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de Freud a Lacan
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
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Marlos Gonçalves Terêncio
Prefácio
Marco Antonio Coutinho Jorge
© 2011 Marlos Gonçalves Terêncio
Direção editorial:
Paulo Roberto da Silva
Editoração:
Carolina Pinheiro
Capa:
Maria Lúcia Iaczinski
Revisão:
Flavia Vicenzi
Ficha Catalográfica
(Catalogação na fonte elaborada pela DECTI da Biblioteca Central da Universidade
Federal de Santa Catarina)
adaptado de Suzuki
(1961, 1991)
Sumário
Prefácio ............................................................................................................11
Introdução .......................................................................................................15
| Capítulo 1 |
| Capítulo 2 |
| Capítulo 3 |
| Capítulo 5 |
| Capítulo 6 |
| Capítulo 7 |
1
Psiquiatra, psicanalista, professor adjunto do Programa de Pós-Graduação em
Psicanálise da UERJ, pesquisador do CNPq. Diretor do Corpo Freudiano Seção
Rio de Janeiro, membro da Sociedade Internacional de História da Psiquiatria e
da Psicanálise, membro da Association Insistance (Paris/Bruxelas).
| Introdução |
2
Todas as citações em língua estrangeira foram traduzidas pelo pesquisador e
revisadas pelo professor Fernando Aguiar.
Introdução | 17
3
A esse respeito Lalande (1996, p. 688) comenta: “A ideia fundamental do
misticismo parece, portanto, ser esta: nem as imagens nem os conceitos nos dão a
realidade; é preciso passar pelas coisas sensíveis e pelas representações intelectuais
como que por barreiras; e quando, através da vida purgativa e ascética nos despojamos
de nós e das coisas, e nos oferecemos despidos ao vazio, este vazio, esta noite escura
revelam a plenitude de uma vida que apenas parece oculta e ‘mística’ àqueles que,
segundo a expressão de Newman, não emigraram da região da sombra e das imagens”.
Capítulo 1 – A mística na psicologia e na cultura | 25
4
Para Kakar (1997c, p. 104), a pesquisa de Greeley, intitulada The sociology of the
paranormal, demonstra que as pessoas que tiveram experiências místicas eram mais
instruídas que a média nacional e estariam livres de “quaisquer dificuldades neuróticas
óbvias”. Kakar não dá, entretanto, maiores detalhes sobre os critérios dessa avaliação
psicológica dos participantes.
Capítulo 1 – A mística na psicologia e na cultura | 27
5
Sobre o assunto ver os textos freudianos Psicanálise e telepatia (1941[1921]), Sonhos
e telepatia (1922) e Sonhos e ocultismo (1933 [1932]).
28 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan
6
Gregory (1987, p. 677) acrescenta: “Sempre há esta diferença entre o fundador
religioso e o que a fé se tornou”.
Capítulo 1 – A mística na psicologia e na cultura | 29
A cabala judaica
A história da cabala consiste em uma longa série de
desenvolvimentos ideológicos, que rastreiam as peregrinações dos
cabalistas e suas crenças em diferentes lugares e países, tendo origens na
França e Espanha por volta do ano 1200. Segundo Idel (1988), é possível
distinguir na cabala uma fórmula “teosófico-litúrgica” de uma fórmula
“extática”. A primeira se relaciona com especulações gramatológicas e
numerológicas cuja origem está no “Livro da Criação” (Sefer Yetsirah) –
importante obra do misticismo judeu (ELIADE; COULIANO, 1995).
Já a cabala extática tem por objetivo o devekut ou unio mystica com Deus.
Conforme descrevem Eliade e Couliano (1995), todas as ações
do cabalista estão na dependência de uma das três metas a que se
propõem: tikkun, ou restauração da harmonia e da unidade primordiais
no praticante e no mundo; kavvanah, ou meditação contemplativa; e,
finalmente, devekut, ou união extática com as essências.
A cosmologia da cabala judaica supõe uma realidade multinivelada.
Esses níveis são dispostos de maneira hierárquica e representam
diferentes planos. O homem comum está preso a um plano inferior, mas
pode galgar outros níveis até a esfera mais alta chamada de Metatron.
Esta compreende um estado de consciência mais elevado, chamado de
paraíso interior (GOLEMAN, 1997).
Descrita de outra forma, a tarefa do cabalista é transcender a
mente ordinária ou egoica, chamada de Yesod, para chegar a um estado
de consciência visto como o reino do espírito, ponte entre o homem e
o divino, chamado de Tiferet. Para isso, o cabalista segue orientações
de seu mestre, ou Maggid, empenhando-se em técnicas de meditação
relacionadas à concentração profunda em um tema particular ou
em nomes sagrados de Deus. “Se seus esforços encontrarem a graça
30 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan
Misticismo cristão
A tradição mística cristã é, conforme declaram Eliade e
Couliano (1995), deveras rica historicamente, abarcando quase toda a
fenomenologia mística possível; enfatiza, porém, mais o êxtase do que
a introspecção.
A mais célebre via mística cristã é aquela do amor ou unidade,
ilustrada nas vidas de Teresa D’Ávila, Teresa de Lisieux, Francisco de
Assis, entre outros. A mística do amor, no cristianismo, também dá
origem a um misticismo feminino por excelência que, relacionado à
imitação da via de Cristo, pode-se denominar “mística da eucaristia”.
São nomes ilustres dessa via: Clara de Assis (companheira de Francisco
de Assis), Catarina de Siena e Ângela de Foligno, entre muitas outras,
que praticavam com intensa dedicação o jejum e outras mortificações.
“Para elas, a eucaristia na qual Cristo se transforma em pão substancioso
torna-se o símbolo de sua própria transformação: ao renunciar à
alimentação, elas mesmas se transformam em alimento” (ELIADE;
COULIANO, 1995, p. 129).
Outra forma da mística cristã ocidental é a via especulativa
ou filosófica, que se ocupava em categorizar as fases da experiência
mística. Exemplos dessa via seriam Dionísio, o Areopagita; Mestre
Eckhart, João de Ruysbroeck, João da Cruz e Jacob Böehme. Ressalte-
se que a via especulativa cristã inaugura uma tradição que insiste no
caráter incognoscível de Deus (teologia negativa ou apofática), a qual
tem semelhanças com a “mística da vacuidade” presente no budismo.
Outra corrente do misticismo cristão propunha exercícios de
visualização, respiração e meditação, os quais lembram a ioga oriental e
aspectos do sufismo. Ela remonta aos eremitas que viveram no deserto
egípcio durante o século IV. Eram os chamados “Padres do Deserto”, que
buscavam isolamento das atividades mundanas e praticavam a concen-
tração profunda, via repetição de uma única frase das Escrituras. Uma
Capítulo 1 – A mística na psicologia e na cultura | 31
Sufismo
O sufismo, via mística muçulmana, é um modo de vida que busca
a realização da unidade e da presença de Deus por meio do amor, do
conhecimento baseado na experiência, da ascese e da união extática
com o Criador bem-amado (ELIADE; COULIANO, 1995).
As doutrinas e práticas sufis frequentemente ridicularizam os
muçulmanos ortodoxos. “Estes, por sua vez, lançam anátemas contra
o panteísmo dos sufistas, sua libertinagem, seu antinomismo, sua
negligência na prece, no jejum e na peregrinação. Certos regimes
expulsam-nos e perseguem-nos” (ELIADE; COULIANO, 1995, p.
206). Segundo Gardet (2002), já houve uma oposição oficial entre os
místicos sufis e o islã. Para os muçulmanos, Deus revela suas palavras
no Alcorão, mas não se revela. De forma semelhante, o muçulmano
deve amar os mandamentos de Deus, mas não o próprio Deus. Por seu
turno, os místicos sufis acreditam que Deus pode se revelar, e por isso
amam-No diretamente.
Al-Ghazali (1058-1111) foi um dos grandes místicos dessa
tradição. Natural da Pérsia (atual Irã), era um mestre em jurisprudência,
teologia dialética e filosofia que, após uma crise na meia-idade, tornou-
se sufi. Ele renunciou sua própria erudição, ficando conhecido na
história como defensor do conhecimento antes pela experiência direta
e pela revelação do que pelo raciocínio filosófico.
Os sufis reconhecem de bom grado no Alcorão a recomendação
de praticar o dhikr (ou zikr) – meditação ou invocação de Deus. Em
suas práticas, o dhikr pode ser acompanhado pelo uso de um rosário,
pelo controle respiratório, por música e danças extáticas, como a dos
dervixes rodopiantes da tradição de Rumi (1207-1273), o grande poeta
místico da Turquia (ELIADE; COULIANO, 1995).
Para o sufi, o homem comum sofre por ser escravo de seus próprios
condicionamentos, estando profundamente “adormecido num pesadelo
de desejos insatisfeitos” (GOLEMAN, 1997, p. 80). O estado normal
de atenção, disperso e casual, é a própria via do profano. O caminho
32 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan
O BHAKTI hindu
Uma das escolas místicas do hinduísmo é chamada de Bhakti, que
significa devoção ou amor a um ser divino. Trata-se de um caminho de
liberação da vida material imperfeita através da obtenção de um estado
de comunhão com uma suposta realidade última personificada em uma
deidade (como Vishnu, Shiva e a Grande Deusa), ou mesmo em um
guru (também deificado).
A literatura deixada pelo poeta indiano Kabir7 (1398-1448)
influenciou grandemente o Bhakti. Sua palavra de ordem é o amor,
como se percebe neste verso: “Lendo livro depois de livro, o mundo
inteiro morreu/ E ninguém mais pode tornar-se letrado/ Aquele que
simplesmente decifra uma sílaba de “amor”/ é o verdadeiro letrado
(pândita)” (apud KAKAR, 1997a, p. 184).
Conforme explica Kakar (1997a), no Bhakti as ambiguidades
do pensamento e as angústias da razão podem ser deixadas de lado
com segurança, pois o caminho passa pelo abandono completo e
voluntário à divindade ou ao guru, que assume a responsabilidade total
pela transformação íntima do discípulo. O guru, pois, torna-se deus,
enquanto o discípulo torna-se criança: “o discípulo ideal, o favorito,
tem coração puro, o caráter maleável e renuncia voluntariamente a
7
Kabir – venerado hoje por hindus e muçulmanos – é referenciado como um
daqueles grandes místicos que subverteram a ordem religiosa: “Na realidade, se
Kabir visa a uma unidade religiosa, faz isso rejeitando tanto o hinduísmo quanto
o islamismo, tanto os ensinamentos dos pânditas quanto os dos mollahs. Nem sufi
nem iogue, Kabir exprime-se na linguagem a um só tempo pessoal e intemporal dos
grandes místicos” (ELIADE; COULIANO, 1995, p. 180).
Capítulo 1 – A mística na psicologia e na cultura | 33
Taoismo
O taoismo é o mais antigo ramo místico-religioso da China,
cujas fontes remontam às histórias míticas dos Três Soberanos e Cinco
Imperadores que governaram o território entre 2852 e 2205 a.C.
Contudo o mais importante tratado taoista – o Tao Te Ching – teria
sido escrito por volta do V século a.C. pela figura também lendária
de Lao-Tzu (o Antigo Sábio), primeiro grande mestre do Tao. Outros
importantes textos são o I Ching (O livro das mutações) e os escritos do
segundo grande mestre taoista: Chuang Tzu.
