião à
neurose obsessiva, observando ambas à luz dos processos inconscientes
infantis em sua relação com o pai e com a resolução do complexo de
Édipo. Segundo ele, a religião “oferece restrições obsessivas tal como
acarreta uma neurose obsessiva individual” (FREUD, 1998 [1927],
p. 43). A religião seria, desta maneira, não só uma ilusão, mas também
uma neurose obsessiva universal que, quando devidamente aceita
pelo devoto, “dispensa-o da tarefa de plasmar uma neurose pessoal”
(FREUD, 1998 [1927], p. 44).
Retomando o foco no misticismo, pode-se considerar, contudo,
que O futuro de uma ilusão é um trabalho essencialmente dedicado às
doutrinas e promessas relacionadas ao “homem comum e sua religião”
(como Freud mesmo denomina), a qual é, segundo ele, “a única que
deve levar esse nome” (FREUD, 1998 [1930], p. 74). Em suas palavras:
Em O futuro de uma ilusão não tratei tanto das fontes mais
profundas do sentimento religioso como daquilo que o homem
comum entende por sua religião: o sistema de doutrinas e
promessas que, por um lado, esclarece-o com exaustão invejável
sobre os enigmas deste mundo, e, por outro lado, assegura-lhe
que cuidadosa Providência vela por sua vida e ressarcirá todas
as frustrações padecidas aqui. O homem comum não pode
representar-se a esta Providência senão na pessoa de um Pai de
envergadura grandiosa. (FREUD, 1998 [1927], p. 74).
Capítulo 2 – Freud e a mística: primeiras interações | 47

Nesse trecho do segundo capítulo de O mal-estar na cultura (1930),


percebe-se que, para o autor, a questão das fontes mais profundas do
sentimento religioso – fontes defendidas por muitos como místicas – era
de outra ordem, uma ordem a qual Freud pouco se dedicou a investigar.

2.3 O abismo oriental


Um dos raros indícios do conhecimento de Freud sobre sistemas
místicos e, em especial, os orientais, encontra-se nas curtas memórias
publicadas, em 1952, pelo pouco conhecido escritor e dramaturgo
Bruno Goetz.15 Em tal obra, este descreveu suas impressões do breve
período em que teria travado contato com o inventor da psicanálise.
Em 1904, Goetz era estudante da Universidade de Viena e
procurou Freud para o tratamento de neuralgias faciais. Em apenas
três visitas mensais, teve a oportunidade de conversar informalmente
com o mestre sobre assuntos diversos, e, dessas conversas, ficara-lhe
a seguinte impressão geral: “Este homem era muito mais vasto e,
graças a Deus, mais contraditório em si mesmo do que suas doutrinas”
(GOETZ, 1959).
Em certa oportunidade, Goetz teria discutido com Freud as
palestras que ouvira recentemente de um erudito em sânscrito sobre
o Bhagavad-Gita – um dos poemas mais importantes da filosofia
hinduísta, provavelmente escrito no quarto século antes de Cristo. A
esse respeito, Freud teria respondido o seguinte, com interesse e vigor:
Prudência, meu rapaz, prudência, ele exclamou quando terminei.
Você tem razão de ser entusiasta e a boca fala do exagero do
coração. Este coração terá sempre seus direitos, mas conserve a
cabeça fria, que, graças a Deus, você ainda a tem. Não se deixe
surpreender! Um espírito claro e pronto como o relâmpago é
um dos dons mais preciosos. O poeta da Bhagavad-Gita seria
o primeiro a afirmar a mesma coisa. Ver, ver sempre e sempre
manter os olhos abertos, fazer-se consciente de tudo, não

15
O artigo de Goetz, Erinnerungen an Sigmund Freud, foi publicado originalmente
na Neue Schweitzer Rundschau, de Zurique. Trabalha-se aqui com a tradução para o
francês feita por Paul Duquenne e publicada em 1959. Há informações biográficas
sobre Goetz no artigo This is all I have to tell about Freud: reminiscences of Sigmund
Freud, publicado em 1982 no periódico Annual of Psychoanalysis, n. 10, por Martin
Grotjahn e Ernest S. Wolf.
48 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

recuar diante de nada, ser ambicioso sempre – entretanto, não


se iludir, não se deixar devorar. A emoção não deve atordoá-lo.
“A cabeça de frente para o abismo, os pés para o alto” – esse
dito de Dostoïevski é muito bonito, mas a inspiração europeia
nela glorificada é um deplorável mal-entendido. O Bhagavad-
Gita é um poema grandioso, muito profundo, e é um abismo
terrificante. “E sob meus passos o abismo ainda abriria trevas
purpurinas”, diz O mergulhador de Schiller, que não retorna mais
de sua segunda aventura. Pois, se você não mergulhar no mundo
do Bhagavad-Gita sem a ajuda de um espírito muito penetrante,
onde nada parece estar firme e tudo se dissolve um no outro, de
súbito você se encontrará diante do nada. Sabe o que quer dizer
estar diante do nada? Sabe o que quer dizer? E, no entanto, esse
nada é apenas um engano europeu: o Nirvana hindu não é o nada,
mas o além de todos os contrários. Não é só um divertimento
voluptuoso, como se admite de bom grado na Europa, mas uma
visão última, sobre-humana, visão que apenas se imagina, glacial
em que tudo é resumido. Ora, quando não o comprendemos bem,
é o delírio. Ah, esses sonhadores europeus! O que sabem eles da
profundidade oriental? Eles divagam, não sabem nada. E então
se surpreendem, quando perdem a cabeça e se tornam loucos –
literalmente loucos, insensatos! (GOETZ, 1959).
Essa passagem é valiosa histórica e conceitualmente porque
mostra uma série de considerações inexistentes dentro da obra
freudiana. Em primeiro lugar, uma consideração muito respeitosa pelo
Bhagavad-Gita, qualificado como grandioso e profundo tal qual um
“abismo terrível”. Esse respeito estende-se ao Oriente e aos filósofos
hindus. Em segundo lugar, um entendimento ímpar da noção de
nirvana, como um insight da mais alta compreensão que transcende
todas as contradições. Em terceiro lugar, uma desqualificação dos
estudiosos europeus, representados pelo professor erudito de Goetz
(Leopold von Schroster), que pensavam compreender algo sobre o
pensamento oriental.
Além disso, Freud faz uma recomendação bastante cuidadosa
ao jovem escritor: a abordagem de temas assim tão profundos deveria
ser feita sem abdicar do uso da razão – daí o conselho para manter
a “cabeça fria” apesar do entusiasmo e do “exagero do coração”. Em
seguida, Freud cita parte do poema O mergulhador de Schiller, sobre o
Capítulo 2 – Freud e a mística: primeiras interações | 49

qual vale a pena nos determos, pois ele será novamente citado, 25 anos
mais tarde, na consideração dos fenômenos místicos.16
Escrito em 1797, o poema de Schiller (ver íntegra no apêndice)
conta a história de um pajem, a única pessoa com coragem suficiente
para responder ao desafio de seu rei: mergulhar em um abismo oceânico,
temido pela violência das águas e pelas criaturas que oculta, para
recuperar um cálice de ouro. Aquele que sobrevivesse à façanha heroica
ganharia do rei não só o cálice, mas o próprio trono. O pajem mergulha
e, após muita tensão dos espectadores, retorna com o cálice e descreve os
terríveis monstros que se ocultam no abismo. Porém o rei, não satisfeito,
lança o desafio de recuperar o cálice uma segunda vez, cuja recompensa
traria ao herói também a mão da princesa em casamento. O pajem
mergulha novamente, mas desta vez para nunca mais voltar.
Como afirma Assoun (1980), é inegável a influência do
romantismo alemão em Freud e na nascente psicanálise. Desta forma,
pode-se supor que o poema de Schiller ilustra certa atitude do mestre
com relação ao misticismo. Como Freud claramente associa o abismo
terrível do Bhagavad-Gita ao abismo do poema de Schiller, pode-se
interpretar que seu posicionamento era extremamente receoso quanto
aos perigos de “mergulhar” inadvertidamente na filosofia hinduísta.
E percebe-se logo em seguida, inclusive, qual é o grande risco que
correm aqueles que se aventuram, tal como O mergulhador de Schiller,
nas profundezas desses assuntos: a loucura.
Deter-se-á novamente neste tema adiante; por ora cabe apenas
dizer que o perigo da loucura é considerado verdadeiro e citado com
certa frequência pelos próprios místicos em diferentes tradições. Apesar
disso, Freud menciona que o nirvana não é um delírio, e certamente
essa afirmação introduz a problemática relação entre a mística e a
psicose, conforme será visto no capítulo 5, item 5.3.
Assim sendo, é bastante surpreendente o nível de compreensão
que Freud aparentava possuir sobre uma das grandes filosofias místicas
do Oriente, coisa que pouco transparece em sua própria obra, e talvez
jamais transparecesse, caso o mestre não tivesse travado contato com a
figura muito singular de Romain Rolland.

16
Ver capítulo 3, item 3.7.
| Capítulo 3 |

Freud, Rolland e o sentimento oceânico

3.1 Um amigo muito admirado


Conforme já aludido, Freud nunca dedicou uma atenção tão
especial ao misticismo como o fez com a religião. Mas, pensando de
forma esquemática, pode-se dizer que O mal-estar na cultura está para
a mística assim como o Futuro de uma ilusão está para a religião.
Foram as correspondências entre Freud e o escritor francês
Romain Rolland no período que vai de 1923 a 1936 e, mais
precisamente, suas discussões sobre o chamado “sentimento oceânico”
as grandes responsáveis pela conhecida teoria freudiana do misticismo.
Esta é basicamente apresentada por inteiro no primeiro capítulo de
O mal-estar na cultura (1930). Contudo, William Parsons (1998, 1999,
2003), pesquisador que se dedicou a uma análise pormenorizada das
incursões freudianas no sentimento oceânico, afirma que a questão
é mais nuançada e complexa do que os psicanalistas usualmente têm
considerado até hoje. Pretende-se, neste capítulo, dialogar com algumas
das ideias deste autor.17
Em primeiro lugar, contudo, é importante situar o tipo de
relação estabelecida entre os dois homens. Sabe-se que Freud muito
admirava Rolland, mas quem foi ele? Atualmente pouco comentado,
Romain Rolland (1866-1944) foi um escritor renomado em sua época, é
autor de romances famosos como Jean-Christophe (1904-1912) e L’Âme-
enchantée (1922-1933), além de peças de teatro, ensaios e biografias
de figuras ilustres como Beethoven, Michelangelo e Tolstoi. O alto
nível de sua obra intelectual rendeu-lhe, em 1915, o Prêmio Nobel
de Literatura. Mas, como lembra Parsons (2003), Rolland foi muito

17
Vale informar que o estudo mais aprofundado de toda a relação entre Freud e
Rolland, tratando não somente do sentimento oceânico, é o de Vermorel e Vermorel
(1993), a ser aqui utilizado principalmente como fonte da íntegra das correspondências
originais em francês.
52 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

mais que isso: em primeiro lugar, foi um pacifista, um ativista social e


um mediador durante a Primeira Guerra Mundial. Destaca-se, nesse
âmbito, seu trabalho Au-dessus de la mêlée (1915), admirado na época
pelo apelo moral à criação de um espaço para o diálogo construtivo no
seio das hostilidades mútuas entre franceses e alemães.
Em segundo lugar, Rolland foi uma figura proeminente na criação
de um espaço para o diálogo intercultural entre Ocidente e Oriente,
especialmente nas temáticas místico-religiosas: elaborou as biografias
de Gandhi e de dois místicos hinduístas que viveram em sua época,
Ramakrishna e Vivekananda. E, finalmente, é importante lembrar que
ele próprio foi um místico, tendo renunciado ao cristianismo de seu
background familiar para defender uma forma pessoal de misticismo
como fonte primeira de toda religiosidade.
O conhecido pessimismo do “último Freud” contrastava
veementemente com o otimismo de Rolland em relação ao futuro da
humanidade. Parece ter sido esse um grande ponto de atração para
o primeiro autor, cujo encantamento por Rolland transparece em
algumas obras. Em 1926, apenas dois anos após o primeiro e único
contato pessoal que os dois homens tiveram, Freud (1998 [1926], p.
269) publicou uma pequena homenagem ao amigo, A Romain Rolland,
na qual o descreve como alguém que atingiu o ponto culminante da
humanidade, um “artista e apóstolo do amor entre os seres humanos”.
Em 1930, nos primeiros parágrafos de O mal-estar na cultura, lê-se
um grande elogio a Rolland – é um dos “homens eminentes” que não
busca poder, sucesso e riqueza, mas “os verdadeiros valores da vida” (p.
65). Indiretamente o pai da psicanálise se coloca como pertencente à
minoria que admira tais seres. Finalmente, em 1936, Freud (1998 [1936])
escreve Carta a Romain Rolland (uma perturbação da memória na acrópole),
na qual novamente expressa a admiração que nutre “por seu amor à
verdade, sua coragem pública, seu humanitarismo e solicitude para com o
próximo”. Também expressa sua gratidão “ao literato que me presenteou
com tantos momentos de gozo e exaltação” (p. 213). Outras formas de
agradecimento e elogios aparecem em suas correspondências pessoais.

3.2 Um desafio para Freud


O ponto crucial da correspondência entre Freud e Rolland foi
a carta-resposta que este escreveu em 5 de dezembro de 1927, após a
Capítulo 3 – Freud, Rolland e o sentimento oceânico | 53

leitura de O futuro de uma ilusão – recebido de Freud como presente.


Ali o escritor francês indica concordar com o inventor da psicanálise a
respeito da religião em geral, mas objeta que o fundamento verdadeiro
da religiosidade seria outro, algo que ele próprio sempre experimentou
como um “sentimento oceânico” (sentiment océanique). Dada sua
importância para o trabalho em tela, a carta de Rolland é transcrita
abaixo na íntegra:
Caro e Respeitado Amigo,

Agradeço sua gentileza em me enviar seu lúcido e corajoso


pequeno livro. Com um calmo bom senso, e num tom moderado,
ele retira a venda dos eternos adolescentes, que somos todos nós,
cujo espírito anfíbio flutua entre a ilusão de ontem e... a ilusão
de amanhã.
Sua análise das religiões é justa. Mas eu teria apreciado vê-
lo fazendo a análise do sentimento religioso [sentiment religieux]
espontâneo ou, mais exatamente, da sensação religiosa [sensation
religieuse], que é totalmente diferente das religiões propriamente
ditas, e muito mais durável.
O que eu quero dizer é: – totalmente independente de todo
dogma, de todo Credo, de todas as organizações da Igreja, de
todos os Livros Sagrados, de toda esperança na sobrevivência
pessoal, etc., – o fato simples e direto da sensação do “eterno” (que
pode muito bem não ser eterno, mas simplesmente sem limites
perceptíveis, e como se fosse oceânico).
Esta sensação é, na verdade, de um caráter subjetivo. Mas como,
com milhares (milhões) de nuances individuais, ela é comum a
milhares (milhões) de homens atualmente existentes, é possível
submetê-la a análise, com uma exatidão aproximativa.
Eu acho que você vai classificá-la entre as Zwangsneurosen [neuro-
ses obsessivas]. Mas eu tive a ocasião de constatar frequentemente
a sua rica e benéfica energia, seja entre as almas religiosas do
Ocidente, cristãos ou não cristãos, seja entre estes grandes espíri-
tos da Ásia que se tornaram familiares para mim – e alguns dos
quais eu conto como amigos –, destes últimos, eu vou estudar, em
um próximo livro, duas personalidades quase contemporâneas
(a primeira é do fim do século XIX, a segunda faleceu nos
primeiros anos do século XX), e que revelaram uma aptidão
54 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

pelo pensamento e ação fortemente regenerativo para seus


países e para o mundo.
Eu mesmo sou familiar a esta sensação. Ao longo de toda a
minha vida, ela nunca me falhou; e eu sempre encontrei nela uma
fonte de renovação vital. Nesse sentido, eu posso dizer que sou
profundamente “religioso” – e sem que esse estado constante
(como um lençol d’água que sinto irromper na superfície) afete de
qualquer maneira minhas faculdades críticas e minha liberdade de
exercê-las, mesmo contra a imediação desta experiência interior.
Desta maneira, sem desconforto ou contradição, eu posso levar
uma vida “religiosa” (no sentido desta sensação prolongada) e
uma vida de razão crítica (que é sem ilusão)...
Posso acrescentar que este sentimento “oceânico” [sentiment
“océanique”] não tem nada a ver com minhas aspirações pessoais.
Pessoalmente, eu anseio pelo repouso eterno; a sobrevivência
não tem absolutamente nenhuma atração para mim. Mas o
sentimento que eu experiencio é imposto a mim como um fato.
É um contato. E como eu reconheci que ele é idêntico (com
múltiplas nuances) em um grande número de almas vivas, ele me
ajudou a entender que ali estava a fonte subterrânea verdadeira da
energia religiosa; que, subsequentemente, foi coletada, canalizada
e esgotada pelas Igrejas: ao ponto em que se poderia dizer que
é dentro das Igrejas (quaisquer que sejam) que o verdadeiro
sentimento “religioso” é menos disponível.
Que eterna confusão é causada pelas palavras, das quais a mesma
aqui significa às vezes submissão ou fé em um dogma, ou uma pala-
vra (ou a uma tradição); e outras vezes: uma exaltação livre e vital.
Acredite, prezado amigo, no meu respeito afetuoso. (ROLLAND
apud VERMOREL; VERMOREL, 1993, p. 303-304).
A carta de Rolland pode ser considerada sob vários ângulos. Seu
autor, a princípio, afirma concordar plenamente com as ideias de Freud
que relacionam religião e ilusão. Todavia ele lança ao mestre vienense
um desafio, o de analisar um sentimento religioso que nada teria
a ver com as religiões: independente de todo credo, fé, organização
religiosa e ainda sem buscar a garantia de imortalidade pessoal. Seria
simplesmente uma sensação subjetiva de eternidade, mas no sentido de
ausência de limites, como se fosse “oceânico”.
Não é possível ter dúvidas de que se trata da experiência
mística, na melhor acepção de uma vivência inefável que transcende as
Capítulo 3 – Freud, Rolland e o sentimento oceânico | 55

fronteiras do eu. Como bom perenialista,18 Rolland continua sua carta


argumentando que tal sentimento é comum em milhões de indivíduos,
transculturalmente, e que tão somente assume nuanças pessoais. Nesse
ponto, ele aproveita para anunciar as biografias, ainda em elaboração,
de Ramakhrisna e Vivekananda, as quais ainda seriam presenteadas a
Freud antes do término da escrita de O mal-estar.
Rolland continua sua mensagem afirmando que o sentimento
oceânico, o qual ele próprio sempre teria experimentado, não afeta o
julgamento crítico do sujeito, de forma que é possível tê-lo sem cair
nas mazelas da ilusão que Freud denunciara em seu último livro. Na
sequência, assegura que esse sentimento é a verdadeira origem da
religiosidade. Não obstante, objeta que ele foi canalizado e exaurido
pelas instituições religiosas e, por isso, acaba sendo menos presente
justamente dentro delas.
Como Rolland não usa o termo “mística” ou “misticismo”, ele se
vê preso à dificuldade de definir, com o mesmo significante “religião”,
significados completamente diferentes: por um lado, fé num dogma ou
na palavra de deus e, por outro, “uma exaltação livre e vital”.
Para Kakar (1997c), a expressão “sentimento oceânico” foi
cunhada por Romain Rolland durante suas pesquisas para a biografia de
Ramakrishna e teria, portanto, uma influência oriental. Parsons (1998),
ao contrário, aponta que o termo foi utilizado pelo autor já em 1888,
em um de seus primeiros escritos. Visto que as explorações orientais de
Rolland só tomaram corpo muitos anos mais tarde, sua influência seria
decididamente ocidental. Kakar (1997c), por outro lado, lembra que
não apenas a tradição hinduísta refere-se ao oceano como símbolo de
unidade sem fronteiras que dissolve multiplicidades e funde opostos,
pois que também as tradições budistas, cristãs e muçulmanas utilizam-
no como metáfora do derretimento dos limites egoicos do místico.
Freud responde a Rolland quase dois anos depois, em 14 de julho
de 1929. Na carta, ele anuncia seu livro em desenvolvimento, O mal-
estar na cultura, e pede ao amigo permissão para analisar o sentimento
oceânico de maneira pública, o que seria feito na introdução desse
trabalho. Rolland concorda em correspondência escrita apenas três
dias mais tarde (VERMOREL; VERMOREL, 1993).

18
O entendimento perenialista sobre o misticismo é discutido no capítulo 1, item 1.2.
56 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

O resultado é um texto bem conhecido pelos analistas – consta


que todo o primeiro capítulo de seu Mal-estar é dedicado ao assunto.
Já no segundo parágrafo, Freud cita as ideias da carta de Rolland de
maneira muito fidedigna, mas aí começam seus problemas. O inventor
da psicanálise afirma ter passado por “não poucas dificuldades” ao
travar contato com as opiniões do estimado amigo, ainda que com
franca consideração. Ele confessa: “Eu não posso descobrir em mim
mesmo esse sentimento ‘oceânico’” (FREUD, 1998 [1930], p. 66). Mas
toma o cuidado, contudo, de não negar que a sensação em análise possa,
de fato, ocorrer a outras pessoas.
A questão de uma ausência declarada de qualquer sentimento
religioso ou místico em Freud parece decisiva na sua apreciação dessa
classe de fenômenos. Talvez possamos pensar que seria decisiva para
qualquer autor. Em O futuro de uma ilusão, Freud argumenta que, se a
veracidade das doutrinas religiosas depende de uma experiência interior –
um estado de êxtase, por exemplo –, não se deve exigir convicção daquele
que não a tem. Estava, obviamente, falando também de si mesmo.
Nesse sentido, Assoun (1980) destaca que a longa correspondência
Rolland-Freud não deixa de ser também um “diálogo de surdos”, pois
que o primeiro era assumidamente místico, enquanto o segundo
confessava jamais ter passado por experiência semelhante. Aliás, em
carta a Rolland escrita em 20 de julho de 1929, Freud declara, em
passagem conhecida, que os mundos citados pelo amigo lhe eram
estrangeiros, confessando ser tão fechado à mística quanto à música
(apud VERMOREL; VERMOREL, 1993, p. 311). Essa forma de arte
que, conforme sabemos, pouquíssimo lhe interessava.
Desta forma, a leitura do primeiro capítulo de O mal-estar... provoca
no leitor a sensação de que a questão do sentimento oceânico não é de
fácil resolução para o autor: “Nada que poderia influir concludentemente
na solução deste problema tenho para alegar” (FREUD, 1998 [1930], p.
66). Todavia, como seria previsível a partir de seu espírito investigativo,
Freud lança mão de vários parágrafos para explicitar uma hipótese
“desmistificadora”, no senso mais comum da palavra.19

19
Na carta de 20 de julho de 1929, Freud (apud VERMOREL; VERMOREL, 1993,
p. 311) adverte Rolland: “Não espere dele [de O Mal-estar...] uma apreciação elogiosa
do sentimento oceânico. Atenho-me somente à derivação analítica deste sentimento.
Afasto-o, por assim dizer, do meu caminho.”
Capítulo 3 – Freud, Rolland e o sentimento oceânico | 57

Antes de expô-la, é preciso dizer que o autor desconfia, já de


princípio, da característica supostamente primária desse sentimento, pois,
como dito anteriormente, ele não o percebe em si mesmo. Logo, Freud
redimensiona a questão em termos de um conteúdo representacional,
uma percepção intelectual, “não despojada, certamente, de um tom
afetivo, mas do tipo que tampouco falta em outros atos de pensamento
de parecido alcance” (FREUD, 1998 [1930], p. 66).
Freud começa a abordar a questão teorizando sobre os primórdios
da formação do eu. A criança recém-nascida não distingue mundo
interno e externo; as sensações que sobre ela fluem não possuem ainda
esse tipo de demarcação que envolve algumas formas de aprendizado.
Uma delas se dá pela percepção da diferença entre as fontes de excitação
sempre disponíveis (as corporais) e as fontes fugidias, tais como o seio
da mãe. Outra decorre da tendência egoica de se isolar das fontes de
sofrimento e desprazer. Mas o problema não é tão simples, porque a
criança perceberá que também existem fontes de desprazer internas,
das quais não pode escapar. Isso é muito importante teoricamente,
pois o eu não saberá defender-se das fontes internas de sofrimento de
outra forma senão utilizando os métodos de defesa que lança contra o
exterior, sendo isso “o ponto de partida de substanciais perturbações
patológicas” (FREUD, 1998 [1930], p. 68). Grosso modo, é por tais
caminhos que a diferenciação entre “interior” e “exterior” toma corpo.
Colocando de outro modo, Freud assegura que originalmente o
eu tudo inclui, só se diferenciando do exterior mais tarde. Trata-se do
narcisismo primário, de acordo com sua segunda definição do narcisismo
(ver item 3.4). A partir dessa ideia, ele formula a conhecida hipótese de
que o sentimento primitivo do eu poderia perdurar em maior ou menor
grau nas pessoas adultas, ao lado do sentimento do eu bem demarcado
da maturidade. Isso originaria, em algumas pessoas, um conteúdo
representacional de ilimitabilidade e de vínculo com o universo –
exatamente aquilo que seu amigo enunciou como sentimento oceânico.
O criador da psicanálise afirma ainda que a hipótese supracitada
sustenta-se sobre outra: nada do que uma vez formou-se na vida anímica
pode perecer. E argumenta convocando o leitor a participar de um jogo
imaginativo sobre a cidade de Roma em diferentes épocas, a ser tomada
como metáfora do psiquismo. Sabe-se que a arquitetura da “cidade
eterna” demonstra ainda vestígios de suas grandes fases históricas, e
58 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

se pudermos imaginar suas construções antigas sobrepostas àquelas


da atualidade, teremos um vislumbre da coexistência de tendências
primitivas e recentes na vida psíquica. Seja ou não o exemplo bem
colocado, o ponto-chave é que, para Freud, não é exceção, mas regra,
que o passado seja preservado na vida anímica. Isso, evidentemente, é
premissa básica para a existência do inconsciente e remete às noções
psicanalíticas de regressão e fixação.

3.3 Mística e regressão


A noção de regressão em Freud indica primordialmente um
retorno a formas anteriores ou arcaicas do desenvolvimento do pensa-
mento, das relações de objeto, das fases libidinais20 e da estruturação do
comportamento como um todo, assumindo-se, é claro, a existência de um
sentido nesse desenvolvimento (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001).21
Inicialmente a regressão aparece na obra freudiana como uma
maneira de explicar a característica alucinatória dos sonhos. No capítulo
7 de A interpretação dos sonhos (1998 [1900]), o aparelho psíquico é definido
como uma sucessão de sistemas. Estes seriam percorridos de maneira
progressiva pelas excitações no estado de vigília, do sistema perceptivo
para o sistema da motilidade. Ao contrário, no estado de sono, as
excitações, que incluem pensamentos, percorreriam os sistemas psíquicos
em sentido regressivo: como lhes é negada a passagem à motilidade, as
mesmas regridem ao sistema perceptivo, gerando as imagens sensoriais
características dos sonhos. Mais tarde, Freud definiu esse tipo de
regressão como tópica, que se somaria à regressão temporal e formal.

20
A libido, para Freud, refere-se a uma energia de caráter eminentemente sexual, que
é considerada uma grandeza quantitativa, embora não seja efetivamente mensurável.
Estando o conceito de pulsão situado no limite entre o psíquico e o somático (ver
capítulo 4, item 4.3), a libido seria a manifestação dinâmica da pulsão sexual na vida
psíquica (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001).
21
Ao tratar dos conceitos de regressão e fixação, é necessário ter em mente que
o desenvolvimento sexual em psicanálise não deve de forma alguma ser lido numa
perspectiva psicogenética, em termos de fases ideais às quais um sujeito “maduro”
ou “normal” deva se adequar. Como já mencionado, Freud define que é norma, não
exceção, que o passado seja preservado na vida anímica, o que derruba a ideia de
que haja uma sexualidade infantil a ser superada por uma sexualidade adulta. Jacques
Lacan (1988 [1959-1960]) denunciou fortemente esse engano.
Capítulo 3 – Freud, Rolland e o sentimento oceânico | 59

Sobre a regressão temporal não é possível falar sem referência à


teoria do desenvolvimento psicossexual do sujeito, cujo principal ponto
de partida se encontra nos Três ensaios de teoria sexual (1998 [1905]).
Ali Freud defende sua importante tese sobre o caráter originalmente
perverso e polimorfo da sexualidade: a chamada sexualidade adulta, de
primado genital, é somente uma possibilidade de desenvolvimento a
partir de uma sexualidade que já existe na criança sem que se instaure de
modo definitivo ou exclusivo o primado de uma zona erógena ou de uma
escolha objetal. A criança, entretanto, passa por diferentes fases libidinais,
cada qual caracterizada por certa organização da libido sob o primado de
uma zona erógena e pela predominância de uma relação de objeto.
Apesar do sentido progressivo do desenvolvimento sexual assim
definido, nessa obra Freud já menciona a possibilidade de que impedi-
mentos forcem o retorno da libido a caminhos laterais de satisfação
e a objetos anteriores. A ideia de regressão temporal origina-se dessa
concepção, designando o retorno do sujeito a etapas ultrapassadas do
seu desenvolvimento, principalmente em termos de fases libidinais,
relações de objeto e identificações.
Na vigésima segunda das Conferências de introdução à psicanálise
(1998 [1916-1917]), Freud explica que a regressão temporal pode tratar-
se, simplesmente, de um retorno a um objeto libidinal anterior, como
também de um retorno da própria libido a modos de funcionamento
anteriores. O primeiro desses tipos de regressão temporal é
particularmente característico da histeria, na qual acontece a volta aos
objetos sexuais incestuosos. Já o segundo está especialmente associado
à neurose obsessiva, em que há recuo à organização sexual sádico-anal.
A regressão formal, menos comentada por Freud, dá-se quando
métodos primitivos de expressão e representação tomam o lugar dos
métodos habituais (FREUD, 1998 [1900]). Ela diz respeito aos proces-
sos em que há retorno do processo secundário ao processo primário
(LAPLANCHE; PONTALIS, 2001). Deve-se lembrar ainda que, apesar
das distinções aqui delineadas, para Freud os três tipos de regressão
essencialmente coincidem em sua base (FREUD, 1998 [1900]).
Em termos conceituais, o caráter temporal da regressão é mais
adequado à hipótese freudiana sobre a origem do sentimento oceânico.
Nesse caso, o sentimento primitivo do “eu” retorna ou soma-se
àquele da vida madura. Obviamente, a noção de regressão tem caráter
60 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

descritivo e não permite maiores detalhamentos sobre a forma em que


esses retornos acontecem, os quais podem ser retomados adiante com o
conceito de narcisismo em mente.
Mas por que algumas pessoas regridem ao sentimento oceânico
enquanto outras não? Nesse caso, a noção de fixação é útil. A fixação
também descreve as vicissitudes da libido em suas fases do desenvolvimento
e se refere especificamente à capacidade daquela em permanecer ligada
a modos de satisfação e objetos característicos de fases infantis. Sob
outra ótica, o processo diz respeito a uma inscrição no inconsciente dos
representantes (os significantes, diria Lacan) dessas fases libidinais, de
forma que a pulsão a eles permanece indubitavelmente ligada.
A fixação prepara os caminhos da regressão, sendo qualquer
obstáculo ulterior no desenvolvimento libidinal do sujeito o estopim
pra um retorno a formas anteriores de satisfação pulsional. Esse
mecanismo está na base de todas as afecções neuróticas e explica por
que o sujeito humano em geral permanece ligado a formas de satisfação
arcaicas, em eterna compulsão à sua repetição.
Nessa linha de raciocínio, o sentimento oceânico teria seu
fundamento na fixação da libido em uma fase bastante primitiva da
organização egoica, o que corresponderia a uma forte ligação pulsional
em representantes psíquicos inscritos nessa fase. Tais inscrições
hiperinvestidas seriam responsáveis pela insistente regressão a modos
de pensamento e de satisfação característicos de um eu ainda em
formação e, portanto, pouco ciente de seus próprios limites corporais.
Destinado a repetir-se ad infinitum, esse processo geraria no adulto
o conteúdo ideacional de ilimitabilidade chamado por Rolland de
sentimento oceânico. Serão retomadas essas questões a seguir.

3.4 Oceano narcísico


Esclareceu-se, enfim, que o sentimento oceânico remonta a uma
fase primitiva do desenvolvimento egoico. Na sequência de suas ideias,
Freud ainda relaciona o papel desse sentimento com uma aspiração
“a restabelecer o narcisismo irrestrito” (FREUD, 1998[1930], p. 73).
Deter-se-á nesta questão, pois que a frase citada veio a ser o grande
molde do pensamento psicanalítico no que concerne ao misticismo, a
qual, além de remeter à regressão, também se refere claramente a um
conceito importante do arcabouço conceitual psicanalítico.
Capítulo 3 – Freud, Rolland e o sentimento oceânico | 61

De maneira muito geral, o narcisismo é conceituado como o amor


do sujeito por si mesmo e remete obviamente ao mito grego de Narciso,
que se enamora pela imagem própria espelhada. Descrito primeiramente
em 1899 na obra do psiquiatra Paul Näcke (NASIO, 1997), é, entretanto,
somente com Freud que o termo deixará de indicar um tipo de
perversão para caracterizar uma forma de investimento libidinal nunca
completamente ultrapassável pelo homem e, portanto, estrutural.
Não é, todavia, de fácil compreensão o desenvolvimento da noção
na obra freudiana. Isso se deve ao fato de haver uma descontinuidade
no pensamento do autor sobre o tema, o que parece indicar ao menos
duas grandes fases conceituais separadas pelo advento da segunda
tópica psíquica.
A noção de narcisismo comporta, invariavelmente, duas etapas
definidas como “primária” e “secundária”. No período entre 1910 e 1915
e, especialmente, na primeira obra dedicada de modo exclusivo ao tema –
Introdução ao narcisismo (1998 [1914]) –, o narcisismo primário é o estágio
precoce no qual a criança investe toda a libido em si mesma e, nesse
sentido, é contemporâneo da própria constituição do eu. Isso significa
que no narcisismo primário a libido investe justamente esse “eu”.
Tal narcisismo primordial é definido por Freud como o estágio
intermediário entre o autoerotismo e o investimento objetal. O primeiro
destes é caracterizado pelo funcionamento virtualmente anárquico de
pulsões parciais, que se ligam a determinados órgãos ou zonas erógenas
e encontram sua excitação e apaziguamento in loco, sem referência a
objetos exteriores ou mesmo a uma imagem corporal unificada. É,
pois, uma fase pré-egoica. Já a capacidade para investimento objetal
é o que caracteriza o sujeito no declínio do narcisismo primário. Sua
economia libidinal torna-se capaz de desinvestir em predominância a
imagem de si mesmo (o eu) para ligar-se a objetos do mundo exterior.
Vale enfatizar que, para Freud, o narcisismo é estrutural, ou seja,
o eu nunca deixa totalmente de ser investido pela libido. Daí a conhecida
metáfora da ameba que lança seus pseudópodes para o exterior: nesse
processo a libido passa do eu para o objeto, mas pode sempre retornar
à fonte original. A retirada dos investimentos objetais em prol de um
retorno ao eu define justamente o narcisismo secundário, característico
tanto de processos perfeitamente comuns como o sono e o luto, quanto
de situações patológicas que remetem, por exemplo, às psicoses (por
isso também chamadas por Freud de neuroses narcísicas).
62 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

Definida dessa forma, a noção de narcisismo parece clara,


todavia, após o desenvolvimento da segunda tópica, Freud reelabora
suas características. Na vigésima sexta das Conferências de introdução à
psicanálise (1998 [1916-1917]) e em Psicologia das massas e análise do eu (1998
[1921]), o narcisismo primário é definido como um primeiro estado da
vida humana, totalmente anobjetal e anterior inclusive à formação do eu
(o eu e o isso seriam ainda indiferenciados). O protótipo dessa fase seria
a vida intrauterina, que é reproduzida de alguma forma no sono. Nesse
modelo, o autoerotismo seria, pois, “a prática sexual do estádio narcisista
de colocação da libido” (FREUD, 1998 [1916-1917], p. 379). Ou seja,
desfaz-se a diferença bem marcada entre autoerotismo e narcisismo,
assim como a importância da formação do eu para o esquema.
Tal questão torna-se mais clara com as teorizações de Jacques
Lacan sobre a vida precoce do sujeito humano, as quais se compatibilizam
em especial com o primeiro esquema do narcisismo criado por Freud
(fase 1910-1915). Lacan (1998a) estudou a questão da formação do
eu antes mesmo do início de seus seminários, sendo fundamental
nesse âmbito o escrito de 1949, O estádio do espelho como formador da
função do eu. Haveria, segundo o autor, um momento fundamental
para a constituição da subjetividade – o estádio do espelho – no qual o
infans, ainda prematuro em termos de coordenação corporal, se deixa
capturar pela imago22 da forma humana. Ou seja, a criança se identifica
com a imagem do outro, inclusive com o outro do espelho, chegando
a ponto de se reconhecer nessa imagem. Como explica Dor (1989, p.
80): “Reconhecendo-se através desta imagem, a criança recupera assim
a dispersão do corpo esfacelado numa totalidade unificada, que é a
representação do corpo próprio”.
Assim, Lacan demonstra que antes do estádio do espelho o bebê
não possui uma imagem unificada do corpo e, logo, não tem a noção
nem do eu, nem do objeto. Esse “tempo zero” da subjetividade bem se
coaduna com a primeira noção de autoerotismo freudiano, no sentido de
que os investimentos pulsionais são dispersos, localizados isoladamente
em partes diversas do corpo. Por decorrência, a identificação primordial

22
A imago é definida por Laplanche e Pontalis (2001, p. 234-235) como o “protótipo
inconsciente de personagens que orienta seletivamente a forma como o sujeito
apreende o outro; é elaborado a partir das primeiras relações intersubjetivas reais e
fantasísticas com o meio familiar”.
Capítulo 3 – Freud, Rolland e o sentimento oceânico | 63

do estádio do espelho corresponde ao narcisismo primário da primeira


definição de Freud. Logo só é possível falar de narcisismo após a
constituição dos primórdios do eu – essa imagem unificada do corpo
a qual a libido agarra-se para nunca mais se desligar por completo
(CHEMAMA, 1995). Além disso, as concepções de Lacan também
demonstram a falácia de pensarmos o narcisismo como um momento
anobjetal, pois que o estádio do espelho é, em resumo, a interiorização
de uma relação com o outro.
Retomando as considerações freudianas sobre o sentimento
oceânico, certamente este é indicado como uma forma de narcisismo
secundário. É, portanto, pertinente pensar nas disciplinas místicas
como narcísicas, porquanto, de forma geral, se diz que o místico passa
por longos períodos nos quais retira gradualmente todo seu interesse
do mundo exterior para dedicar-se somente à introspecção. Prince
e Savage (1993), entre outros, afirmam justamente serem a renúncia
e o desinteresse pela vida mundana duas características comuns do
misticismo. A vida monástica, em suas várias formas, parece atestar
totalmente essa afirmação, ainda que, paradoxalmente, a meta última
do místico possa envolver o altruísmo.
Também Clément e Kakar23 (1997) salientam o grande narci-
sismo dos místicos, os quais, especialmente quando em estado de êxtase,
tornam-se extremamente indiferentes a seus semelhantes, apesar de
toda a aspiração à santidade. Clément, que analisa a vida de uma mística
francesa internada na Salpêtrière do século XIX, destaca exemplos de
seu egoísmo quando irrompe o estado de êxtase: a paciente lastima-se do
sofrimento de outros internos do hospital como meras incomodações.
Madeleine – este é seu nome – pode até admitir que deveria compadecer-
se pelos semelhantes, mas seu coração “plana numa esfera onde as queixas
23
A filósofa francesa Catherine Clément e o psicanalista indiano Sudhir Kakar
escreveram importante obra para reflexão sobre a mística, intitulada A louca e o santo
(1997). Nela, os autores tratam de comparar o misticismo da francesa Madeleine,
considerada louca na França do século XIX e internada na Salpêtrière aos cuidados de
Pierre Janet, ao de um contemporâneo indiano, o famoso Ramakrishna, considerado
santo na Índia e venerado até os dias de hoje. Na comparação, os autores encontram
vários pontos em comum na vida desses dois personagens: eles são vistos, igualmente,
como grandes místicos, e o critério para distinção entre o misticismo “verdadeiro” e a
loucura é entendido como puramente sócio-histórico. Logo Ramakrishna poderia ter
sido um louco enclausurado se vivesse na França do século XIX, enquanto Madeleine
teria sido uma santa na Índia do mesmo período.
64 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

dos homens são sufocadas pelos gritos de amor e pelos cantos de ação
de graça dos bem-aventurados” (apud CLÉMENT, 1997, p. 46-47).
De fato, não há espaço para objetos do mundo quando a libido investe
totalmente o eu: “O imenso narcisismo do êxtase não se deixa partilhar;
é muito ‘cru’” (CLÉMENT; KAKAR, 1997, p. 23).

3.5 Luto e melancolia


Os autores relacionam esse narcisismo a uma peculiar capacidade
de luto encontrada nos místicos. Kakar (1997c), ao analisar a vida
precoce do místico hindu Ramakrishna, identifica os primórdios da
escolha deste pela trilha espiritual quando, ainda criança, ele presencia
o falecimento do pai. Na adolescência, aumentam suas aspirações
místicas por ocasião da morte do irmão mais velho, tido como uma
figura paterna. De acordo com um dos biógrafos de Ramakrishna, essa
morte teria inflamado no místico a chama da renúncia, produzindo
a convicção da transitoriedade do mundo (KAKAR, 1997c). Também
Clément (1997) percebe que alguns eventos de perda e frustração na
vida de Madeleine, mesmo os aparentemente banais, produziram na
mística, ainda jovem, os primeiros impulsos para uma vida de renúncia.
O renunciante, na Índia, é aquele decidido a morrer para o
mundo e a errar pelas estradas, devotando-se à contemplação e ao
mais completo despojamento. A renúncia envolve o ascetismo –
muito comum no caminho dos místicos, tal como definiu Underhill
(2003 [1961]).24 Logo, na medida em que inclui uma mortificação do
próprio eu, o caminho do renunciante parece remeter, para além do
luto, às trilhas da melancolia. Salienta-se que, após a morte do irmão,
Ramakrishna teria se aferrado intensamente à devoção mística. E, por
outro lado, a ausência do sentimento de união com a divindade causava-
lhe, segundo Kakar (1997c), sintomas de uma depressão completa,
incluindo a insônia, a perda de apetite e até mesmo o desejo de morte.

24
Ver o segundo estágio comum no misticismo, “A purificação do eu”, no capítulo
1.7. Vale mencionar que Freud (1930, p. 78-79) também estava ciente desse caminho,
quando menciona, em O mal-estar na cultura, que o aniquilamento ou controle da vida
pulsional, “como ensina a sabedoria oriental e a prática do yoga”), é um dos vários
caminhos humanos para a busca da felicidade. Sua contraparte – a vida do eremita que
renuncia ao mundo – também é citada.
Capítulo 3 – Freud, Rolland e o sentimento oceânico | 65

Todos esses episódios são relacionados pelos autores como provas


de um autêntico “dom” do luto nos místicos: “Se a pessoa é dotada para
o luto, vai tão fundo no mundo interior que o mundo exterior torna-se,
de fato, um objeto de indiferença, e este é o caso dos místicos” (KAKAR,
1997c, p. 155). Kakar lembra que a vida de Tereza de Ávila na Igreja
começou após a morte de sua mãe, quando a primeira tinha 12 anos.
Também os misticismos de São João da Cruz e de Martin Buber – ambos
perderam uma das figuras parentais em tenra idade – poderiam ser
fomentados pelo sentimento de abandono e a busca de um “eterno tu”.
De modo semelhante, o místico indiano Rajneesh, em relatos
autobiográficos, relaciona os primórdios de sua busca espiritual à morte
do avô, que o havia criado até os 7 anos como um pai.25 O místico relata
a respeito: “Esse encontro [com a morte] determinou todo o curso
da minha vida” (RAJNEESH, 2002, p. 37). Em outro discurso, ele
completa: “Essa experiência está tão profundamente enraizada em mim
que penso que nem mesmo a minha morte vai apagá-la” (RAJNEESH,
2002, p. 39). Kakar (1997c, p. 137) conclui o raciocínio: “A via mística
é, então, também uma maneira de minorar a agonia da separação,
mitigando a dor da perda e reduzindo a tristeza da destituição”.
Contudo, sob outra ótica, poderíamos pensar que, ao contrário de
um “dom” do luto, há justamente uma incapacidade de realização desse
trabalho psíquico nos místicos, e a melancolia seria mais adequada para
explicar suas vivências. Isso é confirmado por Roudinesco e Plon (1997):
Há um invariante na estrutura melancólica, como mostra
Freud. Este reside de fato na impossibilidade permanente
para um sujeito de fazer o luto do objeto perdido. E é isso sem
dúvida o que explica a presença desse famoso ‘temperamento
melancólico’ entre os grandes místicos, sempre ameaçados de
se afastar de Deus.26 (ROUDINESCO; PLON, 1997, p. 664).

25
Importante pensar essa relação entre a morte do pai e a renúncia mística dentro
do esquema construído por Freud em Totem e tabu (1913): o misticismo, tal como
a religião, teria forte motivação inconsciente na expiação de culpa pelo desejo
homicida em relação ao pai. No caso dos místicos citados, o desejo edipiano de morte
é sobreinvestido pela morte do pai real, sendo que a culpa inconsciente motiva o
ascetismo subsequente. Essa questão será retomada no capítulo 5, item 5.1.
26
Nos capítulos subsequentes, será discutida a hipótese de que os místicos têm
uma intuição privilegiada da falta estrutural de objeto para a pulsão, ou ainda, da
impossibilidade de satisfação para os seres de linguagem. Entendo que essa intuição
66 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

O luto, como já mencionado, foi exemplificado pelo próprio Freud


como exemplo de narcisismo secundário. Trata-se de um trabalho
psíquico que possibilita a renúncia ao objeto perdido, pois, quando bem-
sucedido, faculta ao sujeito o investimento em novos objetos. Já na
melancolia, como assinala Freud (1998 [1917/1915]), o luto torna-se patoló-
gico. Nela o objeto de amor é, verdadeiramente, o próprio eu, pois que
acontece a regressão de uma escolha objetal para o narcisismo primário.
Para Vergote (2003, p. 93), a referência de Freud ao narcisismo
infantil revela uma interpretação do sentimento oceânico como “um
retorno nostálgico a um estado que foi perdido”. De fato, a literatura
mística está impregnada da nostalgia de um paraíso perdido, de uma
harmonia anterior que poderia ser reconquistada fora do âmbito
da simbolização. Obviamente, para a psicanálise essa alternativa é
impossível, pois, sendo mítica, nunca existiu de fato. Isso será explicado
no capítulo 4 (item 4.5).