A mais antiga forma do ideograma Tao é composta de três
elementos: um caminho, uma cabeça e um pé. Significariam, assim,
a imagem de um mestre (a cabeça) e um discípulo (o pé) que, juntos,
procuram o caminho (MIYUKI, 1995). Porém, segundo Blofeld
(1990), Lao-Tzu ensinou que Tao não passa de um termo aceitável para
o que se chamaria melhor “o Inominado”: ele é “incognoscível, vasto,
eterno. Como vazio indiferenciado, puro espírito, é a mãe do cosmos;
como não-vazio, é o receptáculo, o amparo e, num certo sentido, o ser
dos objetos inumeráveis, que permeia a todos. Como alvo da existência,
é o Caminho do Céu, da Terra, do Homem. Não-ser, é a fonte do ser”
34 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan
Budismo THERAVADA
O budismo Theravada corresponde a um grande ramo budista
que é praticado especialmente no sul e sudeste da Ásia. A literatura
Theravada tradicional descreve duas técnicas principais para desenvolver
estados místicos: Samatha ou concentração e Vipassana ou atentividade.
Segundo o mestre budista Gunaratana (2002), todas as grandes
tradições místicas do mundo, tais como a cristã, a judaica (cabala) e a
hindu, usam a concentração como principal método de obtenção de
estados de consciência superiores. Com o budismo isso seria diferente,
pois o principal foco é o desenvolvimento de atenção, e a concentração
é apenas uma ferramenta para tanto.
Capítulo 1 – A mística na psicologia e na cultura | 35
Zen-budismo8
O zen é um dos principais ramos da escola budista Mahayana.
Foi fundado na China do século VI, onde é conhecido até hoje como
Chan – abreviação do termo channa, correspondente a dhyanna em
sânscrito, que significa meditação (POWELL, 1999). Nos séculos
XI e XII, monges budistas japoneses viajaram à China para estudar o
Chan e, quando retornaram, fundaram templos e disseminaram o novo
ensinamento em todo o Japão (FADIMAN; FRAGER, 1986), onde se
adotou o nome zen.
Segundo D. T. Suzuki (1991), o zen não afirma nem nega
a existência de um deus, pois objetiva se levantar acima da lógica e
encontrar uma afirmação maior em que não há antítese. Essa afirmação
maior é o próprio objeto da disciplina zen e recebe o nome de satori
em japonês ou wu em chinês. Enquanto estado de consciência, o satori
é indicado como uma experiência que transcende a dualidade do
8
O zen-budismo é analisado em maiores detalhes no capítulo 7, item 7.6.
36 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan
O médico suíço Carl Gustav Jung (1996), por sua vez, investiu
grande parte de sua obra ao estudo psicológico da religião, espiritualidade
e esoterismo. Rompendo com Freud por questões conceituais e
metodológicas,9 ele configurou um campo do saber intitulado “psicolo-
gia analítica”. Sua visão do desenvolvimento psicológico foi sistemati-
zada no conceito de “processo de individuação”, o qual reúne muitas
semelhanças com um caminho místico.
Ainda no campo dos pensadores pós-freudianos, sabe-se que Erich
Fromm e Karen Horney alimentaram forte estima e interesse precisa-
mente pelo zen-budismo. Seus estudos sobre o tema são contemporâneos
do início da difusão do zen nos Estados Unidos pelo erudito D. T.
Suzuki, que foi convidado por Fromm para, num esforço conjunto,
promover um ciclo de conferências em 1957, mais tarde publicadas na
obra Zen-budismo e psicanálise (SUZUKI; FROMM; MARTINO, 1970).
Frederick Perls, criador da Gestalt Terapia, foi bastante cativado
pelo misticismo oriental, em especial, pelo taoismo e zen-budismo.
Perls teria sido iniciado no zen ainda nos Estados Unidos pelo amigo
Paul Weisz; tendo, em seguida, realizado viagem ao Japão, onde visitou
um mosteiro zen. É dito que essas formas de mística influenciaram
conceitos de sua abordagem psicoterapêutica (GINGER, 1995).
Aldous Huxley, escritor inglês reconhecido por seus romances e
ensaios com profundas reflexões filosóficas, interessou-se bastante pelo
misticismo oriental em sua última fase intelectual, tendo buscado nessa
fonte inspiração para ideias sobre as potencialidades do ser humano.
Alguns trabalhos nesse sentido são As portas da percepção (1954), Céu e
inferno (1956) e A ilha (1962).
O psiquiatra Ronald D. Laing, mais conhecido pelo movimento
da antipsiquiatria, interessou-se pelas experiências místicas na medida
em que elas apontavam para certa lógica em relação à normalidade,
a qual era comparável àquela da psicose no âmbito de suas ideias
antipsiquiátricas. Ou seja, o misticismo não seria uma fuga da realidade
ou um desvio patológico da normalidade, mas uma modalidade de
experiência válida que fragiliza a noção de normalidade enquanto única
vivência saudável e desejável (LAING, 1974).
9
Ver, a respeito, o artigo de Freud: “Contribuição à história do movimento psica-
nalítico” (1914).
40 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan
10
Todas as referências às obras de Sigmund Freud utilizadas neste trabalho foram
traduzidas do castelhano pelo autor a partir das Obras completas publicadas pela
Amorrortu Editores.
42 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan
11
Mestre Eckhart foi um teólogo alemão, filósofo e místico de forte influência
neoplatônica. Foi reconhecido como “mestre” devido ao título Magister in theologia
obtido na Universidade de Paris. Nos últimos anos de vida foi acusado de heresia pelo
Papa João XXII.
12
A esse respeito, o autor comenta: “De fato, o que está em jogo nesse retorno [da
mística] não é outra coisa senão o grande movimento do romantismo e do idealismo
alemães que assim retornam às suas raízes e se dão títulos de legitimidade teórica”
(ASSOUN, 1980, p. 44).
Capítulo 2 – Freud e a mística: primeiras interações | 43
14
Esse trabalho é destacado particularmente pela importância que terá no debate
com o escritor francês Romain Rolland e com a escrita de obra posterior, O mal-estar
na cultura (1930), todos analisados a partir do capítulo 3. São também importantes
trabalhos de Freud sobre a religião: Atos obsessivos e práticas religiosas (1907), Totem e
tabu (1913), Moisés e o monoteísmo (1939), entre outros.
46 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan
15
O artigo de Goetz, Erinnerungen an Sigmund Freud, foi publicado originalmente
na Neue Schweitzer Rundschau, de Zurique. Trabalha-se aqui com a tradução para o
francês feita por Paul Duquenne e publicada em 1959. Há informações biográficas
sobre Goetz no artigo This is all I have to tell about Freud: reminiscences of Sigmund
Freud, publicado em 1982 no periódico Annual of Psychoanalysis, n. 10, por Martin
Grotjahn e Ernest S. Wolf.
48 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan
qual vale a pena nos determos, pois ele será novamente citado, 25 anos
mais tarde, na consideração dos fenômenos místicos.16
Escrito em 1797, o poema de Schiller (ver íntegra no apêndice)
conta a história de um pajem, a única pessoa com coragem suficiente
para responder ao desafio de seu rei: mergulhar em um abismo oceânico,
temido pela violência das águas e pelas criaturas que oculta, para
recuperar um cálice de ouro. Aquele que sobrevivesse à façanha heroica
ganharia do rei não só o cálice, mas o próprio trono. O pajem mergulha
e, após muita tensão dos espectadores, retorna com o cálice e descreve os
terríveis monstros que se ocultam no abismo. Porém o rei, não satisfeito,
lança o desafio de recuperar o cálice uma segunda vez, cuja recompensa
traria ao herói também a mão da princesa em casamento. O pajem
mergulha novamente, mas desta vez para nunca mais voltar.
Como afirma Assoun (1980), é inegável a influência do
romantismo alemão em Freud e na nascente psicanálise. Desta forma,
pode-se supor que o poema de Schiller ilustra certa atitude do mestre
com relação ao misticismo. Como Freud claramente associa o abismo
terrível do Bhagavad-Gita ao abismo do poema de Schiller, pode-se
interpretar que seu posicionamento era extremamente receoso quanto
aos perigos de “mergulhar” inadvertidamente na filosofia hinduísta.
E percebe-se logo em seguida, inclusive, qual é o grande risco que
correm aqueles que se aventuram, tal como O mergulhador de Schiller,
nas profundezas desses assuntos: a loucura.
Deter-se-á novamente neste tema adiante; por ora cabe apenas
dizer que o perigo da loucura é considerado verdadeiro e citado com
certa frequência pelos próprios místicos em diferentes tradições. Apesar
disso, Freud menciona que o nirvana não é um delírio, e certamente
essa afirmação introduz a problemática relação entre a mística e a
psicose, conforme será visto no capítulo 5, item 5.3.
Assim sendo, é bastante surpreendente o nível de compreensão
que Freud aparentava possuir sobre uma das grandes filosofias místicas
do Oriente, coisa que pouco transparece em sua própria obra, e talvez
jamais transparecesse, caso o mestre não tivesse travado contato com a
figura muito singular de Romain Rolland.
16
Ver capítulo 3, item 3.7.
| Capítulo 3 |
17
Vale informar que o estudo mais aprofundado de toda a relação entre Freud e
Rolland, tratando não somente do sentimento oceânico, é o de Vermorel e Vermorel
(1993), a ser aqui utilizado principalmente como fonte da íntegra das correspondências
originais em francês.
52 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan
18
O entendimento perenialista sobre o misticismo é discutido no capítulo 1, item 1.2.
56 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan
19
Na carta de 20 de julho de 1929, Freud (apud VERMOREL; VERMOREL, 1993,
p. 311) adverte Rolland: “Não espere dele [de O Mal-estar...] uma apreciação elogiosa
do sentimento oceânico. Atenho-me somente à derivação analítica deste sentimento.
Afasto-o, por assim dizer, do meu caminho.”
Capítulo 3 – Freud, Rolland e o sentimento oceânico | 57
20
A libido, para Freud, refere-se a uma energia de caráter eminentemente sexual, que
é considerada uma grandeza quantitativa, embora não seja efetivamente mensurável.
Estando o conceito de pulsão situado no limite entre o psíquico e o somático (ver
capítulo 4, item 4.3), a libido seria a manifestação dinâmica da pulsão sexual na vida
psíquica (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001).
21
Ao tratar dos conceitos de regressão e fixação, é necessário ter em mente que
o desenvolvimento sexual em psicanálise não deve de forma alguma ser lido numa
perspectiva psicogenética, em termos de fases ideais às quais um sujeito “maduro”
ou “normal” deva se adequar. Como já mencionado, Freud define que é norma, não
exceção, que o passado seja preservado na vida anímica, o que derruba a ideia de
que haja uma sexualidade infantil a ser superada por uma sexualidade adulta. Jacques
Lacan (1988 [1959-1960]) denunciou fortemente esse engano.
Capítulo 3 – Freud, Rolland e o sentimento oceânico | 59
22
A imago é definida por Laplanche e Pontalis (2001, p. 234-235) como o “protótipo
inconsciente de personagens que orienta seletivamente a forma como o sujeito
apreende o outro; é elaborado a partir das primeiras relações intersubjetivas reais e
fantasísticas com o meio familiar”.
Capítulo 3 – Freud, Rolland e o sentimento oceânico | 63
dos homens são sufocadas pelos gritos de amor e pelos cantos de ação
de graça dos bem-aventurados” (apud CLÉMENT, 1997, p. 46-47).
De fato, não há espaço para objetos do mundo quando a libido investe
totalmente o eu: “O imenso narcisismo do êxtase não se deixa partilhar;
é muito ‘cru’” (CLÉMENT; KAKAR, 1997, p. 23).
24
Ver o segundo estágio comum no misticismo, “A purificação do eu”, no capítulo
1.7. Vale mencionar que Freud (1930, p. 78-79) também estava ciente desse caminho,
quando menciona, em O mal-estar na cultura, que o aniquilamento ou controle da vida
pulsional, “como ensina a sabedoria oriental e a prática do yoga”), é um dos vários
caminhos humanos para a busca da felicidade. Sua contraparte – a vida do eremita que
renuncia ao mundo – também é citada.
Capítulo 3 – Freud, Rolland e o sentimento oceânico | 65
25
Importante pensar essa relação entre a morte do pai e a renúncia mística dentro
do esquema construído por Freud em Totem e tabu (1913): o misticismo, tal como
a religião, teria forte motivação inconsciente na expiação de culpa pelo desejo
homicida em relação ao pai. No caso dos místicos citados, o desejo edipiano de morte
é sobreinvestido pela morte do pai real, sendo que a culpa inconsciente motiva o
ascetismo subsequente. Essa questão será retomada no capítulo 5, item 5.1.
26
Nos capítulos subsequentes, será discutida a hipótese de que os místicos têm
uma intuição privilegiada da falta estrutural de objeto para a pulsão, ou ainda, da
impossibilidade de satisfação para os seres de linguagem. Entendo que essa intuição
66 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan
surge a partir de uma experiência de luto e provoca no místico uma recusa tenaz
em investir novos objetos do mundo, como se percebesse, intimamente, que nenhum
deles trará a satisfação absoluta. Essa é uma possível razão para o “temperamento
melancólico” consequente.
Capítulo 3 – Freud, Rolland e o sentimento oceânico | 67
27
Ver capítulo 1, item 1.3.
28
Traduzível como “lampejos” ou “clarões”.
68 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan
29
Ver a concisa descrição do Bhakti hindu no capítulo 1, item 1.6.
30
As manifestações femininas dos deuses no hinduísmo assumem várias formas, e
Kakar não deixa claro se Ramakrishna adorava alguma em particular. Em algumas
passagens ele menciona Parvati, mãe do deus Ganesha, e Yashoda, mãe de Krishna.
Capítulo 3 – Freud, Rolland e o sentimento oceânico | 69
31
No original em alemão da obra de Schiller, lê-se: “[...] Es freue sich, Wer da atmet
im rosigten Licht!” (ver apêndice).
Capítulo 3 – Freud, Rolland e o sentimento oceânico | 71
manter a “cabeça fria”, “não se iludir” e não ser atordoado pela emoção.
Ou seja, não “mergulhar no abismo” sem o franco uso da razão.
Assim sendo, poder-se-ia finalmente relacionar o abismo do
poema de Schiller não somente às profundezas da filosofia oriental,
mas ao próprio isso. E, desta forma, o corajoso mergulhador seria tanto
o místico como o psicanalista. Este último, contudo, seria muito mais
prudente, fazendo seus mergulhos sempre auxiliados pelo uso da razão,
e, portanto, menos propenso a ser engolido pelos perigos inerentes a
tais empresas.
O modelo clássico
O primeiro modelo, chamado por Parsons de “clássico”, diz
respeito às avaliações pejorativas sobre o misticismo, entendido como
defensivo, patologicamente regressivo ou, no mínimo, caracterizado
como algum tipo de infantilismo. Esse modelo é construído a partir de
certas interpretações da análise de Freud sobre o sentimento oceânico
e seu conteúdo representacional – consolativo tal como a religião.
Seriam alguns exemplos dessa “escola” os trabalhos de Alexander (1998
[1931]) e Masson (1980).
32
Em psicanálise, ambivalência define a presença simultânea, para com um mesmo
objeto, de tendências, atitudes e sentimentos opostos: fundamentalmente o amor e o
ódio (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001).
76 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan
O modelo adaptativo
Parsons intitula “adaptativo” o segundo modelo de interpretação
da mística. Essa visão enfatiza as características terapêuticas, artísticas e,
por assim dizer, adaptativas das modalidades místicas de conhecimento,
em detrimento de qualquer reducionismo. Sua origem remonta ao último
parágrafo de O mal-estar, em que Freud cita as ideias do “outro amigo”
sobre a possibilidade de que os estados místicos sejam regressões a
estados primordiais e encobertos do psiquismo. Alguns, como o psicana-
lista indiano Suddhir Kakar (1997c, 1997b), interpretaram essas regres-
sões na esteira de estados passageiros e não patológicos. As referências
comparativas de Freud entre misticismo e psicanálise poderiam se
encaixar nessa escola igualmente.
Uma leitura pós-freudiana classificável dentro desse modelo é
a de Prince e Savage (1993), que aprofundaram o estudo dos estados
místicos a partir do conceito de regressão. Para os autores, o misticismo
33
Jeffrey Masson é ex-diretor dos Arquivos de Sigmund Freud e ficou conhecido
pelo livro escrito em 1984, The assault on truth: Freud’s suppression of the seduction theory.
Nesse trabalho, amplamente repudiado pelas comunidades psicanalíticas, Masson
defende que Freud teria suprimido evidências supostamente verídicas de abuso sexual
infantil quando abandonou sua conhecida “teoria da sedução”.
Capítulo 3 – Freud, Rolland e o sentimento oceânico | 77
O modelo transformacional
Retomando a classificação de Parsons (1999), o último grande
modelo interpretativo do misticismo é o que ele chama de “transfor-
macional”. Nesse âmbito, a ênfase está em proporcionar um espaço
metapsicológico para as asserções dos místicos, tomadas como
relatos verídicos de possibilidades psíquicas não encaixáveis dentro
de modelos conceituais pré-existentes. O primeiro articulador dessa
posição teria sido o próprio Romain Rolland quando sugeriu redefinir
conceitualmente o inconsciente freudiano para compatibilizá-lo com a
experiência dos místicos.
78 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan
34
Historiador japonês responsável por algumas das primeiras obras voltadas à
explicação e divulgação do zen-budismo ao mundo ocidental.
35
As ideias de Fromm serão analisadas criticamente no capítulo 7, item 7.6.
36
Nas palavras do autor: “[...] a contraparte do ‘Eu’ pode ser apenas, estritamente
falando, a deidade que emprestou o seu halo a um mortal e que está ela-mesma dotada
de uma numinosidade eterna, certificada por todos os ‘Eus’ que reconhecessem essa
dádiva” (ERIKSON, 1987, p. 221). Para maiores detalhes sobre as relações entre o
pensamento de Erikson, o misticismo e a religiosidade, ver A psychology of ultimate
concern: Erik H. Erikson’s contribution to the psychology of religion (ZOCK, 2004).
37
ERIKSON, Erik H. Gandhi’s truth: on the origin of militant nonviolence. NY: W. W.
Norton & Co., 1969.
Capítulo 3 – Freud, Rolland e o sentimento oceânico | 79
Para Bion (apud LINO SILVA, 1999), por sua vez, a experiência
do zero (“0”) é o inefável – aquilo que escapa a qualquer definição,
apreensão ou limite. O zero é o contato direto com a Realidade Última,
assemelhável, portanto, à própria definição de experiência mística.
Em leitura dos trabalhos de Bion, Lino Silva (1999) destaca que “A
‘Realidade Última’, Deus, aparece como a verdade inalcançável de cada
instante: o 0 [zero]. Entrar em contato direto com a Divindade deixa
de ser um êxtase reservado aos místicos: passa a ser uma tarefa para
psicanalistas”.
Em The psychoanalytic mystic (1998), Michael Eigen relaciona,
também, à lista dos psicanalistas cujo pensamento pode ser aproximado
da mística, aquele de Donald Winnicott. Nesse caso, seria de especial
utilidade o conceito de verdadeiro self (true self ), que se refere à base
criativa da personalidade, ou ainda, à capacidade da criança em
reconhecer e agir de acordo com suas necessidades espontâneas de
expressão. Trata-se de uma vivência autêntica, integral e eventualmente
caótica, que teria ressonâncias com a busca mística por uma experiência
de intensa vivacidade. Em ambos os casos, a sensação de estar vivo é
obtida como resultado de uma depuração psíquica, em que uma forma
de identidade falsa (o falso self para Winnicott) deve ceder espaço à
identidade autêntica, deixando de ocultá-la.38
Não é difícil notar que os teóricos desse modelo explicitamente
rompem com a psicanálise freudiana em vários sentidos, inaugurando
novas leituras. Entretanto, para Parsons (1998) e Eigen (1998), até
mesmo Jacques Lacan inclui-se nessa “escola”, um vez que este cria um
novo instrumental teórico que possibilita pensar psicanaliticamente
o misticismo. Esse arcabouço conceitual estaria intrinsecamente
relacionado à noção de gozo feminino e à tópica do real. Sobre estas
últimas, será dedicada grande ênfase nos capítulos 6 e 7.
38
Essa transformação, na mística, corresponde ao estágio de “purificação do eu”
(ver capítulo 1, item 1.7).
| Capítulo 4 |
39
Paradoxalmente, há também uma relação estreita entre o misticismo e a pulsão de
morte, mais visível na chamada “mística da liberação”. Essa relação será abordada no
capítulo 7, item 7.7.
82 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan
40
Francisco foi canonizado dois anos após sua morte e é respeitado inclusive em
outras religiões, mas em vida chegou a ser considerado herege pela Igreja da época.
Em biografia recente baseada em arquivos históricos pouco explorados, o teólogo
Donald Spoto (2003) define Francisco como um “santo relutante” e enfatiza que a
canonização fez de sua vida e de seu exemplo um grande embaraço para a Igreja.
Isso dá apoio, mais uma vez, à hipótese de uma vida potencialmente subversiva dos
místicos em relação à religiosidade tradicional. Mais precisamente, Francisco seria
um grande exemplo do “misticismo da natureza” que se expressa no sentimento de
amor ou união com o mundo animal e com os fenômenos naturais.
84 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan
4.3 As pulsões
A pulsão pode ser representada como uma energia fundamental
que anima todo sujeito humano, promovendo uma tensão que demanda
descarga. É, fundamentalmente, uma exigência de trabalho. A teoria
das pulsões, como escreveu Freud (1998 [1933-1932c]), é a própria
mitologia da psicanálise. Ou seja, falar sobre pulsão é falar de um
41
Ironicamente, o filósofo e místico indiano Krishnamurti (1895-1986) concordaria
com Freud no que tange a uma descrença no amor universal enquanto exigência
idealizada: “O amor não pode ser pensado, o amor não pode ser cultivado, o amor não
pode ser exercitado. A prática do amor, o exercitar da fraternidade está ainda dentro
da esfera da mente e por conseguinte não é amor”. Mas, para ele, haveria também
outra forma de amar, fora da “esfera da mente”, que seria verdadeira e universal:
“quando sabeis amar a um só, sabeis amar o todo. Porque não sabemos amar a um só,
nosso amor à Humanidade é fictício” (KRISHNAMURTI, 2003, p. 194).
Capítulo 4 – Mística, amor e sublimação | 85
conceito, “de uma ficção teórica e não de uma entidade que possua
realidade ontológica” (GARCIA-ROZA, 1986, p. 12).
A pulsão é também largamente indeterminada, qualificada por
Freud (1998 [1905], p. 153) como “um dos conceitos da delimitação
entre o anímico e o corporal”. Está, ela própria, fora da possibilidade
de uma conceituação exata, de uma eficaz simbolização, e por isso se
diz que pertence ao registro lacaniano do real.42 Sua mais fundamental
importância consistiu em romper com a ideia de instinto aplicada ao
âmbito humano: ao contrário dos animais, o comportamento do homem
não é fixado ou programado pela hereditariedade ou pela espécie.