3.6 O sentimento oceânico não é primário


As hipóteses freudianas já citadas tornaram-se a base de todas
as articulações psicanalíticas posteriores sobre a mística. Na visão de
Parsons (1998, 2003), essas considerações ulteriores tenderam quase
exclusivamente para uma interpretação das ideias de Freud no sentido
de classificar o sentimento oceânico como patológico. Essa seria, para
Parsons, a “visão recebida” da psicanálise freudiana do misticismo e
tem sido referenciada tanto para criticar como para apoiar o inventor
da psicanálise.
Ao contrário, segundo o autor, o sentimento oceânico era para
Freud apenas mais um fenômeno do psiquismo adulto cujas origens
remontam à vida infantil. Ora, sabe-se que a preservação desses
conteúdos é a regra, e não a exceção. E mesmo se tal sentimento pode ser
considerado patológico, deve-se lembrar que as descobertas da psicanálise
demonstram que não só o misticismo, mas também toda a vida “normal”
e “cotidiana” do ser humano, são impregnados de patologia.

surge a partir de uma experiência de luto e provoca no místico uma recusa tenaz
em investir novos objetos do mundo, como se percebesse, intimamente, que nenhum
deles trará a satisfação absoluta. Essa é uma possível razão para o “temperamento
melancólico” consequente.
Capítulo 3 – Freud, Rolland e o sentimento oceânico | 67

Retomando a análise do sentimento de R. Rolland, restava então,


para Freud, verificar a possibilidade de estar tal sentimento na origem das
atitudes religiosas. Sua resposta é eminentemente negativa e reafirma as
teses centrais de O futuro de uma ilusão: “Com claros contornos, somente
até o sentimento desamparo infantil se pode rastrear a origem da atitude
religiosa. Talvez atrás se esconda ainda algo, mas por enquanto está
envolto em obscuridade” (FREUD, 1998 [1930], p. 73).
No que concerne às origens da religiosidade, o sentimento oceânico
seria então secundário à necessidade infantil de proteção paterna.
Ele teria se vinculado à religião posteriormente, pois seu conteúdo
representacional – a unidade com o universo – soa para Freud como
uma consolação religiosa, “como outro caminho para ignorar o perigo
que o eu percebe ameaçando-o no mundo exterior” (FREUD, 1998
[1930], p. 73). Nesse momento há, sem dúvida, uma análise do conteúdo
representacional do sentimento oceânico como escapista ou defensivo.
Na visão de Parsons (2003), que detalhadamente investiga
a relação Freud-Rolland, o mestre vienense não teria entendido
completamente aquilo que o literato francês ensejava explicar sobre
o sentimento oceânico, e resulta disso que as interpretações do
primeiro estariam inevitavelmente equivocadas. Parsons constrói seus
argumentos baseados numa análise pormenorizada da vida e da obra
do escritor francês. Segundo ele, o sentimento oceânico não teria
sido o mesmo durante toda a vida de Rolland, apesar de sua carta a
Freud possibilitar esse entendimento. Ao contrário, o misticismo da
juventude de Rolland teria sido do tipo transiente, ou seja, constituído
por experiências isoladas e transitórias tal como William James definiu
em sua obra.27 Essas experiências são aquilo que, em seus escritos,
Rolland denominou “éclairs”.28 Ele teria, contudo, desejado perpetuar
esse sentimento, o que só foi conseguido gradualmente e a partir de
sua maturidade.
Por conseguinte, o sentimento oceânico não seria algo que simples-
mente se perpetua de igual forma durante toda a vida do sujeito (como
Freud teria entendido), mas uma conquista, um resultado obtido após
anos de esforço no sentido da intensificação de sensações que, a princípio,

27
Ver capítulo 1, item 1.3.
28
Traduzível como “lampejos” ou “clarões”.
68 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

são apenas vislumbres transitórios. Como visto no capítulo primeiro,


isso é congruente com a meta das chamadas escolas de misticismo.
Dentro dessa lógica, a análise freudiana do misticismo não poderia
estar completamente correta. Afinal, como falar que o sentimento
oceânico é o prolongamento de uma sensação primitiva do eu quando
ele só se faz completamente contínuo em idade madura e após intensos
esforços volitivos? A resposta psicanalítica, contudo, poderia ser de que
as práticas do misticismo escolástico apenas acentuam cada vez mais
sua regressão ao narcisismo infantil.
É difícil duvidar que a busca de paz e proteção no misticismo
remonte ao anseio da criança pelo amparo dos pais. Isso é
particularmente evidente no misticismo devocional, que no hinduísmo
chama-se Bhakti29 e pode ser exemplificado pelo caso de Ramakrishna,
tal como descrito por Kakar (1997c). Segundo o autor, Ramakrishna
era extremamente devotado à Deusa Mãe,30 chegando ao mais absoluto
desespero quando não recebia visões místicas dela. Na verdade, o
Bhakti de Ramakrishna não incluía práticas ascéticas difíceis, mas
simplesmente o reencontro da inocência da infância por meio do amor
intenso à figura materna. Explica Kakar (1997c, p. 123): “Ser como uma
criança em relação à Divindade não significa ser medroso, submisso ou
resignado, mas existir na confiança luminosa de uma presença parental
contínua, e reclamar sua recomposição quando se sente que ela falta ou
que é insuficiente”.
Aí está, nas palavras do autor, a demonstração cabal das aspirações
infantis no misticismo devocional. Muitos místicos diriam, no entanto,
que a aspiração à inocência e à pureza pueril não significa imaturidade.
Nesse sentido, Erich Fromm objeta que a experiência mística – no caso
do zen-budismo – “é unidade, imediação, totalidade, porém do homem
plenamente desenvolvido que voltou a ser criança, mas deixou para trás
o ser criança” (FROMM, 1970, p. 149).
Contudo, retornando ao Bhakti hindu, Kakar (1997c, p. 123)
conclui: “Ser uma criança significa, portanto, a alegria de uma
confiança total, de estar na mão de forças infinitamente poderosas e

29
Ver a concisa descrição do Bhakti hindu no capítulo 1, item 1.6.
30
As manifestações femininas dos deuses no hinduísmo assumem várias formas, e
Kakar não deixa claro se Ramakrishna adorava alguma em particular. Em algumas
passagens ele menciona Parvati, mãe do deus Ganesha, e Yashoda, mãe de Krishna.
Capítulo 3 – Freud, Rolland e o sentimento oceânico | 69

infinitamente benéficas. O poder dessa confiança total é tremendo, sua


contribuição para atingir o objetivo místico é vital”. Certamente Freud
concordaria com essa afirmação.
A experiência da mística da unidade não seria, assim, um
sentimento primário. Nesse ponto, Rosolato (1980, p. 12) confirma
a desconfiaça freudiana: “Percebe-se certamente aqui uma constante
das aspirações místicas em direção à harmonia, um acordo ou fusão
panteísta com o mundo: elas têm como função cancelar o perigo
persecutório que este continua a representar”.
Para concluir, como lembra Assoun (1980), é certo que se a
mística não se encaixa no modelo paternal de necessidade de proteção,
ela claramente se acomoda em um modelo maternal caracterizado por
uma busca simbiótica pela totalidade.

3.7 Regozijos na rósea luz


Retomemos a análise do sentimento oceânico. Ainda ao final
do primeiro capítulo de O mal-estar, Freud comenta brevemente as
opiniões de outro amigo sobre assunto afim. Tendo por fito análises
posteriores, faz-se útil reproduzir o trecho na íntegra:
Outro de meus amigos, a quem um insaciável afã de saber o
levou a realizar os experimentos mais insólitos, terminando por
convertê-lo em um sabe-tudo, assegura-me que nas práticas de
yoga, por meio de um estranhamento do mundo exterior, de uma
fixação da atenção nas funções corporais, de modos particulares
de respiração, pode-se despertar em si novas sensações e
sentimentos de universalidade que ele pretende conceber como
regressões a estados arcaicos, há muito tempo recobertos por
outros, da vida anímica. Vê nelas um fundamento por assim dizer
fisiológico de muitas sabedorias da mística. Aqui se ofereceriam
ligações sugestivas com muitas modificações obscuras da vida
anímica, como o transe e o êxtase. Contudo, a meu amigo sou
levado a exclamar, com as palavras de O mergulhador de Schiller:
“Regozije-se aquele que aqui em cima respira, na rósea luz!”.
(FREUD, 1998 [1930], p. 73).
O “outro amigo” mencionado por Freud é, na verdade, ainda
Romain Rolland, como sugerem suas correspondências pessoais:
quando o escritor francês autoriza Freud a publicar sua análise
70 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

do sentimento oceânico (carta de 17 de julho de 1929) dentro de O


mal-estar – trabalho na época ainda incompleto –, ele acrescenta que
estava pesquisando a fisiologia ritualística e multissecular codificada
nos tratados sobre ioga (apud VERMOREL; VERMOREL, 1993, p.
309). Rolland estava, como já vimos, trabalhando nas biografias de dois
místicos hinduístas.
Considerando que o trecho supracitado corresponde ao último
parágrafo do capítulo em que o psicanalista discute o sentimento
oceânico, ele parece propositadamente deslocado do assunto, como se
não tratasse exatamente do mesmo tema. Para Parsons (2003), isto é um
indicativo claro de que Freud não estava mais tratando do sentimento
oceânico. Nesse sentido, o inventor da psicanálise poderia ter entendido
que o sentimento oceânico caracteriza, necessariamente, um estado
regressivo involuntário nos moldes das regressões neuróticas, enquanto
que as “regressões a estados arcaicos da vida anímica”, características
da ioga hindu, seriam de outra ordem: voluntárias, propositais e
pontuais. Nesse ponto ressurgem as diferenças entre um misticismo
esporádico ou pessoal, por um lado, e aquele característico das escolas
de misticismo, por outro. O mais provável é que ambos estejam bastante
imbricados na prática.
A conclusão freudiana sobre as asserções do “outro amigo”,
contudo, é bastante intrigante, pois mostra novamente uma referência
a O mergulhador de Schiller, cujo trecho é traduzível como “Regozije-
se aquele que aqui em cima respira, na rósea luz!”.31 A citação desse
poema só ganha maior clareza quando pareada àquela feita em 1904,
no diálogo com o escritor Bruno Goetz (capítulo 2, item 2.2). Lá o
Bhagavad-Gita era comparado às profundezas perigosas do abismo
onde mergulha o herói de Schiller. Aqui Freud cita o momento em que
o mergulhador retorna do abismo e respira na rósea luz. Em ambos
os casos, há essa estranha associação do misticismo oriental a algo
que toca em forças desconhecidas e perigosas, forças que ele parecia
continuar ambivalente em abordar, apesar da insistência de Rolland.
Isso suscita confirmação no trecho da carta que escreve ao romancista
francês em 1930:

31
No original em alemão da obra de Schiller, lê-se: “[...] Es freue sich, Wer da atmet
im rosigten Licht!” (ver apêndice).
Capítulo 3 – Freud, Rolland e o sentimento oceânico | 71

Guiado pelo senhor, tento agora penetrar na selva hindu de


onde até agora tinha me afastado uma certa mistura de amor
grego pela medida, de sobriedade judaica e de timidez prosaica.
Eu realmente devia ter me dedicado a isto antes, pois as plantas
deste solo não deveriam me ser estranhas; eu já cavara até uma
certa profundidade para encontrar suas raízes. Mas não é fácil
ir além dos próprios limites. (FREUD apud KAKAR, 1997c, p.
109-110).
Nesta frase, Freud confessa claramente as razões de sua
resistência em abordar o misticismo hinduísta, relacionadas a uma
forte identificação cultural grega e judaica. A timidez prosaica indica
que o tema poderia lhe parecer demasiado poético, sublime ou nobre,
enfim, pouco ligado a questões materiais da vida. Assoun (1980, p. 66)
concorda em relação à influência marcante da religião judaica – “em
resumo, realmente estrangeira ao ‘misticismo’ oceânico” – sobre a
atitude freudiana de rejeição ao misticismo em geral.

3.8 Aproximações entre a psicanálise e a mística


Não obstante, após a escrita de O mal-estar encontraremos
nas obras de Freud e em suas cartas a Rolland algumas indicações
cautelosas de possíveis aproximações entre a psicanálise e a mística,
principalmente em relação a metas e objetos de investigação.
Esse é o caso de uma passagem das Novas conferências de introdução
à psicanálise (1998 [1933]) sobre A decomposição da personalidade psíquica.
Exatamente anterior à famosa frase “Onde era o Isso, o Eu deve advir”,
pode-se ler:
Cabe imaginar, também, que certas práticas místicas consigam
desordenar os vínculos normais entre as diversas regiões
anímicas de modo que, por exemplo, a percepção consiga captar,
nas profundezas do eu e do isso, nexos que de outro modo
seriam-lhe inacessíveis. Pode-se duvidar tranquilamente de que
por este caminho se alcance a sabedoria última da qual se espera
toda salvação. De todo modo, admitiremos que os empenhos
terapêuticos da psicanálise escolheram um ponto de abordagem
semelhante. (FREUD, 1998 [1933], p. 74).
O trecho acima, próximo de uma confissão a contragosto,
é o melhor que se pode extrair em Freud sobre um diálogo com o
72 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

misticismo. Ele claramente admite haver intentos semelhantes por


parte da psicanálise quando se entende o misticismo como uma forma
de aguçar a percepção de acontecimentos “nas profundezas do eu e no
isso”. A inacessibilidade dessas profundezas traz à cena o inconsciente,
cujos conteúdos poderiam ser iluminados não só pela psicanálise, mas
também pela mística. Entretanto faz questão de frisar seu ceticismo
em relação às “últimas verdades” e à “salvação” que as práticas místicas
poderiam alcançar.
Para Assoun (1980, p. 62), a surpreende afirmativa freudiana
permite entender que a mística e a psicanálise se iluminam mutuamente,
“como se a viagem mística constituísse uma ‘breve cura’ e o itinerário
analítico, uma viagem mística bem-sucedida e levada a termo”.
A origem dessas ideias freudianas mais uma vez remonta ao
diálogo com Rolland, pois que este presenteou o psicanalista com suas
biografias dos místicos hinduístas Ramakrishna e Vivekananda ainda
em 1929. Nesta última obra, Rolland claramente compara os intentos da
psicanálise e do misticismo hinduísta. Para ele, o misticismo nada tem
de escapista ou defensivo, já que, como a psicanálise, objetiva ganhar
acesso aos conteúdos inconscientes. E ironiza: “Os antigos iogues não
esperaram por Dr. Freud para ensiná-los que a melhor cura para o
psiquismo é fazê-lo olhar seus monstros profundamente escondidos
diretamente na face” (ROLLAND apud PARSONS, 1998).
Ainda no apêndice desta obra, Rolland publicou mais
enfaticamente suas ideias sobre o misticismo em relação com a
psicanálise. Lá ele cita uma obra do psiquiatra Ferdinand Morel sobre
o tema, Essai sur l’introversion mystique (1918), que faz análises baseadas
nas ideias de Freud, Bleuler, Janet e Jung. Em suma, na visão de
Morel as experiências unitivas características dos místicos significam
regressões a estados intrauterinos. Rolland essencialmente concordava
com Morel no que tange a uma intensa simbologia maternal nos textos
místicos, mas pensava haver mais que experiências pré-edipianas no
inconsciente. Em sua opinião, a unidade deveria ser vista como a
camada mais arcaica dessa instância psíquica.
Em carta de 19 de janeiro de 1930, Freud agradece a Rolland
pelas biografias e responde suas críticas sobre as ideias de Morel e da
psicanálise. Para ele a intuição mística poderia ser altamente valiosa
para uma embriologia da alma quando corretamente interpretada não
Capítulo 3 – Freud, Rolland e o sentimento oceânico | 73

como a solução dos enigmas do universo, mas como moções e atitudes


primitivas próprias à pulsão. Não obstante, à guisa de conclusão, Freud
(apud VERMOREL; VERMOREL, 1993, p. 314) confessa não ser um
cético incondicional: “[...] de uma coisa estou absolutamente certo: há
coisas que atualmente não podemos saber”.
Deve-se lembrar que apesar da grande simpatia por Rolland,
Freud jamais admitiu qualquer alteração de sua metapsicologia em
favor de concepções semelhantes àquelas dos místicos. O inconsciente
freudiano não é, pois, um inconsciente misterioso ou romântico.
De acordo com Assoun (1980), esse é um ponto chave para
a rejeição freudiana do misticismo, uma vez que a psicanálise se
edifica sobre a recusa do regime filosófico do inconsciente. Para ele,
o irracionalismo místico seria um destino da filosofia da consciência,
exemplificável pelo trabalho de Edouard von Hartmann, A filosofia do
inconsciente (1869), no qual o inconsciente é visto como transpsíquico e
assume a herança de antigos princípios metafísicos. Para Freud, trata-
se de evitar, portanto, um regime místico do inconsciente, o qual seria
transformado num princípio ou entidade metafísica, ou mesmo em
uma nova divindade.
Incompatibilidade análoga encontra-se nas origens do cisma
entre Freud e Jung, e sabe-se inclusive que o primeiro denunciou o
psiquiatra suíço por abandonar a psicanálise em prol do misticismo.
Vergote (2003, p. 92) esclarece que, para Freud, “[…] a ideia de um
‘inconsciente misterioso’ é uma concepção enganosa, mas ele está
ciente de que alguns devotam-se a ela e veem-na como um argumento
para estimar o misticismo”.
Finalmente, pode-se citar outra incursão de Freud no tema
da mística, a derradeira e talvez conclusiva afirmação, realizada em
um foco comparativo com a psicanálise. É no mínimo interessante e
convida à reflexão seu último trabalho psicanalítico, de 1938, escrito
já na Inglaterra e publicado apenas postumamente a partir de uma
única folha de papel. São esboços de ideias desconexas, organizadas na
forma de parágrafos datados como itens, intitulados Conclusões, ideias,
problemas (1941 [1938]). Precisamente no último item desse brevíssimo
trabalho lê-se: “22 de agosto. Mística, a obscura autopercepção do
reino que está fora do eu, do isso” (FREUD, 1998 [1941], p. 302).
74 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

Sabe-se que o isso (em alemão: das Es), instância psíquica


mais fundamental da segunda tópica freudiana, foi introduzida
conceitualmente no trabalho de 1923, O eu e o isso. Para Freud, o isso é
a fonte primordial da energia psíquica e a grande arena das pulsões de
vida e de morte. Inconsciente e desconhecido, o isso “não possui fundo”
para o lado somático e seus conteúdos são em parte expressões psíquicas
de determinações inatas e filogenéticas. Por outro lado, também há todo
um conteúdo adquirido e, principalmente, recalcado, que o habita.
Logo, o isso é a instância original do psiquismo. O eu (das Ich)
e o supereu (das Überich) são apenas diferenciações progressivas dessa
instância e só existem na medida em que dela emprestam energia. São,
portanto, campos superpostos, e se o isso é inteiramente inconsciente,
o eu e o supereu também o são em parte. Freud diz também, nas
Novas conferências de introdução à psicanálise (1998 [1933/1932b]), que
sua organização é caótica, pois moções pulsionais contraditórias nele
subsistem sem anulação e sem qualquer organização.
A partir da máxima freudiana “Wo es war soll ich werden” (onde
era o isso, o eu deve advir), esclarece-se que a meta psicanalítica inclui
a conquista progressiva do isso, ainda que, como bem precisou Lacan,
não seja o eu em sua acepção de instância imaginária, constituída por
identificações (o moi), que realiza essa empreitada, mas o je, sujeito
do inconsciente. Logo, é evidente que, em seu último texto, Freud
novamente aproxima misticismo e psicanálise: ambos possibilitam
a percepção do reino exterior ao eu. Mas se a percepção do isso é
comum a ambos os domínios, “obscura autopercepção” parece ser uma
especificidade do misticismo. Por quê? Analisemos uma possibilidade.
A percepção mística é certamente reflexiva ou introspectiva. O
místico autoproclama-se capaz de focar sua atenção na vida anímica e,
por meio disso, perceber o domínio do que está além do seu eu. Não
haveria participação de outros nesse processo, salvo por meio de um
mestre que apenas indica caminhos para a introspecção.
Quanto à obscuridade dessa percepção, talvez Freud se referisse
às dificuldades para analisá-la, compreendê-la. Acaso, por outro lado,
o misticismo fosse “uma percepção obscura” porque desprovido de
um raciocínio analítico, que caracteriza justamente a psicanálise. Já no
diálogo com Bruno Goetz, Freud faz questão de frisar a importância de
Capítulo 3 – Freud, Rolland e o sentimento oceânico | 75

manter a “cabeça fria”, “não se iludir” e não ser atordoado pela emoção.
Ou seja, não “mergulhar no abismo” sem o franco uso da razão.
Assim sendo, poder-se-ia finalmente relacionar o abismo do
poema de Schiller não somente às profundezas da filosofia oriental,
mas ao próprio isso. E, desta forma, o corajoso mergulhador seria tanto
o místico como o psicanalista. Este último, contudo, seria muito mais
prudente, fazendo seus mergulhos sempre auxiliados pelo uso da razão,
e, portanto, menos propenso a ser engolido pelos perigos inerentes a
tais empresas.

3.9 Modelos de compreensão da mística


De todo modo, é razoável pensar que ambivalência32 é a
melhor definição para a atitude freudiana em relação ao misticismo,
principalmente quando olhamos em conjunto suas várias referências
ao assunto. Isso é compatível com a tese principal de Parsons (1999):
ao contrário do que pensaram muitos psicanalistas até hoje, Freud não
tinha uma única ideia sobre o tema. Na verdade, ele parece nunca ter
encontrado um ponto de vista definitivo sobre o assunto, e os resultados
de suas discussões com Romain Rolland seriam classificáveis dentro de
três grandes tendências. Para Parsons, essas três tendências podem ser
vistas como “escolas” pois estão na origem de diferentes pontos de vista
nos estudos pós-freudianos da mística.

O modelo clássico
O primeiro modelo, chamado por Parsons de “clássico”, diz
respeito às avaliações pejorativas sobre o misticismo, entendido como
defensivo, patologicamente regressivo ou, no mínimo, caracterizado
como algum tipo de infantilismo. Esse modelo é construído a partir de
certas interpretações da análise de Freud sobre o sentimento oceânico
e seu conteúdo representacional – consolativo tal como a religião.
Seriam alguns exemplos dessa “escola” os trabalhos de Alexander (1998
[1931]) e Masson (1980).

32
Em psicanálise, ambivalência define a presença simultânea, para com um mesmo
objeto, de tendências, atitudes e sentimentos opostos: fundamentalmente o amor e o
ódio (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001).
76 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

Franz Alexander foi o primeiro pós-freudiano a escrever sobre


a mística. É seu o artigo Buddhistic training as an artificial catatonia
(ALEXANDER, 1998), de 1931. Buscando compreender as etapas da
meditação budista, ele discerniu nelas os quadros clínicos sucessivos da
melancolia, do êxtase catatônico, da apatia e da demência esquizofrênica.
A motivação do meditador seria a tentativa de regressão a uma condição
de existência intrauterina (KAKAR, 1997b).
Já o livro de Masson,33 The oceanic feeling (1980), caracteriza as
religiões orientais como promotoras de estados de desrealização,
despersonalização e regressão patológica. Esse autor arrisca, inclusive,
uma psicanálise do Buda histórico – um homem deprimido que buscou
cura em uma atividade regressiva: a meditação. Após entrar em contato
com os conteúdos recalcados que deram origem a sua depressão,
Buda teria procurado refúgio em um estado de negação maníaca – o
nirvana (KAKAR, 1997b). As interpretações dentro desse modelo são
consideradas altamente reducionistas por autores de outras “escolas”.

O modelo adaptativo
Parsons intitula “adaptativo” o segundo modelo de interpretação
da mística. Essa visão enfatiza as características terapêuticas, artísticas e,
por assim dizer, adaptativas das modalidades místicas de conhecimento,
em detrimento de qualquer reducionismo. Sua origem remonta ao último
parágrafo de O mal-estar, em que Freud cita as ideias do “outro amigo”
sobre a possibilidade de que os estados místicos sejam regressões a
estados primordiais e encobertos do psiquismo. Alguns, como o psicana-
lista indiano Suddhir Kakar (1997c, 1997b), interpretaram essas regres-
sões na esteira de estados passageiros e não patológicos. As referências
comparativas de Freud entre misticismo e psicanálise poderiam se
encaixar nessa escola igualmente.
Uma leitura pós-freudiana classificável dentro desse modelo é
a de Prince e Savage (1993), que aprofundaram o estudo dos estados
místicos a partir do conceito de regressão. Para os autores, o misticismo

33
Jeffrey Masson é ex-diretor dos Arquivos de Sigmund Freud e ficou conhecido
pelo livro escrito em 1984, The assault on truth: Freud’s suppression of the seduction theory.
Nesse trabalho, amplamente repudiado pelas comunidades psicanalíticas, Masson
defende que Freud teria suprimido evidências supostamente verídicas de abuso sexual
infantil quando abandonou sua conhecida “teoria da sedução”.
Capítulo 3 – Freud, Rolland e o sentimento oceânico | 77

seria um tipo de regressão razoavelmente controlável e consciente,


tal como aquela empregada no processo criativo de artistas (aqui os
autores se baseiam no conceito cunhado por Ernst Kris de “regressão
a serviço do ego”, que, embora em franca extinção, já foi utilizado em
determinadas visões psicanalíticas da produção artística), ou ainda
como a regressão característica do paciente em análise.
Na visão desses autores, o conceito de regressão dá conta de
explicar as principais características do misticismo: 1) a renúncia e
o desinteresse pela vida mundana seriam um prelúdio comum para
experiências regressivas em geral, tal como o sono; 2) a inefabilidade
dos estados místicos caracterizaria uma regressão ao nível pré-verbal
da constituição do sujeito; 3) a qualidade noética da vivência ocorreria
como consequência da “confiança narcisística primitiva na experiência
sensória” (PRINCE; SAVAGE, 1993, p. 116), que no caso seria a
amamentação: experiência incontestavelmente significativa; 4) o êxtase
místico corresponderia à elação do bebê quando é amamentado; 5) e,
finalmente, a experiência de fusão seria, como o próprio Freud já dizia, a
sensação característica de uma regressão a esse estado infantil bastante
primário. Todavia a ênfase aqui é dada em uma suposta positividade
do fenômeno, como promotor de bem-estar e, por isso, comparável à
regressão analítica. O estado místico seria, então, “um retraimento e
um retorno controlados; uma morte e um renascimento” (PRINCE;
SAVAGE, 1993, p. 118).

O modelo transformacional
Retomando a classificação de Parsons (1999), o último grande
modelo interpretativo do misticismo é o que ele chama de “transfor-
macional”. Nesse âmbito, a ênfase está em proporcionar um espaço
metapsicológico para as asserções dos místicos, tomadas como
relatos verídicos de possibilidades psíquicas não encaixáveis dentro
de modelos conceituais pré-existentes. O primeiro articulador dessa
posição teria sido o próprio Romain Rolland quando sugeriu redefinir
conceitualmente o inconsciente freudiano para compatibilizá-lo com a
experiência dos místicos.
78 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

Outra leitura bastante conhecida é aquela de Erich Fromm no


trabalho Zen-budismo e psicanálise, datado de 1960 e articulado em torno
das conferências sobre zen-budismo do dr. D. T. Suzuki.34
Nessa conferência, Fromm dá prosseguimento às comparações
freudianas entre psicanálise e mística no que concerne à ampliação do
campo da consciência por meio da percepção de fatores psicológicos
inconscientes. Para solidificar essa ponte, Fromm conjectura ser o
inconsciente mais do que Freud definia, abarcando, na verdade, todo
um campo de percepção da realidade que é filtrada pela mediação da
linguagem. Ora, se o satori zen-budista diz respeito a uma “apreensão
imediata, não refletida, da realidade, sem contaminação afetiva nem
intelectualização, a realização da relação entre mim e o Universo”
(FROMM, 1970, p. 156), ele conclui que tornar consciente o
inconsciente vai além do que é feito no setting analítico, abrangendo
também a percepção da linguagem como um filtro a ser transcendido.35
Outros teóricos ilustres do modelo transformativo teriam sido
Erik Erikson, com sua noção de “numinosidade do eu”; Wilfred Bion,
com o conceito de “0” (“zero da experiência”); e Donald Winnicott,
com o conceito de true self, conforme breves descrições abaixo.
Erikson define que a identidade, ou o “eu”, é inspirada pelas quali-
dades transcendentais da divindade. Em Identidade: juventude e crise
(1987), ele afirma que a divindade é a única contraparte do eu, ou seja,
a deidade é o Outro derradeiro, aquele que fundamenta a possibilidade
de existência de todas as identidades.36 O autor exemplifica esse
argumento por meio da conhecida saudação hindu “Eu reconheço a
divindade em você”. Note-se que Erikson também se interessou por
Mahatma Gandhi, ao qual dedicou uma biografia.37

34
Historiador japonês responsável por algumas das primeiras obras voltadas à
explicação e divulgação do zen-budismo ao mundo ocidental.
35
As ideias de Fromm serão analisadas criticamente no capítulo 7, item 7.6.
36
Nas palavras do autor: “[...] a contraparte do ‘Eu’ pode ser apenas, estritamente
falando, a deidade que emprestou o seu halo a um mortal e que está ela-mesma dotada
de uma numinosidade eterna, certificada por todos os ‘Eus’ que reconhecessem essa
dádiva” (ERIKSON, 1987, p. 221). Para maiores detalhes sobre as relações entre o
pensamento de Erikson, o misticismo e a religiosidade, ver A psychology of ultimate
concern: Erik H. Erikson’s contribution to the psychology of religion (ZOCK, 2004).
37
ERIKSON, Erik H. Gandhi’s truth: on the origin of militant nonviolence. NY: W. W.
Norton & Co., 1969.
Capítulo 3 – Freud, Rolland e o sentimento oceânico | 79

Para Bion (apud LINO SILVA, 1999), por sua vez, a experiência
do zero (“0”) é o inefável – aquilo que escapa a qualquer definição,
apreensão ou limite. O zero é o contato direto com a Realidade Última,
assemelhável, portanto, à própria definição de experiência mística.
Em leitura dos trabalhos de Bion, Lino Silva (1999) destaca que “A
‘Realidade Última’, Deus, aparece como a verdade inalcançável de cada
instante: o 0 [zero]. Entrar em contato direto com a Divindade deixa
de ser um êxtase reservado aos místicos: passa a ser uma tarefa para
psicanalistas”.
Em The psychoanalytic mystic (1998), Michael Eigen relaciona,
também, à lista dos psicanalistas cujo pensamento pode ser aproximado
da mística, aquele de Donald Winnicott. Nesse caso, seria de especial
utilidade o conceito de verdadeiro self (true self ), que se refere à base
criativa da personalidade, ou ainda, à capacidade da criança em
reconhecer e agir de acordo com suas necessidades espontâneas de
expressão. Trata-se de uma vivência autêntica, integral e eventualmente
caótica, que teria ressonâncias com a busca mística por uma experiência
de intensa vivacidade. Em ambos os casos, a sensação de estar vivo é
obtida como resultado de uma depuração psíquica, em que uma forma
de identidade falsa (o falso self para Winnicott) deve ceder espaço à
identidade autêntica, deixando de ocultá-la.38
Não é difícil notar que os teóricos desse modelo explicitamente
rompem com a psicanálise freudiana em vários sentidos, inaugurando
novas leituras. Entretanto, para Parsons (1998) e Eigen (1998), até
mesmo Jacques Lacan inclui-se nessa “escola”, um vez que este cria um
novo instrumental teórico que possibilita pensar psicanaliticamente
o misticismo. Esse arcabouço conceitual estaria intrinsecamente
relacionado à noção de gozo feminino e à tópica do real. Sobre estas
últimas, será dedicada grande ênfase nos capítulos 6 e 7.

38
Essa transformação, na mística, corresponde ao estágio de “purificação do eu”
(ver capítulo 1, item 1.7).
| Capítulo 4 |

Mística, amor e sublimação

4.1 Eros em ação


É possível trazer à cena outro olhar psicanalítico sobre o
misticismo, ainda inaugurado por Freud. Seu tema é o amor. Como
proposto no primeiro capítulo, a característica mais essencial da mística
(especialmente na “mística da unidade”) é o sentimento de união do eu
com o mundo exterior ou com uma entidade transcendente. Ora, em
termos psicanalíticos, falar sobre união é justamente uma maneira de
se mencionar o amor, principalmente se entendido como Eros.
Inspirado no mito do deus grego, o termo Eros se inscreve também
na tradição filosófica platônica, e Freud dele se serviu inicialmente para
referenciar uma noção de sexualidade humana muito mais abrangente
que a genitalidade (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001). Em um
segundo momento, porém, Eros ganha um status metapsicológico ao
encarnar o conjunto das pulsões de vida em choque e conciliação com
as pulsões de morte. Nesse segundo dualismo pulsional freudiano,
introduzido em Mais além do princípio de prazer (1998 [1920]), Eros
denota as pulsões sexuais e as pulsões de autoconservação, as quais
buscam unir, constituir unidades vitais sempre mais globalizantes e
conservá-las como tal: “a libido de nossas pulsões sexuais coincidiria
com o Eros dos poetas e filósofos, o Eros que mantém unidos todos os
seres vivos” (FREUD, 1998 [1920], p. 49).
A unio mystica se relaciona, assim, com o próprio princípio de
Eros em ação, e este pode também ser definido como amor, conquanto
39

deve-se ter claro que, no campo psicanalítico, o amor é analisado em


sua base pulsional com metas e encaminhamentos diversos.

39
Paradoxalmente, há também uma relação estreita entre o misticismo e a pulsão de
morte, mais visível na chamada “mística da liberação”. Essa relação será abordada no
capítulo 7, item 7.7.
82 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

4.2 Debatendo o amor universal


Ao retomar-se o estudo de O mal-estar na cultura (1998 [1930]),
ver-se-á que a obra pouco se relaciona, como um todo, com a questão
muito específica do sentimento oceânico. Analisado em capítulo
inaugural, esse assunto não é mais do que um prelúdio à questão
crucial do trabalho: a busca humana pela felicidade confrontada com
suas reais possibilidades de consecução dentro do mundo da cultura.
Freud enumera todos os métodos pensáveis para buscar a felicidade
nesse mundo e dissolve, uma a uma, as ilusões de que qualquer deles
atinja plenamente seu objetivo.
A um desses métodos Freud (1998 [1930], p. 81) nomeia “técnica
da arte de viver”. Trata-se da modalidade de vida “que situa o amor
no ponto central, que espera toda satisfação do feito de amar e ser
amado” (FREUD, 1998 [1930], p. 82). Em sua opinião, essa é a técnica
talvez mais próxima da almejada felicidade, especialmente no caso do
amor sexual, cuja intensa sensação de prazer fornece um modelo para a
eterna busca daquela meta maior.
As vantagens dessa “técnica” são claras. Deixa o sujeito
independente do destino por localizar a satisfação em processos
anímicos. Mas, ao contrário de outros métodos (como o controle dos
impulsos e a renúncia ao mundo exterior), não volta as costas ao mundo,
pois obtém sua satisfação ligando-se emocionalmente a determinados
objetos. E finalmente, não se contenta com a simples fuga do desprazer:
o amante visa a nada menos que a felicidade completa.
Lembra Freud, contudo, que a desvantagem desse método
também é evidente. O amante é demasiadamente indefeso contra
o sofrimento, pois nada produz mais infelicidade do que a perda do
objeto amado ou de seu amor.
Todavia, dando prosseguimento a suas ideias, o primeiro psica-
nalista menciona que, apesar de tudo, existe “uma pequena minoria de
pessoas” capacitada para encontrar a felicidade no caminho do amor, o
que demanda, entretanto, grandes alterações psíquicas. Ele continua:
Estas pessoas se tornam independentes da aquiescência do
objeto deslocando o valor principal, de ser amado, para o próprio
amar; protegem-se da perda do objeto não dirigindo seu amor a
objetos singulares, senão a todos os homens em igual medida, e
evitam as oscilações e desenganos do amor genital apartando-
Capítulo 4 – Mística, amor e sublimação | 83

se de sua meta sexual, transformando a pulsão em uma moção


de meta inibida. O estado que desta maneira criam – de um
sentimento terno, constante, imperturbável – já não apresenta
muita semelhança externa com a vida amorosa genital, variável e
tormentosa, da qual deriva. Talvez quem mais avançou com este
aproveitamento do amor para o sentimento interior de felicidade
foi São Francisco de Assis. (FREUD, 1998 [1930], p. 99-100).
Freud cita, pois, um místico cristão40 como exemplo máximo dessa
modalidade de amar. Mas é importante ressaltar que Freud critica o
chamado “amor universal”. A sociedade civilizada valoriza a disposição
ao amor universal como sua maior meta. Isso se verifica muito bem
no conhecido mandamento cristão “Ama a teu próximo como a ti
mesmo”. Freud, entretanto, considera-o uma exigência idealizada. Em
sua opinião, “um amor que não escolhe perde uma parte de seu próprio
valor, pois comete uma injustiça com o objeto. E ademais: nem todos os
seres humanos são merecedores de amor” (FREUD, 1998 [1930], p. 100).
Além disso, para o psicanalista, Eros é apenas um dos “Poderes
Celestes” a motivar a vida humana. As pulsões de morte, que tendem
para a redução completa das tensões e manifestam-se, secundariamente,
na agressividade e destrutibilidade, são o outro lado da moeda. Logo,
para ele, o preceito moral do amor ao próximo é nada mais que uma
defesa contra a violência inerentemente humana e, nesse sentido,
comporta-se de modo semelhante ao supereu severo de um neurótico:
“proclama um mandamento e não pergunta se poderão obedecer-lhe”
(FREUD, 1998 [1930], p. 138). E o resultado de pressionar-se um
sujeito a controlar as forças pulsionais para além de suas capacidades
leva apenas a resultados igualmente desastrosos: uma revolta, uma
neurose ou a infelicidade.
Mas apesar de avesso a essa forma de amar, Freud aparentemente
não duvidou de sua existência. Então qual será o mecanismo da

40
Francisco foi canonizado dois anos após sua morte e é respeitado inclusive em
outras religiões, mas em vida chegou a ser considerado herege pela Igreja da época.
Em biografia recente baseada em arquivos históricos pouco explorados, o teólogo
Donald Spoto (2003) define Francisco como um “santo relutante” e enfatiza que a
canonização fez de sua vida e de seu exemplo um grande embaraço para a Igreja.
Isso dá apoio, mais uma vez, à hipótese de uma vida potencialmente subversiva dos
místicos em relação à religiosidade tradicional. Mais precisamente, Francisco seria
um grande exemplo do “misticismo da natureza” que se expressa no sentimento de
amor ou união com o mundo animal e com os fenômenos naturais.
84 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

disposição ao amor universal? Como ela produz a felicidade nessa


minoria de pessoas que inclui Francisco de Assis? Em primeiro lugar, o
problema da aquiescência do objeto de amor é resolvido transpondo-se
a importância de ser amado para o simples amar. Em outras palavras,
pouco importa a correspondência do ser amado, o que importa e
satisfaz é o estado psicológico de amar: “Quando [vós] amais, não há
nem um nem muitos: só há amor”, é o que explica o místico indiano
contemporâneo Krishnamurti (2003, p. 194).41
Em segundo lugar, a própria perda do objeto amado faz-se pouco
importante porque o objeto não é mais isolado ou especificado – ele se
transforma em todos os objetos possíveis, todos os homens e o próprio
mundo. Nessa lógica, qual seria a importância da ausência de um ou
mais objetos investidos, se o amor é igualmente focado em muitos
outros, tantos que o amor “perde seu foco”? O sujeito simplesmente
ama, o verbo torna-se intransitivo. Essa ausência de definição objetal
faz pensar, contudo, que o investimento libidinal “em tudo” seja
correlato do investimento “em nada”, o que mostraria, na verdade, um
alto grau de aplicação da libido no próprio eu – investimento narcísico.
Em último lugar, os objetivos sexuais do amor seriam desviados,
e, desta forma, também contornadas as incertezas e decepções do amor
genital. A esse mecanismo, que remete ao campo das pulsões e seus
destinos, Freud denomina inibição do alvo (ou meta) pulsional.

4.3 As pulsões
A pulsão pode ser representada como uma energia fundamental
que anima todo sujeito humano, promovendo uma tensão que demanda
descarga. É, fundamentalmente, uma exigência de trabalho. A teoria
das pulsões, como escreveu Freud (1998 [1933-1932c]), é a própria
mitologia da psicanálise. Ou seja, falar sobre pulsão é falar de um

41
Ironicamente, o filósofo e místico indiano Krishnamurti (1895-1986) concordaria
com Freud no que tange a uma descrença no amor universal enquanto exigência
idealizada: “O amor não pode ser pensado, o amor não pode ser cultivado, o amor não
pode ser exercitado. A prática do amor, o exercitar da fraternidade está ainda dentro
da esfera da mente e por conseguinte não é amor”. Mas, para ele, haveria também
outra forma de amar, fora da “esfera da mente”, que seria verdadeira e universal:
“quando sabeis amar a um só, sabeis amar o todo. Porque não sabemos amar a um só,
nosso amor à Humanidade é fictício” (KRISHNAMURTI, 2003, p. 194).
Capítulo 4 – Mística, amor e sublimação | 85

conceito, “de uma ficção teórica e não de uma entidade que possua
realidade ontológica” (GARCIA-ROZA, 1986, p. 12).
A pulsão é também largamente indeterminada, qualificada por
Freud (1998 [1905], p. 153) como “um dos conceitos da delimitação
entre o anímico e o corporal”. Está, ela própria, fora da possibilidade
de uma conceituação exata, de uma eficaz simbolização, e por isso se
diz que pertence ao registro lacaniano do real.42 Sua mais fundamental
importância consistiu em romper com a ideia de instinto aplicada ao
âmbito humano: ao contrário dos animais, o comportamento do homem
não é fixado ou programado pela hereditariedade ou pela espécie.
Essa falta de programação ou fixação é particularmente patente na
questão da satisfação humana. O animal regido pelo instinto tem neces-
sidades e objetos para satisfação delas, todos biologicamente determinados.
Já o homem não nasce com quaisquer objetos pré-formatados para
sua satisfação. Muito pelo contrário, os objetos são sempre variáveis,
contingentes e definidos nas vicissitudes da vida de cada sujeito.
Assim, o instinto não serve como modelo de explicação para o
comportamento humano: ele é perdido de saída para os seres falantes.
Em seu lugar, a psicanálise propõe a noção de pulsão. Esta assume, como
característica essencial, o fato de ser uma pressão constante (konstant
kraft),43 o que permite diferenciar prontamente a sexualidade humana
do sexo nos animais: “enquanto a sexualidade humana é pulsional e
obedece a uma força constante da libido, o sexo no animal é cíclico e
biologicamente teleológico, visando exclusivamente a reprodução”
(JORGE, 2005b, p. 48).
As pulsões também são múltiplas, pois se relacionam com diferentes
fontes somáticas, e parciais, no sentido de funcionarem independente-
mente, de forma que nenhuma pulsão parcial pode representar a
totalidade da tendência sexual. De fato, a noção de uma sexualidade
pulsional amplia o conceito de sexualidade humana, que deixa de ser
subsumida à genitalidade e à correspondente função reprodutora.
O caráter revolucionário do conceito de pulsão foi assimilado
com dificuldade nas próprias comunidades psicanalíticas, resultando em
mal-entendidos bem conhecidos, como o da Standard Edition inglesa das
42
A tópica lacanina do real será abordada em maiores detalhes no capítulo 7.
43
A esse respeito, Lacan (1988 [1963-1964], p. 157) explica: “A primeira coisa que diz
Freud da pulsão é, se posso me exprimir assim, que ela não tem dia nem noite, não tem
primavera nem outono, que ela não tem subida nem descida. É uma força constante”.
86 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

obras de Freud, na qual o termo alemão Trieb é traduzido por Instinct –


ledo engano ratificado na Edição Standard brasileira. Ainda hoje se tenta
naturalizar a psicanálise, lendo-se Freud pelo viés do biologicismo e de
uma correspondente ideologia normativa no que tange à sexualidade – o
que passa ao largo de sua mais contundente contribuição.
No principal trabalho dedicado ao tema (As pulsões e seus destinos),
Freud (1915) define que a pulsão possui quatro características variáveis:
uma fonte, sempre somática, mas variável em relação ao órgão ou zona
erógena envolvida; uma meta (ou alvo), que se refere à atividade que é
necessária para obter a descarga ou satisfação; um objeto, por meio do
qual sua meta pode ser satisfeita; e, finalmente, uma pressão, um fator
quantitativo econômico, um nível de exigência para impelir o sujeito a
sua satisfação.

Figura 1: O circuito da pulsão44

Freud destaca ainda que as metas da pulsão, quaisquer que


sejam, serão sempre provisórias, assim como seus objetos parcialmente
inadequados, pois que a satisfação nunca é atingida plenamente: a descarga
de tensão só se realiza em parte, jamais deixando de pressionar o sujeito.
Lacan (1988 [1963-1964]), em Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise,
retomará essas ideias, destacando que a impossibilidade de satisfação
pulsional não é contingente, mas estrutural, e que a pulsão nunca de fato
atinge seu objeto: ela simplesmente circunda-o, retornando ao ponto de

44
Reproduzido a partir de Lacan (1998 [1963-1964], p. 169). Nesta figura Lacan
também introduz o “objeto a”, conceito a ser mencionado no capítulo 7, item 7.3.
Capítulo 4 – Mística, amor e sublimação | 87

origem para então iniciar um novo trajeto. Diz Lacan: “Quanto ao objeto
da pulsão, saiba-se que, na realidade, ele não tem nenhuma importância. É
totalmente indiferente” (LACAN, 1988 [1963-1964], p. 159). Se o objeto
é indiferente, temos que a satisfação pulsional se dá simplesmente no
tangenciamento do objeto, tal como ilustrado na figura 1. Na alimentação,
por exemplo, não é o objeto alimentar que satisfaz a pulsão, mas o chamado
“prazer da boca”.
Ainda em As pulsões e seus destinos, Freud afirma haver quatro
formas de vicissitudes da pulsão, que, em outras palavras, são defesas
contra a pulsão, ou ainda, maneiras pelas quais a pulsão organiza o
fracasso em termos de sua satisfação. Tais vicissitudes constituem seus
destinos, como frisará Lacan mais tarde, no seminário 11, a partir
do termo alemão Triebschicksale. São esses destinos: o recalcamento, a
sublimação, a inversão em seu oposto e o retorno em direção ao próprio eu.45
Tratar-se-á aqui apenas da sublimação por ter consequências diretas
para o estudo proposto.