Essa falta de programação ou fixação é particularmente patente na
questão da satisfação humana. O animal regido pelo instinto tem neces-
sidades e objetos para satisfação delas, todos biologicamente determinados.
Já o homem não nasce com quaisquer objetos pré-formatados para
sua satisfação. Muito pelo contrário, os objetos são sempre variáveis,
contingentes e definidos nas vicissitudes da vida de cada sujeito.
Assim, o instinto não serve como modelo de explicação para o
comportamento humano: ele é perdido de saída para os seres falantes.
Em seu lugar, a psicanálise propõe a noção de pulsão. Esta assume, como
característica essencial, o fato de ser uma pressão constante (konstant
kraft),43 o que permite diferenciar prontamente a sexualidade humana
do sexo nos animais: “enquanto a sexualidade humana é pulsional e
obedece a uma força constante da libido, o sexo no animal é cíclico e
biologicamente teleológico, visando exclusivamente a reprodução”
(JORGE, 2005b, p. 48).
As pulsões também são múltiplas, pois se relacionam com diferentes
fontes somáticas, e parciais, no sentido de funcionarem independente-
mente, de forma que nenhuma pulsão parcial pode representar a
totalidade da tendência sexual. De fato, a noção de uma sexualidade
pulsional amplia o conceito de sexualidade humana, que deixa de ser
subsumida à genitalidade e à correspondente função reprodutora.
O caráter revolucionário do conceito de pulsão foi assimilado
com dificuldade nas próprias comunidades psicanalíticas, resultando em
mal-entendidos bem conhecidos, como o da Standard Edition inglesa das
42
A tópica lacanina do real será abordada em maiores detalhes no capítulo 7.
43
A esse respeito, Lacan (1988 [1963-1964], p. 157) explica: “A primeira coisa que diz
Freud da pulsão é, se posso me exprimir assim, que ela não tem dia nem noite, não tem
primavera nem outono, que ela não tem subida nem descida. É uma força constante”.
86 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan
44
Reproduzido a partir de Lacan (1998 [1963-1964], p. 169). Nesta figura Lacan
também introduz o “objeto a”, conceito a ser mencionado no capítulo 7, item 7.3.
Capítulo 4 – Mística, amor e sublimação | 87
origem para então iniciar um novo trajeto. Diz Lacan: “Quanto ao objeto
da pulsão, saiba-se que, na realidade, ele não tem nenhuma importância. É
totalmente indiferente” (LACAN, 1988 [1963-1964], p. 159). Se o objeto
é indiferente, temos que a satisfação pulsional se dá simplesmente no
tangenciamento do objeto, tal como ilustrado na figura 1. Na alimentação,
por exemplo, não é o objeto alimentar que satisfaz a pulsão, mas o chamado
“prazer da boca”.
Ainda em As pulsões e seus destinos, Freud afirma haver quatro
formas de vicissitudes da pulsão, que, em outras palavras, são defesas
contra a pulsão, ou ainda, maneiras pelas quais a pulsão organiza o
fracasso em termos de sua satisfação. Tais vicissitudes constituem seus
destinos, como frisará Lacan mais tarde, no seminário 11, a partir
do termo alemão Triebschicksale. São esses destinos: o recalcamento, a
sublimação, a inversão em seu oposto e o retorno em direção ao próprio eu.45
Tratar-se-á aqui apenas da sublimação por ter consequências diretas
para o estudo proposto.
45
De forma bastante resumida, o recalcamento é o afastamento das pulsões de
seu acesso à consciência, sendo o processo mais comum no campo das neuroses e
o responsável pela formação dos sintomas (CHEMAMA, 1995). Já a inversão em
seu oposto são, na verdade, dois processos diferentes: a mudança da atividade para
a passividade e a inversão de conteúdo. O primeiro é exemplificado pela mudança
de uma meta pulsional ativa, como o sadismo e a escopofilia, para outra passiva, que
corresponderia, nesse caso, ao masoquismo e o exibicionismo, respectivamente. O
segundo é exemplificado pela transformação do amor em ódio. Por fim, no último
destino descrito por Freud, há uma mudança do objeto da pulsão para o próprio eu. O
masoquismo é, por exemplo, o sadismo dirigido à própria pessoa, podendo envolver
a passividade em relação a um sujeito (caso do masoquismo propriamente dito) ou
simplesmente uma autopunição ou autotortura (caso típico da neurose obsessiva)
(FREUD, 1998 [1915]).
88 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan
46
A intensa produção artística e intelectual de Leonardo da Vinci, por exemplo,
seria para Freud (1998 [1910], p. 74) exemplo de uma sublimação do tipo “mais raro e
perfeito”.
47
Deve-se lembrar que um ideal do eu elevado não é sinônimo de sublimação bem-
sucedida. Na sublimação, o ideal do eu inspira em vez de coagir. “Ao contrário, um
elevado ideal do eu relança o caráter proibitivo das instâncias paternas, refratando as
pulsões e deixando, muitas vezes, o sujeito inibido” (CRUXÊN, 2004, p. 19).
Capítulo 4 – Mística, amor e sublimação | 91
Quis o Senhor, que tivesse aqui algumas vezes esta visão, via
um anjo junto ao meu lado esquerdo em forma corporal; [...]
Nesta visão quis o Senhor que o visse assim, não era grande,
senão pequeno, muito belo, o rosto tão ruborizado, que parecia
dos anjos muito elevados, que parecem todos queimar-se: devem
ser os que chamam de serafins [...]. Via nas suas mãos um dardo
de ouro comprido, em cuja ponta de ferro me parecia haver um
pouco de fogo. Parecia-me enfiar no coração algumas vezes, e
que me chegava às entranhas: ao tirá-lo me parecia que as levava
consigo, e me deixava toda abrasada em grande amor por Deus.
Era tão grande a dor, que fazia dar gemidos, e tão excessiva a
suavidade em que põe esta grandíssima dor, que não se pode
desejar que ela cesse, nem se contenta a alma com menos que
Deus. Não é dor corporal, senão espiritual, embora o corpo
não deixe de nela tomar parte, e mesmo muita. (JESUS, 2000,
capítulo XXIX, parágrafo 11).
Não se pode deixar de notar as semelhanças entre as ações do anjo
e aquelas de um amante em pleno ato sexual.48 A tradição mística de
Santa Teresa costumava expressar a relação com a divindade como uma
relação marital: é o casamento divino. Nessa situação, especificamente,
considerando que o vínculo místico ainda não estava consumado, Teresa
entende sua relação como uma forma de namoro: “É um galanteio tão
suave, que acontece entre a alma e Deus, que suplico a Sua bondade de
fazê-lo experimentar quem pensar que minto” (JESUS, 2000, capítulo
XXIX, parágrafo 11).
De todo modo, é fascinante como a sublimação faculta aos
místicos a expressão de uma sensualidade sem que haja, muitas vezes,
qualquer percepção consciente do processo. Madeleine, por exemplo,
não enxerga qualquer erotismo direto em suas experiências. Para ela,
seus “gozos excessivos” são “puros” e têm “outra natureza que as volúpias
carnais” (apud CLÉMENT, 1997, p. 59). É a própria mística francesa
48
O relato acima inspirou Gian Lorenzo Bernini quando esculpiu, para a Capela
Cornaro da Igreja de Santa Maria della Vittoria em Roma, O êxtase de Santa Teresa
– obra cuja fama se deve, ao menos em parte, à sensualidade que expressa. Pommier
(1987) relata que o Marquês de Sade (apud POMMIER, 1987, p. 68) teria comentado
sobre a estátua: “É preciso apenas compenetrar-se, ao vê-la, de que é uma santa, pois,
pelo ar extático de Teresa, pelo fogo de que seus traços estão abrasados, seria fácil
enganar-se”. O êxtase de Teresa, tal como representado por Bernini, também não
escapou aos olhos atentos de Lacan, conforme será visto no capítulo 6.
Capítulo 4 – Mística, amor e sublimação | 93
50
Isso não significa, obviamente, que a psicanálise se posicione contra o amor.
Quem quer que atravesse uma análise não deixa de amar, está apenas mais advertido
contra as ilusões dessa empresa e pode eventualmente nelas enredar-se menos.
51
O mito bíblico da queda do paraíso é outro ainda mais conhecido. Em Totem e
tabu (1998 [1913]), o próprio Freud elaborou um mito perfeitamente aplicável a essa
temática, conhecido como o mito do pai da horda primeva, o qual, por sua vez, tem
clara inspiração nas hipóteses de Charles Darwin. Em nota de rodapé de Mais além
do princípio de prazer (1998 [1920], p. 56), Freud reconhece que o mito platônico é
semelhante a outro ainda mais antigo, encontrado no primeiro livro (século XIII a.C.)
dos Upanishads – escrituras místicas do hinduísmo.
52
“Não há relação sexual” – o bombástico aforismo lacaniano é o que melhor ilustra
a ausência de complementaridade entre os sexos. A ilusão de que tal relação exista é o
que chamamos de amor. Retomar-se-á essa questão no capítulo 6, item 6.4.
Capítulo 4 – Mística, amor e sublimação | 95
54
As teorizações lacanianas sobre o gozo serão abordadas no capítulo 6. Por ora,
cabe apenas salientar que o gozo difere do prazer na medida em que a relação do
ser humano com o seu suposto objeto de satisfação passa irremediavelmente pela
mediação das palavras (CHEMAMA, 1995).
55
Capítulo 3, item 3.4.
Capítulo 4 – Mística, amor e sublimação | 97
57
Ver, por exemplo, Weil (1987), que sugere a existência de uma “neurose do paraíso
perdido” nos místicos.
100 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan
58
Para uma análise da relação entre a mística e a estrutura perversa, remete-se o
leitor ao capítulo primeiro da obra A parte obscura de nós mesmos – uma história dos
perversos, de Elisabeth Roudinesco (Zahar Editores, 2008).
59
Conforme descrita no capítulo 4, item 4.5.
102 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan
60
Após os sete primeiros anos de vida, Rajneesh (2002) passou a ser criado pelos pais
biológicos. Ele relata ter vivido então até os 21 anos com a família, sempre em meio a
muitos conflitos com o pai, para quem a educação inicial pelos avós havia “estragado”
o menino.
Capítulo 5 – Mística e estruturas clínicas | 103
63
Descrito no capítulo 1, item 1.7.
Capítulo 5 – Mística e estruturas clínicas | 105
64
Foram descritas, no capítulo 3, item 3.9, leituras supostamente reducionistas da
mística, de acordo com Parsons (2003).
65
Os detalhes da vida de Madeleine são descritos por Catherine Clément (1997) no
livro A louca e o santo.
Capítulo 5 – Mística e estruturas clínicas | 107
do exílio.66 Passa mais cinco meses presa e depois vai para igrejas. Não
obstante, não tarda ser proibida de frequentar ofícios religiosos por
causa de seus êxtases.
Logo ela começa a andar na ponta dos pés e passa por uma
série de hospitais – Hôtel-Dieu, Bichat e Necker –, para finalmente
ser internada na Salpêtrière, onde ficará aos cuidados do renomado
psiquiatra Pierre Janet por seis anos e oito meses. Lá ela tem contraturas
nas pernas, estigmas crísticos e jejua. Também tem êxtases, muitos
êxtases, durante os quais ocorrem pausas respiratórias de 30 segundos
ou mais: Janet anota e mede meticulosamente tudo.
O psiquiatra francês distingue três fases dos êxtases de Madeleine.
Primeiro acontece o recolhimento, quando sua voz se enfraquece, mas
mantém os olhos abertos e pode escutar e responder perguntas. Depois
vem o êxtase propriamente dito, quando ela chega à imobilidade
e cessam suas reações, ainda que mantenha a memória do ocorrido.