4.4 As pulsões sociais e a sublimação


Para esse fim, contudo, deve-se antes retornar à noção de
“pulsão inibida quanto à meta”, descrita por Freud quando menciona
o amor universal (ver item 4.2). Essa noção vai explicar os sentimentos
de ternura, também chamados de pulsões sociais. Ao que tudo indica,
o inventor da psicanálise teve dificuldade em explicar rigorosamente
a noção em termos metapsicológicos (LAPLANCHE; PONTALIS,
2001). Entretanto postulou que as pulsões sociais não são primitivas

45
De forma bastante resumida, o recalcamento é o afastamento das pulsões de
seu acesso à consciência, sendo o processo mais comum no campo das neuroses e
o responsável pela formação dos sintomas (CHEMAMA, 1995). Já a inversão em
seu oposto são, na verdade, dois processos diferentes: a mudança da atividade para
a passividade e a inversão de conteúdo. O primeiro é exemplificado pela mudança
de uma meta pulsional ativa, como o sadismo e a escopofilia, para outra passiva, que
corresponderia, nesse caso, ao masoquismo e o exibicionismo, respectivamente. O
segundo é exemplificado pela transformação do amor em ódio. Por fim, no último
destino descrito por Freud, há uma mudança do objeto da pulsão para o próprio eu. O
masoquismo é, por exemplo, o sadismo dirigido à própria pessoa, podendo envolver
a passividade em relação a um sujeito (caso do masoquismo propriamente dito) ou
simplesmente uma autopunição ou autotortura (caso típico da neurose obsessiva)
(FREUD, 1998 [1915]).
88 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

(ou irredutíveis) e relacionou-as de forma estreita à sublimação. Em


Dois verbetes de enciclopédia, Freud (1998 [1923], p. 253) esclarece:
As pulsões sociais [...] não renunciaram suas metas diretamente
sexuais, mas resistências internas restringem seu êxito; confor-
mam-se com certas aproximações da satisfação, e justamente
por isso estabelecem laços particularmente fixos e duradouros
entre os seres humanos.
Para Freud, portanto, a afeição, ou ternura, constitui-se em
uma forma de amor inibida em sua meta (ou alvo) sexual. Também em
O mal-estar na cultura, ele repete: “É que o amor de meta inibida foi
em sua origem um amor plenamente sensual, e assim segue sendo no
inconsciente dos seres humanos” (FREUD, 1998 [1930], p. 100). Desta
forma, a meta de satisfação sexual direta é desviada para uma forma
de satisfação atenuada, contentando-se com certas aproximações que
geram “um sentimento afetuoso, constante, imperturbável” (FREUD,
1998 [1930], p. 99). As vantagens da ternura incluem prescindir de certas
dificuldades geradas pelo amor genital, como o desejo de exclusividade
e as “tempestuosas agitações” sentimentais decorrentes.
Logo, o amor universal, com seu caráter inibido em relação à
meta sexual, seria um modelo do amor místico. A própria experiência
mística seria caracterizada como uma forma de amar, e não parece ser
ao acaso que Freud lembrou-se do amor quando se punha a analisar o
sentimento oceânico, procurando uma experiência da vida comum que
lhe fosse assemelhada no que tange à dissolução dos limites do eu:
[...] para o exterior, ao menos, parece que o eu afirma fronteiras
claras e precisas. Só não é assim em um estado, extraordinário
por certo, mas que não se pode definir como doentio. No auge
do enamoramento ameaçam desvanecer-se os limites entre o
eu e o objeto. Contrariando todos os testemunhos dos sentidos,
o enamorado assevera que eu e tu são um, e está disposto a
comportar-se como se assim fosse. (FREUD, 1998 [1930], p. 67).
Está aí, portanto, uma forte semelhança entre o sentimento
oceânico e o amor do homem comum. Contudo o amor místico
implica igualmente uma mudança no objeto da pulsão, que deixa de ser
“mundano” e passa a ser a própria divindade. Essa mudança de alvo e
de objeto pulsional caracteriza justamente a sublimação.
Capítulo 4 – Mística, amor e sublimação | 89

Tanto na sublimação como na inibição da pulsão quanto à meta,


o alvo sexual é substituído por outro não sexual. Entretanto, na ternura
o objeto permanece o mesmo, enquanto na sublimação o objeto deixa
de ser aquele da satisfação sexual, assumindo outras formas.
Conforme explica Kakar (1997c), o misticismo devocional hindu
(o Bhakti) não exige grandes esforços ascéticos do praticante, pois que
a renúncia ao mundo é consequência de uma simples atitude: todas as
paixões mundanas – como raiva, desejo, avareza, apego descomedido,
ciúme, orgulho e egoísmo – devem ser redirecionadas a Deus. É
Ramakrishna quem melhor pode explicar esse feito: “Se há apego,
que seja então a Ele; como meu Rama, meu Krishna” (apud KAKAR,
1997c, p. 122). Nesse caso, Rama e Krishna, deuses do hinduísmo, são
os novos objetos da pulsão, e esta, ao mesmo tempo, dessexualiza-se.
A sublimação é, portanto, o processo descrito por Freud que
demonstra de maneira contundente a plasticidade da pulsão sexual, pois
esta é capaz de substituir uma meta sexual por outra não sexual sem
perder – o que é mais notável – o essencial de sua intensidade. Nesse
processo, também os objetos da satisfação pulsional, originalmente
sexuais, são substituídos por outros não sexuais e socialmente
valorizados, como a criação artística e o trabalho intelectual, por
exemplo. Nas palavras do psicanalista vienense, a pulsão
põe à disposição do trabalho cultural volumes de força enorme-
mente grandes, e isto sem nenhuma dúvida se deve à peculiaridade,
que ela apresenta com particular relevo, de poder deslocar
sua meta sem sofrer uma diminuição essencial em relação à
intensidade. A esta faculdade de trocar a meta sexual por outra,
já não sexual, mas psiquicamente aparentada com ela, chama-se a
faculdade para a sublimação. (FREUD, 1998 [1908], p. 168).
O termo em si evoca três sentidos muito apropriados ao processo
que descreve: 1) erguer à maior altura; 2) elevar à maior perfeição,
purificar; 3) e também o processo químico de passagem de um corpo do
estado sólido diretamente ao gasoso (GARCIA-ROZA, 1986, p. 16-17).
Apesar de promover grandes transformações na pulsão sexual, a
sublimação tem a vantagem de evitar seu recalcamento e assegurar uma
satisfação que é comparável, no plano psíquico, à satisfação encontrada
pelo exercício direto da sexualidade. Resume Lacan (1988 [1963-1964]):
90 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

A sublimação não é menos a satisfação da pulsão, e isto sem


recalcamento. Em outros termos – por enquanto, eu não estou
trepando, eu lhes falo, muito bem!, eu posso ter a mesma
satisfação que teria se eu estivesse trepando.
Freud, entretanto, destacou que a satisfação obtida via sublimação
é tênue se comparada à satisfação pulsional primária ou direta da
atividade sexual – ela não convulsiona o nosso ser físico. Além disso,
sua possibilidade de aplicação é limitada a determinada parcela da
libido, variando de sujeito a sujeito, de maneira que muitas pessoas têm
escassa possibilidade de sublimar (FREUD, 1998 [1916-1917b]).46
O conceito de sublimação não tem uma sistematização na obra
freudiana, de forma que determinados esclarecimentos a respeito de seu
processo permaneceram em suspenso. Não obstante, isso não evitou
sua importante contribuição conceitual no sentido de demonstrar a
existência de uma fonte sexual na atividade humana, por mais que o
resultado dessa atividade, que serve ao mundo da cultura, em nada se
pareça com a vida sexual que lhe dá origem por meio da energia das
pulsões. A sublimação é, por conseguinte, o motor da vida civilizada, e
não faz exceção a vida do místico.
Considerando a sublimação em termos econômicos, ela só se
efetiva por meio de um processo fundamental – a dessexualização –,
que diz respeito à retirada do investimento libidinal do objeto sexual
pelo próprio eu: instância psíquica nodular nessa ação. Como já visto,
essa retirada tardia dos investimentos libidinais em prol do eu constitui
aquilo que Freud chamou de narcisismo secundário. E tal processo só
se garante pela incitação de outra instância do psiquismo – o ideal do
eu47 –, que constitui os modelos a que o sujeito procura conformar-se:
Tal processo precisa atender às exigências de ideais que são
referências a partir das quais o eu se avalia. Esses ideais compõem
o ideal do eu. A pulsão é, assim, dessexulizada, defletida a partir

46
A intensa produção artística e intelectual de Leonardo da Vinci, por exemplo,
seria para Freud (1998 [1910], p. 74) exemplo de uma sublimação do tipo “mais raro e
perfeito”.
47
Deve-se lembrar que um ideal do eu elevado não é sinônimo de sublimação bem-
sucedida. Na sublimação, o ideal do eu inspira em vez de coagir. “Ao contrário, um
elevado ideal do eu relança o caráter proibitivo das instâncias paternas, refratando as
pulsões e deixando, muitas vezes, o sujeito inibido” (CRUXÊN, 2004, p. 19).
Capítulo 4 – Mística, amor e sublimação | 91

das exigências do ideal do eu e do ganho obtido por manter algum


amor no eu, narcisismo secundário. (CRUXÊN, 2004, p. 19).
A sublimação alimenta, pois, o narcisismo secundário, e, desta
forma, pode-se compreender melhor por que o misticismo implica
invariavelmente grande investimento narcísico, como já comentado
anteriormente.
Vale salientar, ainda, que a dessemelhança entre a meta sexual
e a meta sublimada nem sempre impede a observação de traços da
primeira na segunda – mesmo para os místicos. Assim como um objeto
de arte – obra de sublimação – revela muitas vezes os traços da meta
sexual primária da qual o artista exauriu sua capacidade de trabalho e
sua inspiração, também o ato que coloca Deus como objeto do amor
mantém traços mais ou menos velados de erotismo.
Na verdade, o erotismo em relatos místicos é algo comum e
digno de nota tanto em tradições ocidentais como orientais. Assim o
místico, mesmo quando não se permite qualquer manifestação direta
de sexualidade, pode sentir-se à vontade em expressá-la na relação
com Deus. Observar-se-á alguns relatos que demonstram o erotismo
místico, a começar pela explanação de Ramakrishna a respeito da
experiência visionária:
Deus não pode ser visto com estes olhos físicos. No curso da
disciplina espiritual (sadhana), consegue-se um corpo de amor
dotado de olhos de amor, ouvidos de amor, e assim por diante.
Olha-se Deus com estes olhos de amor. Ouve-se Sua voz com
estes ouvidos de amor. Tem-se inclusive um pênis e uma vagina
feitos de amor. Com este corpo de amor goza-se do coito com a
alma. (apud KAKAR, 1997c, p. 19).
Percebe-se, nessa passagem, além da extrema importância do
amor no misticismo devocional, que a experiência mística é descrita
metaforicamente como uma relação sexual com a alma, ou com a
divindade.
A relação sexual com a deidade é bastante perceptível na mística
devocional cristã, particularmente em mulheres da Europa medieval,
como Santa Teresa de Ávila (ou Santa Teresa de Jesus). Na importante
passagem abaixo, descrita em sua autobiografia, ela relata a visão da
transverberação de seu coração:
92 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

Quis o Senhor, que tivesse aqui algumas vezes esta visão, via
um anjo junto ao meu lado esquerdo em forma corporal; [...]
Nesta visão quis o Senhor que o visse assim, não era grande,
senão pequeno, muito belo, o rosto tão ruborizado, que parecia
dos anjos muito elevados, que parecem todos queimar-se: devem
ser os que chamam de serafins [...]. Via nas suas mãos um dardo
de ouro comprido, em cuja ponta de ferro me parecia haver um
pouco de fogo. Parecia-me enfiar no coração algumas vezes, e
que me chegava às entranhas: ao tirá-lo me parecia que as levava
consigo, e me deixava toda abrasada em grande amor por Deus.
Era tão grande a dor, que fazia dar gemidos, e tão excessiva a
suavidade em que põe esta grandíssima dor, que não se pode
desejar que ela cesse, nem se contenta a alma com menos que
Deus. Não é dor corporal, senão espiritual, embora o corpo
não deixe de nela tomar parte, e mesmo muita. (JESUS, 2000,
capítulo XXIX, parágrafo 11).
Não se pode deixar de notar as semelhanças entre as ações do anjo
e aquelas de um amante em pleno ato sexual.48 A tradição mística de
Santa Teresa costumava expressar a relação com a divindade como uma
relação marital: é o casamento divino. Nessa situação, especificamente,
considerando que o vínculo místico ainda não estava consumado, Teresa
entende sua relação como uma forma de namoro: “É um galanteio tão
suave, que acontece entre a alma e Deus, que suplico a Sua bondade de
fazê-lo experimentar quem pensar que minto” (JESUS, 2000, capítulo
XXIX, parágrafo 11).
De todo modo, é fascinante como a sublimação faculta aos
místicos a expressão de uma sensualidade sem que haja, muitas vezes,
qualquer percepção consciente do processo. Madeleine, por exemplo,
não enxerga qualquer erotismo direto em suas experiências. Para ela,
seus “gozos excessivos” são “puros” e têm “outra natureza que as volúpias
carnais” (apud CLÉMENT, 1997, p. 59). É a própria mística francesa

48
O relato acima inspirou Gian Lorenzo Bernini quando esculpiu, para a Capela
Cornaro da Igreja de Santa Maria della Vittoria em Roma, O êxtase de Santa Teresa
– obra cuja fama se deve, ao menos em parte, à sensualidade que expressa. Pommier
(1987) relata que o Marquês de Sade (apud POMMIER, 1987, p. 68) teria comentado
sobre a estátua: “É preciso apenas compenetrar-se, ao vê-la, de que é uma santa, pois,
pelo ar extático de Teresa, pelo fogo de que seus traços estão abrasados, seria fácil
enganar-se”. O êxtase de Teresa, tal como representado por Bernini, também não
escapou aos olhos atentos de Lacan, conforme será visto no capítulo 6.
Capítulo 4 – Mística, amor e sublimação | 93

quem explica: “Como todos os meus sentidos e todos os membros


do meu corpo, as partes sexuais têm seus prazeres transformados,
tornados especialmente particulares, espirituais e tão puros.” (apud
CLÉMENT, 1997, p. 54-55). Seu relato é a própria definição do
processo sublimatório.49
Deve-se sublinhar, por fim, que Lacan trouxe conceituações
inéditas sobre a sublimação, relacionando-a com a noção freudiana
de das Ding – objeto perdido de uma satisfação mítica. Esse tema será
tratado no capítulo 7.

4.5 O amor e a busca pela completude perdida


O amor, entendido como desejo de unificar a dualidade,
tornando o homem um ser completo, tem raízes históricas longínquas.
É significativo o mito contado por Aristófanes no Banquete de Platão,
segundo o qual o ser humano era originalmente cindido em três sexos:
o homem, a mulher e o ser andrógino – união dos dois primeiros.
Todos esses três sexos tinham seus corpos duplos em comparação aos
corpos que conhecemos: possuíam quatro mãos, quatro pernas, duas
cabeças, dois órgãos genitais e assim por diante. Segundo Aristófanes,
esses homens eram demasiado poderosos e queriam escalar aos céus
para investir contra os deuses.
Para tornar-lhes mais fracos, Zeus resolveu dividir os seres de
todos os sexos em duas metades cortadas “tal como se cortam os frutos,
ou um ovo com um fio de cabelo” (PLATÃO, 2005, p. 39). Desde então,
cada parte busca unir-se e confundir-se com a outra para, de dois,
reconstituírem um só. Assim, “a partir desse momento aparece o amor
que os seres têm uns pelos outros. O amor tende a reencontrar a antiga
natureza, esforça-se por se fundir numa só, e por sarar a natureza
humana para recuperar a antiga perfeição” (PLATÃO, 2005, p. 40).
O mito sugere, portanto, a existência de um tempo primordial
em que homens, mulheres e andróginos eram seres de completude e
perfeição. Por um ato divino, cada uma dessas criaturas primevas divide-
se em duas partes: metades em busca de relações complementares.
O amor aparece aí como o anseio pela reunião das metades, pela
completude original.
49
O erotismo subjacente aos relatos de Madeleine será novamente abordado por
conta das relações entre histeria e misticismo, no capítulo 5, item 5.2.
94 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

O amor místico não foge à regra do mito, apenas altera um dos


fatores da soma. Conforme já dito, a cara-metade do místico não é
outro ser humano, mas a própria divindade, ou ainda o mundo natural
e humano tomados em abstrato. Permanece, todavia, a esperança de
uma totalização, que é chamada nesse caso de unyo mystica.
Para a psicanálise, a ideia de uma possível completude e perfeição
do ser humano quando unido ao outro não passa de uma grande
ilusão.50 A completude é o eterno horizonte do desejo e, como qualquer
horizonte, concerne apenas a uma possibilidade imaginária, que não
existe nem nunca existiu.
Em termos psicanalíticos, poder-se-ia dizer que a violência de
Zeus ao cortar o acesso dos seres humanos a uma suposta completude
é um dos muitos mitos que expressam a traumática ruptura humana
com o mundo da natureza.51 O homem não faz parte do mundo natural,
está irremediavelmente separado dele pelo simples fato de que é um
ser de linguagem. A palavra medeia a relação do homem consigo
mesmo e com o mundo, gerando, ao mesmo tempo, essa sensação de
incompletude e separação que o amor tenta mitigar. Para precisar essa
questão, cabe descrever, recorrendo a elaborações lacanianas52, como se
dá a constituição do sujeito humano a partir de sua relação com o outro
e com o Outro da linguagem.

A experiência primeira de satisfação e o Outro


A diferença apontada pela psicanálise entre necessidade, demanda
e desejo pode também esclarecer essa questão. A necessidade é uma

50
Isso não significa, obviamente, que a psicanálise se posicione contra o amor.
Quem quer que atravesse uma análise não deixa de amar, está apenas mais advertido
contra as ilusões dessa empresa e pode eventualmente nelas enredar-se menos.
51
O mito bíblico da queda do paraíso é outro ainda mais conhecido. Em Totem e
tabu (1998 [1913]), o próprio Freud elaborou um mito perfeitamente aplicável a essa
temática, conhecido como o mito do pai da horda primeva, o qual, por sua vez, tem
clara inspiração nas hipóteses de Charles Darwin. Em nota de rodapé de Mais além
do princípio de prazer (1998 [1920], p. 56), Freud reconhece que o mito platônico é
semelhante a outro ainda mais antigo, encontrado no primeiro livro (século XIII a.C.)
dos Upanishads – escrituras místicas do hinduísmo.
52
“Não há relação sexual” – o bombástico aforismo lacaniano é o que melhor ilustra
a ausência de complementaridade entre os sexos. A ilusão de que tal relação exista é o
que chamamos de amor. Retomar-se-á essa questão no capítulo 6, item 6.4.
Capítulo 4 – Mística, amor e sublimação | 95

situação de insatisfação orgânica, tal como a fome, caracterizada pelo


estado de tensão em busca de descarga ou satisfação. Mas falar em
necessidade pura no âmbito da psicanálise – que se fundamenta na
pulsão e no desejo – só é possível no campo da ideia mítica da primeira
experiência de satisfação do recém-nascido,53 trabalhada por Freud no
Projeto de psicologia (1998 [1895]) e na Interpretação dos sonhos (1998 [1900]).
Freud utilizou como exemplo a satisfação alimentar. A primeira
experiência desse tipo, localizada em um tempo mítico da vida do
infante, deixa um traço mnêmico no aparelho anímico ligando a
satisfação à imagem/percepção do objeto que a proporcionou. Quando
a tensão pulsional reaparece, ela reinveste o traço mnêmico. Isso gera,
num primeiro momento, uma satisfação alucinatória, visto que a criança
confunde o objeto representado psiquicamente com o objeto real. A
distinção somente surgirá aos poucos, de forma que a representação
psíquica do objeto passará a servir como referência para a busca do
objeto na realidade.
Importa destacar que, após a primeira experiência de satisfação
– totalmente inesperada –, não se pode mais falar em necessidade pura,
uma vez que toda busca pulsional posterior pela satisfação só se fará
mediada por uma representação. Está aí o protótipo do desejo: “Com
efeito, para Freud, o desejo nasce de um reinvestimento psíquico de
um traço mnésico de satisfação ligado à identificação de uma excitação
pulsional” (DOR, 1989, p. 141).
Um elemento crucial dessa trama é o fato de que a criança não
pode ser satisfeita sozinha. A satisfação é mediada por um outro, aquele
que exerce a função de mãe, que interpreta a necessidade pura infantil
como uma demanda por determinada forma de contentamento. Esse
outro está já inscrito na ordem simbólica, no mundo da linguagem,
e por esse motivo é ele quem vai, de maneira privilegiada, inserir
também a criança nessa ordem. Ele é, pois, o Outro. “A criança está
irredutivelmente inscrita no universo do desejo do Outro, na medida
em que é cativa dos significantes do Outro” (DOR, 1989, p. 145).
Contudo, o Outro é, fundamentalmente, o Outro da linguagem, o
tesouro dos significantes; consistindo a figura materna apenas em seu
representante primeiro.
53
Em psicanálise, diz-se que o recém-nascido ainda não é humano, pois que precisa
de investimentos, de atravessamento de significantes para tornar-se um ser-de-
cultura, um ser humano. Ser humano é efetivamente entrar no mundo da linguagem.
96 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

O Outro encarnado na mãe profere gestos e palavras que


fazem a criança gozar para além da satisfação de sua necessidade,
um gozo54 que é, entretanto, apoiado nessa necessidade. Assim, se a
primeira experiência de satisfação foi completamente não intencional
e não demandada, isso nunca mais acontecerá. A partir de então a
criança expressará seu desejo – a demanda – tanto para satisfazer sua
necessidade como para obter o “a mais” do gozo junto ao Outro. Ela
desejará, pois, o desejo do Outro. Entretanto, “este desejo do desejo do
Outro encarna-se no desejo de um ‘reencontro’ da satisfação originária
onde a criança foi totalmente satisfeita sob a forma de um gozar que
não demandou nem esperou” (DOR, 1989, p. 146).
É nesse ponto que começa toda a problemática do desejo e da
caracterização lacaniana do sujeito como falta-a-ser. Pois a mediação da
representação psíquica deixada na criança após a primeira experiência
de satisfação introduz uma perda entre o que é demandado e o que se
obtém. A satisfação, portanto, nunca mais será da mesma ordem.
Nada impede, porém, que a criança se coloque para o Outro
como objeto suscetível de preencher sua falta. Nega, pois, a falta
estrutural do desejo do Outro (desejar é reconhecer-se em falta, fora da
completude) e, ao mesmo tempo, a sua, por meio de uma identificação
chamada de identificação fálica, ou seja, uma identificação com o objeto
que é suposto faltar à mãe – o falo (imaginário). “Assim se estabelece
uma relação imaginária consolidada entre uma mãe que acredita
ter o falo e o filho que acredita sê-lo” (NASIO, 1997, p. 37). Trata-
se da identificação com uma imagem de completude e integridade
totalizantes que, contudo, custa caro ao infans, pois o mantém cativo,
como objeto, do desejo materno. Essa posição relaciona-se com a
formação imaginária do eu.

O “eu” e o registro do Imaginário


Consoante a teoria lacaniana do estádio do espelho, já mencio-
nada,55 o eu se constrói invariavelmente a partir de uma exterioridade:

54
As teorizações lacanianas sobre o gozo serão abordadas no capítulo 6. Por ora,
cabe apenas salientar que o gozo difere do prazer na medida em que a relação do
ser humano com o seu suposto objeto de satisfação passa irremediavelmente pela
mediação das palavras (CHEMAMA, 1995).
55
Capítulo 3, item 3.4.
Capítulo 4 – Mística, amor e sublimação | 97

espelho da imagem devolvida pelo seu semelhante ou espelho concreto


que projeta virtualmente sua própria imagem. E isso leva Lacan
a uma conclusão fundamental, de que a identidade do sujeito, o seu
“eu”, se constitui em uma alienação imaginária, “de onde se delineia o
‘desconhecimento crônico’ que [o sujeito] não cessará de alimentar em
relação a si mesmo” (DOR, 1989, p. 80).
O nome que Lacan dá ao processo de construção do eu é
méconnaissance, traduzível como desconhecimento ou desentendimento,
o que induz pensar a formação do eu como uma alienação: sua inteireza e
substancialidade nada mais são que ficções, miragens vindas do exterior,
tão ilusórias como a própria imagem do espelho que lhe deu sua primeira
base. Esse papel fundamental da identificação na formação do eu já havia
sido trabalhado por Freud, que chegou a definir seu caráter como “uma
sedimentação de investimentos objetais renunciados”, a qual “contém a
história destas escolhas de objeto” (FREUD, 1998 [1923], p. 31).
Para Lacan, o caráter profundamente ilusório e fictício do eu faz
dele a própria base do registro do Imaginário, que, juntamente com o
Simbólico e o Real, constituem ordens inter-relacionadas, teorizadas
para dar conta do funcionamento psíquico dentro de um entendimento
sincrônico – a famosa tópica do R.S.I., um dos maiores legados laca-
nianos. Assim, o Imaginário pode ser definido como o registro psíquico
composto de identificações e idealizações inarticuladas que são os
elementos constituintes da fantasia e do eu. Em suma, o Imaginário é
o registro do engodo e da identificação (CHEMAMA, 1995). Entre-
tanto, na teoria lacaniana entende-se que a formação imaginária do
eu é apenas um primeiro passo na constituição da subjetividade. É a
ascensão à simbolização que irá fundar o sujeito propriamente dito, o
que se dá por meio da metáfora paterna.

A interdição do incesto é consubstancial às leis da


linguagem
Nesse momento contemporâneo do estádio do espelho, a criança
dá seus primeiros passos para dentro do complexo de Édipo, cuja
dinâmica é relida por Lacan (1999 [1957-1958]), a partir de Freud, no
seminário 5, As formações do inconsciente. Não tardará para que a relação
simbiótica com a mãe seja balizada pela introdução de um terceiro
termo, daquele que exerce a função de pai. O pai terá como função
98 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

essencial introduzir uma lei, a interdição do vínculo entre mãe e


criança, sendo capital nesse processo que a mãe, ela própria, privilegie
o pai como objeto de desejo. Esse ato é uma castração simbólica, como
esclarece Nasio (2001, p. 37): “A palavra paterna que encarna a lei
simbólica consuma, portanto, uma castração dupla: castrar o Outro
materno de ter o falo e castrar a criança de ser o falo”.
Devido à castração simbólica, a criança é convocada a perceber
que não é o objeto único de desejo da mãe. Desta forma sua identificação
fálica começa a vacilar, exatamente no sentido de, como diz Lacan
(1999 [1957-1958]), “ser ou não ser” o falo. O objeto de desejo da mãe
está agora, portanto, do lado do pai, que é suposto pela criança ter ou
não ter o falo. Ela deverá abandonar a posição de ser o falo materno ou
mesmo de tê-lo, para buscá-lo lá onde ele está – junto ao pai. A dialética
do ter convoca o jogo das identificações sexuais.
Fundamentalmente, o pai é uma função simbólica, e a
internalização da lei de interdição do incesto corresponde à entrada da
criança no mundo da linguagem. O pai é um significante que interdita,
que se insere como terceiro mediador entre mãe e criança – o Nome-
do-Pai –, lançando-a para fora da completude fálica imaginária. A
metáfora paterna indica que o desejo da mãe, tomado como significante
(a parte material do signo linguístico), é substituído por outro
significante, o Nome-do-Pai, de forma que o primeiro é recalcado
(recalque originário).
Essa operação psíquica é a própria origem do processo de
simbolização, resultando na constituição de um sujeito que é ao
mesmo tempo dividido, pois o recalque originário convoca o advento
do inconsciente,56 e desejante, porque passa irremediavelmente a buscar,
sem sucesso, a completude imaginária perdida. Isso tem por conse-
quência, entre outras, que o próprio sujeito, tendo surgido a partir da
linguagem, “só está ali presentificado ao preço de mostrar-se ausente
em seu ser” (DOR, 1989, p. 107).

O sujeito em falta e o desejo


Disso se conclui que o sujeito não domina a linguagem, na
verdade ele é apenas seu efeito. Essa ideia é exposta por Lacan (1998b
56
“O ingresso no universo simbólico é o momento de constituição do inconsciente”
(GARCIA-ROZA, 2000, p. 190).
Capítulo 4 – Mística, amor e sublimação | 99

[1960]) em Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano


por meio de sua conhecida definição: “Um significante é aquilo que
representa o sujeito para outro significante” (LACAN, 1998b, p. 833).
A propriedade fundamental do significante é tomar sentido somente
na relação com outro significante, nunca podendo ser fixado em um
significado – a não ser em caráter provisório. Isso quer dizer que o
sujeito não tem concretude alguma, surgindo somente como efeito do
eterno deslizamento da cadeia significante que constitui o registro do
Simbólico.
O que a psicanálise demonstra com isso tudo é que se constituir
como sujeito implica necessariamente perdas. O sujeito é “assujeitado”
à ordem simbólica, ele é efeito da linguagem, e a linguagem nunca
totaliza, ela simplesmente representa algo que não mais está ali. A falta
que a linguagem provoca dará origem, no plano imaginário, a esse
registro de uma completude originária perdida.
Ser sujeito é ser desejante. O desejo, indestrutível, vai sempre
girar metonimicamente em torno da falta, criando as miragens de
felicidade absoluta comuns no mundo da cultura. Assim também o
misticismo terá seu fundamento no desejo tão humano de retorno
ao paraíso perdido. E o reencontro do Éden pode ser lido como o
reingresso na experiência mítica da primeira satisfação.
É comum entre os defensores da mística o entendimento de
que esta seria uma prática de retorno ao estado de bem-aventurança
perdido na infância.57 As miragens paradisíacas receberão diferentes
nomes e descrições nas diversas religiões e escolas de misticismo.
A enfatizar, assim, que a completude original nunca existiu, pois
ela mesma é um produto do acesso ao mundo da representação. Se,
como diz Lacan (apud DOR, 1989, p. 91), “a palavra é a morte da coisa”,
vale também dizer que a palavra cria a ilusão da existência dessa coisa
que supostamente ela matou. Em seu seminário de 1958-1960, A ética
da psicanálise, Lacan (1988) compara o significante com a atividade do
oleiro. Ao mesmo tempo que molda as bordas do vaso, o oleiro cria o
vazio central. Analogamente, é o próprio significante que cria o vazio,
engendra a falta. Desta forma, a completude e o mundo natural que lhe

57
Ver, por exemplo, Weil (1987), que sugere a existência de uma “neurose do paraíso
perdido” nos místicos.
100 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

corresponde são ambos ilusórios, como explica com maestria Garcia-


Roza (1990, p. 20):
A ideia de um mundo natural e ordenado, independente da
linguagem, é que se apresenta como fictícia. A linguagem não
surge um dia, ela está lá desde o começo. É apenas do lugar da
linguagem que podemos supor um mundo que lhe seja anterior,
mundo dos começos, mundo verdadeiramente mítico. Assim,
não é a teoria das pulsões que é a nossa mitologia (como diz
Freud), mas a teoria da natureza.
O amor místico nasce então desse desejo, eternamente frustrado,
de retorno ao mundo da natureza, onde estabeleceria uma relação
imediata (não mediada) com a realidade; em um suposto estado de bem-
aventurança e completude que remonta, na verdade, à identificação
fálica do infans em sua relação “quase-simbiótica” com um outro
privilegiado, em geral a figura materna.
Apesar de olhar a mística por um prisma “não patologizante”, o
psicanalista indiano Kakar reconhece a veracidade dessa análise:
As vicissitudes da separação estão, é claro, no coração da
teorização psicanalítica do misticismo. A aspiração de reunião
com um ser perfeito e onipotente, a nostalgia da felicidade
proporcionada pelo conforto e pelo cuidado associados à
mãe têm sido consensualmente consideradas como núcleo da
motivação mística. O objeto da controvérsia está na maneira
como este desejo tem sido encarado e no valor que os diferentes
analistas atribuem-lhe. (KAKAR, 1997c, p. 135).
Sob essa ótica, a mística é uma das manifestações da nostalgia
humana em relação a uma experiência mítica de ser. É também uma
tentativa de elidir a castração simbólica e, nesse ponto, assemelha-se
às ilusões do sujeito neurótico, aferrado à promessa de uma felicidade
absoluta vindoura, conforme será visto a seguir.
| Capítulo 5 |

Mística e estruturas clínicas

Neste capítulo pretende-se analisar algumas proximidades e


distanciamentos entre o misticismo e as estruturas clínicas obsessiva,
histérica e psicótica.58 Para tanto, recorrer-se-á à interpretação psicana-
lítica de eventos biográficos documentados sobre alguns místicos.
Evidentemente, um trabalho de tal ordem, que se debruça sobre um
material escrito, escasso e multicultural, corre o risco de equívocos e,
portanto, deve ser lido tão somente como um esboço para uma clínica
da mística. Acredito, inclusive, que cada uma dessas relações mereceria
um estudo específico e aprofundado à parte, e por isso não se pretende
ir além de realçar algumas questões mais evidentes.

5.1 O sujeito obsessivo e o misticismo


Retomando a dialética lacaniana do ser e do ter,59 é perfeitamente
comum encontrar uma espécie de nostalgia no sujeito obsessivo que
muito lembra a nostalgia mística. Trata-se da “nostalgia do ser”, como
se refere Dor (1994), ou seja, tristeza, melancolia ou mesmo saudades
da identificação fálica que o sujeito teve de trocar, forçosamente, pelo
desconforto da dimensão do ter, que é imposta pela lei paterna.
Conforme já mencionado, há nos místicos uma nostalgia muito
semelhante, desejo de retorno a um passado mítico, além ou aquém da
possibilidade de representação. É possível, pois, supor que o sentimento
oceânico em muitos sujeitos se relacione à nostalgia obsessiva – mas
como explicá-la?

58
Para uma análise da relação entre a mística e a estrutura perversa, remete-se o
leitor ao capítulo primeiro da obra A parte obscura de nós mesmos – uma história dos
perversos, de Elisabeth Roudinesco (Zahar Editores, 2008).
59
Conforme descrita no capítulo 4, item 4.5.
102 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

É comum na problemática obsessiva que o sujeito se manifeste


como alguém que foi objeto privilegiado do desejo materno e, por
conseguinte, privilegiado também em seu investimento fálico. Nas
vicissitudes da passagem dolorosa do ser ao ter, impelida pela função
paterna, a criança que se estruturará obsessivamente instala-se, no
plano imaginário, em um dispositivo de suplência à satisfação do desejo
materno. Essa criança, portanto, inconscientemente interpreta haver,
na mãe, uma lacuna de satisfação, de forma que, mesmo confrontada
com a lei do pai, persiste sua identificação fálica. Logo, vai existir no
obsessivo “uma incerteza constante entre o retorno regressivo a uma
identificação fálica, e a obediência à Lei e as implicações que esta
supõe” (DOR, 1994, p. 99).
Como possível exemplo de tal estruturação, analisemos a vida
precoce do místico indiano Bhagwan Shree Rajneesh (1931-1990),
consoante seus próprios relatos (RAJNEESH, 2002). Foi criado até
7 anos de idade pelos avós, aos quais era imensamente apegado. Em
verdade, ele confessa que os avós não o teriam educado de forma
tradicional, deixando-o viver “ao natural”. Em suas próprias palavras,
não havia “ninguém para me repreender, para me preparar para o
mundo dos negócios, da política, da diplomacia. Meus avós estavam
mais interessados em me deixar ficar tão ao natural quanto fosse
possível – em especial minha avó” (RAJNEESH, 2002, p. 19).
Esses foram, segundo seu depoimento, os sete anos “dourados”
que o ajudaram a ser um espírito rebelde na juventude, contestador de
toda autoridade.60 Mesmo preocupando-se com sua liberdade excessiva
e grandes travessuras, o avô – descrito como um homem dominado
pela mulher – jamais teria repreendido o garoto ou interferido em sua
vida.
Nesses traços precoces de uma dinâmica familiar, poder-se-ia
hipotetizar, em ambas as figuras parentais, uma posição subjetiva que
promove a castração simbólica do infante de maneira vacilante e que
possibilita a manutenção de uma identificação fálica inconsciente. De
fato, o próprio avô parecia fazer o impossível para manter o narcisismo

60
Após os sete primeiros anos de vida, Rajneesh (2002) passou a ser criado pelos pais
biológicos. Ele relata ter vivido então até os 21 anos com a família, sempre em meio a
muitos conflitos com o pai, para quem a educação inicial pelos avós havia “estragado”
o menino.
Capítulo 5 – Mística e estruturas clínicas | 103

do garoto. Relata Rajneesh: “Ele costumava chamar-me de Rajah –


rajah significa ‘o rei’ – e durante aqueles sete anos ele fez de tudo para
que eu vivesse como um rei” (RAJNEESH, 2002, p. 32).61
Mas o avô veio a falecer precocemente. Como descrito
anteriormente (capítulo 3, item 3.5), sua morte foi um marco
inesquecível na vida de Rajneesh, evento suficientemente forte para
conduzi-lo à trilha espiritual. Isso não deixa de lembrar a questão da
dívida tão comum no caminho obsessivo, dívida em relação a um pai
que é objeto de afetos intensamente ambivalentes.
Desta forma, poder-se-ia supor que, para além do forte apego de
uma criança à figura paterna, o sofrimento pela morte do avô estaria
sobredeterminado de maneira ambivalente. Por um lado, a situação
traria à cena o desejo de morte do avô, simbolizado como obstáculo ao
objeto incestuoso materno (no caso, a avó), ao qual o desejo sexual do
futuro místico estaria inconscientemente fixado.62 Por outro lado, os
afetos amistosos em relação ao avô transformar-se-iam em remorso.
Nesse sentido, a morte do avô lançaria o sujeito, já obsessivo, à
trilha da culpa: por um lado, em virtude do desejo parricida; por outro,
devido ao desejo incestuoso – ambos inconscientes e constituintes
do complexo de Édipo. Daí a necessidade premente de sua expiação
em formas que honrariam a morte da figura paterna: “A meu modo
infantil, eu imitei a sua morte. Eu não iria comer por três dias, nem
beber água, pois achava que comer e beber seria uma traição. Meu avô
era uma parte integrante de mim” (RAJNEESH, 2002, p. 69).
Em uma tal posição subjetiva, o obsessivo estaria pronto a adotar
ideais ascéticos com o fito de extinguir a chama do desejo, sempre
61
Continuando suas memórias: “No dia do meu aniversário, ele mandava trazer um
elefante de uma vila próxima... Os elefantes, na Índia daqueles dias, eram propriedade
de reis [...] ou de santos [...]. Próximo à aldeia havia um santo que tinha um elefante
e assim, no meu aniversário, meu avô materno me colocava em cima do elefante com
duas sacolas, uma de cada lado, cheias de moedas de prata [...] e eu saía pela aldeia
atirando as moedas. Era assim que ele costumava comemorar o meu aniversário [...].
Ele fazia todo o possível para me dar a impressão de que eu pertencia a alguma família
real” (RAJNEESH, 2002, p. 33).
62
“Eu jamais vi uma mulher mais bela do que a minha nani [a avó]. Eu mesmo estava
apaixonado por ela e a amei por toda a sua vida. [...] para mim, ela era mais valiosa do
que Mona Lisa, mais bela do que Cleópatra. Não é exagero. Tudo o que é mais belo na
minha visão veio, de algum modo, por meio dela. Ela me ajudou de todas as maneiras
a ser o que eu sou” (RAJNEESH, 2002, p. 35).
104 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

perigoso, em um eterno acerto de contas com o pai. Na verdade, já


nos encontramos nas pegadas da teoria freudiana sobre a origem da
religião descrita em Totem e tabu (1913): “A religião totemista havia
surgido da consciência de culpa dos filhos varões como uma tentativa
de acalmar esse sentimento e apaziguar o pai desrespeitado mediante
a obediência de efeito retardado” (FREUD, 1998 [1913], p. 146-147).
Mas para Freud, não somente o remorso está em jogo na religião, como
também a recordação do triunfo sobre o pai. Além disso, vale lembrar
que nessa obra, assim como em outros trabalhos (incluindo O futuro de
uma ilusão), Freud afirma que a neurose obsessiva é a caricatura de uma
atitude religiosa.
Considerando que o ato de desejar remete à dimensão do ter,
ou melhor, à constatação da falta, do não ter o falo que é a castração
simbólica, o obsessivo nada vai querer saber de seu desejo. Ele faz todo
o possível para calar o desejo no outro e manter sua ilusão fálica. Nesse
ponto, é possível imaginar como certos ideários místicos se encaixam
com mestria na dinâmica obsessiva, na medida em que produzem
discursos e práticas dedicadas à aniquilação do desejo.
Consoante já visto alhures, o caminho místico frequentemente
envolve algum tipo de prática ascética. O ascetismo pressupõe privações
e mortificações com a finalidade de produzir um autocontrole estrito
do corpo e do espírito. Ele está relacionado à fase do misticismo que
Underhill (2003 [1961]) denominou “Purificação do Eu”,63 uma vez que
os antigos padrões de comportamento são considerados impedimentos
no caminho para as experiências extáticas.
Nessa mesma linha de pensamento, as perdas comuns na vida do
sujeito, tais como as desilusões amorosas e a morte de entes queridos,
são sentidas como sinais de um apego doloroso. Para Kakar (1997c), a
via mística é uma maneira de minorar a agonia da separação, mitigando
a dor da perda e reduzindo a tristeza da destituição. E completa: “Em
minhas próprias entrevistas com membros de um culto místico na
Índia, a perda era o fator isolado mais importante na sua decisão de
buscar a adesão” (p. 137).
Remete-se aqui à problemática da perda na vida amorosa do
obsessivo. Ele não aceita perder (DOR, 1994), e isso se deve à relação
direta existente entre perda e falta. Nada perder significa afastar-se

63
Descrito no capítulo 1, item 1.7.
Capítulo 5 – Mística e estruturas clínicas | 105

do encontro com a falta, sinônimo da castração simbólica. Não aceitar


perdas é também neutralizar o desejo, já que este é coexistente à falta e
por ela relançado. Tal amordaçamento do desejo se faz ao impedir que
ele se articule na demanda.
A tentativa de controlar a ânsia que leva ao desapontamento e à
dor é uma importante dimensão dos ideais ascéticos no Ocidente entre
os estoicos e seus herdeiros cristãos, e em vários ramos do pensamento
religioso indiano (GÓMEZ, 2003a). Entre esses ramos, o desejo toma
importância primária no budismo e assume a posição de uma crença
canônica: o desejo é a raiz do sofrimento.
Tal entendimento é patente nos ensinamentos budistas mais
conhecidos, As Quatro Nobres Verdades, que teriam sido lecionadas
pelo próprio Buda e constituem o cerne filosófico e prático do budismo.
A primeira dessas verdades indica que o sofrimento, ou a insatisfação
(dukkha), é inerente à vida humana. A segunda verdade relata que a
origem desse sofrimento é o desejo – ou melhor, o apego a situações
desejáveis e a rejeição daquelas que não são. Já a terceira nobre verdade
adverte que o abandono do desejo provoca a cessação do sofrimento, ao
passo que a quarta verdade expõe um caminho necessário ao término
dessa aflição (o Nobre Caminho Óctuplo).
Nessa análise do budismo, seria impedindo o relançamento do
desejo que o místico atingiria sua meta de uma completude imaginária.
Laplanche (1988, p. 106), por exemplo, entende que o nirvana budista
seja ligado não à descarga completa da pulsão (o nirvana da pulsão),
mas a uma manutenção, a todo preço, da homeostase pelo eu narcisista,
o que se assemelha à “recusa de novas possibilidades no obsessivo ou no
ocnofílico; ascetismo, estoicismo ou epicurismo”.
Para o psicanalista francês, o nirvana budista seria, então, um
nirvana do eu (em contraposição ao nirvana da pulsão – redução da
tensão ao nível zero). O eu, nesse caso, evitaria sempre uma descarga ou
uma tensão libidinal, não importando se são excessivas ou moderadas.
Isto é, ele pouparia toda sobrecarga, assim como toda hemorragia
libidinal. O resultado seria “a abolição imaginária do desejo na
ataraxia, verdadeira mimetização da morte, mas conforme o princípio
de constância” (LAPLANCHE, 1988, p. 106).
Como contraponto às análises feitas neste item, é importante
ressaltar que a leitura da questão do desejo na mística e, mais
106 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

especificamente, no budismo deve ser feita com cuidado, de forma a


evitar reducionismos.64 A estratégia obsessiva só se aproxima da mística
quando esta é igualada à religião. Contudo existe a possibilidade de que
a mística se aproxime de outros campos da produção humana, como a
arte (conforme será visto no capítulo 7), o que muda bastante a forma
pela qual que podemos interpretá-la.
Isso porque, por um lado, o ascetismo (e a consequente renúncia
ao desejo) não é característico de todas as vias místicas, e mesmo no
budismo há ramos não ascéticos como o zen e o budismo tântrico. Essas
vias costumam enfatizar a compreensão do desejo, ao contrário de sua
simples renúncia. Em verdade, todos os ramos do budismo enfatizam
o ensinamento chamado de “caminho do meio”, atribuído ao Buda, o
qual prega que a trilha para o nirvana deve ser livre de extremismos,
tanto do hedonismo e da autoindulgência como da automortificação e
do ascetismo.
Assim, arriscando-se outro caminho interpretativo, a morte do
desejo no budismo poderia ser vista não na trilha da ataraxia, mas como
o desmonte da fantasia que dá suporte ao desejo, dando à pulsão seu
verdadeiro estatuto de pulsão de morte, rumo a das Ding. Essa hipótese
será abordada em detalhes no capítulo 7, item 7.7.

5.2 Estrutura histérica e misticismo


Para comentar a relação entre a mística e a histeria, convém
trazer um exemplo biográfico, o da francesa Madeleine, que no século
XIX foi internada na Salpêtrière aos cuidados de Pierre Janet. Uma das
razões de sua internação era não conseguir caminhar de outro modo
senão na ponta dos pés.65 Madeleine tinha êxtases frequentes de união
com Deus, e seu misticismo será visto aqui como paradigmático, pois
em nada se diferencia daquele das extáticas da Idade Média na Europa.
Janet (apud CLÉMENT, 1997, p. 27) bem reconhece isso em seus
relatos escritos sobre a pitoresca paciente, mesmo assumindo o papel
do médico cético – tão característico da psiquiatria positiva da época:

64
Foram descritas, no capítulo 3, item 3.9, leituras supostamente reducionistas da
mística, de acordo com Parsons (2003).
65
Os detalhes da vida de Madeleine são descritos por Catherine Clément (1997) no
livro A louca e o santo.
Capítulo 5 – Mística e estruturas clínicas | 107

Madeleine, estou certo, será somente uma pseudoextática,


pois lhe faltará sempre uma certa estampilha oficial. Estas
discussões, que poderiam ser interessantes na Idade Média, não
são mais exatamente importantes hoje. Os estados psicológicos
só devem ser classificados segundo os sintomas observados, e
os êxtases de Madeleine apresentam os caracteres essenciais de
todos os êxtases dos místicos mais autênticos. Direi mesmo, ao
risco de escandalizar, que a descrição dos sintomas observados
em Madeleine me parece, no limite dos erros possíveis, mais
exata do que as descrições feitas a partir de escritos longínquos
de místicos tradicionais.
Mas, se Madeleine lembra as mulheres místicas de eras
anteriores, vale dizer que ela também traz à memória os casos
histéricos paradigmáticos da época de Freud. Ela era filha de grandes
burgueses industriais do norte da França – católicos praticantes que
não tinham qualquer devoção religiosa em particular. A família sofria
de inúmeras perturbações de saúde com aparência psicossomática,
e a criança Madeleine não era exceção: tinha fraqueza nas pernas
até os 9 ou 10 anos e caía com frequência sem que fosse encontrado
qualquer problema muscular ou neurológico. Também tossia muito,
vomitava, alternava constipações e diarreias, sentia falta de ar, sofria
de perturbações cutâneas. Ruídos a faziam tremer, sons limites faziam-
na desmaiar: uma tempestade ou o passar de um trem provocavam-
lhe catalepsia. “Em resumo, a garotinha apresenta um impressionante
catálogo de sintomas histéricos – segundo a terminologia psiquiátrica
vigente na época, e ainda hoje” (CLÉMENT; KAKAR, 1997, p. 30). E
se lhe faltava o “grande arco histérico”, cabe dizer que mais tarde, já na
Salpêtrière, Madeleine andará na ponta dos pés.
Desde pequena ela se considerava fadada a sofrer pelos outros:
“Fui advertida à noite que deveria sofrer todas as dores das outras
pessoas” (apud CLÉMENT, 1997, p. 30). Não tardaria aparecer o
temor neurótico ao desejo, em episódio aparentemente banal:
Minha mãe me tinha feito escolher um vestido de musselina
rosa cuja cor me agradava muito, mas quando o vestido chegou,
era branco, a costureira tinha se enganado de fazenda. Eu
chorei muito, mas compreendi que comigo seria sempre assim
nesse mundo mau, que era preciso nunca mais desejar nada no
mundo... (apud CLÉMENT, 1997, p. 30).
108 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

Gradualmente, todos os signos de afeição – como os beijos e o


carinho dos pais – e as vivências prazerosas em geral, deverão, para
ela, ser evitados. Aos 11 anos comenta sobre a experiência de dançar:
“Senti tanto prazer que fiquei apavorada e jurei não recomeçar jamais.
O prazer que senti mostrou-me suficientemente que aquilo era mau e
eu suprimi a dança para sempre” (apud CLÉMENT, 1997, p. 31).
Assim, surge claro em Madeleine a recusa tenaz ao gozo,
percebido como mau ou perigoso. Essa recusa, segundo Nasio (1991),
está na base de todas as neuroses, mas no caso do histérico vai se
converter especificamente em distúrbios do corpo, assim como na
evitação constante de estados que evoquem a satisfação. Forma-se,
desta maneira, o eu histérico, caracterizado pela tristeza e insatisfação.
No período pré-púbere, após a primeira menstruação, Madeleine
tinha estados de sonolência e semiconsciência. Mais tarde, aos 16 anos,
teve crises de escrúpulo e preocupava-se obsessivamente com limpeza.
Entretanto os cuidados de limpeza provocavam no corpo efeitos de
prazer imprevistos e, em consequência, ela anunciaria publicamente
temer a gravidez. Como bem se observa, seu eu histérico se defende de
todas as formas, inclusive com traços obsessivos, do gozo perigoso que
irrompe cada vez mais intenso com o amadurecimento sexual de um
corpo adolescente. Ao apaixonar-se por um rapaz aos 15 anos, não será
diferente sua reação:
Compreendi que não poderia jamais encontrar sobre a terra meu
ideal, uma afeição recíproca; entendi que o prazer que sentia
perto desse rapaz era mau, e que todos os prazeres e afetos eram
perigosos, eu deveria ter desconfiado quando senti prazer... Eu
pressenti algo da afeição dos esposos... (apud CLÉMENT, 1997,
p. 32).
Aqui, além da aversão ao contato sexual, muito característico na
estrutura histérica, vê-se também a idealização amorosa comum em
casos clínicos, que serve como anteparo contra o contato com parceiros
de carne e osso: “Quanto mais estrangeiro [o parceiro da histérica],
mais será mantido imaginariamente como parceiro inacessível” (DOR,
1994, p. 80). De fato, Madeleine procurará seu esposo em outro lugar,
em alturas sublimes.
Cabe acrescentar que, além do amor sensual, ela privava-
se igualmente de guloseimas, de bebidas alcoólicas e inclusive de
Capítulo 5 – Mística e estruturas clínicas | 109

música – tudo o que mais adorava. “Mais tarde, Madeleine admitirá,


retrospectivamente, uma sensualidade transbordante; ela era uma
glutona, adorava a música” (CLÉMENT, 1997, p. 32).
Madeleine resolve então sair de casa, diz ela, para trabalhar e
diminuir as despesas da família. O que seus pais não sabiam é que ela
sairia para se consagrar à miséria e ao cuidado dos pobres. Comenta
Dor (1994, p. 71) o quanto é comum uma abnegação sacrificial do
histérico ao se colocar como missionário ou assistente social “para
agradar e tentar preencher o que ele imagina ser o prazer do outro”.
Além disso, tal sacrifício permite “abdicar alguma coisa de seu próprio
desejo em benefício de um outro” (p. 71).
Madeleine era instruída, tinha licença de professora, mas passaria
por doméstica e operária, terminando por cuidar de uma velha senhora
em estado de câncer terminal durante seis meses. Vivendo em miséria
absoluta, Madeleine (apud CLÉMENT, 1997, p. 33) declara que esse
foi seu período mais feliz, “durante o qual experimentei sem cessar
uma alegria íntima que não consigo exprimir”.
Nessa fase começa a tomar forma mais consistente o seu
misticismo. Mas cumpre lembrar que, ainda na infância, ela se
identificava com São Francisco de Assis porque fruía da presença de
Deus por entre passeios no campo e na floresta. Além disso, tinha
certo fascínio pela morte, havendo chegado a desenterrar dentes de um
cadáver para se representar à “existência do Nada”. Tal como Francisco,
ela escolhe o amor universal contra o amor da sua própria família, a
qual é esquecida em grande indiferença.
Por todas essas características, Clément (1997) compara essa
francesa com um renunciante hindu, mas lembra que ela vive em
uma sociedade que não tolera o errante. Se, como lembra a História
da loucura (1961) de Foucault, na Idade Média da “Nave dos Loucos”
admitia-se a escolha do renunciante e o vaguear solitário, na França do
fim do século XIX o vaguear é um delito chamado “vagabundagem”.
Assim, é por vagabundear que Madeleine, aos 23 anos, é presa
ao dormir em um banco de rua. Interrogada pela polícia, ela se revela
como “Madeleine, o Bode”: amante do Cristo e bode expiatório dos
pecados do mundo. Passa seis meses na prisão de Saint-Lazare. Depois
de sair, outras pequenas perturbações da ordem pública acrescentam-
se a sua lista: fraude, vadiagem, prostituição, mendicância e ruptura
110 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

do exílio.66 Passa mais cinco meses presa e depois vai para igrejas. Não
obstante, não tarda ser proibida de frequentar ofícios religiosos por
causa de seus êxtases.
Logo ela começa a andar na ponta dos pés e passa por uma
série de hospitais – Hôtel-Dieu, Bichat e Necker –, para finalmente
ser internada na Salpêtrière, onde ficará aos cuidados do renomado
psiquiatra Pierre Janet por seis anos e oito meses. Lá ela tem contraturas
nas pernas, estigmas crísticos e jejua. Também tem êxtases, muitos
êxtases, durante os quais ocorrem pausas respiratórias de 30 segundos
ou mais: Janet anota e mede meticulosamente tudo.
O psiquiatra francês distingue três fases dos êxtases de Madeleine.
Primeiro acontece o recolhimento, quando sua voz se enfraquece, mas
mantém os olhos abertos e pode escutar e responder perguntas. Depois
vem o êxtase propriamente dito, quando ela chega à imobilidade
e cessam suas reações, ainda que mantenha a memória do ocorrido.
Madeleine (apud CLÉMENT, 1997, p. 46) descreve tais arroubos:
Nesses momentos de luz a alma escuta uma linguagem que não
é da terra... São coisas que não se pode exprimir com palavras
humanas... O que se pode dizer das coisas da alma nesses estados
é como uma gota d’água no oceano, um grão de poeira na
imensidão do globo terrestre.
Para além do êxtase há, por último, um estado mais raro, o
arrebatamento, que suprime a memória e compara-se, para ela, a uma
espécie de morte.
A cura de Madeleine, supõe Janet, advém após a menopausa,
sendo igualmente ajudada pelo seu tratamento, que é, segundo Clément
(1997), de caráter inteiramente moral.67 Madeleine (apud CLÉMENT,
1997, p. 59) demonstra que aprendeu a lição de Janet: “Devo resistir

66
Clément (1997) comenta que prostituição foi acrescentada mecanicamente à lista
de seus delitos, pois é muito improvável que tenha cometido.
67
Os critérios para cura ditados por Janet são, como sublinha Clément (1997, p.
90), pertencentes mais “à estrita moral republicana do que à terapia revolucionária,
como será a de Freud”. A norma é a ação realizada, o sucesso normal e modesto.
Todos os doentes são involuntariamente culpados de preguiça, quando atacados pela
imobilidade e o cansaço, ou acusados pelo excesso de alegria ou êxtase, como no
caso de Madeleine. Clément resume o ideal de normalidade de Janet: “Um pouco de
virtude, mas não demais; um pouco de paixão, mas não demais; um pouco de mágoa,
mas não excessiva, e bom senso, por favor” (p. 91).
Capítulo 5 – Mística e estruturas clínicas | 111

a estes gozos excessivos que experimento em todo o meu corpo”. Sua


explicação: “Ainda que sejam puros e que tenham outra natureza que
as volúpias carnais, compreendo que seja meu dever evitá-los, porque
eles me absorvem em demasia e me deixam incapaz de prestar atenção
a outras coisas”.
Madeleine nega, mas seus êxtases apresentam forte conteúdo
erótico e eles não deixam de lembrar uma característica fundamental da
neurose histérica, isto é, erotizar toda expressão humana, “seja ela qual
for, embora, por si só, intimamente, ela não seja de natureza sexual”
(NASIO, 1991, p. 17). Ou seja, o sujeito histérico sexualiza o que não é
sexual através do filtro de suas fantasias inconscientes de caráter sensual
autoerótico. Trata-se de sinais sexuais – o único gozo do histérico, um
gozo masturbatório, pois seu desejo nunca será de enveredar-se no ato
sexual consumado, ao contrário do que faz o outro crer.
Clément (1997) marca bem a identidade de Madeleine como
esposa de Deus, cujos traços de sexualização são irrefutáveis. A autora
sublinha algumas características desse erotismo místico, todos exempli-
ficados com relatos da própria paciente de Janet sobre suas visões e
sensações extáticas. Há, por exemplo, alusões claras a beijos e felações:
Eu experimento em toda parte a suavidade destes beijos. Os praze-
res na boca e sobre os lábios são contínuos, é impossível compará-
los ao que quer que seja, é mais doce que o mel... Tenho na boca
um sabor fresco e doce, minha língua deleita-se como jamais
tinha feito: essa doçura na boca é embriagante. Que licor doce e
inebriante preenche minha boca? É como um mel que não ouso
engolir, é como se estivesse comendo confeitos açucarados, não
tenho vontade de nenhuma guloseima, pois o que saboreio ultra-
passa tudo que se pode imaginar. (apud CLÉMENT, 1997, p. 51).
Em outro relato, Madeleine coloca-se abertamente como esposa
de Deus, deixando entrever o erotismo à maneira da cunilíngua:
O senhor bem sabe que uma mulher que não urina mais não
pode viver por muito tempo. Pois, está acabado, não urinarei
mais. Não é minha culpa, Deus o quis... Um versículo do
Cântico dos Cânticos vai ensinar-lhe: ‘Minha esposa é um
jardim fechado e uma fonte selada.’ Há também estas palavras
que a alma diz ao bem-amado: ‘Que me dê um beijo com sua
boca.’ Deus, beijando-me em toda a parte pôs um lacre e eu não
poderei jamais urinar. (apud CLÉMENT, 1997, p. 51).
112 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

Segue-se o sadomasoquismo quando, em uma Sexta-Feira Santa,


aparecem chagas em Madeleine. Nota Pierre Janet que os estigmas
costumam surgir na véspera de sua menstruação.
Eu considerei a chaga do coração de Jesus. Em espírito, entrei
nela e vi o quanto era profunda! Ali me precipitei, purifiquei,
afoguei... Pouco a pouco experimentei algo como se minha
súplica tivesse sido ouvida, como se eu também desse todo o
meu sangue e que, unida a Jesus, eu me alimentasse de amor.
(apud CLÉMENT, 1997, p. 51).
Clément destaca ainda a experiência do ato sexual e do orgasmo
no seguinte relato:
Sinto enormes doçuras sobre os lábios e, no ventre que se
contrai, sobressaltos verdadeiramente divinos... Todo o meu
corpo é fremente quando Deus aplica em tudo suas mãos
ardentes, que ele faz passear suavemente, é indefinível, parece
que desmaio no prazer que sinto. Sinto-me mais e mais suspensa
no ar, se diria que meu corpo apoia-se numa corda larga passada
entre as pernas e que esta corda comprime as partes, que faz
impelir para dentro. Dá-se algo na vesícula, coloca-se um lacre
na abertura e este incômodo para urinar não é de fato um, mas
uma volúpia... Experimento com enorme frequência no interior
como no exterior tremores suaves que são tão particulares que
não posso explicá-los. (apud CLÉMENT, 1997, p. 52).
Importante destacar outro momento, quando Madeleine tem
uma visão na qual a experiência do coito torna-se ainda mais explícita:
Fui levada até uma casa onde pratica-se o comércio de mulheres,
que espetáculos e que torturas. Eu senti um calor particular que
me envolvia. Qual não foi minha surpresa ao perceber que uma
enorme serpente negra tinha conseguido deslizar sob minhas
roupas e tinha se enrolado em torno do meu corpo, era ela que
me aquecia. (apud CLÉMENT, 1997, p. 68-69).
De fato, as preliminares do coito eram tão patentes que o eu não
tardou a censurar as aventuras da serpente: “Eu a peguei pela cabeça no
momento em que ia me apertar e morder... Uma barreira impediu-a de
passar; tudo ficou em ordem” (apud CLÉMENT, 1997, p. 69).
Esses exemplos demonstram que a pulsão sexual, recalcada
patologicamente na defesa histérica, acaba encontrando um novo
Capítulo 5 – Mística e estruturas clínicas | 113

destino no âmbito dos êxtases místicos, que é a sublimação.68 Suponho,


assim, no caso de Madeleine, para além de uma “histericização” de tudo
que não é sexual, que o misticismo possibilita uma certa superação dos
caminhos neuróticos de expressão da libido.
Além disso, para Lacan (1985, p. 103), não é o caso de pensar no
misticismo unicamente pelo viés de uma sexualidade latente:
O que se tentava no fim do século passado, no tempo de Freud,
o que eles procuravam, toda sorte de gente brava no círculo de
Charcot e dos outros, era carregar a mística para as questões
de foda. Se vocês olharem de perto, de modo algum não é isto.
Esse gozo que se experimenta e do qual não se sabe nada, não
é ele o que nos coloca na via da ex-sistência? E por que não
interpretar uma face do Outro, a face Deus, como suportada
pelo gozo feminino?
Em seu vigésimo seminário – Mais, ainda (1985 [1972-1973]) –,
Lacan claramente relaciona o êxtase místico ao gozo feminino, um gozo
que é experimentado pelo sujeito, mas dele nada se sabe, na medida em
que se encontra fora do Simbólico (na ex-sistência). Essa relação será
analisada no capítulo seguinte.

5.3 Mística e psicose


A psicose e a foraclusão
A questão da relação entre o misticismo e a psicose não é
simples e certamente mereceria um estudo totalmente dedicado. Pela
abrangência da investigação em curso, esse tema será abordado de
maneira breve.
De modo óbvio, os êxtases, visões e relatos comuns na mística não
deixam de indicar semelhanças com alucinações e delírios psicóticos, o
que suscita a ideia de haver uma identidade entre esses fenômenos. Aliás,
são nada incomuns os episódios aparentemente místicos em psicóticos.
As mais bem conhecidas provas disso são os delírios de Daniel Paul
Schreber, descritos em suas Memórias de um doente dos nervos (1955), tal
como no trecho a seguir:

68
A relação entre sublimação, gozo e misticismo será especificamente abordada no
capítulo 7, item 7.3.
114 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

Algo como a concepção de Jesus Cristo pela Virgem Imaculada


– alguém que nunca realizou o ato sexual com um homem –
aconteceu em meu próprio corpo. Por duas vezes diferentes
(enquanto estava no sanatório de Flechsig) eu tive um órgão
genital feminino, apesar de pouco desenvolvido, e no meu
corpo senti agitações como os primeiros sinais de vida de um
embrião humano: por um milagre divino os nervos de Deus
correspondentes ao sêmen masculino foram projetados em
direção ao meu corpo; em outras palavras a fecundação havia
ocorrido. (SCHREBER, 1955, p. 42-43).
No delírio de Schreber aparecem explicitamente uma feminili-
zação e uma passividade perante Deus, de maneira muito semelhante
ao que acontece com os místicos.69 No caso dos psicóticos, entende-se
que tais características são consequências da indefinição da identidade
sexual, que por sua vez remete à foraclusão do Nome-do-Pai.
Na psicanálise lacaniana o conceito de foraclusão busca dar
conta de explicar o mecanismo psíquico na origem da psicose. Ela
é, segundo Nasio (1997), a falta de inscrição no inconsciente da
experiência da castração simbólica, responsável especificamente pela
incerteza do psicótico com relação a sua identidade sexual e por uma
perda no sentido de realidade. Por outro lado, quando simbolizada, a
experiência da castração permite que a criança assuma seu próprio sexo
e, por conseguinte, reconheça seus limites.
O termo forclusion (traduzido entre nós pelo neologismo foraclusão
ou forclusão) é oriundo do vocabulário jurídico (preclusão, em português)
e foi proposto por Lacan para traduzir o termo alemão Verwerfung,
utilizado por Freud e usualmente transcrito como rejeição ou repúdio.
Freud, pois, destacou um mecanismo de defesa específico da psicose já
em um de seus primeiros escritos, As neuropsicoses de defesa, de 1894. O
artigo discorre sobre as diferentes defesas mobilizadas pelo eu, as quais
invariavelmente fracassam e definem as especificidades de entidades
clínicas como a histeria, a obsessão e as psicoses. Em todos os casos,
o eu se defende de uma representação psíquica intolerável que é, de
acordo com Nasio (1997), a experiência dolorosa da castração; não a
castração do próprio sujeito, mas a do Outro – da mãe. A experiência
é dolorosa porque a criança, posicionada até então na fase mítica da

69
A passividade e feminilização mística também é tema do capítulo 6, item 6.5.
Capítulo 5 – Mística e estruturas clínicas | 115

atribuição universal do pênis, constata a falta desse órgão na sua mãe


e infere que também pode ser privada dele caso não se submeta à lei
do pai, a qual proíbe o incesto. Não obstante, aquilo que mobiliza a
criança nesse estádio não é exatamente a presença/ausência do órgão
peniano, mas de sua representação imaginária – o falo imaginário.
No caso da psicose, segundo Freud, o eu repudia a representação
inconciliável de uma forma tão radical e violenta que se comporta como
se nunca a tivesse conhecido. No entanto, a representação “se associa
de maneira inseparável com um fragmento da realidade objetiva, e à
medida que o eu leva a cabo essa operação, também ele se desliga, total
ou parcialmente, da realidade objetiva” (FREUD, 1998 [1894], p. 60).
Em 1911, na análise das memórias do presidente Schreber, Freud
confirma e complementa as consequências da defesa psicótica, afirmando
que aquilo que foi “cancelado no interior retorna no exterior” (FREUD,
1998 [1911], p. 66). Assim, repudiada ou abolida a representação da
castração, o fato é que ela retorna invariavelmente como um dado da
realidade fenomênica, como pode ser mostrado no célebre exemplo da
alucinação ocorrida na infância do Homem dos Lobos.70
Para Lacan, a foraclusão é um rompimento do movimento
intrínseco da dimensão simbólica. O simbólico é o que possibilita
ao sujeito fazer existir um significante em resposta às exigências da
realidade. Assim, a foraclusão pode ser entendida como a não vinda de
um significante que é demandado pelo Outro. E essa não vinda tem
consequências claras para Lacan, leitor de Freud: “o que é recusado na
ordem simbólica ressurge no real” (LACAN, 1985 [1955-1956], p. 22).
A tópica lacaniana do real caracteriza-se, justamente, pela ex-sistência,
ou seja, pela impossibilidade de simbolização.71
70
“Tinha cinco anos; brincava no jardim, perto de minha babá, e cortava com meu
canivete a casca de uma daquelas nogueiras que também desempenham um papel em
meu sonho. De pronto notei com indizível terror que havia cortado o dedo mínimo
da mão (direita ou esquerda?), de forma que estava dependurado somente pela pele.
Não senti nenhuma dor, mas sim uma grande angústia. Não me atrevi a dizer nada
para a aia, distante uns poucos passos; deixei-me cair sobre o banco mais próximo e
permaneci ali sentado, incapaz de dirigir outro olhar ao dedo. Ao fim me tranquilizei,
olhei para o dedo, e então vi que estava complemente intacto” (FREUD, 1998 [1918],
p. 79). Nessa alucinação, é possível identificar a representação da castração que,
repudiada, acaba retornando como dado de uma realidade que se dirige tão somente
ao psicótico.
71
A relação entre a mística e o real é tema do capítulo 7.
116 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

Em termos da dinâmica edipiana, o repúdio à representação


da castração no sujeito psicótico é a foraclusão do Nome-do-Pai. O
significante Nome-do-Pai, como visto, diz respeito a qualquer expressão
simbólica produzida pela mãe ou pelo filho que represente a instância
terceira, paterna, da lei da proibição do incesto. Também chamada de
metáfora paterna, o Nome-do-Pai tem função estruturante, pois funda
o sujeito psíquico como tal ao lhe garantir o acesso à dimensão simbólica
(DOR, 1989). Logo, a foraclusão é a não vinda do significante Nome-
do-Pai no lugar e no momento em que ele é chamado a vir – sempre em
resposta à demanda de qualquer sujeito fora da relação dual imaginária
entre criança e mãe.
O episódio psicótico seria, assim, consequência de um apelo
realizado por um terceiro a um sujeito que não possui a inscrição incons-
ciente do Nome-do-Pai, e que, portanto, não tem condições de responder
com um significante, senão somente por meio do real. De acordo com
Dor (1989), a foraclusão do Nome-do-Pai compromete gravemente o
acesso ao simbólico para a criança e afunda-a numa organização arcaica
em que é cativa da relação imaginária com a mãe. Como consequência, há
uma vacância no campo do simbólico; em torno desse furo é construída
uma nova realidade que substitui aquela anterior ao evento foraclusivo.
Essa nova realidade do psicótico caracteriza-se por ser invasiva,
isolada de outros acontecimentos e insensata. Além disso, ela dirige-se
incontestavelmente apenas ao sujeito psicótico, que é seu único agente.

O caso de Ramakrishna
Kakar (1997c) publicou detalhes da vida precoce do místico
indiano Ramakrishna, a partir dos quais pode-se fazer inferências
sobre a relação entre a psicose e o misticismo. Nascido em 1836, em
família brâmane do povoado de Kamarpukur – Bengala, Ramakrishna
foi o quinto filho de pais devotos muito pobres e com idade bastante
avançada quando de seu nascimento (o pai tinha 60 anos e a mãe, 45).
O garoto adorava pintar quadros e passar o tempo com oleiros. Tinha,
portanto, uma veia artística bastante desenvolvida e seu primeiro êxtase
aparentemente foi evocado por uma forte emoção estética.72

72
Trata-se, segundo Kakar, de um episódio classificável como misticismo da
“natureza”: “Eu estava passando por um caminho estreito entre dois arrozais. Mascando
Capítulo 5 – Mística e estruturas clínicas | 117

A mãe Chandra era muito dedicada ao filho caçula e ficava


ansiosa quando não o tinha ao alcance dos olhos. O pai, Khudiram,
era, segundo Kakar (1997c), um homem doce que nunca repreendeu
o menino, havendo falecido quando este tinha cerca de 8 anos. A
morte do pai provocou em Ramakrishna um efeito de retração e amor
pela solidão, o que, como já mencionado mais de uma vez em outros
casos, poderia estar relacionado à ambivalência e ao drama edipiano.
Além disso, aproximou-se mais da mãe, passando longos períodos
auxiliando-a nas tarefas domésticas e nas orações diárias aos deuses.
Interessou-se igualmente por assuntos espirituais, achegando-se aos
ascetas errantes que pernoitavam em certa casa de peregrinação.
Aos 13 anos seu irmão mais velho partiu para trabalhar em
Calcutá, enquanto o segundo irmão assumia, relutante, a posição de
chefe da família. Segundo Kakar (1997c), no início da adolescência,
Ramakrishna pouco pôde contar com a presença de uma figura
masculina no seio familiar. Assim, quando não estava no povoado
tomando parte da vida religiosa de maneira entusiasmada, encontrava-
se em casa partilhando o ritmo da vida materna e de outras mulheres
que pareciam tê-lo adotado como um dos seus. Ele as ouvia contarem
seus segredos e infortúnios, também tentava entretê-las cantando ou
interpretando cenas de peças populares.
Analisando essas informações em termos da dialética fálica entre
o ser e o ter, pode-se supor que Ramakrishna manteve-se por muito
tempo posicionado como falo de uma mãe bastante protetora e que
houve certa falta de um terceiro personagem mediador nessa relação
dual. Poderia haver, por conseguinte, uma configuração favorável à
foraclusão do Nome-do-Pai.
Na adolescência, Ramakrishna gostava de usar roupas e joias
femininas e, assim, disfarçava-se de mulher em ambientes públicos,
onde passava diante de homens e mulheres, tomava parte em
conversações e ficava bastante orgulhoso do fato de não ser descoberto.

meu arroz, ergui os olhos para o céu. Vi uma grande nuvem negra expandindo-se
rapidamente até cobri-lo inteiramente. Subitamente, da borda da nuvem, uma revoada
de garças brancas como a neve passou sobre minha cabeça. O contraste foi tão bonito
que meu espírito perdeu-se em regiões distantes. Perdi a consciência e caí no chão; o
arroz expelido espalhou-se. Alguém me pegou e levou-me nos braços até em casa. Um
acesso de alegria e de emoção dominou-me... Esta foi a primeira vez que fui tomado
pelo êxtase” (RAMAKRISHNA apud KAKAR, 1997c, p. 113).
118 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

Em sua maturidade, relatava esses episódios a seus discípulos com uma


ponta de orgulho e ocasionalmente ainda demonstrava sua habilidade
de imitar com perfeição os gestos e movimentos femininos.
Também tinha, na adolescência, uma fantasia persistente de
renascer como mulher, uma linda criança-viúva que só aceitaria
como esposo o Deus Krishna. Viúva, a garota viveria numa cabana
na companhia de uma velha senhora, sua guardiã, fazendo trabalhos
domésticos e entoando canções sobre Krishna. À noite, ela choraria
ardentemente pelo Deus, ansiando alimentá-lo com doces. “Krishna
viria em segredo, comeria e iria embora, suas visitas diárias não sendo
do conhecimento de ninguém” (KAKAR, 1997c, p. 115).
Para Kakar (1997c), ele poderia ser diagnosticado como um
transexual secundário – alguém que difere de sua contrapartida primária
por não parecer feminino na origem de qualquer comportamento de
gênero. No entanto, sob a superfície de masculinidade, haveria um
impulso permanente na direção do feminino, manifesto a partir da
adolescência.73
Essa feminilização, que muito lembra a do presidente Schreber,
demarca um gozo sem limites que Lacan (1985 [1955-1956]) denominou
“empuxo-à-mulher” em seu seminário As psicoses. O empuxo-à-mulher
é uma orientação do gozo que pode ocorrer nas psicoses em resposta à
foraclusão do Nome-do-Pai e à ausência de significação fálica. Nesses
casos, tipicamente de paranoia, verifica-se que o sujeito padece de uma
identificação precoce e maciça com a mãe. Nessa orientação feminina
do gozo, verifica-se a prevalência do registro especular, de forma que
o empuxo-à-mulher seria uma tendência da pulsão específica à psicose.
Segundo Leite (2004), a identificação ao desejo da mãe está no
fundamento da psicose: por não poder ser o falo que falta à figura
materna, resta ao psicótico a solução de ser a mulher que falta aos
homens. Ou, como no caso de Schreber, ser a mulher de Deus.
Retomando a vida de Ramakrishna, Kakar (1997c) relata que,
após a adolescência, o seu comportamento foi considerado cada vez
mais bizarro, e a família temia por sua sanidade mental. Ele tinha uma
forte sede espiritual, caracterizada por um desejo intenso de união

73
Kakar (1997c), contudo, também pensa que esse “diagnóstico” é tão duvidoso e
reducionista como definir que o misticismo devocional cristão de mulheres medievais
(que muito lembram o caso de Madeleine) é manifestação de uma sexualidade
patológica.
Capítulo 5 – Mística e estruturas clínicas | 119

à Deusa Mãe. Essa sede oferecia, segundo Kakar, todos os sinais de


uma depressão completa, incluindo agitação corporal, insônia, apetite
reduzido e crises de choro. Seu comportamento parecia bizarro mesmo
àqueles que o conheciam: Ramakrishna mantinha conversações brinca-
lhonas com a estátua da Deusa, tentava pôr comida em sua boca de
pedra e via-a respirar. Jogava-se ao chão e rolava violentamente até
obter uma visão extática da Deusa, quando então mudava totalmente
seu temperamento.
Era, assim, consenso que ele estaria insano. Como “remédio”,
arranjaram-lhe um casamento. Em relação à esposa, ele comportava-se
ora como uma mulher, ora como uma criança (em seus estados extáticos).
“No primeiro caso, marido e mulher eram ambos namorados (sakhis)
da Mãe Divina, ao passo que no segundo caso, a esposa era encarada
como a própria deusa” (KAKAR, 1997c, p. 119).
Segundo Kakar, Ramakrishna alinha-se aos místicos que pensam
ser a sexualidade máscula um obstáculo no caminho da experiência
extática. Das muitas disciplinas místicas que existem na Índia, ele
nunca quis experimentar justamente o tantra – que utiliza o ato sexual
como forma de desenvolvimento espiritual. Seu conselho aos noviços
era evitar completamente o contato com mulheres. Entretanto isso só
valia para os iniciantes, pois uma vez obtido o conhecimento místico, a
segregação sexual tornava-se desnecessária.74
Logo, o misticismo de Ramakrishna lembra, de fato, a psicose
e seu correspondente “empuxo-à-mulher”, tão patentes no caso
do presidente Schreber. Contudo parece haver aí uma diferença
fundamental.
Schreber é literalmente invadido por um Outro absoluto que se
apropria de seu corpo. Nesse sentido, a clínica psicanalítica destaca
uma função no delírio, qual seja, a do reestabelecimento, na medida
em que objetiva barrar, tanto quanto possível, a invasão de fenômenos
psicóticos no corpo – invasão por esse Outro absolutamente gozador.
Freud conclui, em sua análise do caso de Schreber, que “o que nós
consideramos a produção patológica, a formação delirante, é, na

74
Não havia muito a temer depois de certo estágio espiritual: “Depois de atingir
o teto, pode dançar o quanto quiser, mas não enquanto estiver nas escadas”
(RAMAKRISHNA apud KAKAR, 1997c, p. 143).
120 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

realidade, a tentativa de restabelecimento, a reconstrução” (FREUD,


1998 [1911], p. 65).75
Ramakrishna, por outro lado, não padece de qualquer intrusão
da divindade. Pelo contrário, conforme visto acima, seu padecimento
era justamente da separação em relação à Deusa Mãe, de modo que,
ativa e desesperadamente, buscava sua união com ela. A Deusa, pois,
não invade Ramakrishna inadvertidamente, como o Deus de Schreber,
mas apenas porque aquele se prepara ativamente para tal.
Para Kakar (1997c), a suposta insanidade de Ramakrishna foi
apenas uma fase transitória e circunstancial, comumente atravessada
por místicos em diferentes tradições. Convencionou-se denominar tal
estágio da mística de “noite escura da alma”.

A noite escura da alma


Se os psicóticos têm episódios de misticismo, também é verdade
que os místicos reconhecem passar por estados muito semelhantes à
psicose. Na literatura mística, é comum que estes sejam descritos como
a “noite escura da alma”, expressão que intitula um dos mais conhecidos
escritos do frade espanhol São João da Cruz.76
Para o santo espanhol, a noite escura é a última etapa de
purgação necessária para que a alma possa unir-se a Deus por meio
do amor (CROSS, 2000). Essa purgação é descrita como passiva,
porque é efetuada pela própria divindade, e resulta invariavelmente
em aflição, dor e tormentos.77 Desde a obra de São João da Cruz, o
termo tem sido utilizado para descrever a etapa psicologicamente mais

75
Na medida em que há, na psicose, um furo no simbólico (a foraclusão), o delírio
tem justamente a função de tapar, por um recurso intenso ao imaginário, esse buraco
por onde apenas o real responde. O delírio é, desta forma, pura produção de sentido,
conforme declara Jorge (2005b).
76
São João da Cruz (1542-1591) foi um frade carmelita espanhol muito conhecido
por sua cooperação com Santa Teresa D’Ávila na reforma da ordem carmelita, assim
como por suas obras escritas com forte cunho místico.
77
O místico indiano Rajneesh (2002, p. 92) comenta a respeito: “há momentos que
só podem ser chamados de ‘noites escuras da alma’. Tão escuros e tão perigosos, que
parece que vocês chegaram ao último suspiro das suas vidas; é a morte e nada mais.
Essa experiência é um colapso nervoso”. Essa etapa do caminho místico foi descrita
também no capítulo 1, item 1.7.
Capítulo 5 – Mística e estruturas clínicas | 121

difícil no caminho dos místicos, que pode incluir fases de depressão e


experiências semelhantes à psicose.
O místico, nessa fase, deseja unir-se a Deus (no caso do misticismo
teísta) ou ao Nada (no caso da mística da liberação), mas ainda não se
encontra totalmente preparado para uma fusão que implica a dissolução
de seu eu. A noite escura significa, assim, uma espécie de prisão entre
dois mundos – um da matéria e outro do espírito –, tal como explica
Santa Teresa (apud WAPNICK, 1997, p. 140):
Nenhum alívio chegou-lhe [à alma] do Céu, e ela não está
no Céu, e num momento em que não aguarda nenhum alívio
terrestre, e não está na terra tampouco, mas está, por assim
dizer, crucificada entre o Céu e a terra; e sofre muito, pois
nenhuma ajuda lhe chega, quer de um lado, quer do outro.
No relato de Teresa, a terra pode representar o estado de
consciência normal ou comum, em contraposição ao Céu, que
representa a união extática com Deus.
A noite escura não é só característica do misticismo cristão e
ocidental, observe-se o testemunho do místico indiano Rajneesh
(2002, p. 76): “Quando vocês entram pela primeira vez no mundo da
não-mente,78 ele se parece com a loucura – a ‘noite escura da alma’, a
noite louca da alma”. Nesse sentido, o autor relata a necessidade de que
o caminho místico seja trilhado com a orientação de um mestre, sob
pena de ser tomado pela loucura:
E lembrem-se, não há escapatória. Se vocês começarem a
se desviar, simplesmente enlouquecerão. Os sufis chamam
os que se desviam de mastas. Na Índia, eles são conhecidos
como paramahansas, loucos. Vocês não podem voltar porque o
caminho não está mais lá, e não podem ir adiante porque está
tudo escuro. Vocês ficam paralisados. (RAJNEESH, 2002,
p. 76-77, grifo do autor).79
Para a mística Madeleine, paciente de Pierre Janet, as etapas
preparatórias do êxtase passavam pelo sentimento de um vazio sombrio
78
“Não-mente” é um termo originário do zen-budismo, caracterizando um estado
psíquico não perscrutado pelo pensamento conceitual (SUZUKI, 1989).
79
Interessante notar que Freud tinha ciência do perigo da loucura inerente à trilha
mística, conforme seu diálogo com Bruno Goetz sobre o Bhagavad-Gita citado no
capítulo 2, item 2.2.
122 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

– a seca, conforme ela mesma chamava. O ponto de partida desse estado


é o tédio mortal, sem consolo ou conforto, uma espécie de depressão
que a privava até mesmo de sua fé. Ela define a seca: “Um grande vazio
que coisa alguma poderá preencher; se a fé não voltar, eu perderei a
cabeça, ficarei completamente louca” (apud CLÉMENT, 1997, p. 65).
Janet bem tentava confortar Madeleine lembrando-a do amor
que Deus tinha por ela. Mas, na noite escura da alma, o desamparo é
completo e até mesmo Deus abandona o místico. “Não, eu sinto que
ele não me ama mais... Sinto-o qualquer coisa de cruel que não ouso
falar, sinto que eu não o amo mais; ninguém me ama mais porque eu
não amo mais ninguém” (apud CLÉMENT, 1997, p. 66). Clément
comenta que esse delírio teria a função de proteger a mística do vazio.
O vazio, entretanto, cede a um estado de sofrimento ainda maior,
caracterizado por forte agitação psicomotora e agressividade. Nessa
fase, Madeleine tinha delírios e alucinações de caráter paranoico: ela
percebia complôs diversos contra o presidente da República, contra a
bolsa de valores, contra os deputados, entre outros. O erotismo de suas
visões, tratado no item anterior, agora assume um caráter francamente
masoquista: “O que sofro no ânus, no cóccix, nas partes é inimaginável,
me queimam, enfiam em mim grandes objetos em brasa e despejam
raios elétricos sobre as chagas... Que suplício o chicote nas nádegas que
se petrificam” (apud CLÉMENT, 1997, p. 51).
Mas apesar de todos os suplícios que atingem os místicos, a noite
escura é a fase que justamente antecede o êxtase. Destarte, quando chega
o ápice da tortura infernal, as portas do céu não estão distantes. Veja-
se o caso de Madeleine: “É inimaginável como passo prontamente do
estado de sofrimento horrível à embriaguez espiritual... eu experimento
algo do céu ao mesmo tempo em que em parte ainda estou no inferno”
(apud CLÉMENT, 1997, p. 70). À beira de abandonar a noite escura,
ela entrevê a verdade sobre o gozo que só a psicanálise, no futuro, iria
explicitar: “O que é verdade é que ao mesmo tempo eu sofro e gozo...”
(apud CLÉMENT, 1997, p. 70). Segue-se então o êxtase, que lhe dura
entre dois e três dias.
Também para o místico Rajneesh, a experiência do vazio está
relacionada à loucura, mas uma loucura “necessária”, já que é mister
atravessá-la para chegar ao êxtase. Ele explica: “Eu fui simplesmente
lançado dentro de mim mesmo. Era um vazio, e o vazio leva a pessoa à
loucura. No entanto, o vazio é a única porta para Deus. Isso significa
Capítulo 5 – Mística e estruturas clínicas | 123

que só conseguem cruzar a porta aqueles que estão preparados para


enlouquecer, ninguém mais” (RAJNEESH, 2002, p. 78).
Consoante já descrito, também o místico hindu Ramakrishna
passou pelo paroxismo da noite escura, especialmente após sua
adolescência. Ele próprio referiu-se mais tarde a esses episódios como
unmada (loucura). Mas, assim como no caso de outros místicos, o auge
do sofrimento trazia a semente da bem-aventurança.80

Serão os místicos psicóticos?


Para Wapnick (1993), as semelhanças entre o misticismo e a
psicose têm limites, principalmente porque o místico, em geral, prepara-
se longamente para a experiência de suas visões e êxtases, é capaz de
integrá-las a sua personalidade e costuma, após períodos de clausura ou
introspecção, voltar para o mundo social, onde é capaz de se relacionar
positivamente com outros. Em suma: “O místico proporciona o
exemplo do método pelo qual o interior e o exterior podem ser unidos;
o esquizofrênico,81 o resultado trágico de sua separação” (WAPNICK,
1993, p. 149).

80
Sobre essa repentina mudança “do Inferno ao Céu” é deveras ilustrativo o seguinte
relato do místico hindu: “Um dia, eu senti uma angústia insuportável no meu coração
porque não conseguia a visão Dela [...]. Muito aflito pelo pensamento de que eu podia
não ter a visão da Mãe, eu estava bastante inquieto. Pensei que não havia sentido em
viver assim esta vida. Meus olhos caíram repentinamente sobre a espada que estava
no templo da Mãe. Decidi dar um fim em minha vida naquele mesmo instante. Como
um louco, corri e peguei a espada, quando de repente tive uma maravilhosa visão da
Mãe, e caí inconsciente. Eu não soube o que aconteceu no mundo externo – como se
passaram este dia e o seguinte. Porém, no mais profundo da minha alma, fluía uma
corrente intensa de bem-aventurança, nunca experimentada antes... Era como se as
casas, as portas, os templos e todas as outras coisas tivessem se desvanecido juntas;
como se não houvesse mais nada em lugar algum! E o que vi foi um mar de consciência
luminoso e sem limites! Não importa a distância ou a direção, para onde quer que
voltasse os olhos via chegar uma sucessão contínua de ondas fulgurantes, assolando e
bramindo de todas as direções em grande velocidade. Muito rapidamente elas caíram
sobre mim, afundando-me nas profundezas abismais do infinito” (RAMAKRISHNA
apud KAKAR, 1997c, p. 117).
81
Esquizofrenia é um termo psiquiátrico cunhado para caracterizar determinado
tipo de transtorno psicótico. Segundo o DSM-IV-TR (2002), a esquizofrenia tem
ao menos dois dos seguintes sintomas característicos: delírios, alucinações, discurso
desorganizado, comportamento amplamente desorganizado ou catatônico e sintomas
negativos (como o embotamento afetivo, alogia ou abulia). Além disso, deve haver
124 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

No mesmo sentido, para Kakar (1997c) o místico torna-se mestre


da sua loucura e da sua razão, ao passo que o esquizofrênico permanece
delas escravo. O autor entende que a diferença entre uma visão e uma
alucinação tem fronteiras bastante móveis, sendo mais importante seu
significado e conteúdo, e não a sua origem. Assim, as visões ocorrem
no curso de uma experiência religiosa intensa em vez de acontecerem
durante um episódio psicótico. Elas são, para o autor, sonhos de tipo
especial que encontram seu caminho na vida desperta.
No entendimento de Kakar, as visões de Ramakrishna podem
ser classificadas em três tipos: elas vão desde as alucinações em
sentido psiquiátrico, passando pelas visões conscientes até as visões
“inconscientes” ou inefáveis. Cabe detalhá-las abaixo.
As alucinações de Ramakrishna são espontâneas e inoportunas,
mas, para Kakar, elas caracterizam seu reconhecido período de
insanidade (unmada), ou seja, a noite escura da alma, a loucura
necessária. Ramakrishna fala sobre suas visões insanas: “Eu cuspia no
chão quando as via. Mas elas seguiam-me e obcecavam como fantasmas.
No dia seguinte a essas visões, eu tinha geralmente um ataque sério de
diarreia e todos os êxtases saíam pelas tripas” (RAMAKRISHNA apud
KAKAR, 1997c, p. 130).
As visões conscientes de Ramakrishna caracterizam o segundo
tipo. Para Kakar (1997c, p. 131), essas visões são diferentes das
alucinações porque representam simbolicamente um processo psíquico
em curso, “sendo símbolos emprestados da tradição religiosa e cultural
do místico”. É o caso de visões sobre o imaginário cultural do iogue
hindu – como a de kundalini, a serpente enrolada que desperta na base
do ânus e faz seu caminho subindo pelos vários centros energéticos
(os chakras). Mas as visões conscientes também são insights visuais que
podem repousar num idioma histórico-cultural místico universal.
São alguns temas universais das visões místicas: o universo cheio
de centelhas de fogo, a miríade de luzes divinas e a percepção de
consciência em todas as coisas.82

disfunção social/ocupacional e duração mínima contínua de seis meses, entre outros


critérios.
82
Segue um exemplo deste tipo de visão, conforme descrita por Ramakrishna:
“Algumas vezes vejo o mundo encharcado em consciência da mesma maneira que a
terra fica encharcada d’água durante as chuvas” (RAMAKRISHNA apud KAKAR,
1997c, p. 132).
Capítulo 5 – Mística e estruturas clínicas | 125

Por último, há as visões inefáveis, inconscientes que, segundo


Kakar, não podem ser descritas porque o ego observador está ausente.
Ramakrishna confessa: “tão logo começo a pensar nas visões com o
propósito de descrevê-las, a mente foge imediatamente, e fica impossível
falar” (apud KAKAR, 1997c, p. 134). Na literatura mística, esse estado
é frequentemente considerado o ápice da experiência, na medida em
que a união total com a divindade advém – é a unio mystica.
A respeito das visões conscientes e inconscientes, Kakar (1997c,
p. 132) entende que não são estados psicopatológicos: “na ausência de
qualquer afeto doloroso ou ansioso associado [...] eu tenderia a ver sua
base mais numa criatividade, aparentada com a fantasia expandida
de um artista ou de um escritor, do que na patologia”. Assim, para o
autor, o misticismo tem maior relação com um ato criativo, e não seria
por acaso que, na Índia e em outras culturas, a experiência mística é
buscada por meio da arte, como, por exemplo, a música e dança.83
Para Vergorte (2003), a análise recente das diferenças culturais
e religiosas trouxe à cena a apreciação de que relacionar mística e
loucura tem mais fundamentos nos preconceitos dos profissionais da
área psi. Consoante o autor, qualquer análise séria da questão deveria
levar em conta que o misticismo não é patologia, mas a patologia pode
representar uma caricatura do misticismo.
Justamente nessa ótica manifestam-se Clément e Kakar em sua
obra A louca e o santo (1997). Ao comparar o misticismo de Madeleine
e Ramakrishna, eles denunciam que o critério para a distinção entre o
misticismo “verdadeiro” e a loucura seria puramente sócio-histórico.
Ou seja, Ramakrishna poderia ter sido um louco enclausurado se vivesse
na França do século XIX, enquanto Madeleine seria considerada uma
santa na Índia do mesmo período.
Para concluir a questão, é esclarecedora a diferenciação feita por
Pommier (1987) em leitura puramente psicanalítica. Relacionando o
gozo místico ao do poeta e da mulher,84 o autor reconhece haver um ato
comum em todas essas modalidades de gozo – ato responsável pela sua
separação do âmbito da psicose. “Graças a este [ato], o gozo da mulher

83
Ver, nesse sentido, o caso dos dervixes – místicos sufis (da via mística do islamismo)
que buscam o êxtase por meio da dança.
84
Essa relação será detalhada no capítulo 6.
126 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

se distingue daquele despedaçante e puramente passivo da psicose. O


primeiro atua enquanto o segundo é atuado” (p. 69).
Logo, quando a divindade fala ao místico (ou através dele), não
se trata da mesma fala invasiva que se impõe ao psicótico: “A fala que
é aguardada não é, como na loucura, imposta, mas é a fala substancial
que pode advir sobre o fundo de um silêncio longamente preparado”
(POMMIER, 1987, p. 70). Esse silêncio, muitas vezes chamado
de meditação, pode por nós ser considerado passivo ou demasiado
paciente, mas é, de todo modo, um ato preparado.85 Pommier conclui:
“Só a falta de ato diferencia uma mulher ou um poeta da loucura; o ato
os distingue da psicose” (POMMIER, 1987, p. 102).
Além disso, conforme será discutido no capítulo 6, o místico
costuma demandar uma testemunha ou escrever sobre sua experiência.
A testemunha representa o lugar da fala, do escrito, do que circula na
sociedade dos homens, na ordem do falo. Porque se dirige à sociedade
dos homens, o êxtase do místico não é um sistema delirante: não é,
pois, uma psicose.
Finalmente, retomando a feminilização mística, deve-se ter
claro que, em muitos casos, o místico feminiliza a sua alma – e apenas
ela, fato que o distingue do psicótico. Conclui Pommier (1997, p. 74):
“Porque apenas sua alma é mulher diante de Deus, e não seu corpo
ou seu pensamento, o místico não está na psicose. Nisso ele vai se
distinguir de um Schreber”. Essas considerações serão retomadas ao
final do capítulo a seguir.