Madeleine (apud CLÉMENT, 1997, p. 46) descreve tais arroubos:
Nesses momentos de luz a alma escuta uma linguagem que não
é da terra... São coisas que não se pode exprimir com palavras
humanas... O que se pode dizer das coisas da alma nesses estados
é como uma gota d’água no oceano, um grão de poeira na
imensidão do globo terrestre.
Para além do êxtase há, por último, um estado mais raro, o
arrebatamento, que suprime a memória e compara-se, para ela, a uma
espécie de morte.
A cura de Madeleine, supõe Janet, advém após a menopausa,
sendo igualmente ajudada pelo seu tratamento, que é, segundo Clément
(1997), de caráter inteiramente moral.67 Madeleine (apud CLÉMENT,
1997, p. 59) demonstra que aprendeu a lição de Janet: “Devo resistir
66
Clément (1997) comenta que prostituição foi acrescentada mecanicamente à lista
de seus delitos, pois é muito improvável que tenha cometido.
67
Os critérios para cura ditados por Janet são, como sublinha Clément (1997, p.
90), pertencentes mais “à estrita moral republicana do que à terapia revolucionária,
como será a de Freud”. A norma é a ação realizada, o sucesso normal e modesto.
Todos os doentes são involuntariamente culpados de preguiça, quando atacados pela
imobilidade e o cansaço, ou acusados pelo excesso de alegria ou êxtase, como no
caso de Madeleine. Clément resume o ideal de normalidade de Janet: “Um pouco de
virtude, mas não demais; um pouco de paixão, mas não demais; um pouco de mágoa,
mas não excessiva, e bom senso, por favor” (p. 91).
Capítulo 5 – Mística e estruturas clínicas | 111
68
A relação entre sublimação, gozo e misticismo será especificamente abordada no
capítulo 7, item 7.3.
114 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan
69
A passividade e feminilização mística também é tema do capítulo 6, item 6.5.
Capítulo 5 – Mística e estruturas clínicas | 115
O caso de Ramakrishna
Kakar (1997c) publicou detalhes da vida precoce do místico
indiano Ramakrishna, a partir dos quais pode-se fazer inferências
sobre a relação entre a psicose e o misticismo. Nascido em 1836, em
família brâmane do povoado de Kamarpukur – Bengala, Ramakrishna
foi o quinto filho de pais devotos muito pobres e com idade bastante
avançada quando de seu nascimento (o pai tinha 60 anos e a mãe, 45).
O garoto adorava pintar quadros e passar o tempo com oleiros. Tinha,
portanto, uma veia artística bastante desenvolvida e seu primeiro êxtase
aparentemente foi evocado por uma forte emoção estética.72
72
Trata-se, segundo Kakar, de um episódio classificável como misticismo da
“natureza”: “Eu estava passando por um caminho estreito entre dois arrozais. Mascando
Capítulo 5 – Mística e estruturas clínicas | 117
meu arroz, ergui os olhos para o céu. Vi uma grande nuvem negra expandindo-se
rapidamente até cobri-lo inteiramente. Subitamente, da borda da nuvem, uma revoada
de garças brancas como a neve passou sobre minha cabeça. O contraste foi tão bonito
que meu espírito perdeu-se em regiões distantes. Perdi a consciência e caí no chão; o
arroz expelido espalhou-se. Alguém me pegou e levou-me nos braços até em casa. Um
acesso de alegria e de emoção dominou-me... Esta foi a primeira vez que fui tomado
pelo êxtase” (RAMAKRISHNA apud KAKAR, 1997c, p. 113).
118 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan
73
Kakar (1997c), contudo, também pensa que esse “diagnóstico” é tão duvidoso e
reducionista como definir que o misticismo devocional cristão de mulheres medievais
(que muito lembram o caso de Madeleine) é manifestação de uma sexualidade
patológica.
Capítulo 5 – Mística e estruturas clínicas | 119
74
Não havia muito a temer depois de certo estágio espiritual: “Depois de atingir
o teto, pode dançar o quanto quiser, mas não enquanto estiver nas escadas”
(RAMAKRISHNA apud KAKAR, 1997c, p. 143).
120 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan
75
Na medida em que há, na psicose, um furo no simbólico (a foraclusão), o delírio
tem justamente a função de tapar, por um recurso intenso ao imaginário, esse buraco
por onde apenas o real responde. O delírio é, desta forma, pura produção de sentido,
conforme declara Jorge (2005b).
76
São João da Cruz (1542-1591) foi um frade carmelita espanhol muito conhecido
por sua cooperação com Santa Teresa D’Ávila na reforma da ordem carmelita, assim
como por suas obras escritas com forte cunho místico.
77
O místico indiano Rajneesh (2002, p. 92) comenta a respeito: “há momentos que
só podem ser chamados de ‘noites escuras da alma’. Tão escuros e tão perigosos, que
parece que vocês chegaram ao último suspiro das suas vidas; é a morte e nada mais.
Essa experiência é um colapso nervoso”. Essa etapa do caminho místico foi descrita
também no capítulo 1, item 1.7.
Capítulo 5 – Mística e estruturas clínicas | 121
80
Sobre essa repentina mudança “do Inferno ao Céu” é deveras ilustrativo o seguinte
relato do místico hindu: “Um dia, eu senti uma angústia insuportável no meu coração
porque não conseguia a visão Dela [...]. Muito aflito pelo pensamento de que eu podia
não ter a visão da Mãe, eu estava bastante inquieto. Pensei que não havia sentido em
viver assim esta vida. Meus olhos caíram repentinamente sobre a espada que estava
no templo da Mãe. Decidi dar um fim em minha vida naquele mesmo instante. Como
um louco, corri e peguei a espada, quando de repente tive uma maravilhosa visão da
Mãe, e caí inconsciente. Eu não soube o que aconteceu no mundo externo – como se
passaram este dia e o seguinte. Porém, no mais profundo da minha alma, fluía uma
corrente intensa de bem-aventurança, nunca experimentada antes... Era como se as
casas, as portas, os templos e todas as outras coisas tivessem se desvanecido juntas;
como se não houvesse mais nada em lugar algum! E o que vi foi um mar de consciência
luminoso e sem limites! Não importa a distância ou a direção, para onde quer que
voltasse os olhos via chegar uma sucessão contínua de ondas fulgurantes, assolando e
bramindo de todas as direções em grande velocidade. Muito rapidamente elas caíram
sobre mim, afundando-me nas profundezas abismais do infinito” (RAMAKRISHNA
apud KAKAR, 1997c, p. 117).
81
Esquizofrenia é um termo psiquiátrico cunhado para caracterizar determinado
tipo de transtorno psicótico. Segundo o DSM-IV-TR (2002), a esquizofrenia tem
ao menos dois dos seguintes sintomas característicos: delírios, alucinações, discurso
desorganizado, comportamento amplamente desorganizado ou catatônico e sintomas
negativos (como o embotamento afetivo, alogia ou abulia). Além disso, deve haver
124 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan
83
Ver, nesse sentido, o caso dos dervixes – místicos sufis (da via mística do islamismo)
que buscam o êxtase por meio da dança.
84
Essa relação será detalhada no capítulo 6.
126 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan
85
Pommier (1987, p. 69-70) diz a respeito: “a extática segue seu caminho – passivo,
se quisermos – graças a atos que exigem uma longa paciência. Quando Margarida
Maria, amante do Sagrado Coração, escreve: ‘Todo o meu interior é um profundo
silêncio para escutar a voz Daquele a quem amo’, tal fala evoca uma espera passiva, se
nos esquecermos de que ela requer esses atos que são o jejum, a renúncia aos prazeres
da vida, o celibato”.
| Capítulo 6 |
Mística e gozo
86
Com o princípio de prazer, Freud postula que, no seu conjunto, a atividade
psíquica objetiva evitar o desprazer – relacionado ao aumento de tensão ou excitação
– e proporcionar o prazer – que está ligado à redução dessa tensão (LAPLANCHE;
PONTALIS, 2001).
128 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan
87
Em Mais além do princípio de prazer (1998 [1920]), Freud postula que o masoquismo
imanente a tantas pessoas, a reação terapêutica negativa e o sentimento de culpa
encontrado em tantos neuróticos são indicações inequívocas da presença de uma
pulsão de agressividade ou destruição na vida anímica, a pulsão de morte.
Capítulo 6 – Mística e gozo | 129
88
Essa fórmula indica o gozo do Outro, a partir da expressão francesa jouissance de
l’Autre. Esse conceito será explicado adiante.
89
Ver capítulo 7, item 7.3.
90
Reproduzido de Valas (2001, p. 28).
130 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan
91
Não parece haver um consenso nos comentadores da obra lacaniana sobre a
totalidade das formas de gozo definidas pelo mestre francês. Por simplicidade,
optou-se aqui por delimitar apenas as duas principais modalidades do gozo: fálico e
suplementar, acrescido do gozo mítico de origem, aquele do corpo próprio (J(A)).
Capítulo 6 – Mística e gozo | 131
gozo fálico, que resulta do recorte pelo significante. Por fim, há o gozo
definido por Lacan (1985 [1972-1973]) no seminário 20, Mais ainda,
que indica uma jouissance precisamente feminina com seu caráter
enigmático, pois nunca foi tomada pela linguagem. Cabe, pois, melhor
definir cada uma dessas modalidades, ainda que de forma sintética.
92
O gozo feminino e suas relações com o misticismo serão abordados em detalhes a
seguir.
134 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan
93
A situação pode ser lida à luz da primeira fase da mística definida por Underhill
(capítulo 1, item 1.7) – o “Despertar do Eu”.
Capítulo 6 – Mística e gozo | 135
A sexuação masculina
Far-se-á uma explanação dessas fórmulas principalmente a partir
da interpretação sugerida por Fink (1998). Na figura 3, observa-se que
elas se distribuem em uma tabela com duas linhas e duas colunas. Lacan
Capítulo 6 – Mística e gozo | 137
95
“Φ, nós o designamos com esse Falo, tal como eu o preciso por ser o significante
que não tem significado, aquele que se suporta, no homem, pelo gozo fálico. O
que é isto? – senão o que a importância da masturbação em nossa prática sublinha
suficientemente, o gozo do idiota” (LACAN, 1985 [1972-1973], p. 109).
138 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan
A sexuação feminina
A sexuação feminina, por sua vez, dá-se de maneira bastante
diversa, conforme descrita nas duas fórmulas da segunda coluna (linha
superior da figura 3). A fórmula inferior – – manifesta que
nem tudo em uma mulher está subordinado à função fálica: o primeiro
argumento ( ) circunscreve a negação de que a totalidade de um
sujeito feminino qualquer esteja subordinada à castração simbólica
representada no segundo argumento (Φx). Essa fórmula bem demonstra
uma das razões por que Lacan vai insistentemente chamar a mulher de
“não-toda” (pas-tout) – ela não está inteiramente sob o domínio do falo.
Capítulo 6 – Mística e gozo | 139
Logo ser “não-toda” não designa que a mulher seja menos “completa”
que o homem: “todo” ou “não-todo” são atributos da relação do sujeito
com a função fálica.
Já a fórmula feminina superior, , exprime que não existe
uma mulher totalmente insubordinada à função fálica. Esclareça-se: a
fórmula demarca não existir um “x” ( ) tal que a função fálica seja,
por ele, completamente negada ( ). Até porque, se tal sujeito existisse,
isso denotaria a foraclusão, ou seja, haveria identidade entre a sexuação
feminina e a psicose.