85
Pommier (1987, p. 69-70) diz a respeito: “a extática segue seu caminho – passivo,
se quisermos – graças a atos que exigem uma longa paciência. Quando Margarida
Maria, amante do Sagrado Coração, escreve: ‘Todo o meu interior é um profundo
silêncio para escutar a voz Daquele a quem amo’, tal fala evoca uma espera passiva, se
nos esquecermos de que ela requer esses atos que são o jejum, a renúncia aos prazeres
da vida, o celibato”.
| Capítulo 6 |

Mística e gozo

6.1 Delimitando o campo do gozo


A relação entre o misticismo e o chamado gozo feminino foi
trabalhada por Lacan (1985 [1972-1973]) em seu vigésimo seminário
– Mais, ainda. Antes de abordar essa questão, cabe, contudo, definir o
campo do gozo em psicanálise e descrever suas principais modalidades.
O conceito psicanalítico de gozo passa ao largo de uma relação
simplista entre o prazer e a satisfação, pois o homem é um ser falante
e, portanto, sua possibilidade de satisfação é sempre mediada pela
linguagem. No âmbito humano, a satisfação e a insatisfação, os prazeres
e desprazeres, estão todos presos na rede de sistemas simbólicos, nos
jogos de concatenação da cadeia significante. Desta forma, o gozo é a
formulação psicanalítica que melhor se presta a entender tais relações,
em detrimento da ideia de prazer regido unicamente pela descarga de
tensões do aparelho psíquico – o princípio do prazer86 formulado por
Freud (CHEMAMA, 1995).
Antes de Lacan, o termo gozo já era utilizado por Freud; mas,
ao contrário do psicanalista francês, que trouxe todo um caráter
conceitual específico ao termo, para o inventor da psicanálise essa era
apenas mais uma palavra da língua. O termo alemão Genuss designa,
assim, o gozo em sentido sexual e também é utilizado no lugar da
palavra Lust, quando denota êxtase, alegria intensa, prazer extremo e
volúpia (VALAS, 2001).
Mas, apesar de não conceituar o gozo, é Freud quem delineia
seu campo ao perceber que há algo para além do princípio de prazer
– ele percebe inúmeras situações na vida humana em que o aumento

86
Com o princípio de prazer, Freud postula que, no seu conjunto, a atividade
psíquica objetiva evitar o desprazer – relacionado ao aumento de tensão ou excitação
– e proporcionar o prazer – que está ligado à redução dessa tensão (LAPLANCHE;
PONTALIS, 2001).
128 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

de tensões pode ser prazeroso. Além disso, tal como demonstrado


na experiência analítica, a dor pode ser sentida como prazer e
repetidamente buscada em fenômenos como as neuroses de guerra,
lembranças penosas, pesadelos e sintomas incapacitantes.87
Isso fica evidente, por exemplo, no conhecido caso clínico do
Homem dos ratos, no momento em que o paciente de Freud descreve um
tipo muito peculiar de tortura: a penetração de ratos no ânus da vítima.
Seu relato foi marcado por tanto horror e resistência que o psicanalista
precisou ajudá-lo a completar. Conta Freud que seu rosto assumiu uma
expressão muito estranha, “e que só posso esclarecer como horror ao seu
prazer, ignorado [unbekennen] por ele mesmo” (FREUD, 1998 [1909], p. 133).
Outra situação são as brincadeiras infantis, sendo paradigmático
o jogo do fort-da, que provoca no neto de Freud, ao mesmo tempo, dor
e prazer – ou melhor, uma jubilação mórbida (FREUD, 1998 [1920]).
Explique-se: ao jogar um carretel alternadamente para longe e para
perto de si, a criança repetia a experiência dolorosa envolvida nas
ausências e retornos da mãe.
Essas elaborações freudianas relacionadas à pulsão de morte são
o ponto de partida de Lacan para definir o gozo, mas isso não é feito
nos primeiros anos de seu ensino. Inicialmente a ênfase lacaniana é
a releitura rigorosa de Freud pautada na máxima “o inconsciente é
estruturado como uma linguagem”, por meio da qual define que tudo é
significante (em termos linguísticos) na experiência analítica. Trata-se
do período da chamada “clínica do significante” (FORBES, 2005), bem
expressa em seus primeiros seminários e escritos como, por exemplo,
Função e campo da palavra e da linguagem em psicanálise, de 1953.
Efetivamente, mais tarde Lacan percebe que nem tudo na
experiência analítica é significante. Com efeito, há o significante, mas
há também o gozo. Isso será levado em conta em novas teorizações. Sua
nova elaboração sobre o gozo ( jouissance), não inspirada no vocabulário
corrente, ou mesmo freudiano, inicia no seminário A ética da psicanálise
(1988 [1959-1960]). Pelo contrário, o sentido do termo é importado do
discurso jurídico e, assim, não se reporta à alegria, mas a algo próximo
do usufruto, é “gozar de”, e não simplesmente “gozar”.

87
Em Mais além do princípio de prazer (1998 [1920]), Freud postula que o masoquismo
imanente a tantas pessoas, a reação terapêutica negativa e o sentimento de culpa
encontrado em tantos neuróticos são indicações inequívocas da presença de uma
pulsão de agressividade ou destruição na vida anímica, a pulsão de morte.
Capítulo 6 – Mística e gozo | 129

Mas se no direito enfatiza-se a vertente objetiva do gozo, como o


gozo de um bem ou um título, na psicanálise enfatiza-se, ao contrário,
o gozo em sua vertente subjetiva, no sentido de saber como manejá-lo
a partir do sujeito (VALAS, 2001).
Fundamentalmente, o gozo será definido, em Lacan, por uma rela-
ção de inclusão-exclusão com o significante. O gozo puro é da ordem do
real e, nesse sentido, não é simbolizável: ele não cessa de não se escrever.
Assim, gozo e significante opõem-se e ao mesmo tempo se
avizinham, o que pode ser exemplificado em um esquema – o toro
reproduzido abaixo (figura 2). No corpo do toro tem-se o conjunto de
representações simbólicas e imaginárias do sujeito (S + I), sendo que no
seu centro encontra-se o gozo mítico: J(A).88 No espaço vazio central
está a Coisa (das Ding), que provisoriamente será referenciada
simplesmente como o real do gozo – suas formulações específicas serão
retomadas adiante.89

Figura 2 – Relação entre o gozo e as representações simbólicas


e imaginárias do sujeito90

Desta forma, o gozo está situado no próprio centro das


representações do sujeito. Como explica Valas (2001), as propriedades
topológicas do toro demonstram porque Lacan expressa que o gozo
tem uma relação “êxtima” com o sujeito: “Este neologismo sublinha
que o gozo é ao mesmo tempo o que é o mais estranho e o mais íntimo
ao sujeito, mas estando fora do significante, isto é, no real” (VALAS,
2001, p. 28).
O gozo é sentido pelo corpo e nesse real ele permanece inefável e
indizível, o que caracteriza a experiência dos místicos, como será visto

88
Essa fórmula indica o gozo do Outro, a partir da expressão francesa jouissance de
l’Autre. Esse conceito será explicado adiante.
89
Ver capítulo 7, item 7.3.
90
Reproduzido de Valas (2001, p. 28).
130 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

no capítulo 7. Entretanto, ele pode ser recortado ou capturado pela


linguagem.
Na verdade, o chamado gozo originário ou mítico, o gozo do
corpo propriamente dito (escrito por Lacan na fórmula J(A)), deverá
ser mortificado pelo significante para que o sujeito possa advir. Trata-
se aqui da própria lei de interdição do incesto, consubstancial às leis
da linguagem: ela define que o real do gozo, presentificado pela mãe
como primeiro objeto do desejo, deverá faltar para que o sujeito surja
na ordem simbólica como desejante. Nas palavras de Valas (2001):
O gozo é proibido àquele que fala como tal, porque é a própria
condição de possibilidade da palavra. Daí resulta que o gozo só
pode ser dito entre as linhas (inter-dito) pelo sujeito da Lei, isto
é, pelo sujeito dividido entre o desejo que vem do Outro e o
gozo que está na Coisa. (VALAS, 2001, p. 35).
Essa operação é definida por Lacan como a metáfora paterna,
ou seja, a substituição do desejo da mãe (gozoso) pelo Nome-do-Pai
(advento da ordem simbólica). Nela é subjetivado o gozo mítico do
corpo como pura presença animal, ou, dito de outra forma, o corpo em
sua pulsação de gozo é recortado pelo significante. E é assim, interdito,
que o gozo poderá se manifestar no sujeito.
Lacan definiu, ao longo de sua teorização, ao menos duas
formas de gozar, de acordo com as diferentes formas de cifragem pelo
significante: o gozo fálico e o gozo feminino. Acrescenta-se a estas um
gozo que tem caráter originário ou mítico – o gozo do corpo próprio,
ou gozo do Outro.91
Valas (2001, p. 63) propõe, inclusive, uma ordenação lógica (e não
temporal) entre o gozo do Outro e o gozo fálico: “Há, primeiro, o gozo
do Outro (a Coisa, o corpo próprio) antes da Lei, depois a Lei, e enfim
o gozo fálico depois da Lei, resultante da cifragem do gozo corporal
pelo significante”.
Assim, em termos lógicos e não temporais, há primeiro o gozo
do Outro (J(A)), que representa o gozo mítico do próprio corpo. Após
a introdução da lei do significante (S1), abre-se acesso ao sujeito para o

91
Não parece haver um consenso nos comentadores da obra lacaniana sobre a
totalidade das formas de gozo definidas pelo mestre francês. Por simplicidade,
optou-se aqui por delimitar apenas as duas principais modalidades do gozo: fálico e
suplementar, acrescido do gozo mítico de origem, aquele do corpo próprio (J(A)).
Capítulo 6 – Mística e gozo | 131

gozo fálico, que resulta do recorte pelo significante. Por fim, há o gozo
definido por Lacan (1985 [1972-1973]) no seminário 20, Mais ainda,
que indica uma jouissance precisamente feminina com seu caráter
enigmático, pois nunca foi tomada pela linguagem. Cabe, pois, melhor
definir cada uma dessas modalidades, ainda que de forma sintética.

6.2 O gozo do Outro


O gozo do Outro é o gozo do próprio corpo. Não se trata
aqui do Outro enquanto tesouro dos significantes, lugar da palavra
e da linguagem, como frequentemente referido na teoria lacaniana.
Abrange a alteridade radical do corpo real, que se distingue do corpo
simbólico e imaginário. Assim, o gozo do Outro é o gozo do corpo em
sua pulsação animal.
Esse gozo tem um caráter originário ou mítico para Lacan, pois
não se tem acesso direto a ele – é pela linguagem que o sujeito advém e
constrói para si o mito de um gozo não mediado, puramente animal. O
gozo só pode ser sentido pelo corpo e, caso o sujeito pudesse ter acesso
ao mesmo, ele se aboliria. “Em suma, pode-se dizer que só há gozo do
corpo, só o corpo pode gozar, e que um corpo, aliás, é feito para gozar”
(VALAS, 2001, p. 31).
O gozo do Outro é mítico porque o único gozo acessível ao
sujeito é um gozo de borda, fragmentado pelo significante e assim
refugiado nas zonas erógenas – o gozo fálico. Este é apenas um resto do
gozo corporal, que deixa o sujeito “em uma insatisfação fundamental,
e o desejo insistirá para encontrar o gozo do Outro, idealizado porque
perdido desde sempre e para sempre” (VALAS, 2001, p. 44).
Impossível, o gozo do Outro surge a partir da incidência do
significante sobre o sujeito e não antes dele, como um mito de origem,
uma idealização de completude ilimitada. Consoante abordado no
capítulo 4 (item 4.5), essa idealização fundamenta mitos como o da
queda do paraíso, e é, portanto, responsável pela nostalgia mística de
fusão com o Absoluto.
É a lei de interdição do incesto (consubstancial às leis da lingua-
gem) que incide sobre esse gozo, mortificando-o, para produzir um
sujeito. Para este resta o acesso a outra modalidade do gozar, definida
como fálica.
132 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

6.3 O gozo fálico


O comentário a respeito do gozo fálico convoca esclarecimentos
introdutórios sobre a questão do falo em psicanálise: aquilo que a
criança percebe como atributo possuído por alguns e ausente em
outros não é o pênis, mas a representação psíquica deste. Destarte,
para a psicanálise, o falo não é o pênis, mas a sua representação. Tal
representação funciona como elemento organizador da sexualidade
humana, assumindo uma forma imaginária e outra simbólica.
O falo imaginário é uma representação psíquica inconsciente,
uma “entidade imaginária criada pela boa forma de um órgão pregnante,
pelo intenso amor narcísico que a criança deposita nele e pela extrema
inquietação de vê-lo desaparecer” (NASIO, 2001, p. 34). É esse falo
que, no desfiladeiro do complexo de castração, o menino fantasia poder
perder, enquanto a menina confabula já haver perdido.
Todavia, a grande inovação lacaniana na conceituação do
falo remete a sua forma simbólica: ele é um significante em posição
de exceção em relação aos outros significantes, mas que rege toda a
ordem simbólica. Esse significante fálico é recalcado no inconsciente,
“correlato ao recalcado primordial que nunca é suspenso” (VALAS,
2001, p. 54). Nessa posição velada, o falo é o próprio significante do
desejo humano, pois se torna a condição para que objetos heterogêneos
na vida sejam objetos equivalentes na ordem do desejo humano
(NASIO, 2001).
Conforme elucida Nasio (2001), o falo exclui-se da série signifi-
cante e constitui seu referencial invariável porque persiste como vestígio
da castração simbólica. Ao permanecer como condição de toda signifi-
cação, o falo simbólico vai lembrar que todo desejo humano é sexual –
não no sentido de um desejo genital, mas de ser tão insatisfeito quanto
o desejo incestuoso que foi necessário renunciar. “Dizer que o falo é
o significante do desejo equivale a dizer que todo desejo é sexual e
que todo desejo, em última instância, é insatisfeito” (NASIO, 2001,
p. 36). O desejo é insatisfeito porque as satisfações humanas são sempre
insuficientes quando referenciadas ao mito do gozo incestuoso.
As elaborações lacanianas sobre o gozo fálico são encontradas,
em especial, no texto Subversão do sujeito e dialética do desejo no
inconsciente freudiano (1998 [1966]) e no seminário A transferência (1992
[1960-1961]). No primeiro desses textos, Lacan acrescenta que o falo
Capítulo 6 – Mística e gozo | 133

simbólico é o significante do gozo (Φ phi maiúsculo): significante de


um gozo perdido e impossível, que apenas poderia ser atribuído ao pai
da horda primeva do mito freudiano de Totem e tabu (1998 [1913]).
Já se afirmou aqui que o gozo fálico surge da cifragem
“linguageira” do gozo corporal. “O significante é causa material do
gozo, pois o corpo, por ser colonizado pelo significante, se torna
substância gozante” (VALAS, 2001, p. 64). O gozo corporal (gozo do
Outro) é proibido pelo significante para o sujeito falante, mas é pela
própria fala que o gozo, agora já fálico, pode dizer-se nos intervalos do
significante, na fala e no discurso.
Assim, o gozo fálico “é aquele que a castração [simbólica] deixa
ao ser falante” (SOLER, 2005, p. 36). É um gozo mortificado, “desnatu-
ralizado”, que se manifesta de forma parasitária, pois se acresce ao do
corpo. É o gozo de borda, marcado pelo significante e manifesto nas zonas
erógenas. Ele se aloja de maneira muito especial no pênis e no clitóris,
por motivos “que permanecem muito enigmáticos, que nem mesmo
a contribuição da neurofisiologia permite esclarecer” (VALAS, 2001,
p. 60). Soler (2005) comenta que o paradigma do gozo fálico, no campo
do erotismo, é o gozo masturbatório do órgão, que no homem se desloca
até a relação sexual e na mulher tem seu equivalente no gozo clitoridiano.
No homem, o gozo localizado no nível do pênis pode ser
isolado e contado, de forma que assume um valor bastante destacado.
A experiência do orgasmo concentra-se na estimulação desse órgão, e
sua intensidade afigura-se de difícil integração para o sujeito. É quase
indiscernível o gozo fálico do gozo peniano, pois eles se superpõem.
Na mulher, por seu turno, o gozo fálico vai se localizar no órgão
clitoridiano. Entretanto, a mulher também tem acesso a outra forma de
gozo, definida por Lacan como suplementar. Esse acesso é, a princípio,
vedado ao homem, pois se encontra fechado na modalidade fálica de
gozar. Aponta Valas (2001) que esse gozo suplementar feminino92 não
está ligado ao suposto gozo vaginal, que não existe.
Não obstante, Soler (2005) destaca que, no campo do erotismo,
o gozo fálico tem inúmeras outras formas de manifestação, fazendo-
se presente “desde a dominação sobre um homem até a seriação de
órgãos anônimos em nossas colecionadoras modernas” (2005, p. 37).

92
O gozo feminino e suas relações com o misticismo serão abordados em detalhes a
seguir.
134 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

Entretanto, ele também vai muito além do erotismo, sendo subjacente


às realizações do sujeito na realidade e constituindo a substância de
todas as satisfações capitalizáveis.
Como é estritamente ligado à linguagem, esse gozo caracteriza-
se igualmente pela própria satisfação verbal, como uma fruição do
ato de falar, do “blá-blá-blá”. Segundo Valas (2001), o gozo fálico
do deslizamento significante se produz inclusive nas formações do
inconsciente: na representação significante do desejo feita nos sonhos;
no prazer do chiste, que se liga ao seu lado formal; nos tropeços da fala
– que são os atos falhos e os lapsos; e, finalmente, nos sintomas, em cujo
gozo o sujeito permanece fixado.
Segundo Soler (2005), o gozo fálico é correlato de uma “falta-
em-gozar”. Por ser parcial, ele suscita no sujeito um protesto – “não é
isso que eu queria” –, como explica o próprio Lacan: “Não é isso – aí
está o grito por onde se distingue o gozo obtido do gozo esperado”
(LACAN, 1985 [1972-1973], p. 152).
Porque o gozo falta, é que o sujeito cria a miragem de um deleite
absoluto (o gozo do Outro), o qual poderia, em termos psicanalíticos,
ser atribuído ao pai da horda primeva, descrito por Freud em Totem
e tabu (1998 [1913]). E a assunção da existência desse pai acima da
castração simbólica é destacada por Lacan como uma das condições da
sexuação masculina (ver detalhes a seguir, no item 6.3).
No campo do misticismo, pode-se pensar que a falta-em-gozar é a
própria pré-condição da escolha da senda para o êxtase. Como qualquer
ser humano, o místico é um ser de linguagem inserido inevitavelmente
no gozo fálico. Conforme todo sujeito, o místico depara-se com o fato
de que o desejo, qualquer que seja, jamais satisfaz senão parcialmente;
de que o gozo obtido nunca é o gozo esperado.
A despeito disso, em algum momento da vida, o místico recebe o
vislumbre fugidio de uma fruição muito mais intensa que o gozo fálico
comum.93 A comparação entre ambos será inevitável, e o místico, via de
regra, vai tentar induzir a repetição da primeira por meio de técnicas
diversas. Será o caso do gozo propriamente místico, que é definido por
Lacan e abordado adiante.

93
A situação pode ser lida à luz da primeira fase da mística definida por Underhill
(capítulo 1, item 1.7) – o “Despertar do Eu”.
Capítulo 6 – Mística e gozo | 135

6.4 A sexuação masculina e feminina


O gozo especificamente feminino é introduzido por Lacan em
seu vigésimo seminário, Mais, ainda (1985 [1972-1973]), juntamente com
as chamadas fórmulas da sexuação: matemas94 que traduzem as posições
subjetivas masculina e feminina, reproduzidos abaixo (figura 3).

Figura 3 – As fórmulas lacanianas da sexuação


Fonte: Lacan (1985 [1972-1973], p. 105)

Em linhas gerais, as fórmulas da sexuação diferenciam as


modalidades masculina e feminina de gozo da seguinte maneira. O
gozo masculino fica totalmente inserido no registro da função fálica,
estando limitado por ela e sendo inteiramente regido pela lei do
significante. Já do lado feminino, o gozo é dual, “por um lado fálico e
por outro louco e enigmático, isto é, ‘não-todo fálico’” (VALAS, 2001,
p. 82). Trata-se da modalidade de jouissance exclusivamente feminina,
“mais-além do falo”, a qual não complementa o gozo masculino – ao
contrário, delimita um gozo suplementar.
A implicação conceitual das fórmulas da sexuação é que,
segundo Lacan, a masculinidade e a feminilidade correspondem a
tipos diferentes de relações com a ordem simbólica, “diferentes formas
de ser dividido pela linguagem” (FINK, 1998, p. 133). É fundamental
demarcar, também, que as fórmulas da sexuação não têm qualquer
adequação ou correspondência com sexos biológicos. Por esse motivo
a sexuação masculina ou feminina, em psicanálise, pode ser atribuída
94
Os matemas lacanianos são conjuntos de escritas com aspecto algébrico,
elaborados a fim de explicar conceitos-chave da teoria psicanalítica.
136 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

indiferentemente a seres do sexo anatômico masculino ou feminino.


Consoante Valas, “a escolha da identidade sexual resulta de uma
‘insondável decisão do ser’, segundo Lacan, e se faz independentemente
do sexo anatômico. É por isso que o sujeito pode posicionar-se seja do
lado do homem, seja do lado da mulher” (VALAS, 2001, p. 81).
Soler (2005) entende não haver essência do masculino e do
feminino, e assim a anatomia não seria o destino. Logo, não se está
na função fálica por ser anatomicamente homem. Devemos inverter o
raciocínio: se um sujeito situar-se todo na função fálica é que podemos
chamá-lo de homem. Da mesma forma, quem se alinha do lado “não-
todo” pode ser chamado de mulher, independentemente da anatomia.
Existe, pois, escolha para ambos os sexos. Não obstante, se a anatomia
não é destino, ela no mínimo “aconselha” essa escolha, como diz Soler,
porque o pênis dá sua representação ao significante fálico e, deste
modo, já se chama um ser humano de menino ou menina antes de
qualquer posição do sujeito.
Tal como aparecem na figura 3, as fórmulas da sexuação também
demonstram, graficamente, que os gozos masculino e feminino não
se entrecruzam (as setas da linha inferior não se encontram). Disso
se entrevê um dos sentidos do aforismo de Lacan: “Não há relação
sexual”, ou seja, não há relação de complementaridade entre os sexos. A
ilusão de que ela exista é o que chamamos de amor.
Por esse mesmo motivo o mestre francês qualifica o gozo
feminino de suplementar: “Vocês notarão que eu disse suplementar. Se
estivesse dito complementar, aonde é que estaríamos! Recairíamos no
todo” (LACAN, 1985 [1972-1973], p. 99). O “todo” é o gozo absoluto
que não existe, pois o gozo sempre falta aos seres cortados pela
linguagem. Logo, no ato sexual entre homem e mulher, pode-se dizer
que um gozo está suspenso ao do outro, mas isso não implica nenhuma
reciprocidade. Não há medida comum entre a jouissance do homem e da
mulher, sendo, desta forma, “do mal-entendido sobre o seu gozo que
pode nascer uma criança” (VALAS, 2001, p. 88).

A sexuação masculina
Far-se-á uma explanação dessas fórmulas principalmente a partir
da interpretação sugerida por Fink (1998). Na figura 3, observa-se que
elas se distribuem em uma tabela com duas linhas e duas colunas. Lacan
Capítulo 6 – Mística e gozo | 137

explica que qualquer ser falante se define de um lado ou de outro da


tabela. Em um primeiro momento, será analisada sua linha superior,
que contém duas fórmulas específicas em cada coluna – as da esquerda
representando os homens e as da direita, as mulheres.
As fórmulas devem ser lidas de baixo para cima. Do lado
masculino, a fórmula inferior, x Φx, denota “que é pela função fálica
que o homem como todo toma inscrição” (LACAN, 1985 [1972-1973],
p. 107). Segundo Fink (1998), x significa o todo de “x” – qualquer
sujeito masculino –, e Φx significa que a função fálica (Φ) 95 é aplicável
àquele sujeito ou parte dele.
Em seu conjunto, essa fórmula define que o gozo masculino é
completamente limitado pela função fálica, incluindo aí o próprio gozo
sexual: “O gozo dito sexual, no macho, é inteiramente definido pelo
gozo fálico, que comporta a sua própria limitação, ligada à incidência da
castração, que torna impossível ao sujeito o gozo do Outro” (VALAS,
2001, p. 87).
Malgrado existe uma exceção ou limite à regra: um “x” para o
qual toda a função fálica (Φ) é negada. Trata-se da fórmula da linha
superior, x , exprimindo que existe algum sujeito ( x) para o qual
a função fálica é negada ou foracluída ( ).
Logo, se o homem como um todo pode ser encaixado na função
fálica, é justamente porque existe uma exceção lógica que o delimita
ao demarcar uma fronteira em seu conjunto. Compreender esse ponto
implica lembrar que, para Lacan, um significante só toma significado
na relação com outro significante. Logo o “preto” só tem um sentido
delimitado na medida em que existe o “branco” e assim por diante.
Em termos lógicos, Fink esclarece que “toda declaração
universal está baseada na ex-sistência de uma exceção que confirma a
regra” (FINK, 1998, p. 137). Assim, a sexuação masculina toma forma
a partir dessa exceção que é o pai. “Aí está o que chamamos função do
pai” (LACAN, 1985 [1972-1973], p. 107). Não qualquer pai, mas o pai
originário da horda primeva, descrito por Freud em Totem e tabu. Esse
pai terrível que controla todas as mulheres da horda nunca sucumbiu à
castração simbólica, sendo ele sua própria lei.

95
“Φ, nós o designamos com esse Falo, tal como eu o preciso por ser o significante
que não tem significado, aquele que se suporta, no homem, pelo gozo fálico. O
que é isto? – senão o que a importância da masturbação em nossa prática sublinha
suficientemente, o gozo do idiota” (LACAN, 1985 [1972-1973], p. 109).
138 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

Segundo Fink (1998), deve-se assumir que essa exceção consti-


tuída pelo pai originário ex-siste. Em uma palavra, está fora da
ordem simbólica, na medida em que a barra sobre a função fálica ( )
implica foraclusão, isto é, exclusão do registro do simbólico.
O fato de que a sexuação masculina se define simultaneamente
pela completa castração simbólica e por uma instância que nega essa
castração demonstra que o desejo incestuoso permanece para sempre
no inconsciente do homem. O homem se define por uma contradição,
é totalmente castrado na mesma medida em que existe um ideal de não
castração. “Cada homem, apesar da castração [...], continua a ter sonhos
incestuosos nos quais concede a si mesmo os privilégios do pai imaginário
que encontra prazer e desconhece limites” (FINK, 1998, p. 139).
Seguindo com a análise da sexuação masculina, a linha inferior
da figura 3 demonstra as relações (indicadas pelas setas) desta com a
sexuação feminina a partir de alguns matemas. Do lado masculino,
tem-se o sujeito barrado ( ), isto é, sujeito barrado pela ordem sim-
bólica, que se relaciona com o objeto a – este posicionado na coluna
feminina. Isso significa que o homem não se relaciona com a “mulher
em si”, não goza do corpo de uma mulher, o que, segundo Lacan (1985
[1972-1973]), seria possibilidade exclusiva do pai mítico não castrado.
O homem, sempre castrado, só pode relacionar-se com o objeto a, ou
melhor, com a fantasia. “É o homem [...] que aborda a mulher, que pode
crer que a aborda [...] Só que, o que ele aborda, é a causa de seu desejo,
que eu designei pelo objeto a. Aí está o ato de amor” (LACAN, 1985
[1972-1973], p. 98).

A sexuação feminina
A sexuação feminina, por sua vez, dá-se de maneira bastante
diversa, conforme descrita nas duas fórmulas da segunda coluna (linha
superior da figura 3). A fórmula inferior – – manifesta que
nem tudo em uma mulher está subordinado à função fálica: o primeiro
argumento ( ) circunscreve a negação de que a totalidade de um
sujeito feminino qualquer esteja subordinada à castração simbólica
representada no segundo argumento (Φx). Essa fórmula bem demonstra
uma das razões por que Lacan vai insistentemente chamar a mulher de
“não-toda” (pas-tout) – ela não está inteiramente sob o domínio do falo.
Capítulo 6 – Mística e gozo | 139

Logo ser “não-toda” não designa que a mulher seja menos “completa”
que o homem: “todo” ou “não-todo” são atributos da relação do sujeito
com a função fálica.
Já a fórmula feminina superior, , exprime que não existe
uma mulher totalmente insubordinada à função fálica. Esclareça-se: a
fórmula demarca não existir um “x” ( ) tal que a função fálica seja,
por ele, completamente negada ( ). Até porque, se tal sujeito existisse,
isso denotaria a foraclusão, ou seja, haveria identidade entre a sexuação
feminina e a psicose.
Tomando as duas fórmulas femininas em conjunto, ter-se-á que a
mulher não é toda subordinada à função fálica, mas, ao mesmo tempo,
está determinada pelo falo. Ou seja, a ordem fálica ainda é a regra, de
forma que o âmbito “além do falo” permanece uma possibilidade, não
uma necessidade. “Não é porque ela é não-toda na função fálica que
ela deixe de estar nela de todo. Ela não está lá não de todo. Ela está lá à
toda. Mas há algo a mais” (LACAN, 1985 [1972-1973], p. 100).
Esse “algo a mais” é o que estruturalmente define a sexuação
feminina. Ele representa a abertura para uma modalidade outra de gozo
(gozo Outro), suplementar ao gozo fálico no qual o homem encontra-
se fechado. Explica Valas (2001, p. 88):
O gozo fálico, do qual ela não é privada, constitui o limiar, a
porta de acesso para o seu outro gozo – ao contrário do homem,
para quem o gozo todo fálico é fechamento, obstáculo a que ele
possa gozar de outra forma com uma mulher, pois aquilo de que
ele goza é o gozo do órgão.
A assunção de que a mulher é “não-toda” no registro fálico
explica em parte o conhecido aforismo lacaniano: “A mulher não existe”,
condensado no matema . A mulher, enquanto categoria, não existe,
porque não há significante da identidade feminina, ao contrário da
masculina. Dito de outra forma, para que a mulher seja um sujeito, para
que tenha um inconsciente, ela deve estar sujeita à castração simbólica
que, entretanto, é função que define o homem.96 Assim, no registro
do gozo fálico não há mulher propriamente dita, de forma que ela só
se define pela posição dual. Mas essa posição a retira da exclusividade

96
“[...] a querida mulher, não é senão de lá onde ela é toda, quer dizer, lá de onde
o homem a vê, não é senão de lá que a querida mulher pode ter um inconsciente”
(LACAN, 1985 [1972-1973], p. 133).
140 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

do registro simbólico, porque o gozo suplementar (feminino) escapa à


castração. Nesse encadeamento lógico resulta que a mulher não existe
no registro simbólico, não há significante para ela – ela ex-siste. Define
Lacan: “Não há A mulher, artigo definido para designar o universal.
Não há A mulher pois – já arrisquei o termo, e por que olharia eu
para isso duas vezes? – por sua essência ela não é toda” (LACAN, 1985
[1972-1973], p. 98).
Nas fórmulas da sexuação, a dualidade do gozo da mulher é
expressa pelas duas setas que saem do matema que a representa ( ) na
linha inferior, coluna direita. A seta inferior exprime sua relação com
o campo masculino, na medida em que a mulher vai buscar no homem
o significante fálico (Φ). “Uma mulher não pode gozar sexualmente
do corpo do homem pois, para ela, ele se reduz ao objeto fálico [...]”
(VALAS, 2001, p. 88). Uma mulher não pode gozar diretamente
do corpo de um homem, assim como um homem não pode gozar
diretamente do corpo de uma mulher. Logo, também para ela, o
corpo do outro sexo se reduz ao objeto a,97 ou seja, ela goza do homem
fantasisticamente, pelo falo que ele lhe empresta sob a forma do órgão
peniano (VALAS, 2001).
Já a seta superior demonstra essa segunda possibilidade de gozo
que ao homem é vedada. É o caso, como demonstra o grafo, de um
gozo localizado no próprio lado mulher. O matema para o qual aponta
essa seta, , é o significante da falta no Outro. Em Mais, ainda, Lacan
associa o ao gozo exclusivamente feminino: “Se com esse eu
não designo outra coisa senão o gozo da mulher, é certamente porque é
ali que eu aponto que Deus ainda não fez sua retirada” (LACAN, 1985
[1972-1973], p. 112-113). Cabe aqui um curto esclarecimento sobre esse
matema.
Segundo Jorge (2005b), o é o significante que indica
a incompletude do Outro, ou melhor, o limite interno da ordem
simbólica. Logo, o gozo feminino articula-se, para Lacan, com esse
limite.98 Esclareça-se: o Outro (A) é o tesouro dos significantes, e o

97
Para Valas (2001, p. 90), uma mulher não goza do corpo de um homem, “pois esse
corpo se reduz também, para ela, ao objeto a”.
98
Explica Lacan: “Como conceber que o Outro possa ser em algum lugar aquilo
em relação a quê uma metade [...] dos seres falantes se refere? É, entretanto, o que
está escrito lá no quadro com aquela flecha partindo do . Esse não se pode dizer.
Capítulo 6 – Mística e gozo | 141

traço sobre ele demonstra não haver possibilidade de completar o


campo infinito dos significantes, pois há sempre possibilidade de criar
novos termos (JORGE, 2005b).
Mas, além disso, o Outro é faltoso, incompleto, porque os
significantes não têm identidade definitiva, são sempre pura alteridade
– eles só ganham significado na relação móvel com outros significantes.
Nisso se insere o aforismo lacaniano “não há Outro do Outro” porque
não se pode encontrar um significado último para a linguagem – ela será
sempre diferença. Explica Lacan (1985, p. 109): “O Outro, esse lugar
onde vem se inscrever tudo que se pode articular de significante, é, em
seu fundamento, radicalmente Outro. É por isso que esse significante,
com esse parêntese aberto, marca o Outro como barrado – ”.
Também Soler (2005) comenta que o Outro, como lugar da fala,
é sempre hiante, diferença absoluta, o que pode ser entendido como a
impossibilidade de um saber absoluto, ou ainda, de que há um furo no
Outro e um limite interno na ordem simbólica. Já para Valas, o
representa “o gozo foracluído do lugar do Outro e que retorna para o
real, especialmente no corpo próprio” (VALAS, 2001, p. 90).
Se mulher vai justamente representar – o limite do Simbó-
lico – isso significa que nada se pode dizer dela, ou, ao contrário, que
qualquer coisa se pode dizer, mas nunca algo que fundamente uma
definição universal. Por conseguinte, “a linha oblíqua que barra o A
de A mulher que ‘não existe’ seria, portanto, homóloga da que barra o
Outro (do mesmo modo que o sujeito, aliás)” (SOLER, 2005, p. 227).

6.5 O gozo feminino


Como já visto, define-se o gozo exclusivo da mulher como
suplementar e além do falo. Ele “está fora da linguagem, fora do
simbólico” (VALAS, 1998, p. 88). E não se trata aqui do suposto gozo
vaginal, até porque a vagina é fisiologicamente um órgão insensível.
Deduz-se que o gozo feminino está fora do simbólico porque a mulher
nada sabe dizer sobre ele, a não ser que o experimenta. Nas palavras de
Lacan (1985 [1972-1973], p. 100):

Nada se pode dizer da mulher. A mulher tem relação com o , e já é nisso que
ela se duplica, que ela não é toda, pois, por outro lado, ela pode ter relação com Φ”
(LACAN, 1985 [1972-1973], p. 109).
142 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

Há um gozo dela, desse ela que não existe e não significa nada.
Há um gozo dela sobre o qual talvez ela mesma não saiba nada
a não ser que o experimenta – isso ela sabe. Ela sabe disso,
certamente, quando isso acontece. Isso não acontece a elas todas.
A mulher tem, em suma, um gozo que experimenta, mas do
qual nada sabe. Lacan menciona ainda que isso não acontece a todas
as mulheres, já que tal gozo permanece sempre uma possibilidade, não
uma necessidade. A pergunta crucial que surge neste ponto é como
saber a respeito desse gozo se ele está fora da linguagem. Por mais de
uma vez Lacan comenta, não sem ironia, o fato de que as psicanalistas
mulheres pouco conseguiram elucidar sobre o tema.
Nossos colegas, as damas analistas, sobre a sexualidade feminina, elas nos
dizem algo, mas... não-tudo. É absolutamente contundente. Elas não
fizeram avançar de um dedo a questão da sexualidade feminina.
Deve haver uma razão interna para isto, ligada à estrutura do
aparelho do gozo. (LACAN, 1985 [1972-1973], p. 79).
Ora, se nem mesmo as mulheres analistas conseguem esclarecer
sobre o “continente negro”,99 é porque se trata de uma impossibilidade
estrutural específica de seu gozo.100
O tema do excesso e da inefabilidade do gozo feminino pode ser
encontrado no clássico mito grego de Tirésias, personagem tão rico em
significados que aparece em várias tragédias gregas e é retomado na

99
Em A questão da análise leiga, Freud (1998 [1926]) afirma que a vida sexual das
mulheres adultas é um “continente negro” para a psicologia. Segundo Soler (2005,
p. 26), Freud definiu a mulher unicamente por sua parceria com o homem, pois a
feminilidade derivaria de seu “ser castrada”: “mulher é aquela cuja falta fálica a incita
a se voltar para o amor de um homem. [...] Em resumo: ao se descobrir privada de um
pênis, a menina torna-se mulher quando espera o falo – ou seja, o pênis simbolizado
– daquele que o tem”. Para a autora, há duas etapas nas elaborações lacanianas sobre
a questão: a primeira é mais freudiana e aparece nos textos A significação do falo
(1966) e Diretrizes para um Congresso sobre a sexualidade feminina (1964). A segunda,
mais inovadora, surge em O aturdito (1973) e no seminário Mais, ainda (1972-1973),
justamente porque Lacan reduz o Édipo à lógica da castração simbólica e acrescenta
que essa lógica não regula todo o campo do gozo, pois existe (ou melhor, ex-siste) um
gozo fora do simbólico.
100
Em outro ponto de Mais, ainda, Lacan volta a falar dessa demanda frustrada: “O
que dá alguma chance ao que avanço, isto é, que, desse gozo, a mulher nada sabe, é
que há tempos que lhes suplicamos, que lhes suplicamos de joelhos – eu falava da
última vez das psicanalistas mulheres – que tentem nos dizer, pois bem, nem uma
palavra! Nunca se pôde tirar nada” (LACAN, 1985 [1972-1973], p. 101).
Capítulo 6 – Mística e gozo | 143

literatura pós-clássica.101 As lendas não coincidem em todos os detalhes,


mas Tirésias teria sido um sacerdote de Zeus – o deus grego supremo
– que, certa vez, quando orava sobre o monte Citerão, encontrou um
casal de cobras venenosas copulando e decidiu matar a fêmea. Hera,
esposa de Zeus, não teria gostado disso e, por punição, transformou
Tirésias em mulher. Em algumas versões do mito, ele tornou-se
então sacerdoce de Hera, tendo se casado e tido filhos; em outras, foi
uma prostituta famosa. Importa destacar que, sete anos depois, indo
orar sobre o mesmo monte, Tirésias encontrou outro casal de cobras
venenosas copulando. Dessa vez matou o macho e se converteu, de
volta, em homem.
Segundo a lenda, Tirésias foi mais tarde consultado por Hera
e Zeus para resolver uma discussão matrimonial. Perguntaram-lhe
quem, afinal, encontra no amor mais prazer: o homem ou a mulher?
Interessava a Hera esconder o segredo de seu sexo e por isso apostava
no prazer do homem. Tirésias respondeu que o prazer feminino é
maior em uma proporção de dez para um. Hera ficou furiosa com a
resposta e, como punição, cegou-o. Zeus, em compensação, deu-lhe
o dom da previsão. Mais tarde, como oráculo em Tebas, ele predisse a
sorte que estava reservada a Édipo.
Pommier (1987, p. 39) questiona-se por que Hera foi tão zelosa
desse segredo, por que não gostou da resposta de Tirésias se, afinal,
ele confirmou que o gozo feminino triunfa no campo do prazer: “Sem
dúvida, há uma espécie de segredo, de véu lançado sobre o orgasmo
feminino, como se sua realização estivesse ligada à ausência de palavras
que o definissem”. Para o autor, a cólera de Hera estaria relacionada
com a comparação feita por Tirésias, na medida em que isto privou o
gozo feminino de uma diferença irredutível. “O gozo feminino não está
situado num registro em que possa ser comparado ao do homem” (p. 39).
Para Valas (2001, p. 88), se um homem pode ter o testemunho
desse gozo, ele é experimentado com todo o corpo: “Uma coisa é certa,
a mulher encontra o seu gozo no ‘verdadeiro’ orgânico, em si mesma”.
As sensações se produzem em ondas e vão do êxtase até a beatitude.

101
Tirésias aparece em clássicos gregos como Édipo Rei e Antígona de Sófocles e na
Odisséia de Homero, entre outros. Na literatura pós-clássica ele aparece em A divina
comédia de Dante Aliguieri, em Paradise lost de John Milton e em The Waste Land, de
T. S. Eliot, entre outros.
144 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

O êxtase, ou fora-de-si, é definido como o arrancamento do sujeito de


suas amarras simbólicas, o que, segundo o autor, não se realiza sem
dor. Já a beatitude “é o destacamento absoluto, gozo puro. É o gozo do
‘ser’, que se define como o gozo do corpo; é um gozo parassexuado”
(VALAS, 2001, p. 89).102
Ora, em ambos os casos, quem experimenta o gozo feminino
está dele ausente como sujeito, o que reforça a compreensão de que o
testemunho simbólico, nesse caso, não é possível. Para Soler (2005),
trata-se de um gozo que não cai sob a barra do significante, que nada
sabe do falo e que, inclusive, não é causado por um objeto a. Ele está,
portanto, foracluído do simbólico – fora do próprio inconsciente.

6.6 O gozo místico


Nada se pode tirar das mulheres sobre seu gozo, mas Lacan
encontra uma forma inusitada nas veredas da mística. Em Mais, ainda,
ele comenta haver lido sobre os escritos, por alguém lhe indicados, de
uma beata beguina – Hadewijch d’Anvers (Hadewijch da Antuérpia).
Os beguinos eram comunidades católicas leigas muito presentes na
Bélgica dos séculos XIII e XIV. Os escritos de Hadewijch incluem
visões, cartas em prosa e poesias, muitos dos quais expressando amor
extático por Deus. Para Lacan, Hadewijch é uma mística e importa
então, para ele, definir o significado desta qualificação.
Ele começa demarcando o que o misticismo não é. Diz que não
emprega o termo da forma como o fez Charles Péguy (1873-1914),
poeta e ensaísta francês influenciado pelo socialismo, pelo catolicismo
e também pela mística (e amigo de Romain Rolland, diga-se de
passagem). O misticismo era, para Péguy, um ideário de fraternidade
e respeito mútuo que pautava sua visão do socialismo. Entretanto seu
contato com a prática político-partidária dos movimentos socialistas
mostrou-lhe uma realidade bem diferente daqueles ideais. Daí a
conhecida ideia, a ele atribuída, de que tudo começa no misticismo e
termina na política (ROYAL, 1996).
Para Lacan, a mística é algo bem diferente:
102
Por parassexuado define-se um gozo que está para além do sexo. Pommier (1987,
p. 73) enfatiza essa característica no gozo dos místicos: “Ela se encontra, assim, para
além do sexo. Seu gozo poderia ser dito transexual, se ela dispensasse o testemunho,
que a distingue da psicose e daquilo que, nessa loucura, retorna ao transexual”.
Capítulo 6 – Mística e gozo | 145

É algo de sério, sobre o qual nos informam algumas pessoas, e


mais frequentemente mulheres, ou bem gente dotada como São
João da Cruz – porque não se é forçado, quando se é macho,
de se colocar do lado do x Φx. Pode-se também colocar-se
do lado do não-todo. Há homens que lá estão tanto quanto as
mulheres. Isto acontece. E que, ao mesmo tempo, se sentem lá
muito bem. Apesar, não digo de seu Falo, apesar daquilo que
os atrapalha quanto a isso, eles entreveem, eles experimentam
a ideia de que deve haver um gozo que esteja mais além. É isto
que chamamos os místicos. (LACAN, 1985 [1972-1973], p. 102).
Na passagem acima, Lacan define os místicos a partir de seu
posicionamento no lado feminino das fórmulas da sexuação, de onde
se experimenta a ideia de um gozo mais além do falo. E isso vale para
machos e fêmeas, ou seja, a sexuação feminina, como já mencionado,
independe do sexo anatômico.
É nesse sentido que Lacan declara não ser necessário ao místico
homem submeter-se completamente à ordem fálica. São João da Cruz
é mencionado como exemplo de alguém que se posiciona no lado “não-
todo feminino” e que pode, ainda assim, “sentir-se lá muito bem”. Eis
um testemunho de São João da Cruz sobre seu gozo, semelhante, em
forma e conteúdo, ao das mulheres: “Nem mesmo o demônio pode
penetrar nessa morada misteriosa, nem saber em que consiste esse
abrasamento divino” (apud POMMIER, p. 65). De fato, o êxtase de um
homem místico, como o de João de Ruysbroeck, pode ser tão excessivo
e inefável como aquele das mulheres: “Tomem todas as volúpias da
terra, fundam-nas numa única volúpia e precipitem-na inteira sobre
um só homem, tudo isso nada será perto do gozo de que falo. Esse
gozo faz fundir o homem, e ele não é mais senhor da sua alegria” (apud
POMMIER, 1987, p. 66).
Entretanto, como também o percebe Valas (2001), Lacan parece
distinguir os místicos homens em duas categorias: há os que estão do
lado mulher, mas há outros “que também não estavam tão mal do lado
místico, mas que se situavam mais do lado da função fálica” (LACAN,
1985 [1972-1973], p. 102). Bons exemplos seriam Angelus Silésius ou
Meister Eckhart, cujo misticismo parece mais especulativo e intelectual
do que emocional ou visionário.
Não obstante, o que realmente define a mística, para Lacan, é
experimentar “a ideia de que deve haver um gozo que esteja mais além”,
146 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

ou seja, é a abertura ao gozo propriamente feminino. A partir daí ele


dedicará um olhar atento à conhecida escultura de Bernini – O Êxtase
de Santa Teresa:
Para a Hadewijch em questão, é como para Santa Tereza –
basta que vocês vão olhar em Roma a estátua de Bernini para
compreenderem logo que ela está gozando, não há dúvida. E
do que é que ela goza? É claro que o testemunho essencial dos
místicos é justamente o de dizer que eles o experimentam, mas
não sabem nada dele (LACAN, 1985, p. 103).
Ou seja, os místicos, tal como as mulheres, nada sabem de seu
gozo, a não ser que o experimentam. Completa Pommier (1987, p. 65):
“Tal ignorância é, pela confissão dos místicos, seu bem mais precioso”.
Entretanto, mais do que as mulheres, os místicos dão seu testemunho
sobre o gozo, escrevem a seu respeito e desta forma podem ser “muito
informativos”, como pensou Lacan (1985 [1972-1973]).
Santa Teresa de Ávila (1515-1982), também conhecida como
Teresa de Jesus, foi uma religiosa espanhola reformadora da ordem dos
carmelitas. É talvez a figura mais conhecida do misticismo católico em
virtude de seus escritos religiosos, entre os quais se destaca o Castelo
interior (1577 [2005]). Nesta obra, Teresa utiliza a metáfora de uma
exploração pelas moradas de um castelo a fim de descrever os períodos
e estados pelos quais passa o místico em direção ao amor pleno de Deus
e à união transformante.
Diz-se que Teresa de Ávila teve o seu primeiro êxtase aos 43 anos
de idade, após graves estados de adoecimento. A metáfora do castelo
surgiu-lhe a partir da visão de um globo belíssimo de cristal, mostrado
por Deus, à maneira de um castelo com sete moradas. Na sétima
morada, a central, encontrava-se o Rei dos céus, que com grandíssimo
esplendor iluminava e embelezava todas aquelas habitações. “Fora, só
havia sombras e imundícies. A formosura do globo representava a alma
em estado de graça e, quando esta inexistia, o castelo de cristal cobria-
se de obscuridade” (ROZENCHAN, 2001, p. 1).103
103
Ressaltando as semelhanças entre escolas místicas, Rozenchan (2001, p. 1) afirma
que “a concepção de Teresa neste livro é mística e não foge de concepção semelhante
existente na cabala judaica. As sete moradas pertencem a diversos graus de perfeição
da alma. A exemplo do que a cabala judaica estabeleceu, estas moradas correspondem
a diversos graus da via purgativa, da iluminativa e, por último, da união. Depois de
passar pelas agruras nos níveis mais baixos, a alma se desprende das paixões mundanas
Capítulo 6 – Mística e gozo | 147

Em estudo dedicado ao tema, Pommier (1987) confere à mística o


estatuto de verdade do gozo feminino. Inicialmente, ele atesta o sentido
subversivo desse fenômeno em relação à religiosidade tradicional: “Às
vezes suspeitos pela própria Igreja, eles se agarram a esse cume pouco
visível para onde a prova obscura da existência de Deus é conduzida”,
e complementa: “Embora seja indescritível, o laço místico, todavia,
jamais foi suprimido da sociedade dos homens e da sua Igreja, ainda
que tenha quase sempre permanecido marginal, suspeito e contestado”
(p. 64). Também Valas (2001) comenta a respeito, tratando de fazer
relação com as conceituações psicanalíticas sobre o gozo:
Foi um erro da Inquisição interpretar esse gozo “místico”
em termos de gozo fálico, dando-lhe assim uma significação
sexual (demoníaca), à qual ele é estranho. As mulheres místicas
mostram a existência de um gozo de Deus, que elas querem
servir sem esperar a menor recompensa. Elas dão assim à
existência de Deus uma outra consistência, questionando o
estatuto do Deus da tradição. Algumas místicas foram muito
pesadamente condenadas pela Igreja, sendo até queimadas vivas.
(VALAS, 2001, p. 89).
Na religiosidade cristã medieval, sabe-se que qualquer expressão
da sexualidade era vista como influência do Demônio. Mas, assim como
Lacan diz que o misticismo não se reduz às simples “questões de foda”
(ver citação à página 94), Valas (2001) atesta na passagem acima que não
é possível reduzir o gozo místico ao gozo fálico. Ou seja, a verdade do
gozo místico está para além do sexo, é parassexuado.

O Deus dos místicos


O Deus dos místicos tem outra consistência que aquela do Deus
da tradição (ou da religião), porque revela um laço com o gozo, tanto das
palavras como do corpo. O élan místico é indizível porque nasce da união
a um Deus cujo Nome pretende escapar às regras da linguagem. Isto é, o
significante divino é suposto ser uma exceção à regra de que uma palavra
nunca pode se definir por si mesma, apenas na relação com outras.

e atinge o nível onde transcorre “o matrimônio divino e espiritual”; não há aqui mais
lembrança do corpo; há a união secreta no centro muito interior da alma, que deve ser
onde está o próprio Deus”.
148 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

Explica Pommier (1987, p. 65): “Deus é assim o nome de empréstimo da


ausência do Nome, recobre o furo dos símbolos linguageiros, incapazes
de se definir por si mesmos”. Na falta de uma palavra que diria tudo, os
místicos se aferram ao Nome de Deus, que supostamente responde pela
vacância de uma significação última das palavras.
Nesse sentido, o Deus dos místicos é uma face do Outro da
linguagem.104 E o gozo místico, em sua face extática, surge quando
a alma se posiciona nesse lugar de plenitude onde o Outro divino
goza. Não obstante, o Nome de Deus encarna a significação última
das palavras exatamente porque ele nada significa. Em verdade, ele é
puro significante, apenas um furo, um vazio, uma vacância que nada
responde. Pommier (1987, p. 65) esclarece:
Mas, por estar no lugar mesmo dessa vacuidade, do Nome
perfeito que falta para que os nomes formem um todo, por
preencher esse furo, aproxima-se de um nada. Assim, a plenitude
e a vacuidade, o tudo e o nada, não formam um par de opostos,
mas exprimem um só e mesmo irrepresentável.
Desta forma, clamar pelo Nome de Deus é buscar o real da
linguagem.105 Mas, em seu vazio, Deus nada pode responder: nenhum
saber sobrevém àqueles que invocam seu Nome. A experiência desse
vazio é gozo: ao mesmo tempo êxtase e sofrimento. Consoante Pommier
(1987, p. 66), “a ausência de saber, ou antes, de um sujeito desse saber
perfeito que rege a marcha do Universo, exige uma oferenda onde o
corpo tem sua parte”, e ainda: “nenhum pai responde, ou responderá
jamais, e o sofrimento do corpo é o eco dessa ausência”. A oferenda é o
sofrimento que se faz pré-requisito no caminho do êxtase, ou melhor, é
a própria contraparte do arrebatamento. “A carne sofre porque advém
no lugar de um vazio” (p. 66). O sofrimento do corpo é o gozo do puro
significante dessa ausência.
No casamento com essa presença ausente que é Deus, o místico
em êxtase perde todas as referências, escapa ao saber. Nos últimos
estágios da união com o divino, até mesmo o corpo se perde. A
proximidade de Deus provoca o apagamento do corpo, “tema universal
da mística que conjuga gozo e aniquilamento” (POMMIER, 1987, p.
104
Atesta Lacan: “E por que não interpretar uma face do Outro, a face Deus, como
suportada pelo gozo feminino?” (1985 [1972-1973], p. 103).
105
Conforme explicado no capítulo 7.
Capítulo 6 – Mística e gozo | 149

70). Segundo Pommier, a completa falta de consistência do Nome de


Deus faz o corpo levitar, brilhar para além de todo o saber. Retomando
a história de Madeleine, tal como contada por Clément (1997), a mística
francesa caminhava na ponta dos pés e justificava tal feito porque se
sentia puxada para cima pela divindade.
Para Soler (2005), não há garantia de que o gozo dos místicos
possa esclarecer o gozo feminino. Em sua visão, o gozo místico é
produzido pela própria evocação do que está além do Verbo – o Deus
dos místicos não seria, portanto, o Deus-Pai (aquele que produz a
castração sem estar sujeito a ela), mas um Deus “cuja identidade estaria
além de qualquer diferenciação significante; um gozo em que presença
e ausência se confundiriam, onde a opacidade do corpo que goza viria
preencher a falha do sistema significante” (p. 232). Na visão da autora,
a opacidade do real do corpo surge no lugar da hiância própria do
Simbólico. Ou seja, para Soler, a outra face de Deus, aquela sustentada
pelo gozo feminino, não é a vertente do Nome-do-Pai, mas a da
ausência do Nome.
Soler (2005) propõe ainda uma homologia entre o gozo
feminino e o que acontece nas pulsões parciais. Como se sabe, as zonas
erógenas se definem pela superposição da hiância das distribuições dos
investimentos significantes com a hiância do corpo (seus orifícios). O
gozo feminino seria, pois, o inverso de uma zona erógena: surgiria
da “noite do corpo”, em que o âmbito das sensações não se fixa numa
borda, “mas ultrapassa qualquer localização, pondo fora de circuito o
suporte da imagem ou do significante” (p. 232). Em outras palavras, é
um gozo dos limites do Simbólico: .

Um gozo passivo
Outra discussão suscitada pelo gozo dos místicos é sua suposta
passividade. Para William James, esta era uma das quatro características
fundamentais dos estados místicos (capítulo 1, item 1.3). O autor afirma
que essas experiências são facilitadas ou induzidas por operações
voluntárias, tais como exercícios físicos ou psíquicos, porém, quando o
estado de consciência característico advém, o místico sente sua vontade
colocada em suspenso, ou ainda como se a divindade fosse responsável
pelo êxtase que lhe sucede. Santa Ângela de Foligno confirma: “Não
150 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

sou eu mesma [...] que embarca nesse oceano; não, sou conduzida pelo
Senhor, transportada e arrebatada” (apud POMMIER, 1987, p. 69).
Também Madeleine, a mística enclausurada na Salpêtrière aos
cuidados de Pierre Janet, é serva fiel do Senhor. “Deus sabe quando
quer dizê-lo como senhor, e sua voz é como a do trovão, nós devemos
adorar seus decretos quaisquer que sejam. Quanto a mim, eu lhe dito e
repito que não quero nada além do cumprimento de sua vontade” (apud
CLÉMENT, 1997, p. 49). Na verdade, ela revela ser a própria hóstia
do Senhor:
Deus colocou-me num lugar singular, numa espécie de armário,
como se tranca um objeto precioso, uma estátua; meu estado de
total passividade permite-me permanecer na posição em que ele
me colocou, sinto-me bem no calor e não sofro da falta de ar.
Sou uma hóstia, sinto-me feliz com esta vida escondida... (apud
CLÉMENT, 1997, p. 50).
Conforme explica Bidaud (2002), as místicas colocam-se como
objetos do gozo do Outro. Entre rebaixamentos e humilhações, elas
parecem dar ao outro seus corpos como dejeto. O autor explica que
as místicas, colocando-se no lugar de um objeto faltante em relação
ao Outro – esse Outro designado como Deus –, ganham acesso a um
certo gozo. E tal gozo possui um modelo, aquele “do Cristo sofrendo o
martírio na cruz pelo amor do Pai, que permite a encenação do corpo
em sofrimento como corpo de gozo” (p. 153).
Contudo, conforme já se discutiu a respeito das semelhanças
e diferenças entre o misticismo e a psicose (capítulo 6, item 6.3), a
passividade mística não é de fácil caracterização, porque resulta de um
ato que demanda, em geral, muita paciência e esforço.
Esse não-agir é o resultado de um longo querer. A “passividade”
mística, a expectativa de ser penetrada pela palavra de Deus,
exige tanta prudência quanto a que se convém ter com relação
à “passividade” feminina. Freud jamais falou da passividade
feminina sem acrescentar que se trata de um ato. (POMMIER,
1987, p. 69).
Nessa passividade, não é realmente o místico que goza em seu
amor pela divindade – é Deus, personificação do Outro, que goza do
Capítulo 6 – Mística e gozo | 151

místico. O ato místico, passividade ativa, visa transformar o ser em um


receptáculo,106 uma cavidade na qual o ser divino possa penetrar.
Assim, a atividade tem seus limites, ela prepara o caminho, mas
a chegada da divindade com seus êxtases e visões não pode ser forçada.
O místico Rajneesh (2002, p. 81-83) confirma esse ponto ao falar sobre
os esforços para atingir a iluminação espiritual:
Chega o momento em que vocês veem toda a futilidade do
esforço. Vocês fizeram tudo o que podiam fazer e nada aconteceu
[...] No mais absoluto desamparo, toda busca é abandonada. E no
dia em que acabou a procura, [...] começou a acontecer. Uma
nova energia surgiu – do nada [...] Não era apenas uma ausência,
eu sentia uma presença. Algo estava me inundando, jorrando
sobre mim.
Em sua modalidade específica de passividade, o místico é
também feminino. Para Hildegard de Bingen (1098-1179), uma das
primeiras místicas renanas, o estado de mulher é o caminho mais curto
em direção a Deus (POMMIER, 1987, p. 71). Para Pommier (1987),
a mística e a feminilidade se relacionam em diversos aspectos. Em
primeiro lugar, há uma passividade em relação ao Outro. “O primeiro,
como a segunda, requer essa expectativa particular, essa passividade
diante de um Outro, que, como preço dessa submissão, permite o
acesso a um certo gozo” (p. 71).
Em segundo lugar, o místico, como a mulher, faz-se de suporte
para a fantasia de um Outro. “O místico serve a Deus, oferece-se a Ele,
seu corpo suporta sua vacância. Uma mulher abriga a causa do desejo
de um homem: ela é, nessa medida, a vestimenta de sua fantasia. Em
ambos os casos, trata-se de se fazer o suporte daquilo que é o desejo, a
fantasia de um estranho” (POMMIER, 1987, p. 71).
Mas ser o objeto da fantasia do Outro é, também, uma fantasia?
Pommier faz tal questionamento. Trata-se, para ele, de um ato
simbólico, que abre o místico ou a mulher para o gozo mítico, primeiro,
do corpo – o gozo do Outro.
Para o autor, a proximidade entre a mística e o gozo da mulher
resulta de uma inacessibilidade do “Pai” em ambos os casos. Explique-
se: para aceder à feminilidade, uma mulher deve abandonar o amor
por sua mãe e eleger seu pai como novo objeto. Entretanto, há nisto
106
No misticismo budista e taoista isso é abordado como um esvaziamento psíquico.
152 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

um dilema intransponível, porque a função paterna interdita o desejo,


resultando que o desejo sexual de uma filha vai justamente anulá-lo
como pai: “Esse novo amor pode ser desejado, mas este próprio desejo
o destrói. O gozo é assassinato do pai [...] O laço sexual com o pai, ou
com o homem que está em seu lugar, retira-lhe a função paterna do
interdito” (p. 71). Disso resulta que o pai permanecerá sempre distante,
inacessível, incontrolável e desvanece em sua aproximação.
Observa-se então que o gozo feminino diviniza o homem,
colocado como único e cujo gozo é esperado. Já o gozo místico tenta um
diálogo sem mediação com Deus – o puro significante. Ao contrário da
mulher, o místico livra o amor ao pai do conteúdo sexual, “formando
então a única troca de objeto de amor plenamente sucedida” (p. 72).
Nesse gozo, se é que ainda existe relação com o falo, ao menos não se
trata da encarnação do falo no pênis.
Por todo o exposto, Pommier (1987, p. 72) conclui que a relação
entre a feminilidade e a mística não é apenas uma analogia, “pois é só
graças à segunda que se resgata a verdade da primeira”. A mística é,
para ele, a única feminilidade realizada no sentido de Freud. Tem, pois,
por condição a existência de um “puro significante”, que, entretanto,
não existe e demanda a invenção de Deus.
O gozo da mulher escapa à medida do homem, e a referência
ao falo permanece sendo um ponto de apoio, ou melhor, “um termo
graças ao qual um pai inacessível é desejado em vão” (p. 72). Há, no
gozo feminino e místico, um desespero, uma ausência irremediável que
permanece fora do simbólico. Seja o amor feminino ao homem único
e divinizado ou o amor místico a Deus, ambos têm a justa medida
dessa aflição extrema. Destarte, para Pommier, o amor feminino não
é uma figura do narcisismo, longe disso, trata-se de outro nome para
o desespero.

O testemunho
Pommier (1987) sublinha ainda que não basta ao místico gozar,
pois sua experiência não é autossuficiente ou resolutamente solitária.
Na verdade, a representação da experiência mística – falada, escrita
ou transcrita – sempre acompanha o acontecimento extático: “A
testemunha é necessária à experiência” (p. 73). A testemunha encarna
o lugar da fala, do escrito, do que circula na sociedade dos homens, na
Capítulo 6 – Mística e gozo | 153

ordem do falo. Por demandar esse testemunho, a mística, mais uma


vez, aparta-se da psicose.
O autor destaca que diferem as relações dos místicos homens
e mulheres com o testemunho de seu êxtase. Em geral, as mulheres
místicas demandam o testemunho de um homem, para o qual escrevem
sua experiência. Foi o caso, por exemplo, de Teresa D’Ávila, que escreve
para João da Cruz e Pedro d’Alcântara. O próprio Castelo interior foi
escrito a pedido do padre Graciano da Mãe de Deus (JESUS, 2005).
Em certos casos, inclusive, é a própria testemunha masculina que vai
transcrever a experiência da mulher mística, como fez o Irmão Arnaldo
a respeito das visões de Angena de Foligno (HOLLYWOOD, 2002).
A mulher mística resigna-se, assim, ao masculino, na medida em que a
transmissão de sua experiência demanda passar por um homem.
Já o místico homem não possui tal necessidade, “para ele, o
feminino obediente a Deus é sua própria alma, que lhe basta escutar”
(POMMIER, 1987, p. 72). É sua alma – feminina – que experimenta
o êxtase, mas é ele, como homem, quem fará o testemunho. Assim,
o homem é dois em um, enquanto a mulher demanda um confessor.
O fato é que essa alma feminina, no caso do homem, ou esse corpo
feminino, no caso da mulher, só encontram expressão por um mediador
– alguém que vai representar a ordem fálica. “O fascínio que representa
seu ‘gozo infinito’ exige uma transcrição” (p. 73).
Contudo, seja homem ou mulher, o caminho para o êxtase
demanda uma feminilização, pois não é possível manter um papel viril
em face de Deus. A feminilidade é única esposa possível do Nome de
Deus enquanto puro significante. A mulher, então, parece levar uma
vantagem nesse caminho, mas o homem pode, sim, feminilizar sua
alma – e apenas ela, o que distingue o místico do psicótico.

O gozo do Aberto
Além de esclarecer a relação entre o gozo feminino e o gozo
místico, Pommier aproxima estes dois da jouissance do poeta, o qual
denomina “gozo do Aberto”. Nesse caminho, o autor permite entrever
de que forma o gozo feminino vai se relacionar com o tema da
sublimação, que será abordado no capítulo seguinte.
Toda palavra, para ter a significação comum, para comunicar no
mundo social, precisa de um ponto de ancoragem – ponto de apoio (ou
154 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

de estofo) que Lacan identificou na função paterna, pois que ela detém
o deslizamento de outro modo infinito da significação por entre os
significantes (DOR, 1989). O poeta, ao retirar das palavras seu sentido
utilitário, deixa de invocar o pai para formar suas frases.
O psicótico é o exemplo maior daquilo que a falta do Nome-
do-Pai (a foraclusão) é capaz de provocar no ato da fala. As glossolalias
ou linguagens delirantes – nas quais os significantes e significados são
inventados à revelia do sujeito (que se espanta com suas próprias invenções
linguísticas) – demonstram de maneira cabal o efeito da falta de um
ponto de estancamento no processo da significação. O poeta, por sua
vez, também trafega nesse campo em que o Nome-do-Pai é dispensado,
mas isso não desemboca na psicose, porque resulta de um ato.
O poeta brinca com as palavras, subvertendo seu uso utilitário
no qual elas se fixam em determinados significados. Quando tomado
isoladamente, o significante se abre para todas as significações possíveis.
Esse é o instante do Aberto, “instante em que, sem que nenhuma
barreira constitua obstáculo, os seres e as coisas entram no espaço de
uma percepção pura” (POMMIER, 1987, p. 99).
O Aberto é o instante em que uma palavra evoca o todo das
outras palavras e, como tal, só se revela quando escapa das significações
fixadas dentro do laço social. Assim como o Deus dos místicos, as
palavras do poeta deixam entrever um vazio, uma falta de significação.
E assim como o gozo feminino, o gozo do Aberto está para além da
significação fálica, demandando uma passividade. A passividade do
poeta, para Pommier (1987, p. 100), lembra o ato de segurar a palavra
nas mãos e simplesmente aguardar: “A palavra presa na mão ecoa por
sua ressonância singular e se abre para o todo das outras palavras”.
Para Pommier, o Aberto, gozo sem referências fálicas – e,
portanto, sem ponto de ancoragem, “sem abrigo” –, é o lugar da
intersecção entre a mística, a feminilidade e a arte poética:
O poeta, um místico, uma mulher mostram dessa forma, nessa
escolha do “sem abrigo”, de um fundamento sem fundo, a região
essencial onde o falar apresenta sua união com o gozo de um
Todo que se apoia no Nada. O risco assumido pelo ser, sua perda
de identidade nesse momento de desamparo, oferece o vestígio
daquilo que outros séculos puderam reservar ao sagrado, cuja
região essencial é subtraída à nossa época. (POMMIER, 1987,
p. 102).
Capítulo 6 – Mística e gozo | 155

O sagrado não tem mais espaço em nossa época e representa


justamente o âmbito desse gozo que se apoia nos limites do Simbólico.
Na passagem acima, o autor também descreve um risco para
o ser do místico, da mulher e do poeta quando se abrem para esse
gozo peculiar. O risco é justamente de uma abolição subjetiva, um
aniquilamento, pois o sentimento de morte acompanha o momento
mais intenso do gozo. Trata-se de um momento de percepção pura,
em que “seu ser se apaga em proveito da percepção, da presença de um
mundo agudo que o exclui” (p. 102). Logo, a plenitude da existência é,
ao mesmo tempo, a abolição do sujeito.
Essa temática, que conjuga o tema da sublimação, do gozo, do
não-sentido e da pulsão de morte, terá maiores desenvolvimentos no
capítulo final.
| Capítulo 7 |

A mística entre o sentido e o não-sentido

7.1 A mística e o real


Inefável, indescritível, fora da possibilidade de representação –
estas são as características incessantemente invocadas pelos místicos
sobre seu gozo. Tais características parecem indicar que, em alguma
maneira, a experiência mística remete à tópica lacaniana do Real.
O registro do real alude ao irrepresentável, seja de maneira
imaginária ou simbólica, e por isso permanece sendo o mais elusivo e
enigmático dos três registros lacanianos (ROSS, 2002). “Definido como
o impossível, o real é aquilo que não pode ser simbolizado totalmente
na palavra ou na escrita e, por consequência, não cessa de não se
escrever” (CHEMAMA, 1995, p. 182). Ele se manifesta em variadas
formas invasivas, apesar do cabal esforço subjetivo em “costurá-lo” por
meio das palavras.
Desta forma, todas as conceituações da psicanálise lacaniana
que admitem uma ex-sistência, ou seja, uma existência fora da ordem
simbólica, estão relacionadas à tópica do real, tal como a pulsão
(conceito limite entre o psíquico e o somático), o gozo (mutuamente
excludente com a linguagem), o objeto a (resto de gozo que sobra ao
sujeito após o advento da ordem simbólica) e a Coisa (o objeto perdido
do desejo).
Conforme já destacado no capítulo sobre o gozo, o conjunto
das representações simbólicas e imaginárias do sujeito está sempre em
oposição ao real, pois são domínios mutuamente excludentes. Assim,
no advento da ordem simbólica, parte do real sempre se perde, pois
como diz Lacan (apud DOR, 1989, p. 90): “A palavra é a morte da
coisa”, ou seja, “é preciso que a coisa se perca para ser representada”.
158 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

Todavia as explicações acima podem conduzir a uma leitura


falaciosa do real como sendo anterior à linguagem. Se assim fosse,
ele indicaria uma ordem natural anterior e totalmente independente
daquela. A esse respeito, Garcia-Roza (1990, p. 67) explica:
O real não é o ponto de partida de uma gênese cujo ponto final
são os significantes [...] Se admitíssemos a pulsão, o objeto a e a
Coisa (das Ding) como um real anterior à linguagem, real este
que seria perdido posteriormente por efeito do aparecimento da
linguagem, estaríamos adotando uma postura naturalista.
O real é, pois, o real da linguagem, ou seja, o real dela depende
– surge juntamente com o significante. Para Valas (2001, p. 30), “o real
é apreendido pela mediação da linguagem e não diretamente, ou seja,
é um real tecido pelo simbólico”. Disso conclui-se que o significante
engendra o vazio.107
Deste modo, a evocação mística do real só pode ser feita a partir
da ordem simbólica. Conforme já aludido no capítulo 6, quando o
místico devocional chama pelo nome de Deus, não há resposta, porque
o nome de Deus é vazio, significante puro.
Veja-se, por exemplo, os mantras comuns ao hinduísmo e ao
budismo, entre outras escolas místicas – trata-se de palavras ou sílabas
entoadas repetidamente a fim de produzir um estado de arrebatamento.
O segredo do efeito do mantra parece residir em sua repetição
incessante pelo devoto. Como se sabe, um significante só toma sentido
(imaginário) na relação com outro significante. Mas um mesmo
significante, entoado repetidas vezes, pode perder momentaneamente
seu encadeamento simbólico e virar materialidade pura. Aproximamo-
nos, assim, do conceito lacaniano de letra, que faz sua morada no real.
Isolado, o significante perde todo o sentido e deixa entrever o vazio
sobre o qual se assenta.
Mas dizer que o estado místico evoca o real da linguagem seria
igualar essa tópica lacaniana ao misterioso e ao divino. Seria, enfim,
uma mistificação do real e certamente não se trata disso.

107
A esse respeito é útil a comparação feita por Lacan (1988 [1959-1960], no seminário
A ética da psicanálise), entre o significante e a atividade do oleiro, conforme explicado
no capítulo 4, item 4.5, e também a seguir, quando se comentará sobre a sublimação
(item 7.3).
Capítulo 7 – A mística entre o sentido e o não-sentido | 159

Jorge (2005a, p. 276) estabelece uma articulação “bastante simples


e precisa” entre os três registros da tópica lacaniana: “o imaginário é
simplesmente o sentido; já o real, diz Lacan, é o ‘avesso do imaginário’,
ele é o não-sentido, o não-senso, o sentido em branco, o ab-sens, o sentido
ausente”. Nessa esteira, o simbólico é definido como a ordem do duplo
sentido – a operação analítica dele retira sua força porque o duplo sentido
é o que articula o sentido ao não-sentido, o imaginário ao real.
Destarte, o real é a falta de sentido radical. É possível, então,
pensar que, se o místico tem algum contato com o real, esse contato é
imediatamente transformado em sentido: mistério e revelação divina.
Forbes, por exemplo, afirma que o mistério não equivale ao não-
sentido. “Mistério já é uma visão ideologizada do não saber. O real é o
não saber. Sendo um mistério, já é uma forma mais afetiva de contato”
(apud CHIBLI, 2006, p. 6). A mística, assim, oferece ao estudioso uma
complexa relação entre o sentido e o não-sentido.

7.2 Lacan, o Tao e a tópica do real


O próprio Lacan parece ter procurado na mística uma inspiração
para a tópica do real. O trabalho biográfico realizado por Roudisnesco
(1994) traz à luz fatos até então pouco conhecidos sobre o assunto.
Lacan fora atraído pelo Extremo Oriente e aprendeu o chinês
na Escola de Línguas Orientais em Paris. Em 1963 viajou ao Japão;
algumas impressões dessa experiência encontram-se em comentários
esparsos de seu décimo seminário (LACAN, 2005 [1962-1963]) e
relacionam sua visita a mosteiros e o contato com budistas. Em 1971, o
psicanalista francês realizou outra viagem ao Japão e chegou mesmo a
planejar uma viagem à China em 1974, que, no entanto, foi cancelada
de última hora (ROUDINESCO, 1994).
De acordo com Roudinesco (1994), em 1969, Lacan voltou
a mergulhar com paixão no estudo da língua e filosofia chinesas.
Para a empreitada, ele procurou, como de costume, o auxílio de um
“passador” – nesse caso o sinólogo, filósofo e poeta chinês François
Cheng, com o qual estudou textos clássicos chineses por quatro anos
consecutivos, em reuniões semanais. Formou-se assim uma relação de
trabalho intensiva e profícua que só veio a desfazer-se por necessidade
do professor em 1973. Essa ruptura não se efetivou sem protestos por
160 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

parte de Lacan,108 o que permite entrever a importância que atribuía a


tal estudo.
Segundo Roudinesco (1994), o que Lacan buscava com esses
estudos eram principalmente maneiras em que o pensamento clássico
chinês pudesse auxiliá-lo na formalização da tópica do real, simbólico
e imaginário:
No seu mergulho ao cerne do pensamento chinês, Lacan buscava
primeiramente resolver um enigma que o obsedava desde a
publicação dos Escritos: como “escrever”, isto é, “formalizar”,
a famosa tópica do real, do imaginário e do simbólico, que
doravante receberia o nome de R.S.I. (ROUDINESCO, 1994,
p. 353).
E foi precisamente no principal texto clássico taoista intitulado
Tao Te Ching (traduzível como “Livro do Caminho e da Virtude”),
atribuído ao pai-fundador do taoismo, o filósofo Lao-Tzu, que, segundo
Roudinesco, Lacan encontrou inspiração para uma nova definição
do real dentro do quadro da “teoria dos nós”. Ainda, de acordo com
Costa (2005), a passagem da formalização da tópica do real, simbólico
e imaginário para o modelo dos matemas e dos nós, nesse sentido,
revela a busca de Lacan por um modelo teórico capaz de dar conta da
transmissão do inefável. Nessa busca, o taoismo mostrou-se profícuo.
O clássico de Lao-Tzu, escrito por volta do quinto século a.C.,
é constituído de 81 aforismos a respeito da experimentação de uma
realidade para além de todo e qualquer esforço de representação. Essa
realidade é definida como o Tao, e sua essência é indicada como vazia e
incognoscível, o próprio nada. Segundo Blofeld (1990, p. 17), Lao-Tzu
ensinou que o termo Tao não passa de um termo aceitável para o que
se chamaria melhor “o Inominado”: “Nada se lhe predica sem com isso
comprometer sua integridade. Dizer que existe equivale a excluir o que
não existe, apesar de o vazio ser sua verdadeira natureza. Dizer que não
existe é excluir a plenitude permeada por ele”.
Para o próprio François Cheng (2000), o Tao é a maneira como
os chineses concebiam a criação e a marcha do universo e pode ser
compreendido como o Caminho. Entretanto a palavra Tao também

108
Revela Roudinesco (1994, p. 354) que, quando Cheng cessou a cooperação com
Lacan para dedicar-se a outro trabalho, o psicanalista sentiu-se um pouco desesperado
e disse-lhe: “Mas o que vai ser de mim?”.
Capítulo 7 – A mística entre o sentido e o não-sentido | 161

significa “falar”. Desta maneira, ela sugere não só uma ordem da


vida como também uma ordem da palavra – da qual se infere parte do
interesse de Lacan.
Em sua descrição dos estudos feitos na companhia de Lacan,
Cheng cita dois aforismos do Tao Te Ching. Vejamos o primeiro, aquele
que justamente inaugura esta obra:
O Tao que pode ser enunciado
não é o Tao permanente
O Nome que pode ser designado
não é o Nome constante
Sem-ter Nome, começo do Céu-Terra
Aí-ter Nome, mãe de Dez-mil seres
Sempre Sem-ter Desejo
para entender o germe
Sempre Aí-ter Desejo
para dele prever a palavra
Mesma saída, mas diferente denominação
participam do mesmo impulso
Mistério e mistério outro
Porta de todas as maravilhas109
(apud CHENG, 2000, p. 137).
O aforismo demonstra as relações entre o que pode ser nomeado
ou simbolizado e o que não pode. O Tao e o Nome, assim que são
designados, deixam de ser constantes. Para Cheng (2000), o verso
aponta para o que não se deteriora nem se corrompe pelas mudanças
constantes. Esse algo é o próprio vazio, o Tao, o que não tem Nome
nem Desejo. Esse vazio é, para o autor, um vazio vivificante, porque
dele se origina o sopro da existência, ou seja, o sopro do Nome e do
Desejo.
De tal modo, o que não tem Nome nem Desejo relaciona-se com
as origens das coisas (“o começo do Céu-Terra” e o “germe”). O que

109
Cita-se também uma versão em português (traduzida do alemão) de autoria do
sinólogo Richard Wilhelm: “O Tao que pode ser pronunciado não é o Tao eterno. O
nome que pode ser proferido não é o Nome eterno. Ao princípio do Céu e da Terra
chamo ‘Não-ser’. À mãe dos seres individuais chamo ‘Ser’. Dirigir-se para o ‘Não-ser’
leva à contemplação da maravilhosa Essência; dirigir-se para o Ser leva à contemplação
das limitações espaciais. Pela origem, ambos são uma coisa só, diferindo apenas no
nome. Em sua Unidade, esse Um é mistério. O mistério dos mistérios é o portal por
onde entram as maravilhas” (LAO-TZU, 1995, p. 37).
162 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

tem Nome e Desejo relaciona-se com a criação, com a existência (os


“dez mil seres”, a “palavra”). O sábio taoista, portanto, parecia ter uma
intuição privilegiada sobre as relações da linguagem com seus limites
representacionais, o que, na psicanálise de Lacan, é conceituado com
a relação entre o real, por um lado, e as representações simbólico-
imaginárias, por outro. Lao-Tzu atribui uma constância àquilo que
transcende a representação, que é oposta ao âmbito da palavra, cuja
única constante é a mudança.110
Ele também atribui, a princípio, um caráter de origem àquilo
que está além da representação, e, nesse ponto, o místico parece cair na
conhecida ilusão da existência de uma realidade anterior ao mundo da
linguagem. Contudo a décima primeira e a décima segunda frases do
verso esclarecem que ambos, o Nome e o Sem-Nome (a existência e a
não-existência), têm a mesma saída e o mesmo ímpeto, sendo diferentes
apenas pela denominação. Ou seja, são âmbitos interdependentes, não
há antes nem depois.
Todavia é interessante notar nesse aforismo que o Tao, aquilo que
transcende a representação, assume qualificações como “misterioso” e
“portal para as mil maravilhas”, o que mais uma vez demonstra como
o contato com o não-sentido, na mística, é imediatamente permeado
pelo sentido.
Cheng (2000) e Roudinesco (1994) afirmam que também o 42o
aforismo do Tao Te Ching, descrito a seguir, foi estudado por Lacan:
O Tao de origem engendra o Um
O Um engendra o Dois
O Dois engendra o Três
O Três engendra os Dez-Mil seres
Os Dez-mil seres endossam o Yin
e enlaçam o Yang
Pelo sopro do Vazio-mediano
Eles realizam a troca-acerto111
(apud CHENG, 2000, p. 135).

110
Essa mudança incessante não deixa de evocar o eterno deslizamento da cadeia
significante e a impossibilidade de se fixar completamente o sentido no mundo da
linguagem, conforme descrito na psicanálise lacaniana.
111
Na versão de Richard Wilhelm lê-se: “O Tao gera o Um. O Um gera o Dois. O Dois
gera o Três. O Três gera todas as coisas. Atrás de todas as coisas há escuridão; e elas
tendem para a luz, e o fluxo da força dá-lhes a harmonia” (LAO-TZU, 1995, p. 81).
Capítulo 7 – A mística entre o sentido e o não-sentido | 163

De acordo com Cheng (2000), o Tao de origem é o vazio


primordial de onde emana um sopro112 original – o Um. O Um divide-
se para gerar dois sopros vitais opostos ( yin e yang) que, por seu turno,
criam todas as coisas da existência (os “dez mil seres”). Contudo isso
só acontece pela atuação de um terceiro termo, o vazio-mediano, o
qual se intercala ao yin e yang e não permite sua degenaração em uma
oposição estéril. Logo, o vazio-mediano é uma entidade dinâmica e
vivificante, o centro a partir do qual o processo de contínua mudança
pode continuar. Cheng (2000, p. 137) explica:
O sopro do Vazio-mediano é, portanto, o contrário de um lugar
neutro e oco. É em si uma entidade dinâmica. Certamente ele
nasce do Dois, isso quer dizer que ele não pode estar aqui senão
quando o Dois está aqui. Mas uma vez aqui, ele não se apaga
como uma simples ventania passageira; torna-se uma presença
em si, um verdadeiro espaço de troca e de transformação, um
processo no qual o Dois estaria em condição de se cruzar e de
se superar.
Portanto o vazio-mediano, mesmo na qualidade de “não-
existência”, depende da existência (os dois sopros vitais). Ele é dinâmico
porque ampara o movimento incessante da existência. Para Roudinesco
(1994, p. 354), é essa noção de vazio-mediano que foi “utilizada por
Lacan para sua nova definição do real no quadro de sua teoria dos nós”.
Para complementar a noção de vazio-mediano, faço referência
ainda ao 11o aforismo do Tao Te Ching:
Trinta raios cercam o eixo:
A utilidade do carro consiste no seu nada.
Escava-se a argila para modelar vasos:
a utilidade dos vasos está no seu nada.
Abrem-se portas e janelas para que haja um quarto:
a utilidade do quarto está no seu nada.
Por isso o que existe serve para ser possuído
e o que não existe, para ser útil. (LAO-TZU, 1995, p. 47).
Neste aforismo, o mestre taoista usa os exemplos do eixo do carro,
da cavidade de um vaso e do interior de um quarto para exemplificar

112
Segundo Cheng (2000), o sopro é a ideia que os chineses desenvolveram para
conceber a origem da Criação, que se relaciona com uma concepção unitária e
orgânica do universo onde tudo é conectado.
164 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

o vazio-mediano. Mesmo sendo oco, um nada, o vazio-mediano tem a


mais extrema utilidade, pois ampara o que existe.
Ainda que nem Roudinesco nem Cheng (2000) demonstrem
exatamente qual a amplitude dessa inspiração taoista na teoria
lacaniana, vale dizer que a imagem do vazio-mediano, o irrepresentável,
cercado pelo mundo das representações em fluxo incessante, não
deixa de lembrar a relação entre o real e a ordem simbólica segundo a
teoria lacaniana.113 Nesse sentido, é também curioso que Lacan tenha
utilizado, no seu sétimo seminário, a imagem do vaso para exemplificar
que o significante se constrói no entorno de um cavo, em maneira que
sugere inspiração no aforismo de Lao-Tzu supracitado.114 O recurso
de Lacan é utilizado no contexto de sua teoria sobre a sublimação, a
qual também tem implicações para o estudo da relação entre mística,
sentido e não-sentido.

7.3 A sublimação e a Coisa


Para Lacan, a sublimação se caracteriza como um trabalho em
torno de um vazio. Cruxên (2004) lembra que no livro 7 do seminário, A
ética da psicanálise (1988 [1959-1960]), ele relaciona a sublimação à Coisa
– das Ding –, “conceituado de forma discreta na obra freudiana como
o objeto perdido de uma satisfação mítica”115 (CRUXÊN, 2004, p. 39).
113
Ver, por exemplo, a explicação de Garcia-Roza sobre o objeto a que, como já dito,
tem sua face por excelência na ordem do real: “O objeto a é ao mesmo tempo resíduo
e índice da Coisa, ele é o que permanece por efeito da perda do objeto absoluto; e
o que permanece é um furo, uma falta central em torno da qual organizam-se os
significantes. Esse furo, Lacan afirma, é da ordem do real” (GARCIA-ROZA, 1990,
p. 66). Também no toro lacaniano demonstrado no capítulo 6 (figura 2), o conjunto
das representações simbólicas e imaginárias do sujeito possui o real como centro (das
Ding).
114
Diga-se de passagem, a ideia de que o oleiro modela o vazio – sendo esse “nada”
aquilo que define, em verdade, a coisidade do vaso – também já havia sido utilizada,
antes de Lacan, por Martin Heidegger em seu curto ensaio Das Ding (1950). Note-se
que, no verão de 1946, Heidegger desenvolveu uma tradução colaborativa do Tao Te
Ching com um erudito chinês, Paul Shih-yi Hsiao (HSIAO, 1987). É certo, então,
dizer que a noção de das Ding heideggeriana possui influências do pensamento místico
de Lao-Tzu.
115
Essa noção encontra-se desenvolvida no Projeto de psicologia, de 1895. Ali Freud
comenta sobre o desamparo da criança e sua extrema dependência de um outro ser
humano semelhante, ao que ele denominou “complexo do outro” (Nebenmensch).
Capítulo 7 – A mística entre o sentido e o não-sentido | 165

Nas palavras de Lacan (1988 [1959-1960], p. 140-141): “a fórmula


mais geral que lhes dou da sublimação é esta – ela eleva um objeto [...] à
dignidade da Coisa”. No campo das artes, o exemplo dos famosos ready-
made de Marcel Duchamp116 mostra com mais clareza essa questão. O
conceito de ready-made envolve o transporte de um elemento da vida
cotidiana – não reconhecido a priori como artístico – para o campo das
artes. Duchamp trabalhou, por exemplo, o urinol de louça, a pá e a roda
de bicicleta. Em todos esses casos, o objeto comum adquiriu um novo
relevo, passando da “coisidade banal” para um estatuto muito especial,
que a psicanálise identifica como aquele de objeto último do desejo.
Essa elevação sublimatória do objeto também é destacada por
Lacan como característica fundamental do amor cortês na Europa
medieval. Sua retórica surge no século XI e dura até o século XIII.
Consistia em um exercício poético que promovia uma idealização da
figura da Dama. Ela tornava-se, assim, a própria encarnação da felicidade
e da recompensa, porém sob a condição de ser tão inacessível quanto
desejada. Cruxên (2004) lembra que a Dama, sempre inalcançável, vela
a verdade do intolerável encontro hipotético do sujeito com o objeto
último do seu desejo – das Ding.
Cabe aqui demarcar a forte semelhança entre a sublimação do
amor cortês medieval e a sublimação característica do misticismo
devocional cristão iniciado no mesmo período histórico. Não é dificil
perceber que o amor do trovador pela Dama foi, no caso de Teresa
D’Ávila ou de Hadewijch de Antuérpia, substituído pelo amor a Deus.
Em vez da Dama, no misticismo é Deus quem ocupa o lugar da Coisa
– objeto último do desejo, lugar da felicidade absoluta, desejado na
mesma medida de sua inacessibilidade.

Quando o aparelho psíquico, movido pela reativação das experiências de prazer,


obstina-se no reconhecimento desse outro que lhe propiciara a primeira experiência de
satisfação, ele se depara, por um vértice, com o processo mnêmico de reconhecimento
e, por outro, com uma estrutura constante que se mantém reunida “como uma coisa
do mundo” (FREUD, 1998 [1895], p. 377). Tal como tematizada por Freud, a coisa é a
parte inassimilável e incomparável do complexo do outro. Por fim, deve-se lembrar que
as formulações lacanianas sobre das Ding também se inspiram na coisa heideggeriana
(ver nota anterior) e na coisa kantiana, ainda que haja importantes diferenças.
116
Marcel Duchamp (1887-1968) foi um pintor e escultor francês comumente
associado aos movimentos artísticos dadaísta e surrealista.
166 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

Não é possível prosseguir sem antes precisar a noção psicanalítica


de das Ding, assim como do objeto a. No seminário sobre Os quatro
conceitos fundamentais da psicanálise (1988 [1963-1964]), Lacan define
a característica mais fundamental da pulsão, qual seja, a de que seu
objeto é totalmente indiferente. Essa constatação foi resgatada de uma
premissa freudiana aqui resumida por Jorge (2005c, p. 139): “No cerne
da sexualidade humana figura uma falta de objeto”. Mas, ao contrário
de Freud, Lacan deu nome a essa falta e declarou que esta era sua única
invenção teórica – trata-se do objeto a.
O objeto a é um objeto faltoso, perdido, que o sujeito busca
incessantemente reencontrar. Ele não existe enquanto tal, é uma
negatividade preenchível por qualquer objeto da realidade.117 Por esse
motivo, ele também é definido por Lacan não como objeto do desejo,
mas como objeto causa do desejo, isto é, um objeto que funciona como
verdadeiro motor da estrutura do desejo (JORGE, 2005c). Explica
Garcia-Roza (1990, p. 66):
O objeto a é ao mesmo tempo resíduo e índice da Coisa, ele é
o que permanece por efeito da perda do objeto absoluto; e o
que permanece é um furo, uma falta central em torno da qual
organizam-se os significantes. Esse furo, Lacan afirma, é da
ordem do real.
Quaisquer objetos do desejo humano não podem ser mais que
tentativas frustradas de positivação de um cavo que é o objeto a. São,
pois, facetas imaginárias e simbólicas deste. Mas é a dimensão real do
objeto a, isto é, aquela impossível de simbolizar, a sua configuração
117
O objeto a também pode ser conceituado como o resto de gozo que escapa ao
processo de simbolização. Ele representa o que sobra do gozo do Outro para o sujeito
após a introdução da ordem simbólica e do gozo fálico que a acompanha. O objeto a é
justamente o representante de tudo que o sujeito perde para constituir-se. “De todas
as maneiras, o objeto a sempre refere a certo elemento automutilado que fica perdido
no caminho da constituição do sujeito” (HARARI, 1990, p. 234). Na medida em que
são várias as perdas do sujeito em sua história, o objeto a assume diversas facetas: ele
é, por exemplo, o seio da mãe que se perde no desmame e também as fezes perdidas
quando o infante assume o controle esfincteriano. Essas perdas se relacionam com
outra maior, aquela que implica na mortificação do corpo quando da entrada do
sujeito na ordem simbólica. Nesse processo, produz-se uma falha, um fracasso, um
resto – o objeto a. Como ele representa um resto de gozo que escapa ao processo de
significação, Lacan vai chamá-lo de mais-gozar. Assim, o gozo do Outro é impossível
para o sujeito barrado da linguagem, esse Outro se reduz, para ele, ao objeto a.
Capítulo 7 – A mística entre o sentido e o não-sentido | 167

por excelência. No seminário A ética da psicanálise, Lacan (1988 [1959-


1960]) esforça-se em demonstrar que essa dimensão real do objeto a foi
chamada por Freud de das Ding, a Coisa. Jorge (2005c) esclarece que a
Coisa implica a representação na estrutura do R.S.I, do real sem nome
originário e sem imagem.
Uma forma de abordar das Ding é defini-la como aquilo que falta
em cada encontro do sujeito com um objeto suposto a satisfazê-lo. Por
mais satisfatória que seja a experiência, sempre faltará algo, sempre
falta alguma outra coisa. “A Outra coisa é, essencialmente, a Coisa”
(LACAN, 1988 (1959-1960), p. 149). Das Ding, o objeto absoluto, falta.
E deve-se compreender que ele “falta não no sentido de uma carência
momentânea e acidental, mas no sentido de que ele nunca existiu
enquanto objeto da pulsão” (GARCIA-ROZA, 1990, p. 65).
Destarte, conforme explica Jorge (2005c), o sujeito pode
reencontrar o objeto a via inúmeros substitutos em seus deslocamentos
simbólicos e investimentos libidinais imaginários, porém, nesses
reencontros, irá sempre se deparar com a Coisa perdida – encontros
faltosos com o real.
A busca de das Ding é, paradoxalmente, tão intensa quanto o é
sua evitação. Cruxên (2004, p. 40) explica o motivo: “O bem buscado,
caso fosse encontrado, revelaria uma face hedionda de cavidade ou
vazio centrífugo que aspiraria o sujeito. O trabalho humano não pode
senão bordejar o furo”.
Bordejar o furo é o trabalho do ser que sublima. Criar é trabalhar
em torno de um furo, ex-nihilo. Para Lacan, o criador confronta-se com
os efeitos maléficos de um vazio constituinte, e sua resposta ao vazio
da Coisa é criar um objeto no seu lugar. Esse objeto reencontrado –
objeto a – permite que a Coisa seja perdida. Assim como o artista cria
seu objeto de arte, o trovador cria a figura idealizada da Dama e, por
que não, o místico devocional cria seu Deus. Logo, como percebem
Pommier (1987) e Soler (2005), o Deus dos místicos não é o Deus-Pai
da religião, tal como extensivamente denunciado por Freud. O Deus
dos místicos é uma das faces da Coisa.
O exemplo por excelência dessa criação a partir do vazio é a arte
do oleiro. O vaso criado pelo oleiro remete ao próprio significante,
pois à medida que o vaso-significante é modelado, cria-se o cavo no seu
centro. Com esse exemplo, mostra-se que a Coisa, o objeto perdido, é
168 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

na verdade objeto perdido desde sempre, isto é, seu caráter faltoso é um


efeito do próprio processo de simbolização, é um efeito do significante.
A Coisa nunca existiu.
Cruxên (2004) assinala também que há certa crueldade – assim
como um sofrimento – no processo sublimatório. Pois se para o neurótico
a Coisa deve ser perdida, afastada por meio do recalque, para o criador
a Coisa deve ser buscada – mesmo que seja para então neutralizá-la
com a criação artística. Em suas palavras: “a busca do criador, nesse
sentido, é ‘antipsíquica’ porque visa ao encontro daquilo que afugenta
um neurótico, em relação ao qual ele permanece exilado” (p. 42).
Também segundo Jorge (2005c), é importante que haja, na
economia libidinal do neurótico, um destino pulsional diferente do
recalque, pois neste âmbito se lida com a satisfação sexual apenas na
dimensão do proibido (do objeto incestuoso), “ao passo que, no caso da
sublimação, o sujeito abandona a referência à satisfação sexual direta e
lida com ela em sua dimensão de impossível” (p. 154). O autor comenta
que o recalque seria uma forma de dizer “não” à pulsão, enquanto que a
sublimação diria “sim” à pulsão em sua estrutura ligada ao impossível.
O impossível em jogo na pulsão é que das Ding, o objeto primeiro,
não existe, de forma que a satisfação total nunca passa de um horizonte
para o sujeito. Assim entende-se porque, para Lacan (1988 [1959-
1960]), a sublimação é o destino da pulsão que revela seu mais legítimo
estatuto:
A sublimação, que confere ao Trieb uma satisfação diferente
de seu alvo – sempre definido como seu alvo natural – é
precisamente o que revela a natureza própria ao Trieb uma vez
que ele não é puramente o instinto, mas que tem relação com das
Ding como tal, com a Coisa dado que ela é distinta do objeto.
(LACAN, 1988[1959-1960], p. 140).
Ao contrário do instinto, a pulsão não tem objeto e, assim, não
pode ser satisfeita por razões estruturais. E deve-se dizer, inclusive,
que a natureza própria ao Trieb, em sua relação com das Ding, é a de ser
pulsão de morte, conforme será explanado no item 7.7.
Outra forma de destacar o impossível em jogo na sublimação
é construída por Safatle (2004). Para o autor, o termo “impossível”
nomeia também toda a série de experiências resistentes aos processos de
simbolização que estruturam a vida social. Ele enumera cinco “impos-
Capítulo 7 – A mística entre o sentido e o não-sentido | 169

sibilidades”: a relação sexual, na medida em que esta, segundo Lacan,


não existe; a posição feminina (“A mulher não existe”); o real (“o real é o
impossível”); o corpo para além da imagem especular (ou seja, a carne que
não é recortada pela linguagem); e o gozo não-fálico – o gozo feminino.
Segundo Safatle (2004), a sublimação permite desdobrar um protocolo
comum para a resolução de tais impossibilidades, conforme segue:
Lembremos primeiramente que a sublimação articula os temas
do gozo (a sublimação é satisfação da pulsão), da posição feminina
(“é sempre por identificação à mulher que a sublimação produz
a aparência de uma criação” [LACAN, 1966-1967, sessão do
01/07/67]), do corpo (pois, se a sublimação é um gozo, não
podemos esquecer que: “só há gozo do corpo” [LACAN, 1966-
1967, sessão do 30/05/67]) e do Real (a sublimação permite a
apresentação do que há de Real no objeto). (SAFATLE, 2004).
Nesse sentido, o autor conclui que, se o impossível é definido por
Lacan como aquilo que “não cessa de não se escrever”, a sublimação trans-
forma o impossível a escrever em uma espécie de escritura do impossível.
Logo, para Safatle, a sublimação é uma forma de gozo. Esse
gozo, tal como aquele da mulher e do místico, se faz na escritura do
impossível porque resulta de um bordejamento dos limites do simbólico
( , diria Lacan), lugar no qual, como esclarece Pommier (1987), a
palavra pode significar tudo porque significa nada. Para além desses
limites está o real da Coisa.
Por fim, é importante enfatizar que a relação do sujeito com o
vazio da Coisa é diferente de acordo com os campos da arte, da ciência
e da religião (LACAN, 1988 [1959-1960]). A religião procura evitar
o vazio por meio dos rituais, da leitura pecaminosa do desejo e da
atribuição de sentido àquilo que não o tem, tal como a promessa de
vida após a morte. Já a ciência rejeita o vazio, pois objetiva produzir um
saber completo, “mestre”, que acaba excluindo o sujeito. Finalmente a
arte, por ser criação a partir do furo, revela-se mais honesta – ela não
evita nem rejeita o vazio, pelo contrário, o vazio lhe é necessário para
inspirar a criação.