Tomando as duas fórmulas femininas em conjunto, ter-se-á que a
mulher não é toda subordinada à função fálica, mas, ao mesmo tempo,
está determinada pelo falo. Ou seja, a ordem fálica ainda é a regra, de
forma que o âmbito “além do falo” permanece uma possibilidade, não
uma necessidade. “Não é porque ela é não-toda na função fálica que
ela deixe de estar nela de todo. Ela não está lá não de todo. Ela está lá à
toda. Mas há algo a mais” (LACAN, 1985 [1972-1973], p. 100).
Esse “algo a mais” é o que estruturalmente define a sexuação
feminina. Ele representa a abertura para uma modalidade outra de gozo
(gozo Outro), suplementar ao gozo fálico no qual o homem encontra-
se fechado. Explica Valas (2001, p. 88):
O gozo fálico, do qual ela não é privada, constitui o limiar, a
porta de acesso para o seu outro gozo – ao contrário do homem,
para quem o gozo todo fálico é fechamento, obstáculo a que ele
possa gozar de outra forma com uma mulher, pois aquilo de que
ele goza é o gozo do órgão.
A assunção de que a mulher é “não-toda” no registro fálico
explica em parte o conhecido aforismo lacaniano: “A mulher não existe”,
condensado no matema . A mulher, enquanto categoria, não existe,
porque não há significante da identidade feminina, ao contrário da
masculina. Dito de outra forma, para que a mulher seja um sujeito, para
que tenha um inconsciente, ela deve estar sujeita à castração simbólica
que, entretanto, é função que define o homem.96 Assim, no registro
do gozo fálico não há mulher propriamente dita, de forma que ela só
se define pela posição dual. Mas essa posição a retira da exclusividade
96
“[...] a querida mulher, não é senão de lá onde ela é toda, quer dizer, lá de onde
o homem a vê, não é senão de lá que a querida mulher pode ter um inconsciente”
(LACAN, 1985 [1972-1973], p. 133).
140 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan
97
Para Valas (2001, p. 90), uma mulher não goza do corpo de um homem, “pois esse
corpo se reduz também, para ela, ao objeto a”.
98
Explica Lacan: “Como conceber que o Outro possa ser em algum lugar aquilo
em relação a quê uma metade [...] dos seres falantes se refere? É, entretanto, o que
está escrito lá no quadro com aquela flecha partindo do . Esse não se pode dizer.
Capítulo 6 – Mística e gozo | 141
Nada se pode dizer da mulher. A mulher tem relação com o , e já é nisso que
ela se duplica, que ela não é toda, pois, por outro lado, ela pode ter relação com Φ”
(LACAN, 1985 [1972-1973], p. 109).
142 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan
Há um gozo dela, desse ela que não existe e não significa nada.
Há um gozo dela sobre o qual talvez ela mesma não saiba nada
a não ser que o experimenta – isso ela sabe. Ela sabe disso,
certamente, quando isso acontece. Isso não acontece a elas todas.
A mulher tem, em suma, um gozo que experimenta, mas do
qual nada sabe. Lacan menciona ainda que isso não acontece a todas
as mulheres, já que tal gozo permanece sempre uma possibilidade, não
uma necessidade. A pergunta crucial que surge neste ponto é como
saber a respeito desse gozo se ele está fora da linguagem. Por mais de
uma vez Lacan comenta, não sem ironia, o fato de que as psicanalistas
mulheres pouco conseguiram elucidar sobre o tema.
Nossos colegas, as damas analistas, sobre a sexualidade feminina, elas nos
dizem algo, mas... não-tudo. É absolutamente contundente. Elas não
fizeram avançar de um dedo a questão da sexualidade feminina.
Deve haver uma razão interna para isto, ligada à estrutura do
aparelho do gozo. (LACAN, 1985 [1972-1973], p. 79).
Ora, se nem mesmo as mulheres analistas conseguem esclarecer
sobre o “continente negro”,99 é porque se trata de uma impossibilidade
estrutural específica de seu gozo.100
O tema do excesso e da inefabilidade do gozo feminino pode ser
encontrado no clássico mito grego de Tirésias, personagem tão rico em
significados que aparece em várias tragédias gregas e é retomado na
99
Em A questão da análise leiga, Freud (1998 [1926]) afirma que a vida sexual das
mulheres adultas é um “continente negro” para a psicologia. Segundo Soler (2005,
p. 26), Freud definiu a mulher unicamente por sua parceria com o homem, pois a
feminilidade derivaria de seu “ser castrada”: “mulher é aquela cuja falta fálica a incita
a se voltar para o amor de um homem. [...] Em resumo: ao se descobrir privada de um
pênis, a menina torna-se mulher quando espera o falo – ou seja, o pênis simbolizado
– daquele que o tem”. Para a autora, há duas etapas nas elaborações lacanianas sobre
a questão: a primeira é mais freudiana e aparece nos textos A significação do falo
(1966) e Diretrizes para um Congresso sobre a sexualidade feminina (1964). A segunda,
mais inovadora, surge em O aturdito (1973) e no seminário Mais, ainda (1972-1973),
justamente porque Lacan reduz o Édipo à lógica da castração simbólica e acrescenta
que essa lógica não regula todo o campo do gozo, pois existe (ou melhor, ex-siste) um
gozo fora do simbólico.
100
Em outro ponto de Mais, ainda, Lacan volta a falar dessa demanda frustrada: “O
que dá alguma chance ao que avanço, isto é, que, desse gozo, a mulher nada sabe, é
que há tempos que lhes suplicamos, que lhes suplicamos de joelhos – eu falava da
última vez das psicanalistas mulheres – que tentem nos dizer, pois bem, nem uma
palavra! Nunca se pôde tirar nada” (LACAN, 1985 [1972-1973], p. 101).
Capítulo 6 – Mística e gozo | 143
101
Tirésias aparece em clássicos gregos como Édipo Rei e Antígona de Sófocles e na
Odisséia de Homero, entre outros. Na literatura pós-clássica ele aparece em A divina
comédia de Dante Aliguieri, em Paradise lost de John Milton e em The Waste Land, de
T. S. Eliot, entre outros.
144 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan
e atinge o nível onde transcorre “o matrimônio divino e espiritual”; não há aqui mais
lembrança do corpo; há a união secreta no centro muito interior da alma, que deve ser
onde está o próprio Deus”.
148 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan
Um gozo passivo
Outra discussão suscitada pelo gozo dos místicos é sua suposta
passividade. Para William James, esta era uma das quatro características
fundamentais dos estados místicos (capítulo 1, item 1.3). O autor afirma
que essas experiências são facilitadas ou induzidas por operações
voluntárias, tais como exercícios físicos ou psíquicos, porém, quando o
estado de consciência característico advém, o místico sente sua vontade
colocada em suspenso, ou ainda como se a divindade fosse responsável
pelo êxtase que lhe sucede. Santa Ângela de Foligno confirma: “Não
150 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan
sou eu mesma [...] que embarca nesse oceano; não, sou conduzida pelo
Senhor, transportada e arrebatada” (apud POMMIER, 1987, p. 69).
Também Madeleine, a mística enclausurada na Salpêtrière aos
cuidados de Pierre Janet, é serva fiel do Senhor. “Deus sabe quando
quer dizê-lo como senhor, e sua voz é como a do trovão, nós devemos
adorar seus decretos quaisquer que sejam. Quanto a mim, eu lhe dito e
repito que não quero nada além do cumprimento de sua vontade” (apud
CLÉMENT, 1997, p. 49). Na verdade, ela revela ser a própria hóstia
do Senhor:
Deus colocou-me num lugar singular, numa espécie de armário,
como se tranca um objeto precioso, uma estátua; meu estado de
total passividade permite-me permanecer na posição em que ele
me colocou, sinto-me bem no calor e não sofro da falta de ar.
Sou uma hóstia, sinto-me feliz com esta vida escondida... (apud
CLÉMENT, 1997, p. 50).
Conforme explica Bidaud (2002), as místicas colocam-se como
objetos do gozo do Outro. Entre rebaixamentos e humilhações, elas
parecem dar ao outro seus corpos como dejeto. O autor explica que
as místicas, colocando-se no lugar de um objeto faltante em relação
ao Outro – esse Outro designado como Deus –, ganham acesso a um
certo gozo. E tal gozo possui um modelo, aquele “do Cristo sofrendo o
martírio na cruz pelo amor do Pai, que permite a encenação do corpo
em sofrimento como corpo de gozo” (p. 153).
Contudo, conforme já se discutiu a respeito das semelhanças
e diferenças entre o misticismo e a psicose (capítulo 6, item 6.3), a
passividade mística não é de fácil caracterização, porque resulta de um
ato que demanda, em geral, muita paciência e esforço.
Esse não-agir é o resultado de um longo querer. A “passividade”
mística, a expectativa de ser penetrada pela palavra de Deus,
exige tanta prudência quanto a que se convém ter com relação
à “passividade” feminina. Freud jamais falou da passividade
feminina sem acrescentar que se trata de um ato. (POMMIER,
1987, p. 69).
Nessa passividade, não é realmente o místico que goza em seu
amor pela divindade – é Deus, personificação do Outro, que goza do
Capítulo 6 – Mística e gozo | 151
O testemunho
Pommier (1987) sublinha ainda que não basta ao místico gozar,
pois sua experiência não é autossuficiente ou resolutamente solitária.
Na verdade, a representação da experiência mística – falada, escrita
ou transcrita – sempre acompanha o acontecimento extático: “A
testemunha é necessária à experiência” (p. 73). A testemunha encarna
o lugar da fala, do escrito, do que circula na sociedade dos homens, na
Capítulo 6 – Mística e gozo | 153
O gozo do Aberto
Além de esclarecer a relação entre o gozo feminino e o gozo
místico, Pommier aproxima estes dois da jouissance do poeta, o qual
denomina “gozo do Aberto”. Nesse caminho, o autor permite entrever
de que forma o gozo feminino vai se relacionar com o tema da
sublimação, que será abordado no capítulo seguinte.
Toda palavra, para ter a significação comum, para comunicar no
mundo social, precisa de um ponto de ancoragem – ponto de apoio (ou
154 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan
de estofo) que Lacan identificou na função paterna, pois que ela detém
o deslizamento de outro modo infinito da significação por entre os
significantes (DOR, 1989). O poeta, ao retirar das palavras seu sentido
utilitário, deixa de invocar o pai para formar suas frases.
O psicótico é o exemplo maior daquilo que a falta do Nome-
do-Pai (a foraclusão) é capaz de provocar no ato da fala. As glossolalias
ou linguagens delirantes – nas quais os significantes e significados são
inventados à revelia do sujeito (que se espanta com suas próprias invenções
linguísticas) – demonstram de maneira cabal o efeito da falta de um
ponto de estancamento no processo da significação. O poeta, por sua
vez, também trafega nesse campo em que o Nome-do-Pai é dispensado,
mas isso não desemboca na psicose, porque resulta de um ato.
O poeta brinca com as palavras, subvertendo seu uso utilitário
no qual elas se fixam em determinados significados. Quando tomado
isoladamente, o significante se abre para todas as significações possíveis.
Esse é o instante do Aberto, “instante em que, sem que nenhuma
barreira constitua obstáculo, os seres e as coisas entram no espaço de
uma percepção pura” (POMMIER, 1987, p. 99).
O Aberto é o instante em que uma palavra evoca o todo das
outras palavras e, como tal, só se revela quando escapa das significações
fixadas dentro do laço social. Assim como o Deus dos místicos, as
palavras do poeta deixam entrever um vazio, uma falta de significação.