7.4 A mística na fronteira entre o sentido e o não-sentido


Pelo viés da relação com a sublimação e o vazio da Coisa, o
misticismo parece estar na fronteira entre a religião e a arte. Por um
170 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

lado, a mística aproxima-se da religião, pois ela “mistifica”, ou seja,


produz sentido sobre aquilo não o tem ou, dito de outra forma, tampona
o vazio da Coisa. Por outro lado, a mística também se aproxima da arte,
pois em sua intensa sublimação o místico bordeja o furo e, desta forma,
toca o real, o não-sentido. Precisemos essas duas vertentes.
Não há como negar a intensa produção de sentido em voga no
misticismo. Ele cria, por exemplo, um horizonte de felicidade absoluta,
encarnado na esperança de união ao universo e à divindade. Uma ilusão,
como apontado por Freud, com o fim de proteger o eu das angústias
em sua relação conflituosa do mundo.
Essa união só se faz por meio do amor tão essencial à mística,
mas que é, contudo, pura produção de sentido, como bem lembra
Jorge (2005c).118 Ou seja, o amor busca constituir um a partir de dois,
obturando a ausência de relação sexual e produzindo um parceiro
absoluto, necessário e imprescindível – seja humano ou divino.
Por fim, sugere-se que a produção de sentido na mística não é
outra coisa senão sua “qualidade noética”, conforme destacado por
William James (1997 [1902]).119 Como ilustra o mestre da psicologia
norte-americana, a experiência mística envolve revelações, iluminações,
ou seja, estados de conhecimento. Esse saber é cheio de significado e
importância e, via de regra, carrega um senso de autoridade por tempos
vindouros. Em outras palavras, a experiência dá sentido à vida do
místico e, nesse particular, seu parentesco com a religião é indubitável.
Além disso, lembra Jorge (1994) que a experiência mística fornece
uma síntese – uma sensação de tudo compreender – que muito se
assemelha à experiência toxicomaníaca. Aliás, há doutrinas religiosas
modernas que publicamente associam o misticismo e o uso de drogas.120

118
Jorge (2005c, p. 146) relaciona a dicotomia desejo/amor à tripartição lacaniana do
Real-Simbólico-Imaginário: em sua face real o objeto do desejo humano não existe,
ele não cessa de não se escrever. Em sua face simbólica, o objeto do desejo existe, ele
cessa de não se escrever, porém é contingente e lábil – pode sempre mudar em virtude
do deslocamento metonímico do desejo, inerente ao registro simbólico. Já em sua
face imaginária, o objeto do desejo não cessa de se escrever, ele torna-se necessário.
O amor, portanto, está na intersecção entre a face simbólica e imaginária do objeto e,
“sendo assim, o amor é essencialmente produção de sentido”.
119
Ver capítulo 1, item 1.3.
120
No Brasil há, por exemplo, algumas religiões que utilizam uma bebida altamente
alucinógena feita com plantas amazônicas (chamada de ayahuasca, hoasca, Santo
Capítulo 7 – A mística entre o sentido e o não-sentido | 171

Tal relação foi originalmente percebida por estudiosos, em especial por


volta da década de 1960, no advento da contracultura norte-americana
e do movimento psicodélico que pregava o uso de alucinógenos como
formas de “expansão da consciência”.121
Para Bidaud (2002), esta síntese proporcionada pela experiência
mística é uma relação muito específica do sujeito com o conhecimento
e a verdade. Na mística, à maneira de uma incorporação oral, o sujeito
identifica-se com o objeto de seu saber: ele o possui e é possuído por ele.
Desta forma desaparece, sobre esse objeto de saber, toda possibilidade
de pesquisa e de desejo. O autor conclui: “O sujeito erige-se em verdade.
Ele não a aborda, ele a é” (BIDAUD, 2002, p. 159).
Não obstante a proximidade com a religião, o misticismo, por
outro lado, relaciona-se também com a arte, porque, ao contrário da
religião e da ciência, ele cinge a Coisa. Poder-se-ia inclusive pensar que,
se a obra de arte é uma produção de sentido a partir do encontro com
o vazio da Coisa, também o é a mística. Ou seja, a maciça produção de
sentido em voga na mística só acontece a partir de uma íntima relação
de vizinhança com o não-sentido, com das Ding.
Jorge (2005b) entende a obra de arte como uma construção
simbólico-imaginária que aponta para o real. Também a mística pode
ser entendida dessa forma. Lembro aqui de uma famosa história zen-
budista na qual o mestre demonstra que um dedo apontando para a
Lua não é a própria Lua.122 Ao demarcar o que as palavras não são, o
mestre zen parece apontar para o real.

Daime, yagé, entre outros), de origem indígena, para produzir um estado de êxtase e
visões durante seus cerimoniais.
121
Cite-se, por exemplo, Aldous Huxley com sua famosa obra As portas da percepção
(1954), na qual o autor relata experiências místicas com o uso da mescalina. O
psicólogo norte-americano Timothy Leary, ícone da contracultura, publicou, entre
outros, The psychedelic experience: a manual based on the Tibetan Book of the Dead (1964,
em coautoria) – um guia para experiência alucinógena inspirado no Livro Tibetano
dos Mortos (Bardo Thodol), um clássico da literatura budista tibetana.
122
“Um dia, uma monja chamada Wujincang perguntou ao sexto patriarca zen
Huineng: ‘Estudo o Nirvana Sutra há muitos anos e ainda não compreendo bem
algumas passagens. Acha que poderia explicá-las para mim?’. Huineng: ‘Lamento,
mas não sei ler. Se puder ler as passagens, tentarei ajuda-la’. Wujincang: ‘Se não
consegue ler as palavras, como pode compreender a verdade por trás delas?’. Huineng:
‘A verdade e as palavras não estão relacionadas. A verdade pode ser comparada à lua. E
as palavras poder ser comparadas a um dedo. Posso usar meu dedo para apontar para a
172 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

Mas antes de analisar a relação da mística com o não-sentido, cabe


melhor explicitar o que isso quer dizer dentro do âmbito psicanalítico.

7.5 O despertar e a desconstrução do sentido na psicanálise


Jorge (2005a, p. 276) indaga se a psicanálise, tal como concebida
por Freud e Lacan, seria, em verdade, um despertar do sentido, “um
despertar para o mais-além do sentido narcísico e, logo, imaginário. E
sabemos que o sentido está precisamente no cerne do discurso da neurose
individual e da neurose coletiva que, para Freud, representa a religião”.
O despertar do sentido, para Jorge (2005b), está na própria
metodologia freudiana, “metodologia de desconstrução, de subversão
do sentido dado”. Assim, pode-se pensar que a direção do tratamento
psicanalítico é, em si mesma, uma forma de desconstrução.
A questão da direção do tratamento já preocupava o próprio
Freud. Em Sobre a psicoterapia (1998 [1905]), ele distingue dois caminhos
terapêuticos diametralmente opostos, os quais batizou metaforicamente
conforme uma classificação usada por Leonardo da Vinci no campo
das artes – per via di porre e per via di levare. O objetivo do inventor da
psicanálise era distinguir a diferença radical de direção no tratamento
por sugestão (o tratamento hipnótico) e no tratamento psicanalítico:
[...] a técnica sugestiva busca operar per via di porre; não se importa
com a origem, a força e a significação dos sintomas patológicos,
senão que deposita algo, a sugestão, que, segundo se espera,
será suficientemente poderosa para impedir a exteriorização da
ideia patógena. A terapia analítica, em contrapartida, não quer
agregar nem introduzir nada novo, senão subtrair, retirar, e com
esse fim se preocupa com a gênese dos sintomas patológicos e
a trama psíquica da ideia patógena, cuja eliminação se propõe
como meta. (FREUD, 1998 [1905], p. 250).
A dialética via di porre/ via di levare é atualizada no debate
psicanalítico contemporâneo pela questão da diferença entre psicanálise
e psicoterapia. Para Marie (2004), por exemplo, as psicoterapias atuam
tão somente no nível da sugestão transferencial, acrescentando ao
sujeito saberes e explicações – nada mais do que novos sentidos para

lua, mas meu dedo não é a lua e você não precisa dele para ver a lua, certo?’” (Adaptado
de Chung (1999, p. 39)).
Capítulo 7 – A mística entre o sentido e o não-sentido | 173

seu sofrimento. Esse seria também o caminho da religião, pois Marie


(2004), aliás, denuncia uma origem epistemológica religiosa em diversos
tipos de psicoterapia. A psicanálise, por seu turno, entende que o sujeito
já é o intérprete por excelência de seus sintomas. Assim, ele precisa não
de novas explicações sobre seu sofrimento, mas de um deciframento
que apenas explicite os sentidos por ele inconscientemente construídos
(BIRMAN, 1985).
Nesse caminho, a grande inovação proposta por Jacques
Lacan foi demonstrar que também os sistemas psicanalíticos pós-
freudianos tomaram equivocadamente a via di porre, pois a técnica da
interpretação – maior instrumento do analista – foi transformada em
pura construção de novos sentidos para o sintoma do paciente. Assim
explica Mezan (2002a, p. 192): “Na óptica lacaniana, os elementos que
os outros analistas destacariam como alvo da interpretação pertencem
ao registro do imaginário, enquanto a técnica analítica deveria visar ao
simbólico – ou, no último Lacan, o ‘real da pulsão’.”
Se entendermos que o imaginário é o campo da produção
de sentido (JORGE, 2005a), concluiremos que toda interpretação
atuando como explicação ou pedagogia fica somente no âmbito deste
registro e, como tal, apenas se acrescenta como nova camada do eu.123
A perspectiva lacaniana, insurgindo-se contra esse tipo de intervenção,
atua principalmente no nível do significante (o simbólico) e justifica essa
direção, fundamentalmente, porque concebe o funcionamento psíquico
como algo feito para recobrir um vazio estrutural – a falta a ser. Logo,
numa perspectiva lacaniana: “O trabalho da análise não pode ser o de
acrescentar a essa série de recobrimentos mais aqueles que resultariam
da interpretação, mas sim realizar a tarefa oposta: revelar o vazio que se
oculta no fundo da alma humana” (MEZAN, 2002a, p. 193).
Essa vetorização da análise lacaniana para a dessubjetivação do
paciente – via di levare – assumiu dois grandes momentos em sua obra. O
primeiro deles é chamado de clínica do significante – referência a uma
primazia do simbólico no trabalho analítico. Entre outras importantes
características, nesta clínica “o final da análise seria um acréscimo
de saber sobre o não sabido, o ‘inconsciente’, e a sua verdade lógica”
(FORBES, 2005, p. 9). Nesse momento, fala-se em um acréscimo de

123
Lacan demonstrou com o estádio do espelho que o eu é uma instância imaginária
por excelência, conforme já visto no capítulo 4, item 4.5.
174 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

saber, por mais que a interpretação analítica não atue no registro do


imaginário.
Já a segunda clínica – chamada clínica do real, do ato ou borro-
meana – dá primazia àquilo que insiste no sujeito além das tentativas da
ordenação simbólica. Como explica Forbes (2005), o objetivo agora não
é saber mais, ao contrário, conforme sustenta Lacan,
o que se trata é o limite do saber, e não o seu acréscimo, e que
o final da análise está do lado do saber fazer (savoir faire) com
o não sabido, com o inconsciente, e não do lado do fazer saber
( faire savoir) a seu respeito. (FORBES, 2005, p. 9).
A questão da produção de sentido é fundamental para o
entendimento desses dois momentos lacanianos. A primeira clínica, ao
enfatizar a interpretação, buscava sempre a existência de outro sentido
por trás do que o paciente intencionava dizer. Já a segunda clínica
enfatiza o limite do saber e, por conseguinte, da própria interpretação.
Este limite aponta para o real, o fora-do-sentido, experienciado pelo
sujeito como um vazio, uma falta em seu ser. Como afirma Beividas
(2004), o último ensinamento lacaniano, dos anos 1970, aponta para
um radical fora-do-sentido, de forma que Lacan inclusive se teria dado
“a uma zombaria generalizada do primeiro [Lacan], da vertente do
sentido” (BEIVIDAS, 2004, p. 156).
Retomando a questão do despertar, Jorge lembra que o marco
inaugural da psicanálise freudiana é o abandono da hipnose (via di
porre), pois a psicanálise objetiva, no sujeito, “revelar precisamente
aquilo que já o hipnotiza desde sempre” (JORGE, 2005a, p. 276-277).
Assim, para o autor, a psicanálise de Freud pode resumidamente ser
entendida como um despertar progressivo de quatro dimensões do
sentido: o sonho, a fantasia, o delírio e a ilusão.
Sonhar é o tema inaugural da psicanálise, e o despertar do sonho
é realizado já na Traumdeutung, pois nela Freud utiliza-se do simbólico
para demonstrar o duplo sentido onírico: conteúdo manifesto e
conteúdo latente. Segundo Freud, há um desejo de dormir, e o sonho
é o guardião do sono. Além disso, nos sonhos de angústia, a pessoa
acorda no exato momento que a verdade sobre seu desejo poderia
aparecer, demonstrando que o sujeito acorda justamente para continuar
a dormir. Nesse sentido, enfatizou Lacan (apud JORGE, 2005a, p. 275)
Capítulo 7 – A mística entre o sentido e o não-sentido | 175

que “o inconsciente é muito exatamente a hipótese de que a gente não


sonha somente quando dorme”.
Para Jorge (2005a), a fantasia, por sua vez, vai ser aproximada
do sonho na obra freudiana, pois é a fantasia inconsciente (fantasia
fundamental) que dá base ao sonho e ao devaneio (fantasia consciente) e
constitui a própria relação do sujeito com a realidade na vida de vigília.
Se a fantasia fundamental é estruturante para o sujeito neurótico,
Jorge (2005a) lembra que o delírio é uma tentativa, mais ou menos
exitosa, de reconstruir, no sujeito psicótico, o filtro da fantasia tal como
opera no neurótico. Está, portanto, também relacionada ao sentido.
Por fim, e mais importante para este trabalho, é a questão da ilusão:
ela representa, para Freud, a religião. Já expus aqui que as crenças
religiosas são assemelhadas a delírios por Freud, e seu caráter ilusório
vem do fato de serem motivadas pela realização de desejos.
Destarte, com relação aos quatro grandes caminhos humanos – a
arte, a ciência, a filosofia e a religião –, Jorge (2005a) reflete sobre o motivo
de Freud opor-se apenas à religião. “Psicanálise e religião constituem
dois modos radicalmente opostos de operar o sentido; a religião opera
fechando o sentido, ao excluir dele o real, ao passo que a psicanálise,
incluindo-o, opera abrindo o sentido” (JORGE, 2005a, p. 285).
Contudo, se há uma incompatibilidade radical entre psicanálise
e religião no que concerne à questão do sentido, Jorge (2005a) percebe
que esse não é o caso da experiência mística radical. Em suas palavras:
Se o despertar absoluto [do sentido] é impossível, momentos
de despertar, pontuais, não são aquilo que a experiência
psicanalítica possibilita? Por outro lado, o despertar absoluto
é o que parece estar em jogo no cerne da experiência mística
radical. (JORGE, 2005a, p. 286).
A interpretação psicanalítica demonstra ao analisante o duplo
sentido das palavras: atuando no simbólico, ela possibilita ao sujeito
entrever o real, o não-sentido. Contudo, mesmo sendo transformadora,
essa experiência do real é fugaz e por isso constitui momentos pontuais
de despertar. Já a mística, especialmente aquela da liberação, parece
buscar o despertar radical do âmbito do sentido.
Continuando essa ideia, Jorge (2005a) chama atenção para a noção
budista de que a vida humana é um sonho sem sonhador. “Detrás do
sonho e abaixo deste, não há nada. Ou seria melhor dizer – há nada?”
176 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

(JORGE, 2005a, p. 287). O autor retoma então a história de Sidharta


Gautama, o Buda – nome que significa precisamente “O Desperto”
–, para afirmar que a sua busca foi precisamente do “encontro com
o real” (JORGE, 2005a, p. 287). Finalizando, o autor faz a seguinte
articulação:
A psicanálise não visa transformar os analisandos-Sidhartas
em Budas, mas não podemos esquecer que Lacan chega a situar
o analista num lugar homólogo ao da santidade, de rebotalho
da humanidade. O despertar é um momento inapreensível da
vida humana, mas presente: ele é homólogo ao lugar do sujeito.
(JORGE, 2005a, p. 288).
A ideia de definir a psicanálise como um despertar é profícua
para o estudo da mística, pois várias escolas místicas enfatizam que
o homem precisa despertar – acordar precisamente de um sonho
manifesto mesmo na vida de vigília.

7.6 O despertar e a desconstrução na mística


Serão relatados agora alguns exemplos do discurso sobre o
despertar no âmbito da mística. O místico armênio Georges Gurdjieff
(1872-1949) era categórico a respeito de uma “sonolência” intrínseca
ao homem comum: “Ele [o homem] vive no sono. Dorme. E o que chama
sua ‘consciência lúcida’ nada mais é que sono – e um sono muito
mais perigoso que o seu sono, durante a noite, em sua cama” (apud
OUSPENSKY, 1998, p. 168). Gurdjieff criou na Rússia uma escola de
misticismo chamada de Quarto Caminho, a qual tinha certa inspiração
no sufismo. Seu discípulo mais conhecido é o escritor P. D. Ouspensky,
que deixou livros sobre a via mística do mestre.
Para o místico armênio, o sono e o estado de vigília não seriam
qualitativamente diferentes. Constituiriam, em verdade, duas formas de
sono. Assim ele se expressa sobre o suposto estado de vigília do homem:
À primeira vista, é um estado de consciência inteiramente
diferente. [o homem] Pode mover-se, falar com outras pessoas,
fazer projetos, ver perigos, evitá-los e assim por diante. Parece
razoável pensar que se encontra em melhor situação que quando
estava adormecido. Mas, se olharmos as coisas mais a fundo,
se lançarmos um olhar sobre o seu mundo interior, sobre seus
pensamentos, sobre as causas de suas ações, compreenderemos
Capítulo 7 – A mística entre o sentido e o não-sentido | 177

que está quase no mesmo estado que quando dormia. (apud


OUSPENSKY, 1998, p. 167-168).
De acordo com Gurdjieff, a situação humana no estado de vigília
é até pior que no sono, pois no primeiro caso pode-se infligir mal a
si mesmo e aos outros, o que dificilmente acontece na passividade do
repouso noturno.124
A esses estados de consciência ele contrapõe dois outros que só
surgem pelo esforço volitivo. O primeiro é a lembrança ou consciência
de si, um estado no qual o homem, por meio de determinadas técnicas
meditativas, tenta escapar da sonolência imanente aos estados anteriores.
Já o estado seguinte, último degrau, é o da consciência “objetiva”, no
qual o homem desperta e pode ver as coisas “como são”. Ele explica:
“As religiões de todos os povos contêm testemunhos da possibilidade
de tal estado de consciência, que qualificam de ‘iluminação’125 ou de
diversos outros nomes e que dizem ser indescritível” (GURDJIEFF
apud OUSPENSKY, 1998, p. 168).
Gurdjieff (apud OUSPENSKY, 1998, p. 167) comenta que a
principal dificuldade do homem é justamente reconhecer que dorme
mesmo quando acordado: “É evidente que um homem não se interessará
por adquirir, através de longo e difícil trabalho, uma coisa que, em sua
opinião, já possui”.
Ainda sobre a suposta sonolência da vida desperta, Gurdjieff
conclui:
Nada há de novo na ideia de sono. Desde quase a criação do mundo,
foi dito aos homens que eles estavam adormecidos e deviam
despertar-se. Quantas vezes lemos, por exemplo, nos Evangelhos:
“Despertai”, “vigiai”, “não durmais” [...] Mas os homens o
compreendem? Tomam isso como figura de retórica, como uma
metáfora. (GURDJIEFF apud OUSPENSKY, 1998, p. 169).

124
A Primeira Guerra Mundial era, para Gurdjieff, um claro resultado da sonolência
humana: “Há guerra neste momento. O que quer isso dizer? Significa que vários milhões
de adormecidos esforçam-se por destruir vários milhões de outros adormecidos. Eles
se recusariam a isso, naturalmente, se despertassem. Tudo o que se passa atualmente é
devido a esse sono” (GURDJIEFF apud OUSPENSKY, 1998, p. 168).
125
Para o místico Rajneesh (2003, p. 91), a iluminação “nada mais é do que um
despertar. Para a pessoa iluminada, todas as nossas vidas são apenas sonhos. Talvez
sejam bons sonhos, talvez sejam maus sonhos; pode ser que sejam pesadelos, pode ser
que sejam sonhos belos e agradáveis, mas, da mesma forma, são sonhos”.
178 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

Para o místico armênio, a questão da sonolência do homem não


é uma metáfora, mas para reconhecê-la é necessário que o homem,
ao menos, tente despertar, porque obviamente não se percebe o sono
enquanto se sonha. Ele reconhece, ainda, que a ideia do sono não é nova
e permeia outras religiões e escolas místicas. Nesse ponto, Gudjieff está
perfeitamente de acordo com outro místico contemporâneo, o indiano
Rajneesh (2003, p. 8), o qual fala sobre o despertar:
Se todos os budas do mundo concordam com respeito a um
único tema, esse tema é o seguinte: o homem, da forma como
é, está dormindo, e o homem da forma como deveria ser deveria
estar acordado, desperto. Ficar desperto é o objetivo e é também
o gosto, o tempero, de todos os ensinamentos desses budas,
Zaratustra, Lao-tsé, Jesus, Buda, Bahauddin, Kabir, Nanak –
todos os seres despertos ensinaram sobre um único tema [...] em
diferentes línguas, com metáforas diferentes, embora sua canção
fosse a mesma. Assim como o mar tem um gosto salgado – seja
ele provado no norte, no leste ou no oeste, o mar sempre tem um
gosto salgado –, o “gosto” da condição de buda é estar acordado.
Rajneesh tem uma inspiração claramente budista, mas posiciona-
se, como outros místicos, em um entendimento perenialista da mística,
ou seja, de que a experiência mística é universal apesar de todas as
diferenças culturais.
O budismo é, realmente, a religião que mais enfatiza o sono e a
necessidade do despertar. O próprio título “Buda”, como mencionado
antes, significa “O Desperto” e refere-se não só a Siddharta Gautama
– Buda histórico (ou talvez mitológico) –, mas a todos aqueles que
despertarem. No Dhammapada,126 o despertar é enfatizado em muitas
passagens, como no verso 21: “A vigília é o caminho da imortalidade –
Nibbana (Nirvana). A negligência é o caminho da morte. Os vigilantes
não perecem; os negligentes já estão como mortos” (DHAMMAPADA,
1989, p. 21). As traduções do páli são muitas, mas nesse caso a dicotomia
vigília-negligência pode ser entendida como despertar-adormecer.
Complete-se com o verso 26: “Por ignorância os insensatos se entregam
à negligência. Os sábios mantêm a vigilância (plena atenção) como o

126
Trata-se de importante escritura budista, constituída de 423 versos atribuídos ao
próprio Siddharta Gautama.
Capítulo 7 – A mística entre o sentido e o não-sentido | 179

tesouro mais precioso” (p. 22). A plena atenção indica a prática budista
de meditação que objetiva o despertar.
No budismo Theravada, uma importante forma de meditação é
chamada de Vipassana, a qual teria sido responsável pela iluminação de
Siddharta Gautama. Trata-se de um método bastante simples em que
o sujeito foca sua atenção no curso da própria respiração. Entretanto
não consiste somente em um método de concentração, pois caracteriza
também uma disposição favorável à observação imparcial de quaisquer
conteúdos anímicos que surjam ao meditador. Assim, a concentração
é apenas parte do processo maior, cujo objetivo é desenvolver uma
atentividade que não seleciona os conteúdos psíquicos, ou seja,
não se apega às experiências agradáveis nem foge ou afasta-se das
desagradáveis127 (GUNARATANA, 2002).
Assim, Gunaratana explica que a meta do Vipassana é simplesmente
aprender a prestar atenção. E de maneira análoga a Gurdjieff, ele afirma
que o homem se ilude quando pensa já estar atento. “Isso vem do fato de
que prestamos tão pouca atenção à contínua onda de nossas experiências
de vida que poderíamos da mesma forma estar adormecidos. Nós
simplesmente não estamos prestando atenção suficiente para perceber
que não estamos prestando atenção” (GUNARATANA, 2002, p. 21).
Considerando que o Vipassana consiste tão somente em prestar
atenção ao que quer que surja na consciência do meditador, suspendendo
juízos, o monge Gunaratana frisa que o método não se assemelha à
autossugestão (e poderíamos falar da auto-hipnose, por extensão). Ele
explica:
Uma maneira popular para lidar com dificuldades é a autos-
sugestão: quando algo desagradável irrompe [no psiquismo],
você se convence de que é agradável ao invés de desagradável.
A tática do Buda é totalmente oposta. Ao invés de escondê-lo
ou encobri-lo, o ensinamento do Buda incita-o a examiná-lo

127
A título de curiosidade, destaco existirem alguns autores do meio psicanalítico
norte-americano que aproximam a atenção flutuante do psicanalista às práticas
meditativas budistas (COOPER, 2003; EPSTEIN, 1988; RUBIN, 1985; entre outros).
Segundo Cooper (2003, p. 2), “um ponto consistente de convergência entre as duas
técnicas se centra na ênfase compartilhada sobre uma postura essencialmente passiva,
não julgadora”. Ou seja, a escuta flutuante, na medida em que visa não selecionar a
priori ou fazer juízos de valor sobre o material trazido pelo analisando, assemelhar-
se-ia à forma de atenção que o meditador dirige aos seus próprios pensamentos e
sentimentos.
180 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

totalmente. O budismo aconselha-o a não implantar sentimentos


que você não tem realmente ou evitar sentimentos que você tem.
(GUNARATANA, 2002, p. 59).
Assim, Gunaratana enfatiza ser a meditação budista algo oposto
a uma via di porre, em argumentação semelhante àquela utilizada por
Freud em Sobre a psicoterapia (ver citação à página 146). Em verdade,
a atenção meditativa parece ter o efeito de decompor os conteúdos
psíquicos sobre os quais ela é projetada, de forma que o autor conclui:
“Meditação é um pouco como um ácido mental. Ela destrói lentamente
qualquer coisa sobre a qual você coloque-a” (GUNARATANA, 2002,
p. 81). Ou seja, a meditação dissolve sentidos como um ácido, e tratar-
se-ia, pois, de uma autêntica via di levare.

O caso do zen-budismo
Dentro dos ramos do budismo, o zen,128 por seu turno, dá forte
ênfase à experiência do despertar. O zen (ou Chan) é uma mescla única
do pensamento budista indiano com o pensamento taoista chinês. Sua
criação é atribuída ao monge budista indiano Bodhidarma – o Primeiro
Patriarca do Chan –, uma figura lendária que teria vindo da Índia e se
estabelecido na China do século VI para desenvolver uma abordagem
radicalmente nova do budismo. Atribui-se a ele as seguintes palavras
sobre a essência da perspectiva Chan:
Não confiar na palavra escrita,
Uma transmissão especial independente dos textos sagrados;
Voltar-se para a própria mente,
Ver a própria natureza,
Tornar-se um buda. (apud CHUNG, 1999, p. 19).
De acordo com Powell (1999), o Chan surge em parte como reação
ao budismo praticado na grande instituição monástica da dinastia Tang
(China medieval), caracterizada pela influência de monges eruditos e
por uma afirmação monopolista do conhecimento. Seu objetivo era a
compreensão e transmissão dos ensinamentos do Buda por meio de
uma experiência direta, sem recurso à teologia ou filosofia abstrata
(FADIMAN; FRAGER, 1986, p. 288). Seria, desta forma, uma reação

128
Ver mais sobre o zen no capítulo 1, item 1.7.
Capítulo 7 – A mística entre o sentido e o não-sentido | 181

subversivamente mística aos rumos cristalizadores que o budismo vinha


tomando enquanto religião.129
Segundo seu maior divulgador no Ocidente, o japonês D. T.
Suzuki (1991), o zen é a cristalização de toda a filosofia do Oriente, mas ao
mesmo tempo não é um sistema de filosofia intelectual e metafísico como
os outros ensinamentos budistas. A rigor, Suzuki defende que o zen não
é filosofia em absoluto, 130 pois não se baseia na lógica e na análise, nem
possui doutrinas prontas que sejam impostas aos seus seguidores. Nem
mesmo existem livros sagrados ou afirmações dogmáticas: “certamente
nada existe no zen propositadamente instituído como suas doutrinas
principais ou sua filosofia fundamental” (SUZUKI, 1991, p. 38).
Ainda segundo a visão de Suzuki (1991), o zen também não
pode ser considerado uma religião no sentido ocidental do termo. Isso
porque não possui nenhum deus para venerar e nenhuma crença em
imortalidade da alma. O zen não afirma nem nega a existência de um
deus, pois objetiva elevar-se acima da lógica e encontrar uma afirmação
maior em que não há antítese (SUZUKI, 1991).
Essa afirmação maior é o próprio objeto da disciplina zen e
recebe o nome de satori em japonês ou wu em chinês. O satori é definido
por Suzuki (1991) como a aquisição de um novo ponto de vista, uma
nova maneira de olhar a essência das coisas. “O satori pode ser definido
como um olhar intuitivo, em contraposição à compreensão intelectual

129
Logo, segundo a literatura Chan, a maioria dos estudiosos budistas teria se
desvirtuado por meio da especialização excessiva e do uso de explicações prolixas, o que
transformava a exposição dos textos clássicos em mera leitura contraprodutiva, levando
não à sabedoria, mas ao conhecimento ocioso (POWELL, 1999). Desta forma, a meta
do mestre Chan era personificar o próprio ensinamento a ser transmitido. Ou melhor,
ele não buscava transmitir um ensinamento ao discípulo, mas dirigi-lo ao único lugar
onde poderia encontrar sabedoria: seu próprio psiquismo. Para isso os mestres Chan
comportavam-se de maneira muito audaciosa, pois tratavam com desrespeito os livros
sagrados e, principalmente, “respondiam a perguntas de discípulos aparentemente
zelosos de um modo bastante ilógico, sumário ou até mesmo ofensivo” (POWELL,
1999, p. 9).
130
Essa visão é corroborada por estudiosos contemporâneos de Suzuki, como Alan
Watts e Carl Jung. Para eles, o zen era mais próximo de um caminho ou um estilo
de vida, algo inadequado a qualquer categoria da filosofia ocidental (ROSEMONT,
1970). Outros estudos, entretanto, concluem que, se não coincide inteiramente com
uma filosofia, o zen certamente possui muitos elementos filosóficos (ROSEMONT,
1970).
182 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

ou lógica” (SUZUKI, 1991, p. 88). Enquanto estado de consciência, o


satori é indicado como uma experiência que transcende a dualidade do
pensamento comum, o qual distingue “eu” e “outro”, sujeito e objeto.
Para Maupin (1993, p. 174), no zen os problemas existenciais
são vistos como o “resultado do modo pelo qual o adulto comum
experimenta a si mesmo e ao seu mundo [...] Para uma resposta, propõe-
se uma alteração radical no modo da experiência, o satori”. Na visão
deste autor, o satori não é um estado de transe e, apesar de transitório,
ele altera radicalmente a maneira do sujeito vivenciar a si mesmo e o
mundo, constituindo um passo importante no caminho da iluminação
ou nirvana – objetivo comum de todas as tradições budistas.
Os métodos bastante documentados dentro da tradição zen
para abrir o discípulo à experiência do satori são o zazen, o mondo e o
koan. O zazen é a prática meditativa em posição sentada. Geralmente
o estudante dedica um período do dia para sentar-se imóvel, com o
objetivo de “interromper o fluxo ordinário dos pensamentos, sem se
deixar cair num estupor” (MAUPIN, 1993, p. 178). O zazen parece
definir uma atitude particular de observação imparcial dos conteúdos
psíquicos, semelhante, nesse sentido, à prática do Vipassana no budismo
Theravada.
O mondo significa literalmente “perguntar e responder”
(SUZUKI, 1991). Diz respeito simplesmente aos diálogos entre
mestre e discípulo, que por seu caráter inusitado foram amplamente
documentados ao longo da história dessa tradição, tal como o que
segue:
Discípulo: “É a primeira vez que venho e gostaria que o mestre
me ensinasse o aperfeiçoamento pessoal.”
Mestre: “Já tomou seu café da manhã?”
Discípulo: “Sim.”
Mestre: “Então lave sua gamela!”. (adaptado de CHUNG,
1999, p. 83)
Explica Suzuki (1991) que a resposta desse mestre – o monge
chinês Joshu (778-897 d.C.) – provocou súbito satori no discípulo. As
respostas dos mestres zen têm sempre esse caráter prático e direto ao
ponto, curto, condensado e espontâneo e sem a menor espera para
responder. Essas respostas ilógicas, sumárias e até ofensivas acabavam
por frustrar a busca de explicações dos discípulos, forçando-os a uma
Capítulo 7 – A mística entre o sentido e o não-sentido | 183

observação incisiva do próprio psiquismo. Essa ênfase é bastante clara


no seguinte mondo:
Discípulo: “Qual o significado do zen?”
Mestre: “Gostaria de lhe dizer... mas agora preciso ir ao
banheiro. Pense sobre isso, algo tão insignificante que
ninguém pode fazer por mim. Pode fazer por mim?”. (adaptado
de CHUNG, 1999, p. 90).
O koan, por sua vez, é um tipo de problema lógico que o mestre
intencionalmente propõe aos seus discípulos, tendo por objetivo
despertá-los ao satori. “Para efetuar esse despertar, o koan toma, às vezes,
uma forma dialética, mas amiúde assume, pelo menos à superfície, uma
forma totalmente disparatada.” (SUZUKI, 1970, p. 55).
O aparente disparate aparece às vezes na forma de pedidos
impossíveis como os seguintes: “Deixa-me ouvir o som de uma mão
batendo palmas sozinha”; “Usa tua pá, que está em tuas mãos vazias”;
“Caminha enquanto montas um burrico”; “Fala sem usar a tua língua”;
“Toca o teu alaúde sem cordas”; “Faze parar esse aguaceiro” (SUZUKI,
1970, p. 61).
Consoante Suzuki (1970), a estratégia do koan é forçar um tipo
de compreensão fora do plano da intelecção. “O intelecto propõe,
mas quem dispõe não é o proponente” (SUZUKI, 1970, p. 60). Para
o autor, a resposta só pode ser obtida quando o discípulo dá um salto
desesperado para longe da segurança existencial, um “salto sobre o
abismo hiante” (p. 62) que corresponde à entrada no satori.
Vale lembrar que o caráter anedótico dos koans e dos mondos
faz parte do próprio encanto dessa tradição e tem razões bastante
estratégicas: eles “substituem o argumento e a exegese por ‘indicação
direta’ e personificação” (POWELL, 1999, p. 18).

A desconstrução e o despertar no zen


O zen é apontado como método de desconstrução de sentidos
segundo estudiosos no campo da chamada filosofia comparativa. Para
Littlejohn (2005), a filosofia comparativa – também denominada
de filosofia intercultural – é um ramo no qual filósofos trabalham
determinados problemas por meio do diálogo intencional entre
diferentes correntes culturais, linguísticas e filosóficas. É comum,
184 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

nesse empreendimento, o diálogo entre tradições modernas ocidentais


e tradições clássicas orientais, tais como a chinesa, indiana e japonesa.131
Ainda de acordo com Wong (2005):
A filosofia comparada aproxima tradições filosóficas que
se desenvolveram em relativo isolamento entre si e que são
definidas amplamente ao longo de linhas culturais e regionais –
Chinesa versus Ocidental, por exemplo. (WONG, 2005).
Antecedentes longínquos da filosofia comparada podem ser
encontrados no interesse filosófico ocidental pelas tradições da Ásia
durante o século XVIII. Porém, evidentemente, o que se fazia nesta
época não era comparativo, pois não levava em conta a visão oriental
(LITTLEJOHN, 2005).
Desde a década de 1990 até a atualidade, outros tipos de paralelos
passaram a ser destacados, em especial com base na visão da linguagem
e da cultura como intrinsecamente importantes para a compreensão
do zen-budismo. Na perspectiva de Crook (2000), mesmo que haja um
componente completamente não cultural na experiência da iluminação
(satori) zen-budista, ela é claramente amarrada em tradições, o que
aparentemente foi negado por D. T. Sukuzi.
Nesse raciocínio, insere-se a contribuição de Wright (1992),
avesso à visão ocidental tradicional de que a experiência zen transcende
a linguagem. Em suas palavras: “‘Nós’ não estamos mais justificados a
pensar que este tipo de experiência religiosa (ou qualquer outra) está
completamente além do poder modelador da linguagem e da cultura”
(WRIGHT, 1992, p. 113).
Wright (1992) posiciona-se precisamente contra algumas ideias
de Erich Fromm (1970), as quais obviamente tiveram muita influência
do pensamento de D. T. Suzuki. De acordo com Fromm, a linguagem
seria um “filtro” que previne a percepção direta da realidade, de forma
que a meta tanto do zen como da psicologia humanística seria a liberação

131
Littlejohn (2005) faz questão de separar o campo da filosofia comparada do
campo da filosofia de estudos regionais (area studies philosophy) e da filosofia mundial
(world philosophy). Para o autor, a filosofia de estudos regionais se engaja em culturas
e tradições específicas, mas o trabalho final não objetiva ser comparativo. A filosofia
mundial, por seu turno, é caracterizada pelo esforço de construir uma filosofia que
leve em consideração a grande variedade de tradições culturais e filosóficas do mundo,
tentando elaborar uma visão de mundo coerente a partir de todas elas.
Capítulo 7 – A mística entre o sentido e o não-sentido | 185

do condicionamento cultural e linguístico (WRIGHT, 1992). Vale


enfatizar que, em uma orientação lacaniana, a própria ideia de uma
percepção direta da realidade é uma ilusão que remonta aos mitos de
origem, conforme já discutido, pois o homem está irremediavelmente
mergulhado na ordem simbólica.
Wright (1992) argumenta que em vez de ser uma transcendência
da linguagem, a experiência do zen consiste em uma reorientação
fundamental dentro da linguagem. É um despertar não da linguagem,
mas para a linguagem. Isso não implica, no seu entendimento, que a
experiência da iluminação zen seja redutível à linguagem, mas que
esta participa ativamente na modelagem da experiência mística. O
treinamento zen seria, nesse caso, uma transgressão do uso cotidiano e
representativo dos símbolos, pois que o mestre iluminado expressa-se
usualmente através de dizeres paradoxais, diálogos espontâneos e atos
não usuais.
Essa linha de raciocínio ganhou maior peso e legitimidade por
meio de defensores dos paralelos entre o zen e a chamada filosofia
pós-moderna francesa. Bernard Faure, por exemplo, considera o
Chan um campo de provas para a validade e adequação de qualquer
teoria moderna e contemporânea do sentido e da análise do sentido
(CHENG, 1996). Desta forma, o autor afirma não haver uma rejeição
absoluta da linguagem no Chan, pois a própria rejeição precisaria ser
formulada dentro da linguagem (que inclui o silêncio).
Olson (apud MAGLIOLA, 2004) defende que a chamada filosofia
pós-moderna – representada principalmente por autores franceses como
Bataille, Baudrillard, Deleuze, Derrida, Guattari, Foucault, Kristeva,
Lacan, Levinas e Lyotard132 – comunga com o zen o fato de serem
caminhos de liberação do modo de pensamento representacional.
Vale lembrar que o pensamento representacional faz parte
do paradigma realista adotado pela tradição científica racionalista
ocidental, que concebe as representações como descrições de uma
realidade independente da linguagem. Isso levaria a crer que a verdade
é uma simples questão de precisão na representação da realidade
132
Não há, contudo, qualquer consenso sobre o que seja a filosofia pós-moderna
ou mesmo a filosofia pós-estruturalista, comumente associadas. Assim, os autores
franceses supracitados poderiam não concordar em ter seus pensamentos categorizados
dessa forma. Note-se, também, que não há qualquer meta de transcendência no
pensamento desses autores.
186 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

(SEMPRINI, 1999). Sob o ponto de vista dos estudos “pós-modernos”


da linguagem, essa posição é, no mínimo, ingênua.
Wang (2001) propõe que a compatibilidade entre pensadores pós-
modernos e os mestres do Chan está no uso de estratégias semelhantes a
brincadeiras com a linguagem, cuja meta é escapar da armadilha de seu
uso proposicional, lógico e descritivo. Em suma, são formas de fazer
a linguagem se voltar sobre ela mesma para negociar os seus limites
representacionais.133
Assim, para Wang (2001), o budismo Chan não prega que a
linguagem seja ineficaz e dispensável tal como era o entendimento
ocidental da questão, mas que, na verdade, a inadequação da linguagem
é relacionada a seu uso descritivo, “entitativo” ou cognitivo. Dessa
forma, o uso jocoso da linguagem no Chan consistiria em um caminho
mediano entre seu uso representacional, por um lado, e sua dispensa
radical, por outro. Essa compreensão se confirma nas palavras do
mestre chan Dazhu Huihai: “A mente búdica, não tendo qualquer
forma ou característica fixa, não pode ser separada nem amarrada à
linguagem” (apud WANG, 2001, p. 92).
Por meio da noção de que todo pensamento é vazio, Crook (2000)
considera que os mestres zen puderam brincar com a linguagem em
maneiras que vão além do que fizeram muitas outras tradições. Crook
lembra uma frase de um importante texto zen-budista, o “Sutra do
coração”, que afirma: “Forma é vacuidade. Vacuidade é forma” (apud
CROOK, 2000, p. 567). Segundo o autor, toda a reflexão moderna
sobre o budismo zen centrou-se na primeira frase desta passagem
(forma é vazio), enquanto a segunda foi esquecida (vazio é forma).
Consideradas em conjunto, as duas frases permitem entender que,
apesar de a linguagem indicar experiências vazias de substancialidade,
a expressão desse vazio só se efetiva através dela.
Os estudos comparativos entre o zen e a filosofia pós-moderna
têm se centrado bastante em paralelos com o pensamento de Jacques
Derrida (ver Magliola (1984, 1990), Wang (2001), Olson (2000), Foshay
(1994), entre outros). Odin (1990) apresenta um panorama bastante
133
Nesse ponto, é impossível não lembrar a conhecida predileção de Jacques Lacan
pelos neologismos e trocadilhos, assim como do comportamento um tanto excêntrico
na sua relação com pacientes e alunos, conforme relatado por Allouch (1999). Talvez
esse fosse um motivo pelo qual Lacan declarou que o zen é “o melhor do budismo” no
seminário Mais, ainda.
Capítulo 7 – A mística entre o sentido e o não-sentido | 187

didático dessas aproximações, começando por definir pontos cruciais


do pensamento do filósofo francês. Para Odin (1990), a desconstrução
derridiana é um estilo de pensamento destinado a desmontar todas as
noções de “autopresença” ou “autoidentidade”, nascidas como correlatos
do “ser” na episteme da cultura ocidental. Ou seja, Derrida objetiva
demonstrar que qualquer categoria de presença, ser ou identidade
pode ser desconstruída em um “jogo de diferenças”, condensado na
expressão différance.
O conceito de différance implica que nenhum signo pode ser
idêntico a ele próprio, pois, ao contrário, se dissemina em uma cadeia
de diferenças, de relações com outros signos. Segundo Odin (1990), a
ideia de différance objetiva prevenir o fechamento conceitual ou redução
a um significado último (transcendental). Em suas palavras, “[...] cada
‘significado’ é revelado como um jogo irredutível de significantes
deslizantes de tal forma que qualquer signo dado se esvazia em uma
rede inteira de relações diferenciais” (p. 62).
Desta forma, a desconstrução derridiana se expressa como um
descentramento, sendo que um “centro” é definido como qualquer signo
“absolutizado”, isto é, delimitado por uma autoidentidade ou essência.
A meta é desalojar esses centros metafísicos criados de várias formas
na história do pensamento ocidental em conceitos como substância,
essência, sujeito, energia, ego, consciência, Deus ou homem. Contudo,
o descentramento de Derrida não é niilista, já que todos os centros
desconstruídos pela différance reaparecem como “traços”, entendidos
como o jogo entre presença e ausência, ou entre identidade e diferença
(ODIN, 1990).
Colocadas essas definições, o ponto-chave para Odin (1990) é
esclarecer que muitos estudiosos consideram a desconstrução um
elemento básico do pensamento japonês, especialmente do zen-budismo.
Essa comparação se estabelece com base na noção de sunyatta atribuída
ao filósofo indiano Nagarjuna (150-250 d.C.), importante representante
da filosofia Madhkyamika que embasa epistemologicamente o zen-
budismo.
Por sunyatta entende-se a noção de que todas as coisas existentes
não possuem identidade fixa, ou seja, são carentes de substancialidade,
de tal forma que a natureza última da realidade é vazia. Nesse
entendimento, as coisas da realidade fenomênica são impermanentes e
188 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

existem puramente por sua definição em termos de outras coisas (outras


definições) e para a mente que gera essas definições (RAMANAN,
1998). Para Odin (1990) e Magliola (1984), a différance de Derrida e
o sunyatta do budismo representam uma desconstrução crítica do
princípio de autoidentidade. Em ambas as formas de desconstrução
haveria a transformação de todos os centros metafísicos (identidades
absolutas) em redes de relações diferenciais sem entidades positivas.
Além disso, para Magliola (1984) a noção de sunyatta também tem
correspondência com o “traço” da différance, uma vez que sunyatta
corresponde a um caminho mediano entre o eternalismo e o niilismo.
O próprio Roland Barthes, importante pensador do movimento
pós-estruralista francês, propôs, em seu livro L’empire des signes (1970),
ser o pensamento zen-budista japonês um tipo de espelho que reflete as
teorias semióticas formuladas na pós-modernidade. Essas teorias, que
remontam a Saussure (porém com modificações), definem a linguagem
como um sistema relacional (ou diferencial) sem entidades positivas
(sem significações fixadas), de forma que cada signo é um jogo de
significantes que deslizam pela cadeia inteira em relações diferenciais
(ODIN, 1990).

Lacan e o zen
Na teoria lacaniana, que certamente bebe das fontes estruturalista
e pós-estruturalista, pode-se assim identificar a ordem simbólica como
um movimento incessante, na medida em que qualquer significado
(imaginário) é um produto provisório do deslizamento entre significantes
que sempre remetem a outros significantes, em um movimento sem
fim. Nesse sentido, a ordem simbólica nunca conduz a uma significação
última das palavras – uma forma de explicar o aforismo lacaniano “Não
há Outro do Outro”. Logo, o princípio de autoidentidade também é
combatido por Lacan.
O sentido é, pois, sempre provisório, e a noção budista de sunyatta
parece ser um precursor longínquo dessa constatação. O vazio que essa
noção encerra aponta para o sem sentido radical.
Concluindo, o método zen também pode ser entendido como
uma dessubjetivação, uma via di levare, ou ainda, uma forma de
desconstrução de sentidos. Rambelli (1995), fazendo uma leitura
semiótica do budismo, comenta que a tradição budista inspirada na
Capítulo 7 – A mística entre o sentido e o não-sentido | 189

filosofia de Nagarjuna (da qual o zen é forte representante) tem como


meta “a obtenção da vacuidade por meio da incessante desconstrução
de assunções, conceitos e práticas significativas” (RAMBELLI, 1995,
p. 1). Pareando a psicanálise e o zen em leitura semelhante, Costa
(2005, p. 13-14) declara que
o efeito analítico pode [...] ser examinado à luz da excentricidade
de um mestre zen. Ambos geram uma ruptura de sentido no
campo do convencional, arremessam seja o discípulo, seja
o analisando em direção ao além-da-linguagem, frente à
experiência do vazio representacional. Psicanálise e zen são
métodos essencialmente desconstrutivos.
Rupturas de sentido – esta é uma boa expressão para definir o
que se passa nos mondo, os diálogos entre mestre e discípulo durante a
prática zen. Vejamos o mondo abaixo, motivado pelo questionamento de
um discípulo ao monge Baling (Período Clássico do zen – 755-950 d.C.):
Discípulo: Há alguma diferença entre o que disseram os
patriarcas e o que está nos textos sagrados?
Mestre: Quando esfria, os faisões ficam empoleirados nas
árvores, e os patos vão para debaixo d’água. (adaptado de
CHUNG, 1999, p. 109).
O discípulo busca conhecimento, sentidos. O mestre devolve-
lhe o nonsense, o não-sentido, indicando claramente que o saber não
é meta de sua prática. Outro discípulo pergunta desta vez ao Mestre
Joshu: “Um cão possui a natureza de Buda?”. Sua resposta: “Mu” (apud
GOODCHILD, 1993, p. 3). A resposta de Joshu não faz sentido algum
mesmo na língua chinesa. Trata-se de um significante sem significado,
materialidade pura, que se encaixa na definição da letra lacaniana.
Segundo Goodchild (1993), a resposta de Joshu é uma negação aparente
da universalidade da natureza búdica e aponta para uma negação do
poder de qualquer doutrina para articular a verdade. Não por acaso, o
próprio Lacan (1985 [1972-1973], p. 157) comentou a resposta de Joshu
em seu vigésimo seminário: “O que há de melhor no budismo é o zen, e o
zen consiste nisto: em te responder com um mugido, meu amiguinho”.134

134
Para o psicanalista Roberto Harari (2006, p. 133), essa passagem trata “do
resgate do sem-sentido, apontando para uma articulação renovada entre o sujeito e o
significante, por mediação da letra”.
190 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

Importante acentuar que passagens com menções ao zen, como


a supracitada, encontram expressão em alguns seminários de Lacan,
que assim demonstrava certo conhecimento e interesse nessa forma
de mística.135 A mais conhecida dessas menções inaugura seu primeiro
seminário – Os escritos técnicos de Freud:
O mestre interrompe o silêncio com qualquer coisa, um
sarcasmo, um pontapé. É assim que procede, na procura do
sentido, um mestre budista, segundo a técnica zen. Cabe aos
alunos, eles mesmos, procurar a resposta às suas próprias
questões. O mestre não ensina ex-cathedra uma ciência já pronta,
dá a resposta quando os alunos estão a ponto de encontrá-la.
Essa forma de ensino é uma recusa de todo sistema. Descobre
um pensamento em movimento – serve entretanto ao sistema,
porque apresenta necessariamente uma face dogmática.
(LACAN, 1986 [1953-1954], p. 9).
Lacan faz referência ao comportamento excêntrico do mestre zen,
que deixa os discípulos quase à própria sorte na procura de respostas.136
Também comenta ser o zen uma recusa de todo sistema. Costa (2005)
chama a atenção para o fato de que esse sistema é definido por Lacan,
na sequência do mesmo seminário, como o eu humano.
No budismo, a recusa ao eu origina-se na doutrina Anatta,
atribuída ao próprio Buda. Anatta é uma palavra de origem páli que
consiste de um prefixo negativo an, significando “não”, justaposto ao
radical atta, cujas significações incluem alma, self, ser, eu e personalidade
(SILANANDA, 1999). Apesar da multiplicidade de leituras possíveis,
o conceito de anatta pode ser resumido como a negação da existência
de qualquer entidade psicológica essencial em uma pessoa; em última
135
Há referências ao zen no seminário 10 – A angústia (LACAN, 2005 [1962-1963]).
Ali, Lacan mostra-se intrigado com o budismo, pois este se resume numa fórmula
que o psicanalista também deve enunciar – de que o desejo é uma ilusão. Já em O
objeto da psicanálise (LACAN, 1965-1966, inédito), Lacan destaca desenhos feitos por
um monge zen-budista, relacionando-os com uma forma gráfica (o disco perfurado)
que ele mesmo irá propor para possibilitar o entendimento de sua grande inovação
conceitual – o objeto a. No conjunto de sua obra, há também outras menções aqui não
referenciadas.
136
Harari (2006, p. 133) comenta essa reflexão de Lacan sobre o zen: “No zen, não se
trata de encontrar um sentido, e sim de manifestar a confrontação do sujeito com o
vazio de sentido, vazio que, mediante um inteligente neologismo, torna-se nomeado
por Lacan como ausentido, como sentido tornado ausente”.
Capítulo 7 – A mística entre o sentido e o não-sentido | 191

análise o sujeito é composto apenas de elementos e forças em um


constante fluxo de estados impermanentes.
Não obstante, na passagem supracitada Lacan também informa
que o zen serve ao sistema, pois apresenta uma face dogmática. Como
já visto, essa afirmação seria negada por Suzuki (1991), que tenta
desvencilhar o zen do âmbito religioso. Por outro lado, para Jorge
(1994, p. 4), se Lacan aparentou o discurso do mestre zen e o discurso
psicanalítico, também não o fez completamente: “Pois o mestre zen é
ainda mestre, e o acesso que ele promove aos pedaços do real é sempre
perpassado por sua subjetividade, enquanto o analista entrega o sujeito
à autofagocitose”.
Assim, a questão acima remete novamente à complexa e
multifacetada relação entre o sentido e o não-sentido na mística. Jorge
(2005a), contudo, destaca em outro trabalho que a mística envolve um
discurso sobre a possibilidade de um despertar radical do âmbito do
sentido, conforme comentado a seguir.

7.7 O despertar radical do sentido e a pulsão de morte


Em psicanálise trabalha-se, segundo Jorge (2005a), com a
possibilidade de “momentos de despertar” para o real. De fato,
uma análise produz aberturas fugazes para o real, as quais são logo
tamponadas pelas representações simbólico-imaginárias do sujeito.
Isso é confirmado por Lacan, pois, apesar de toda a aversão ao sentido
em sua última fase conceitual, ele reconheceu em 1977 que “nós
permanecemos sempre colados ao sentido” (LACAN, 1977, p. 23 apud
JORGE, 2005a, p. 285).
Já algumas escolas místicas, especialmente as orientais como
o taoismo e o budismo, afirmam um objetivo de encontro radical
com o real – completo despertar. No budismo, reconhece-se que as
experiências de despertar podem ser transientes e fugidias (tais como
o satori do zen). Contudo essas vivências são consideradas apenas
etapas introdutórias para o último despertar, o acordar permanente –
chamado de nirvana.
O termo nirvana origina-se do sânscrito e significa o ato e o
efeito de soprar algo para apagá-lo ou extingui-lo (o fogo ou a luz). Mas
o substantivo também se refere ao processo e resultado de uma queima,
192 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

tornar-se extinto, resfriar e assim também acalmar e domar, tornar


dócil (GÓMEZ, 2003b).
De fato, a experiência do nirvana, ou iluminação, é comumente
percebida pelos místicos como uma forma de extinção, de morte.
Rajneesh (2002, p. 91) comenta a respeito dessa peculiar experiência:
Naquela noite, eu morri e renasci. Mas aquele que renasceu nada
tinha que ver com aquele que morreu; foi uma descontinuidade.
[...] O que morreu, morreu totalmente; nada dele permaneceu.
[...] naquela noite, a morte foi total. Havia um encontro marcado
com a morte e com Deus, simultaneamente.
Essa ligação entre despertar e morte é trabalhada por Jorge
(2005a). O autor percebe que a experiência mística radical, por ele
relacionada ao nirvana budista, parece estar intimamente ligada a um
despertar radical do âmbito do sentido – o que aponta, no âmbito da
psicanálise, para a realização da pulsão de morte.
Descrita inicialmente em Mais além do princípio de prazer (1998
[1920]), a pulsão de morte representa a tendência fundamental de todo
ser vivo a retornar ao estado inorgânico. Ou ainda, trata-se da tendência
das pulsões em retornar para um estado anterior. As pulsões de morte
ou destruição (ou Tânatos) inscrevem-se dentro do último dualismo
pulsional elaborado por Freud, sendo contrapostas às pulsões de vida,
ou Eros, que compreendem as pulsões sexuais e de autoconservação.
Para o mestre vienense, as pulsões de vida “apresentam-se como
revoltosas, sem cessar ocasionam tensões cuja tramitação é sentida
como prazer”, ao passo que as pulsões de morte “parecem realizar seu
trabalho em forma despercebida” (FREUD, 1998 [1920], p. 61), ou
ainda, em silêncio.
A pulsão de morte surge conceitualmente para dar conta dos
fenômenos clínicos da compulsão à repetição,137 da agressividade e do
dualismo entre sadismo e masoquismo. Permanece, contudo, sendo
a mais enigmática e controvertida das elaborações freudianas. O fato
é que Freud também relacionou as pulsões de morte ao princípio de
prazer: “O princípio de prazer parece estar diretamente a serviço das
pulsões de morte” (FREUD, 1998 [1920], p. 61). Com isso, entende-se
137
Conforme já mencionado no capítulo 6, item 6.1. Ou seja, as pulsões de morte
surgem para embasar teoricamente o campo do mais além do princípio de prazer –
campo que Lacan relaciona ao gozo.
Capítulo 7 – A mística entre o sentido e o não-sentido | 193

que a pulsão de morte é a definição da pulsão por excelência, na medida


em que busca reduzir a tensão do organismo ao menor nível possível.
Seu vetor dirige-se a uma satisfação entendida como um retorno ao
estado primordial de não vida, de morte.
Lacan retoma a questão da pulsão de morte por esse viés e
comenta que “a pulsão, a pulsão parcial, é fundamentalmente pulsão de
morte” (LACAN, 1988 [1963-1964], p. 195). Jorge (2005a) explica que a
pulsão tem um vetor único na direção da satisfação absoluta – a morte
para Freud, ou o gozo para Lacan. Contudo, no neurótico, a fantasia
inconsciente age como freio à pulsão de morte: a fantasia (o sentido mais
primordial do sujeito) sexualiza a pulsão de morte transformando-a em
pulsão sexual, ou seja, em uma forma de pulsão de vida. O esquema a
seguir (figura 4) ilustra esses caminhos da pulsão:

Figura 4 – Esquema da pulsão em seu vetor único de pulsão de morte


Fonte: Jorge (2005a, p. 287)

Logo, as pulsões de vida visam ao objeto a com suas múltiplas


roupagens imaginárias. Esse também é o campo do desejo e da fantasia,
como explica Garcia-Roza (1990, p. 65):
Entre a pulsão e o objeto, há o desejo e a fantasia. Desta forma,
um objeto só se constitui como objeto da pulsão se ele se fizer
objeto para o desejo. Como é pela fantasia que o objeto se
articula com o desejo, ela é a mediação necessária entre a pulsão
e o objeto.
Já no mais-além do princípio do prazer, no campo em que a
fantasia falta, surge a pulsão de morte em busca por das Ding, o objeto
do gozo que, caso existisse, proporcionaria a satisfação absoluta.
Jorge (2005a) também chama a atenção para um fato curioso, o de
que Freud utilizou uma expressão inspirada no budismo, “o princípio
de nirvana”,138 para designar sua mais radical postulação sobre a pulsão.

138
Não se pode olvidar também que, segundo o depoimento de Bruno Goetz (1959),
Freud tinha, em 1904, um entendimento melhor que o de muitos estudiosos europeus
194 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

O termo foi cunhado pela psicanalista inglesa Bárbara Low e usado por
Freud inicialmente para definir, no aparelho psíquico, a tendência para
“rebaixar, manter constante, suprimir a tensão interna do estímulo”
(FREUD, 1998 [1920], p. 54). Contudo, em O problema econômico do
masoquismo (1998 [1924]), ele afirma que “o princípio de nirvana
expressa a tendência da pulsão de morte” (FREUD, 1998 [1924], p.
166). Trata-se da tendência radical para levar a excitação ao nível zero.
Nesse entendimento, poderíamos hipotetizar, ainda que seja
altamente especulativo em virtude do limitado conhecimento atual
sobre o tema, que a experiência mística radical atua dissolvendo o
campo do imaginário: gradualmente ela desconstruiria as várias
formas de sentidos que constituem o sujeito, até chegar, por assim
dizer, à dissolução do sentido mais fundamental para a constituição
do neurótico – a fantasia primária inconsciente. Sem a fantasia
fundamental, a pulsão deixaria de ser sexualizada. Por conseguinte, não
haveria mais freios à pulsão em sua faceta radical de pulsão de morte.
Ter-se-ia, enfim, a experiência do nirvana – experiência de morte ou de
gozo puro, que exclui o sujeito.
Lembremos que o despertar radical, absoluto, é destacado
como impossível para Lacan: “o despertar é o real sob seu aspecto de
impossível, que só se escreve à força ou por força – é isso que chamamos
de contranatureza” (apud JORGE, 2005a, p. 285). O despertar só se
escreve à força, pois há no sujeito, conforme o próprio Lacan percebeu
na Traumdeutung freudiana, um desejo de dormir, ao contrário de uma
necessidade de dormir (JORGE, 2005a).
Apesar de toda ênfase na possibilidade de despertar, a mística
também reconhece que isso não é natural, só se escreve à força.
Gurdjieff (apud OUSPENSKY, 1998), por exemplo, via o despertar
como uma possibilidade extremamente difícil a qualquer ser humano –
ou melhor, literalmente impossível, a não ser que se formassem grupos
de trabalho nos quais uns deveriam tentar despertar os outros, ou
ainda, que o grupo solicitasse auxílio de alguém já desperto. Trata-
se, aqui, de uma justificativa para a necessidade de ingressar em uma
escola de misticismo e submeter-se a um mestre. Já no zen, pode-se
dizer que os fins justificam os meios, pois, para empurrar os discípulos

sobre o nirvana: este não seria um divertimento voluptuoso, mas uma visão última,
sobre-humana e “glacial”, além de todos os contrários.
Capítulo 7 – A mística entre o sentido e o não-sentido | 195

ao satori, o mestre está autorizado a realizar os comportamentos mais


excêntricos e ofensivos.
O despertar radical é “contranatural” porque empurra o sujeito
para a morte. Em termos psicanalíticos, Jorge (1994, p. 3) comenta que
“o acordar definitivo seria da ordem da morte subjetiva, do desvaneci-
mento da mais ínfima certeza e de toda e qualquer catáfora: ‘Nós – diante
do escândalo da morte’ (Lispector)”. Além disso, a morte seria, devido a
sua total ausência de sentido, um dos nomes do real (JORGE, 2005a).
De fato, a ausência de sentido parece ser uma forma de qualificar
o estado de nirvana, pois os místicos só conseguem descrevê-lo
negativamente, pelo que não é. Comporta-se, deste modo, como uma
negatividade pura, e nem mesmo o êxtase o define. Segundo Wapnick
(1997, p. 137), esse seria “um estado de consciência pura, no qual o
indivíduo não experimenta nada – nenhuma coisa”.
Ou seja, a experiência do nirvana não é descritível porque não é
testemunhável – no gozo puro não há sujeito, como afirma Valas (2001).
Isso é compatível com as descrições de Ramakrishna, o qual tinha
apenas vislumbres desse estágio último do misticismo. Seus vislumbres
foram batizados por Kakar (1997c) com uma expressão contraditória:
visões inconscientes.
Tais visões seriam inefáveis, pois, segundo Kakar, o eu observador
está ausente e não pode descrevê-las. Para Ramakrishna, nesse estado
“não se vê mais, nem se escuta nada mais, nem muito menos se fala.
Quem pode falar? A simples ideia de ‘eu’, de ‘tu’ se desvanece” (apud
KAKAR, 1997c, p. 134).
Interessante evidenciar que, segundo Kakar (1997c), Ramakrishna
não parecia estar demasiado enamorado desse estado último, uma vez
que o prazer só é sentido enquanto há um eu observador e não mais
durante a completa unio mystica.
No samadhi [forma de êxtase místico], eu perco completamente
a consciência externa, mas Deus conserva uma pequena parcela
do ego dentro de mim para o prazer (aqui ele utiliza delibera-
damente uma metáfora sensual, vilas). O prazer só é possível
quando o “eu” e “tu” permanecem. (apud KAKAR, 1997c, p. 134).
Assim, contrariando a meta mística derradeira, Ramakrishna
costumava afirmar: “Eu quero provar o açúcar, não virar açúcar” (apud
KAKAR, 1997c, p. 134).
196 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

Conforme demonstra o relato acima, até mesmo para um místico,


a busca por das Ding pode ser tão intensa quanto o é sua evitação.
Cruxên (2004) explica que o bem buscado, caso encontrado, poderia
revelar uma faceta hedionda, uma espécie de cavidade ou vazio que
aspiraria o sujeito. Por esse motivo, o trabalho humano pode apenas
bordejar o furo.
Cruxên está falando sobre o ser que sublima. Aqui se fala do
misticismo. Mas o jogo entre aproximação e evitação da Coisa parece
ser o mesmo. E a respeito da sublimação, Cruxên (2004, p. 42)
completa: “A busca do criador, nesse sentido, é ‘antipsíquica’ porque
visa ao encontro daquilo que afugenta um neurótico, em relação ao
qual ele permanece exilado”. Essa busca relaciona-se ao impossível em
jogo na pulsão, e não ao proibido, que é o caso da neurose.
Já se afirmou que a meta mística do despertar radical aproxima-a
do campo das artes no que concerne à intimidade com a Coisa. Contudo,
por todo o exposto, é possível pensar que a meta mística é ainda mais
“antipsíquica” que a do artista, pois não apenas cinge o furo – ela pode
levar a cabo a meta da pulsão de morte no encontro com das Ding,
trazendo à cena uma morte psíquica, ou ainda, uma morte simbólica.
Em A ética da psicanálise (1988 [1959-1960]), Lacan analisa a
tragédia sofocliana de Antígona como a situação singular em que o
sujeito encontra a morte simbólica: Antígona decide sepultar o irmão,
contra o édito de Creonte, rei de Tebas, sob pena de perder a própria
vida. Ela cumpre um destino que a leva ao limite extremo em que o
sujeito se abole, ou seja, em que o sujeito é atingido pela segunda morte
– a morte simbólica – antes mesmo de advir-lhe a morte primeira,
aquela do corpo.
Para Lacan (1988 [1959-1960], p. 342), a tragédia de Antígona
ilustra a pulsão de morte freudiana, na medida em que ela “leva até
o limite a efetivação do que se pode chamar de desejo puro, o puro
e simples desejo de morte como tal”. Assim, mais do cingir a Coisa,
Antígona vai diretamente ao seu encontro. Nesse caso, sucede a ruptura
dos laços significantes, que “mergulha o sujeito no ‘desser’ da Coisa, o
fora-do-significado, isto é, o real” (VALAS, 2001, p. 32). Essa morte
simbólica pode ser uma forma de entender o que acontece ao místico
no momento do despertar radical do sentido.
Não obstante, conforme já deveras aludido, esse mergulho
no “desser da Coisa” não é da mesma ordem que aquele advindo
Capítulo 7 – A mística entre o sentido e o não-sentido | 197

ao psicótico: os relatos dos místicos não indicam que tal realização


afunde-os em estados semelhantes à catatonia ou ao autismo, ainda
que a chamada ‘iluminação’ pareça envolver transitoriamente estados
assemelhados. Muito pelo contrário, conforme já descrito por Wapnick
(1997),139 o estágio final da mística envolve o retorno ao mundo social,
em que a nova meta do místico será orientar os interessados em trilhar
a mesma senda.140
Destarte, o despertar radical do sentido na mística comporta
um paradoxo, pois não corresponde à absoluta abolição ou aspiração
do sujeito, uma vez que o místico permanece fazendo laço social – ele
continua efetivamente inserido no mundo da linguagem.
A hipótese do despertar radical do sentido é, sem dúvida, um
tema ainda obscuro e especulativo situado nos limites do saber
psicanalítico sobre a alma humana, e assim, a meu ver, apenas começa
a ser explorado.

139
Ver, a respeito, o sexto e último estágio da mística no capítulo 1, item 1.7.
140
No zen-budismo, por exemplo, a trilha mística foi ilustrada em dez figuras sobre a
captura e domesticação de um boi, conhecidas como “The ten ox herding pictures”. A
décima figura, que indica o estágio final, é intitulada “Entrando na praça do mercado
com mãos serviçais” (FADIMAN; FRAGER, 1986, p. 303). O mercado corresponde
ao mundo profano dos homens comuns, onde o místico oferece, “com mãos serviçais”,
orientação aos outros homens sobre a trilha que ele próprio já percorreu com sucesso.
| Considerações finais |

Desde Freud até Lacan, um longo e multifacetado percurso


psicanalítico pelas veredas da mística foi ensejado nesta obra. Iniciou-
se seguindo os passos freudianos – passos cautelosos por dentro de uma
selva que inicialmente cheirava à pura crendice e superstição, por mais
que seu depoimento a Bruno Goetz parecesse indicar uma opinião
mais complexa: misto de respeito e temor às profundezas abissais de
uma experiência que poderia levar à loucura.
O sentimento oceânico de Rolland é então exposto como o
regresso do eu a uma etapa precoce de sua formação, fase em que suas
próprias fronteiras imaginárias não estão delimitadas e confundem-se
àquelas do Outro privilegiado que provoca no infante sua experiência
primeira de satisfação e o inscreve no mundo da linguagem. O sujeito,
que advirá barrado pela ordem simbólica, trará no seu psiquismo a
inscrição significante de uma experiência mítica de pura satisfação e de
ilimitabilidade. No neurótico comum, esse será o eterno horizonte da
felicidade. No místico, essa será a prova da existência de um Deus que
não é o pai, senão uma experiência relacionada ao gozo puro do corpo
e que pode ser reavivada por meio de métodos específicos.
Um desses métodos é o amor universal, tão combatido por
Freud visto que a religião exige-o à moda de um supereu severo. Mas
Francisco de Assis não aparenta amar por uma ordem paterna. Ele ama,
sim, porque isso satisfaz, e muito. Sem saber, Francisco desvia a meta
e o objeto da pulsão, a qual renuncia sua natureza sexual e perfaz um
destino sublimatório sem a necessidade de recalcamento.
Nesse processo de dessexualização da pulsão, a libido objetal
retorna ao eu, caracterizando uma forma de narcisismo secundário.
Freud já realçara um narcisismo ilimitado no sentimento oceânico, e os
êxtases depõem a favor de um ensimesmamento dos místicos. Aliás, tal
como acontece no narcisismo específico à melancolia, os místicos não
parecem capazes de elaborar as inúmeras perdas necessárias à produção
de um sujeito.
Nessa esteira, podemos também dizer que os místicos sofrem, à
maneira dos obsessivos, a nostalgia do ser – saudosismo da identificação
200 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

fálica. E à moda dos histéricos, eles parecem erotizar tudo o que não
é sexual, expressando sintomaticamente um desejo recalcado. Ainda,
à semelhança com os psicóticos, eles feminilizam seu ser para serem
gozados por Deus. Contudo, se os místicos são neuróticos, certamente
sua intensa sublimação dá à pulsão um destino bem mais satisfatório que
o gozo sintomático. E quanto à psicose, esta não lhes é sinônimo, pois
que, tal como no caso da mulher, sua passividade é feita de um ato, e seu
gozo está subordinado à função fálica ao mesmo tempo que dela escapa.
Lacan traz essa dimensão à mística, qual seja, de verdade sobre
o gozo feminino. Como às mulheres, aos místicos é reservada uma
possibilidade de gozo mais-além daquele mortificado pelo significante
– o gozo fálico dos seres castrados. Seu gozo escapa à castração, ex-
sistindo à ordem simbólica, e por isso eles nada sabem a seu respeito.
A vida de Teresa D’Avila nos mostra que nesse gozo enigmático
se inscreve o amor místico por Deus. Pommier afirma não ser esse
amor uma figura do narcisismo, longe disso, ele é outro nome para o
desespero de procurar uma divindade vazia – apenas a concretude de
um significante sem significado que toca o real. A ausência divina nada
responde, fazendo o corpo gozar e o sujeito sofrer, pois a subjetividade
se destitui diante do gozo.
O gozo, estando além do princípio de prazer, pertence ao campo
de das Ding – a Coisa freudiana que representa o objeto perdido para
sempre e desde sempre, a formalização da falta de objeto que Lacan
localizou como estrutural para o ser falante. A Coisa é nociva, pois, caso
encontrada, aspiraria o sujeito desejante. Assim, o neurótico dela foge,
atendo-se ao gozo fálico como única opção para aqueles que lidam com
a pulsão em sua vertente do proibido. O campo do interdito corresponde
à ilusão mítica de que a plena satisfação pulsional é possível, sim, apenas
foi vedada pelo pai sobre o qual nenhuma lei incide. Esse mito, aliás, é
a condição da própria sexuação masculina.
Já para o ser que sublima – o artista, a mulher, o místico – abre-se
a possibilidade de bordejar a Coisa e, desta forma, lidar com a pulsão em
sua vertente do impossível, pois que o objeto da satisfação não existe para
o homem, apenas para os seres de instinto. Tanto a sublimação como o
gozo feminino e o gozo místico trazem à cena a possibilidade de uma
jouissance nos limites da ordem simbólica, às margens da função fálica.
Considerações finais | 201

Todavia o místico mergulha no gozo, no contato com a Coisa,


por opção, ao contrário do psicótico, que já se encontra lá mergulhado
e não pode sair. Freud, portanto, não precisaria temer a loucura da
empresa mística, pois a noite escura da alma não é a noite delirante
de Schreber. À semelhança da mulher, os místicos estão submetidos à
castração simbólica, apenas foram agraciados com uma possibilidade
de gozo suplementar.
Mergulhando no contato com a Coisa – ato semelhante ao mergu-
lho do herói de Schiller no abismo –, o místico atesta a experiência de um
vazio, uma intuição privilegiada da falta estrutural de objeto para a pulsão.
Nesse ponto, cabe lembrar que o próprio Freud reconheceu na mística a
percepção obscura do reino das pulsões de vida e de morte: o isso.
Assim, indubitavelmente o místico toca no real da linguagem, na
ausência de saber, no não-sentido; mas, como todo ser que sublima, ele
constrói representações simbólico-imaginárias no entorno desse oco,
assim como o oleiro constrói seu vaso ex-nihilo. Aliás, essa metáfora,
muito antes de Lacan, fora utilizada pelo primeiro grande místico taoista.
Não seria então por acaso que Freud foi ambivalente em relação
à mística – talvez não conseguisse nela enxergar toda a dimensão
tamponadora da Coisa que opera na religião. A mística certamente
constrói sentidos – deuses e paraísos de gozo ilimitado –, mas só o faz
a partir da proximidade com o real.
Assim como a psicanálise desperta o homem de seu narcisismo,
decifrando o sentido dos sonhos, dos delírios, das fantasias e das ilusões
religiosas, a mística também enfatiza a necessidade de um despertar –
acordar de um sonho que perpassa a própria vigília. O budismo, em
suas muitas vertentes, faz morada em tal meta e, para atingi-la, lança
mão de métodos que desmontam as certezas do sujeito sobre sua vida,
sobre seu eu, sobre a realidade simbólica que ele vê: tudo é vazio, não
há essência, nenhum centro metafísico subsiste.
Logo, ao contrário do que muitos pensaram, a mística não é
somente um intento ingênuo para abandonar o mundo da linguagem:
comporta-se mais como um despertar para a linguagem em sua
capacidade de construir a realidade e o sujeito e, nesse sentido, percorre
uma direção descontrucionista compatível, em termos, com teorias
linguísticas ocidentais pós-modernas.
202 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

Em sua meta radical de dissolução do sentido, a mística de


liberação realiza a face radical da pulsão, aquela de morte, e, não por
acaso, Freud batizou a tendência de Tânatos com um termo oriundo
do budismo. Sendo o nirvana uma experiência sem sujeito, ou ainda,
uma extinção, hipotetiza-se aqui que a mística dissolve a fantasia
fundamental do sujeito neurótico. Isso, por sua vez, dessexualiza as
pulsões de vida, levando-as ao vetor único na direção da satisfação
absoluta ou das Ding – a morte para Freud, ou o gozo para Lacan. O
despertar absoluto seria, pois, da ordem de uma morte subjetiva: não
haveria sujeito no real do gozo.
De tal forma, o místico não se contenta em cingir a Coisa,
realizando uma sina mais-além da sublimação e ainda mais
“antipsíquica” – qual seja, ir ao encontro de das Ding, por onde se atira à
morte simbólica, que sobrevém antes mesmo da morte do corpo. Dadas
as limitações de nosso atual conhecimento sobre o tema, persiste nisso
um paradoxo – o despertar radical do sentido na mística não eclipsa
completamente o sujeito, não é sinônimo de psicose: atestam várias
tradições que o místico permanece muito bem amarrado ao mundo da
linguagem, do escrito, do laço social.

Considerando que a mística toca em todas as formalizações


da psicanálise sobre o que não se inscreve na ordem simbólica – as
“impossibilidades” psicanalíticas –, acredito que o aprofundamento
do estudo desse tema, além de instigante, pode contribuir para o
desenvolvimento da própria psicanálise em seu âmbito clínico e teórico.
Não é mais o caso, pois, de pensar, junto com Freud, que tal mergulho
seria sem volta.
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| Anexo|

O MERGULHADOR (1797), de Friedrich Schiller

Versão original em alemão e tradução anônima para o inglês


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218 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

Der Taucher
“Wer wagt es, Rittersmann oder Knapp,
Zu tauchen in diesen Schlund?
Einen goldnen Becher werf ich hinab,
Verschlungen schon hat ihn der schwarze Mund.
Wer mir den Becher kann wieder zeigen,
Er mag ihn behalten, er ist sein eigen.”
Der König spricht es und wirft von der Höh
Der Klippe, die schroff und steil
Hinaushängt in die unendliche See,
Den Becher in der Charybde Geheul.
“Wer ist der Beherzte, ich frage wieder,
Zu tauchen in diese Tiefe nieder?”
Und die Ritter, die Knappen um ihn her
Vernehmen’s und schweigen still,
Sehen hinab in das wilde Meer,
Und keiner den Becher gewinnen will.
Und der König zum drittenmal wieder fraget:
“Ist keiner, der sich hinunter waget?”
Doch alles noch stumm bleibt wie zuvor,
Und ein Edelknecht, sanft und keck,
Tritt aus der Knappen zagendem Chor,
Und den Gürtel wirft er, den Mantel weg,
Und alle die Männer umher und Frauen
Auf den herrlichen Jüngling verwundert schauen.
Und wie er tritt an des Felsen Hang
Und blickt in den Schlund hinab,
Die Wasser, die sie hinunterschlang,
Die Charybde jetzt brüllend wiedergab,
Und wie mit des fernen Donners Getose
Entstürzen sie schäumend dem finstern Schosse.
Und es wallet und siedet und brauset und zischt,
Wie wenn Wasser mit Feuer sich mengt,
Bis zum Himmel spritzet der dampfende Gischt,
Und Flut auf Flut sich ohn’ Ende drängt,
Apêndice | 219

The Diver
“What knight or what vassal will be so bold
As to plunge in the gulf below?
See! I hurl in its depths a goblet of gold,
Already the waters over it flow.
The man who can bring hack the goblet to me,
May keep it henceforward, – his own it shall be.”
Thus speaks the king, and he hurls from the height
Of the cliffs that, rugged and steep,
Hang over the boundless sea, with strong might,
The goblet afar, in the bellowing deep.
“And who’ll be so daring, – I ask it once more,
As to plunge in these billows that wildly roar?”
And the vassals and knights of high degree
Hear his words, but silent remain.
They cast their eyes on the raging sea,
And none will attempt the goblet to gain.
And a third time the question is asked by the king:
“Is there none that will dare in the gulf now to spring?”
Yet all as before in silence stand,
When a page, with a modest pride,
Steps out of the timorous squirely band,
And his girdle and mantle soon throws aside,
And all the knights, and the ladies too,
The noble stripling with wonderment view.
And when he draws nigh to the rocky brow,
And looks in the gulf so black,
The waters that she had swallowed but now,
The howling Charybdis is giving back;
And, with the distant thunder’s dull sound
From her gloomy womb they all-foaming rebound
And it boils and it roars, and it hisses and seethes.
As when water and fire first blend;
To the sky spurts the foam in steam-laden wreaths,
And wave presses hard upon wave without end.
220 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

Und will sich nimmer erschöpfen und leeren,


Als wollte das Meer noch ein Meer gebären.
Doch endlich, da legt sich die wilde Gewalt,
Und schwarz aus dem weissen Schaum
Klafft hinunter ein gähnender Spalt,
Grundlos, als ging’s in den Höllenraum,
Und reissend sieht man die brandenden Wogen
Hinab in den strudelnden Trichter gezogen.
Jetzt schnell, eh die Brandung wiederkehrt,
Der Jüngling sich Gott befiehlt,
Und – ein Schrei des Entsetzens wird rings gehört,
Und schon hat ihn der Wirbel hinweggespült,
Und geheimnisvoll über dem kühnen Schwimmer
Schliesst sich der Rachen, er zeigt sich nimmer.
Und stille wird’s über dem Wasserschlund,
In der Tiefe nur brauset es hohl,
Und bebend hört man von Mund zu Mund:
“Hochherziger Jüngling, fahre wohl!”
Und hohler und hohler hört man’s heulen,
Und es harrt noch mit bangem, mit schrecklichem Weilen.
“Und wärfst du die Krone selber hinein
Uns sprächst: ‘Wer mir bringet die Kron,
Er soll sie tragen und König sein’ –
Mich gelüstete nicht nach dem teuren Lohn.
Was die heulende Tiefe da unter verhehle,
Das erzählt keine lebende glückliche Seele.”
Wohl manches Fahrzeug, vom Strudel gefasst,
Schoss jäh in die Tiefe hinab,
Doch zerschmettert nur rangen sich Kiel und Mast,
Hervor aus dem alles verschlingenden Grab.–
Und heller und heller, wie Sturmes Sausen,
Hört man’s näher und immer näher brausen.
Und es wallet und siedet und brauset und zischt,
Wie wenn Wasser mit Feuer sich mengt,
Apêndice | 221

And the ocean will never exhausted be,


As if striving to bring forth another sea.
But at length the wild tumult seems pacified,
And blackly amid the white swell
A gaping chasm its jaws opens wide,
As if leading down to the depths of hell:
And the howling billows are seen by each eye
Down the whirling funnel all madly to fly
Then quickly, before the breakers rebound,
The stripling commends him to Heaven,
And – a scream of horror is heard around, –
And now by the whirlpool away he is driven,
And secretly over the swimmer brave
Close the jaws, and he vanishes ‘neath the dark wave.
O’er the watery gulf dread silence now lies,
But the deep sends up a dull yell,
And from mouth to mouth thus trembling it flies:
“Courageous stripling, oh, fare thee well!”
And duller and duller the howls recommence,
While they pause in anxious and fearful suspense.
“If even thy crown in the gulf thou shouldst fling,
And shouldst say, ‘He who brings it to me
Shall wear it henceforward, and be the king,’
Thou couldst tempt me not e’en with that precious fee;
What under the howling deep is concealed
To no happy living soul is revealed!”
Full many a ship, by the whirlpool held fast,
Shoots straightway beneath the mad wave,
And, dashed to pieces, the hull and the mast
Emerge from the all-devouring gave. –
And the roaring approaches still nearer and nearer,
Like the howl of the tempest, still clearer and clearer.
And it boils and it roars, and it hisses and seethes,
As when water and fire first blend;
222 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

Bis zum Himmel spritzet der dampfende Gischt,


Und Well auf Well sich ohn Ende drängt,
Und wie mit des fernen Donners Getose
Entstürzt es brüllend dem finstern Schosse.
Und sieh! aus dem finster flutenden Schoss,
Da hebet sich’s schwanenweiss,
Und ein Arm und ein glänzender Nacken wird bloss,
Und es rudert mit Kraft und mit emsigem Fleiss,
Und er ist’s, und hoch in seiner Linken
Schwingt er den Becher mit freudigem Winken.
Und atmete lang und atmete tief
Und begrüsste das himmlische Licht.
Mit Frohlocken es einer dem andern rief:
“Er lebt! Er ist da! Es behielt ihn nicht!
Aus dem Grab, aus der strudelnden Wasserhöhle
Hat der Brave gerettet die lebende Seele.”
Und er kommt, es umringt ihn die jubelnde Schar,
Zu des Königs Füssen er sinkt,
Den Becher reicht er ihm kniend dar,
Und der König der lieblichen Tochter winkt,
Die füllt ihn mit funkelndem Wein bis zum Rande,
Und der Jüngling sich also zum König wandte:
“Lange lebe der König! Es freue sich,
Wer da atmet im rosigten Licht!
Da unten aber ist’s fürchterlich,
Und der Mensch versuche die Götter nicht
Und begehre nimmer und nimmer zu schauen,
Was sie gnädig bedeckten mit Nacht und Grauen.
“Es riss mich hinunter blitzesschnell –
Da stürzt mir aus felsigtem Schacht
Wildflutend entgegen ein reissender Quell:
Mich packte des Doppelstroms wütende macht,
Und wie einen Kreisel mit schwindendelm Drehen
Trieb mich’s um, ich konnte nicht widerstehen.
Apêndice | 223

To the sky spurts the foam in steam-laden wreaths,


And wave passes hard upon wave without end.
And, with the distant thunder’s dull sound,
From the ocean-womb they all-bellowing bound.
And lo! from the darkly flowing tide
Comes a vision white as a swan,
And an arm and a glistening neck are descried,
With might and with active zeal steering on;
And ‘tis he, and behold! his left hand on high
Waves the goblet, while beaming with joy is his eye.
Then breathes he deeply, then breathes he long,
And blesses the light of the day;
While gladly exclaim to each other the throng:
“He lives! he is here! he is not the sea’s prey!
From the tomb, from the eddying waters’ control,
The brave one has rescued his living soul!”
And he comes, and they joyously round him stand;
At the feet of the monarch he falls, –
The goblet he, kneeling, puts in his hand,
And the king to his beauteous daughter calls,
Who fills it with sparkling wine to the brim;
The youth turns to the monarch, and speaks thus to him:
“Long life to the king! Let all those be glad
Who breathe in the light of the sky!
For below all is fearful, of moment sad;
Let not man to tempt the immortals e’er try,
Let him never desire the thing to see
That with terror and night they veil graciously.
“I was torn below with the speed of light,
When out of a cavern of rock
Rushed towards me a spring with furious might;
I was seized by the twofold torrent’s wild shock,
And like a top, with a whirl and a bound,
Despite all resistance, was whirled around.
224 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

“Da zeigte mir Gott, zu dem ich rief


In der höchsten schrecklichen Not,
Aus der Tiefe ragend ein Felsenriff,
Das erfasst ich behend und entrann dem Tod –
Und da hing auch der Becher an spitzen Korallen,
Sonst wär er ins Bodenlose gefallen.
“Denn unter mir lag’s noch, bergetief,
In purpurner Finsternis da,
Und ob’s hier dem Ohre gleich ewig schlief,
Das Auge mit Schaudern hinuntersah,
Wie’s von Salamandern und Molchen und Drachen
Sich regt’ in dem furchtbaren Höllenrachen.
“Schwarz wimmelten da, in grausem Gemisch,
Zu scheusslichen Klumpen geballt,
Der stachligte Roche, der Klippenfisch,
Des Hammers greuliche Ungestalt,
Und dräuend wies mir die grimmigen Zähne
Der entsetzliche Hai, des Meeres Hyäne.
“Und da hing ich und war’s mit Grausen bewusst
Von der menschlichen Hilfe so weit,
Unter Larven die einzige fühlende Brust,
Allein in der grässlichen Einsamkeit,
Tief unter dem Schall der menschlichen Rede
Bei den Ungeheuern der traurigen Öde.
“Und schaudernd dacht ich’s, da kroch’s heran,
Regte hundert Gelenke zugleich,
Will schnappen nach mir – in des Schreckens Wahn
Lass ich los der Koralle umklammerten Zweig;
Gleich fasst mich der Strudel mit rasendem Toben,
Doch es war mir zum Heil, er riss mich nach oben.”
Der König darob sich verwundert schier
Und spricht: “Der Becher ist dein,
Und diesen Ring noch bestimm ich dir,
Geschmückt mit dem köstlichsten Edelgestein,
Versucht du’s noch einmal und bringt mir Kunde,
Apêndice | 225

“Then God pointed out, – for to Him I cried


In that terrible moment of need, –
A craggy reef in the gulf’s dark side;
I seized it in haste, and from death was then freed.
And there, on sharp corals, was hanging the cup, –
The fathomless pit had else swallowed it up.
“For under me lay it, still mountain-deep,
In a darkness of purple-tinged dye,
And though to the ear all might seem then asleep
With shuddering awe ‘twas seen by the eye
How the salamanders’ and dragons’ dread forms
Filled those terrible jaws of hell with their swarms.
“There crowded, in union fearful and black,
In a horrible mass entwined,
The rock-fish, the ray with the thorny back,
And the hammer-fish’s misshapen kind,
And the shark, the hyena dread of the sea,
With his angry teeth, grinned fiercely on me.
“There hung I, by fulness of terror possessed,
Where all human aid was unknown,
Amongst phantoms, the only sensitive breast,
In that fearful solitude all alone,
Where the voice of mankind could not reach to mine ear,
‘Mid the monsters foul of that wilderness drear.
“Thus shuddering methought – when a something crawled near,
And a hundred limbs it out-flung,
And at me it snapped; – in my mortal fear,
I left hold of the coral to which I had clung;
Then the whirlpool seized on me with maddened roar,
Yet ‘twas well, for it brought me to light once more.”
The story in wonderment hears the king,
And he says, “The cup is thine own,
And I purpose also to give thee this ring,
Adorned with a costly , a priceless stone,
If thou’lt try once again, and bring word to me
226 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan

Was du sahst auf des Meeres tiefunterstem Grunde.”


Das hörte die Tochter mit weichem Gefühl,
Und mit schmeichelndem Munde sie fleht:
“Lasst, Vater, genug sein das grausame Spiel!
Er hat Euch bestanden, was keiner besteht,
Und könnt Ihr des Herzens Gelüsten nicht zähmen,
So mögen die Ritter den Knappen beschämen.”
Drauf der König greift nach dem Becher schnell,
In den Strudel ihn schleudert hinein:
“Und schaffst du den Becher mir wieder zur Stell,
So sollst du der trefflichste Ritter mir sein
Und sollst sie als Ehegemahl heut noch umarmen,
Die jetzt für dich bittet mit zartem Erbarmen.”
Da ergreift’s ihm die Seele mit Himmelsgewalt,
Und es blitzt aus den Augen ihm kühn,
Und er siehet erröten die schöne Gestalt
Und sieht sie erbleichen und sinken hin –
Da treibt’s ihn, den köstlichen Preis zu erwerben,
Und stürzt hinunter auf Leben und Sterben.
Wohl hört man die Brandung, wohl kehrt sie zurück,
Sie verkündigt der donnernde Schall –
Da bückt sich’s hinunter mit liebendem Blick:
Es kommen, es kommen die Wasser all,
Sie rauschen herauf, sie rauschen nieder,
Den Jüngling bringt keines wieder.
Apêndice | 227

What thou saw’st in the nethermost depths of sea.”


His daughter hears this with emotions soft,
And with flattering accent prays she:
“That fearful sport, father, attempt not too oft!
What none other would dare, he hath ventured for thee;
If thy heart’s wild longings thou canst not tame,
Let the knights, if they can, put the squire to shame.”
The king then seizes the goblet in haste,
In the gulf he hurls it with might:
“When the goblet once more in my hands thou hast placed,
Thou shalt rank at my court as the noblest knight,
And her as a bride thou shalt clasp e’en today
Who for thee with tender compassion cloth pray.”
Then a force, as from Heaven, descends on him there,
And lightning gleams in his eye,
And blushes he sees on her features so fair,
And be sees her turn pale, and swooning lie;
Then eager the precious guerdon to win,
For life or for death, lo! he plunges him in!
The breakers they hear, and the breakers return,
Proclaimed by a thundering sound;
They bend o’er the gulf with glances that yearn
And the waters are pouring in fast around;
Though upwards and downwards they rush and they rave,
The youth is brought back by no kindly wave.
Este livro foi editorado em Janson, corpo 9-16.
Miolo em papel pólen soft 80g; capa em cartão
supremo 250g. Impresso na Gráfica e Editora
Copiart em sistema de impressão offset.
9 788532 805454

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