E assim como o gozo feminino, o gozo do Aberto está para além da
significação fálica, demandando uma passividade. A passividade do
poeta, para Pommier (1987, p. 100), lembra o ato de segurar a palavra
nas mãos e simplesmente aguardar: “A palavra presa na mão ecoa por
sua ressonância singular e se abre para o todo das outras palavras”.
Para Pommier, o Aberto, gozo sem referências fálicas – e,
portanto, sem ponto de ancoragem, “sem abrigo” –, é o lugar da
intersecção entre a mística, a feminilidade e a arte poética:
O poeta, um místico, uma mulher mostram dessa forma, nessa
escolha do “sem abrigo”, de um fundamento sem fundo, a região
essencial onde o falar apresenta sua união com o gozo de um
Todo que se apoia no Nada. O risco assumido pelo ser, sua perda
de identidade nesse momento de desamparo, oferece o vestígio
daquilo que outros séculos puderam reservar ao sagrado, cuja
região essencial é subtraída à nossa época. (POMMIER, 1987,
p. 102).
Capítulo 6 – Mística e gozo | 155
107
A esse respeito é útil a comparação feita por Lacan (1988 [1959-1960], no seminário
A ética da psicanálise), entre o significante e a atividade do oleiro, conforme explicado
no capítulo 4, item 4.5, e também a seguir, quando se comentará sobre a sublimação
(item 7.3).
Capítulo 7 – A mística entre o sentido e o não-sentido | 159
108
Revela Roudinesco (1994, p. 354) que, quando Cheng cessou a cooperação com
Lacan para dedicar-se a outro trabalho, o psicanalista sentiu-se um pouco desesperado
e disse-lhe: “Mas o que vai ser de mim?”.
Capítulo 7 – A mística entre o sentido e o não-sentido | 161
109
Cita-se também uma versão em português (traduzida do alemão) de autoria do
sinólogo Richard Wilhelm: “O Tao que pode ser pronunciado não é o Tao eterno. O
nome que pode ser proferido não é o Nome eterno. Ao princípio do Céu e da Terra
chamo ‘Não-ser’. À mãe dos seres individuais chamo ‘Ser’. Dirigir-se para o ‘Não-ser’
leva à contemplação da maravilhosa Essência; dirigir-se para o Ser leva à contemplação
das limitações espaciais. Pela origem, ambos são uma coisa só, diferindo apenas no
nome. Em sua Unidade, esse Um é mistério. O mistério dos mistérios é o portal por
onde entram as maravilhas” (LAO-TZU, 1995, p. 37).
162 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan
110
Essa mudança incessante não deixa de evocar o eterno deslizamento da cadeia
significante e a impossibilidade de se fixar completamente o sentido no mundo da
linguagem, conforme descrito na psicanálise lacaniana.
111
Na versão de Richard Wilhelm lê-se: “O Tao gera o Um. O Um gera o Dois. O Dois
gera o Três. O Três gera todas as coisas. Atrás de todas as coisas há escuridão; e elas
tendem para a luz, e o fluxo da força dá-lhes a harmonia” (LAO-TZU, 1995, p. 81).
Capítulo 7 – A mística entre o sentido e o não-sentido | 163
112
Segundo Cheng (2000), o sopro é a ideia que os chineses desenvolveram para
conceber a origem da Criação, que se relaciona com uma concepção unitária e
orgânica do universo onde tudo é conectado.
164 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan
118
Jorge (2005c, p. 146) relaciona a dicotomia desejo/amor à tripartição lacaniana do
Real-Simbólico-Imaginário: em sua face real o objeto do desejo humano não existe,
ele não cessa de não se escrever. Em sua face simbólica, o objeto do desejo existe, ele
cessa de não se escrever, porém é contingente e lábil – pode sempre mudar em virtude
do deslocamento metonímico do desejo, inerente ao registro simbólico. Já em sua
face imaginária, o objeto do desejo não cessa de se escrever, ele torna-se necessário.
O amor, portanto, está na intersecção entre a face simbólica e imaginária do objeto e,
“sendo assim, o amor é essencialmente produção de sentido”.
119
Ver capítulo 1, item 1.3.
120
No Brasil há, por exemplo, algumas religiões que utilizam uma bebida altamente
alucinógena feita com plantas amazônicas (chamada de ayahuasca, hoasca, Santo
Capítulo 7 – A mística entre o sentido e o não-sentido | 171
Daime, yagé, entre outros), de origem indígena, para produzir um estado de êxtase e
visões durante seus cerimoniais.
121
Cite-se, por exemplo, Aldous Huxley com sua famosa obra As portas da percepção
(1954), na qual o autor relata experiências místicas com o uso da mescalina. O
psicólogo norte-americano Timothy Leary, ícone da contracultura, publicou, entre
outros, The psychedelic experience: a manual based on the Tibetan Book of the Dead (1964,
em coautoria) – um guia para experiência alucinógena inspirado no Livro Tibetano
dos Mortos (Bardo Thodol), um clássico da literatura budista tibetana.
122
“Um dia, uma monja chamada Wujincang perguntou ao sexto patriarca zen
Huineng: ‘Estudo o Nirvana Sutra há muitos anos e ainda não compreendo bem
algumas passagens. Acha que poderia explicá-las para mim?’. Huineng: ‘Lamento,
mas não sei ler. Se puder ler as passagens, tentarei ajuda-la’. Wujincang: ‘Se não
consegue ler as palavras, como pode compreender a verdade por trás delas?’. Huineng:
‘A verdade e as palavras não estão relacionadas. A verdade pode ser comparada à lua. E
as palavras poder ser comparadas a um dedo. Posso usar meu dedo para apontar para a
172 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan
lua, mas meu dedo não é a lua e você não precisa dele para ver a lua, certo?’” (Adaptado
de Chung (1999, p. 39)).
Capítulo 7 – A mística entre o sentido e o não-sentido | 173
123
Lacan demonstrou com o estádio do espelho que o eu é uma instância imaginária
por excelência, conforme já visto no capítulo 4, item 4.5.
174 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan
124
A Primeira Guerra Mundial era, para Gurdjieff, um claro resultado da sonolência
humana: “Há guerra neste momento. O que quer isso dizer? Significa que vários milhões
de adormecidos esforçam-se por destruir vários milhões de outros adormecidos. Eles
se recusariam a isso, naturalmente, se despertassem. Tudo o que se passa atualmente é
devido a esse sono” (GURDJIEFF apud OUSPENSKY, 1998, p. 168).
125
Para o místico Rajneesh (2003, p. 91), a iluminação “nada mais é do que um
despertar. Para a pessoa iluminada, todas as nossas vidas são apenas sonhos. Talvez
sejam bons sonhos, talvez sejam maus sonhos; pode ser que sejam pesadelos, pode ser
que sejam sonhos belos e agradáveis, mas, da mesma forma, são sonhos”.
178 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan
126
Trata-se de importante escritura budista, constituída de 423 versos atribuídos ao
próprio Siddharta Gautama.
Capítulo 7 – A mística entre o sentido e o não-sentido | 179
tesouro mais precioso” (p. 22). A plena atenção indica a prática budista
de meditação que objetiva o despertar.
No budismo Theravada, uma importante forma de meditação é
chamada de Vipassana, a qual teria sido responsável pela iluminação de
Siddharta Gautama. Trata-se de um método bastante simples em que
o sujeito foca sua atenção no curso da própria respiração. Entretanto
não consiste somente em um método de concentração, pois caracteriza
também uma disposição favorável à observação imparcial de quaisquer
conteúdos anímicos que surjam ao meditador. Assim, a concentração
é apenas parte do processo maior, cujo objetivo é desenvolver uma
atentividade que não seleciona os conteúdos psíquicos, ou seja,
não se apega às experiências agradáveis nem foge ou afasta-se das
desagradáveis127 (GUNARATANA, 2002).
Assim, Gunaratana explica que a meta do Vipassana é simplesmente
aprender a prestar atenção. E de maneira análoga a Gurdjieff, ele afirma
que o homem se ilude quando pensa já estar atento. “Isso vem do fato de
que prestamos tão pouca atenção à contínua onda de nossas experiências
de vida que poderíamos da mesma forma estar adormecidos. Nós
simplesmente não estamos prestando atenção suficiente para perceber
que não estamos prestando atenção” (GUNARATANA, 2002, p. 21).
Considerando que o Vipassana consiste tão somente em prestar
atenção ao que quer que surja na consciência do meditador, suspendendo
juízos, o monge Gunaratana frisa que o método não se assemelha à
autossugestão (e poderíamos falar da auto-hipnose, por extensão). Ele
explica:
Uma maneira popular para lidar com dificuldades é a autos-
sugestão: quando algo desagradável irrompe [no psiquismo],
você se convence de que é agradável ao invés de desagradável.
A tática do Buda é totalmente oposta. Ao invés de escondê-lo
ou encobri-lo, o ensinamento do Buda incita-o a examiná-lo
127
A título de curiosidade, destaco existirem alguns autores do meio psicanalítico
norte-americano que aproximam a atenção flutuante do psicanalista às práticas
meditativas budistas (COOPER, 2003; EPSTEIN, 1988; RUBIN, 1985; entre outros).
Segundo Cooper (2003, p. 2), “um ponto consistente de convergência entre as duas
técnicas se centra na ênfase compartilhada sobre uma postura essencialmente passiva,
não julgadora”. Ou seja, a escuta flutuante, na medida em que visa não selecionar a
priori ou fazer juízos de valor sobre o material trazido pelo analisando, assemelhar-
se-ia à forma de atenção que o meditador dirige aos seus próprios pensamentos e
sentimentos.
180 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan
O caso do zen-budismo
Dentro dos ramos do budismo, o zen,128 por seu turno, dá forte
ênfase à experiência do despertar. O zen (ou Chan) é uma mescla única
do pensamento budista indiano com o pensamento taoista chinês. Sua
criação é atribuída ao monge budista indiano Bodhidarma – o Primeiro
Patriarca do Chan –, uma figura lendária que teria vindo da Índia e se
estabelecido na China do século VI para desenvolver uma abordagem
radicalmente nova do budismo. Atribui-se a ele as seguintes palavras
sobre a essência da perspectiva Chan:
Não confiar na palavra escrita,
Uma transmissão especial independente dos textos sagrados;
Voltar-se para a própria mente,
Ver a própria natureza,
Tornar-se um buda. (apud CHUNG, 1999, p. 19).
De acordo com Powell (1999), o Chan surge em parte como reação
ao budismo praticado na grande instituição monástica da dinastia Tang
(China medieval), caracterizada pela influência de monges eruditos e
por uma afirmação monopolista do conhecimento. Seu objetivo era a
compreensão e transmissão dos ensinamentos do Buda por meio de
uma experiência direta, sem recurso à teologia ou filosofia abstrata
(FADIMAN; FRAGER, 1986, p. 288). Seria, desta forma, uma reação
128
Ver mais sobre o zen no capítulo 1, item 1.7.
Capítulo 7 – A mística entre o sentido e o não-sentido | 181
129
Logo, segundo a literatura Chan, a maioria dos estudiosos budistas teria se
desvirtuado por meio da especialização excessiva e do uso de explicações prolixas, o que
transformava a exposição dos textos clássicos em mera leitura contraprodutiva, levando
não à sabedoria, mas ao conhecimento ocioso (POWELL, 1999). Desta forma, a meta
do mestre Chan era personificar o próprio ensinamento a ser transmitido. Ou melhor,
ele não buscava transmitir um ensinamento ao discípulo, mas dirigi-lo ao único lugar
onde poderia encontrar sabedoria: seu próprio psiquismo. Para isso os mestres Chan
comportavam-se de maneira muito audaciosa, pois tratavam com desrespeito os livros
sagrados e, principalmente, “respondiam a perguntas de discípulos aparentemente
zelosos de um modo bastante ilógico, sumário ou até mesmo ofensivo” (POWELL,
1999, p. 9).
130
Essa visão é corroborada por estudiosos contemporâneos de Suzuki, como Alan
Watts e Carl Jung. Para eles, o zen era mais próximo de um caminho ou um estilo
de vida, algo inadequado a qualquer categoria da filosofia ocidental (ROSEMONT,
1970). Outros estudos, entretanto, concluem que, se não coincide inteiramente com
uma filosofia, o zen certamente possui muitos elementos filosóficos (ROSEMONT,
1970).
182 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan
131
Littlejohn (2005) faz questão de separar o campo da filosofia comparada do
campo da filosofia de estudos regionais (area studies philosophy) e da filosofia mundial
(world philosophy). Para o autor, a filosofia de estudos regionais se engaja em culturas
e tradições específicas, mas o trabalho final não objetiva ser comparativo. A filosofia
mundial, por seu turno, é caracterizada pelo esforço de construir uma filosofia que
leve em consideração a grande variedade de tradições culturais e filosóficas do mundo,
tentando elaborar uma visão de mundo coerente a partir de todas elas.
Capítulo 7 – A mística entre o sentido e o não-sentido | 185
Lacan e o zen
Na teoria lacaniana, que certamente bebe das fontes estruturalista
e pós-estruturalista, pode-se assim identificar a ordem simbólica como
um movimento incessante, na medida em que qualquer significado
(imaginário) é um produto provisório do deslizamento entre significantes
que sempre remetem a outros significantes, em um movimento sem
fim. Nesse sentido, a ordem simbólica nunca conduz a uma significação
última das palavras – uma forma de explicar o aforismo lacaniano “Não
há Outro do Outro”. Logo, o princípio de autoidentidade também é
combatido por Lacan.
O sentido é, pois, sempre provisório, e a noção budista de sunyatta
parece ser um precursor longínquo dessa constatação. O vazio que essa
noção encerra aponta para o sem sentido radical.
Concluindo, o método zen também pode ser entendido como
uma dessubjetivação, uma via di levare, ou ainda, uma forma de
desconstrução de sentidos. Rambelli (1995), fazendo uma leitura
semiótica do budismo, comenta que a tradição budista inspirada na
Capítulo 7 – A mística entre o sentido e o não-sentido | 189
134
Para o psicanalista Roberto Harari (2006, p. 133), essa passagem trata “do
resgate do sem-sentido, apontando para uma articulação renovada entre o sujeito e o
significante, por mediação da letra”.
190 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan
138
Não se pode olvidar também que, segundo o depoimento de Bruno Goetz (1959),
Freud tinha, em 1904, um entendimento melhor que o de muitos estudiosos europeus
194 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan
O termo foi cunhado pela psicanalista inglesa Bárbara Low e usado por
Freud inicialmente para definir, no aparelho psíquico, a tendência para
“rebaixar, manter constante, suprimir a tensão interna do estímulo”
(FREUD, 1998 [1920], p. 54). Contudo, em O problema econômico do
masoquismo (1998 [1924]), ele afirma que “o princípio de nirvana
expressa a tendência da pulsão de morte” (FREUD, 1998 [1924], p.
166). Trata-se da tendência radical para levar a excitação ao nível zero.
Nesse entendimento, poderíamos hipotetizar, ainda que seja
altamente especulativo em virtude do limitado conhecimento atual
sobre o tema, que a experiência mística radical atua dissolvendo o
campo do imaginário: gradualmente ela desconstruiria as várias
formas de sentidos que constituem o sujeito, até chegar, por assim
dizer, à dissolução do sentido mais fundamental para a constituição
do neurótico – a fantasia primária inconsciente. Sem a fantasia
fundamental, a pulsão deixaria de ser sexualizada. Por conseguinte, não
haveria mais freios à pulsão em sua faceta radical de pulsão de morte.
Ter-se-ia, enfim, a experiência do nirvana – experiência de morte ou de
gozo puro, que exclui o sujeito.
Lembremos que o despertar radical, absoluto, é destacado
como impossível para Lacan: “o despertar é o real sob seu aspecto de
impossível, que só se escreve à força ou por força – é isso que chamamos
de contranatureza” (apud JORGE, 2005a, p. 285). O despertar só se
escreve à força, pois há no sujeito, conforme o próprio Lacan percebeu
na Traumdeutung freudiana, um desejo de dormir, ao contrário de uma
necessidade de dormir (JORGE, 2005a).
Apesar de toda ênfase na possibilidade de despertar, a mística
também reconhece que isso não é natural, só se escreve à força.
Gurdjieff (apud OUSPENSKY, 1998), por exemplo, via o despertar
como uma possibilidade extremamente difícil a qualquer ser humano –
ou melhor, literalmente impossível, a não ser que se formassem grupos
de trabalho nos quais uns deveriam tentar despertar os outros, ou
ainda, que o grupo solicitasse auxílio de alguém já desperto. Trata-
se, aqui, de uma justificativa para a necessidade de ingressar em uma
escola de misticismo e submeter-se a um mestre. Já no zen, pode-se
dizer que os fins justificam os meios, pois, para empurrar os discípulos
sobre o nirvana: este não seria um divertimento voluptuoso, mas uma visão última,
sobre-humana e “glacial”, além de todos os contrários.
Capítulo 7 – A mística entre o sentido e o não-sentido | 195
139
Ver, a respeito, o sexto e último estágio da mística no capítulo 1, item 1.7.
140
No zen-budismo, por exemplo, a trilha mística foi ilustrada em dez figuras sobre a
captura e domesticação de um boi, conhecidas como “The ten ox herding pictures”. A
décima figura, que indica o estágio final, é intitulada “Entrando na praça do mercado
com mãos serviçais” (FADIMAN; FRAGER, 1986, p. 303). O mercado corresponde
ao mundo profano dos homens comuns, onde o místico oferece, “com mãos serviçais”,
orientação aos outros homens sobre a trilha que ele próprio já percorreu com sucesso.
| Considerações finais |
fálica. E à moda dos histéricos, eles parecem erotizar tudo o que não
é sexual, expressando sintomaticamente um desejo recalcado. Ainda,
à semelhança com os psicóticos, eles feminilizam seu ser para serem
gozados por Deus. Contudo, se os místicos são neuróticos, certamente
sua intensa sublimação dá à pulsão um destino bem mais satisfatório que
o gozo sintomático. E quanto à psicose, esta não lhes é sinônimo, pois
que, tal como no caso da mulher, sua passividade é feita de um ato, e seu
gozo está subordinado à função fálica ao mesmo tempo que dela escapa.
Lacan traz essa dimensão à mística, qual seja, de verdade sobre
o gozo feminino. Como às mulheres, aos místicos é reservada uma
possibilidade de gozo mais-além daquele mortificado pelo significante
– o gozo fálico dos seres castrados. Seu gozo escapa à castração, ex-
sistindo à ordem simbólica, e por isso eles nada sabem a seu respeito.
A vida de Teresa D’Avila nos mostra que nesse gozo enigmático
se inscreve o amor místico por Deus. Pommier afirma não ser esse
amor uma figura do narcisismo, longe disso, ele é outro nome para o
desespero de procurar uma divindade vazia – apenas a concretude de
um significante sem significado que toca o real. A ausência divina nada
responde, fazendo o corpo gozar e o sujeito sofrer, pois a subjetividade
se destitui diante do gozo.
O gozo, estando além do princípio de prazer, pertence ao campo
de das Ding – a Coisa freudiana que representa o objeto perdido para
sempre e desde sempre, a formalização da falta de objeto que Lacan
localizou como estrutural para o ser falante. A Coisa é nociva, pois, caso
encontrada, aspiraria o sujeito desejante. Assim, o neurótico dela foge,
atendo-se ao gozo fálico como única opção para aqueles que lidam com
a pulsão em sua vertente do proibido. O campo do interdito corresponde
à ilusão mítica de que a plena satisfação pulsional é possível, sim, apenas
foi vedada pelo pai sobre o qual nenhuma lei incide. Esse mito, aliás, é
a condição da própria sexuação masculina.
Já para o ser que sublima – o artista, a mulher, o místico – abre-se
a possibilidade de bordejar a Coisa e, desta forma, lidar com a pulsão em
sua vertente do impossível, pois que o objeto da satisfação não existe para
o homem, apenas para os seres de instinto. Tanto a sublimação como o
gozo feminino e o gozo místico trazem à cena a possibilidade de uma
jouissance nos limites da ordem simbólica, às margens da função fálica.
Considerações finais | 201
Der Taucher
“Wer wagt es, Rittersmann oder Knapp,
Zu tauchen in diesen Schlund?
Einen goldnen Becher werf ich hinab,
Verschlungen schon hat ihn der schwarze Mund.
Wer mir den Becher kann wieder zeigen,
Er mag ihn behalten, er ist sein eigen.”
Der König spricht es und wirft von der Höh
Der Klippe, die schroff und steil
Hinaushängt in die unendliche See,
Den Becher in der Charybde Geheul.
“Wer ist der Beherzte, ich frage wieder,
Zu tauchen in diese Tiefe nieder?”
Und die Ritter, die Knappen um ihn her
Vernehmen’s und schweigen still,
Sehen hinab in das wilde Meer,
Und keiner den Becher gewinnen will.
Und der König zum drittenmal wieder fraget:
“Ist keiner, der sich hinunter waget?”
Doch alles noch stumm bleibt wie zuvor,
Und ein Edelknecht, sanft und keck,
Tritt aus der Knappen zagendem Chor,
Und den Gürtel wirft er, den Mantel weg,
Und alle die Männer umher und Frauen
Auf den herrlichen Jüngling verwundert schauen.
Und wie er tritt an des Felsen Hang
Und blickt in den Schlund hinab,
Die Wasser, die sie hinunterschlang,
Die Charybde jetzt brüllend wiedergab,
Und wie mit des fernen Donners Getose
Entstürzen sie schäumend dem finstern Schosse.
Und es wallet und siedet und brauset und zischt,
Wie wenn Wasser mit Feuer sich mengt,
Bis zum Himmel spritzet der dampfende Gischt,
Und Flut auf Flut sich ohn’ Ende drängt,
Apêndice | 219
The Diver
“What knight or what vassal will be so bold
As to plunge in the gulf below?
See! I hurl in its depths a goblet of gold,
Already the waters over it flow.
The man who can bring hack the goblet to me,
May keep it henceforward, – his own it shall be.”
Thus speaks the king, and he hurls from the height
Of the cliffs that, rugged and steep,
Hang over the boundless sea, with strong might,
The goblet afar, in the bellowing deep.
“And who’ll be so daring, – I ask it once more,
As to plunge in these billows that wildly roar?”
And the vassals and knights of high degree
Hear his words, but silent remain.
They cast their eyes on the raging sea,
And none will attempt the goblet to gain.
And a third time the question is asked by the king:
“Is there none that will dare in the gulf now to spring?”
Yet all as before in silence stand,
When a page, with a modest pride,
Steps out of the timorous squirely band,
And his girdle and mantle soon throws aside,
And all the knights, and the ladies too,
The noble stripling with wonderment view.
And when he draws nigh to the rocky brow,
And looks in the gulf so black,
The waters that she had swallowed but now,
The howling Charybdis is giving back;
And, with the distant thunder’s dull sound
From her gloomy womb they all-foaming rebound
And it boils and it roars, and it hisses and seethes.
As when water and fire first blend;
To the sky spurts the foam in steam-laden wreaths,
And wave presses hard upon wave without end.
220 | Um percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan