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Afirmar que este livro representa a maturidade ficcional de
João Almino é muito pouco. No entanto, se alguém dissesse
que através de O livro das emoções o autor atinge a sua
decantação de linguagem, a observação traduziria de fato o
que a obra traz de novo. Aqui o estilo dos romances de João
não sofre qualquer desfiguração, mas apenas o aprimora-
mento de um escritor que conhece seu ritmo, feito de branda
loquacidade nas descrições e de muitas reticências na pon-
tuação de sua veia melancólica. Aliás, citar o desenho da
melancolia diante de um trabalho de João é um verdadeiro
truísmo. É, a cada livro, o que ele tem de melhor para ofere-
cer literariamente. Trata-se de um sentimento sutilíssimo,
como um adágio perpétuo. A narrativa vai se construindo
como em um puzzle, tentando encaixar suas tensas peças
para formar um vazio, sem jamais derrapar para o melodra-
ma. O livro das emoções tece uma delicada urdidura, afas-
tando-se dos pesadelos ou dos transes edênicos. Esse pro-
tagonista intelectual, fotógrafo, morador de Brasília (a cidade
fetiche do escritor), pode lembrar um heréi de ecos existen-
cialistas, com a consciência misteriosamente abalada —
pertencente talvez à família de Moravia, quem sabe do cine-
ma italiano dos anos 1960 e 1970... Diante dessa ficção,
lembrei de certas atmosferas de insinuações morais de
La Dolce Vita e La Notte. Nelas avultam as viagens do prota-
gonista pela carnalidade da mulher, tão atuantes no romance
de João como nos dois cineastas seminais do cinema contem-
porâneo. As sugestões contrastantes a esses “heróis pro-
blemáticos”, porém, parecem acenar em cenários diáfanos,
líricos, que certamente saberiam acolher alguns personagens
de Truffaut. Outro cultor, aliás, da força feminina.

João Gilberto Noll


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in 2022 with funding from
Kahle/Austin Foundation

https://archive.org/details/olivrodasemocoes0000almi
o livro
as 4.
emoções
joão almino

O livro
das ..
emoções

ENDIIST ORA RECO RD


RIO DE JANEIRO + SÃO PAULO
2008
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
Almino, João, 1950-
A4SSL O livro das emoções / João Almino. — Rio de Janeiro:
Record, 2008.

ISBN 978-85-01-08018-9

1. Romance brasileiro. I. Título.

CDD - 869.93
08-1243 CDU - 821.134.3(81)-3

Copyright O João Almino, 2008

Capa: Rico Lins + Studio

Direitos exclusivos desta edição reservados pela


EDITORA RECORD LTDA.
Rua Argentina 171 — Rio de Janeiro, RJ — 20921-380 — Tel.: 2585-2000
Impresso no Brasil
Ro pUTORIZA,
Pá St;
ISBN 978-85-01-08018-9 s A q
é GR +
PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL E
Caixa Postal 23.052
Rio de Janeiro, RJ - 20922-970
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Ga
EDITORAAra
“So the remembered world's

songs and flooded paths


This heap of photographs.”

Michael Palmer
Prefácio

Desde 1987, João Almino tem produzido, sem pressa, um


longo romance que é também, em sua face mais ambiciosa, o
projeto de uma fundação escritural de Brasília. Nesta sua quarta
parte — que, como as demais, admite leitura autônoma — o
narrador-protagonista é um fotógrafo de 70 anos, já cego, que
busca reinventar as suas memórias a partir da memória que
guarda das fotografias que tirou para um ideado diário íntimo.
A construção da intimidade, portanto, resulta não apenas do
mimético ou realista das fotografias, mas da memória emo-
cional colhida nelas, que é mais nitidamente percebida quan-
do o fotógrafo já não vê. Da dialética entre visão objetiva e
cegueira, imagem mimética e imaginação sentimental, nasce
o reconhecimento de uma história pessoal, a única que se pode
viver, embora aparentemente esgotada na banalidade.
O modo da narrativa é o de um travelling envolvente que
se deixa arrastar por várias personagens e situações, muito
diferentes entre si, nas quais ressalta a habilidade de João
Almino para a confecção de biografias, como certa vez desta-
cou João Lafetá, ou de instantâneos biográficos, como talvez
se pudesse dizer, tendo em vista a analogia com as fotografias
que ordenam a narrativa. Ressalta, também, a sua capacida-
de de manter o fio narrativo bem seguro em meio à variedade
de registros produzidos pelo narrador, que opera como câmera,
mas cujo principal documento se produz a posteriori, como
écfrase, quando os registros fotográficos dão lugar à recons-
trução imaginária de cenas vistas, vividas ou não, mas sem-
pre manipuláveis.
8 JOÃO ALMINO

A narrativa não se demora propriamente em fatos, con-


quanto os repasse o tempo todo. Antes que se imponham
como significativos, prevalece o ritmo do passe, que no
travelling é quase tudo. Digo isso, pensando exemplarmente
naqueles passeios erráticos de câmera que empregava Robert
Altman: um longo disparo, sem cortes e sem ajuste automá-
tico de foco, que passeia entre desconhecidos, ou conheci-
dos vagos, cujas vidas se apresentam naquele lugar, em
segiiência, não pela coerência do fio narrativo, mas sobretu-
do pela sintaxe, pela disposição do vôo cego da câmera. Por
isso mesmo, é notável o gesto de desenquadramento exis-
tencialista que o travellng permite, quando as situações são
capturadas de passagem e a meio, de modo que sempre algu-
ma vagueza é introduzida na compreensão de cada um dos
seus quadros ou fotos.
Quero dizer: o seu efeito fundamental é que as razões
particulares, os motivos das ações, privados ou públicos, es-
tão frequentemente fora do universo dos eventos destacados
em primeiro plano. A narrativa linear, de conteúdo à primei-
ra vista coerente, no todo se revela quase aleatória, sob do-
mínio do desenraizamento existencial, do ritmo espiralado da
fortuna e da perda do tônus da vontade em algum momento
do passado. No fundo, narra-se para descobrir o não vivido,
assim como apenas se fotografam ausências. Aproveitando a
deixa do próprio narrador, imagino chamar de voyeurismo cego
a esse modo narrativo, finamente explorado nesta quarta
parte do romance brasiliense de João Almino.

Alcir Pécora
6 de junho de 2022, madrugada

Tinha o hábito de andar com a máquina a tiracolo para regis-


trar o que passava pela frente, como um escritor tomando nota, um
historiador desmemoriado que quisesse deixar um testemunho ou
um cientista fazendo um inventário do mundo. Fotografar é ver com
olho treinado; recortar e guardar o que se vê. Ao disparar a máqui-
na, as fotos ficaram gravadas na mente, como espelhos do que fui.
São instantes eternos, empalhados num museu íntimo.
Vou abrir este museu. Será meu legado. Com isso, não estou
anunciando minha morte. Embora ela ronde os velhos como eu,
gosta de surpresas. Muitas vezes se aproximou de mim sem que
eu soubesse. Agora, para afugentá-la, bastaria me vender à ciên-
cia e ao lucro, e trocar meus órgãos velhos por novos. Dizem que
poderia até mesmo recuperar a visão. Porém teimo em permane-
cer um ser natural, como maçãs orgânicas e bichadas, que apo-
drecem mais facilmente. Há quem as prefira àquelas tratadas com
radiação e que ficam belas e lustrosas semanas a fio.
Quando deixei Joana e o Rio, há duas décadas, escrevi, du-
rante pouco mais de um ano, um diário fotográfico. É o que há de
mais íntimo em meus arquivos. O tempo me depurou de seu estilo
10 JOÃO ALMINO

açucarado e queixoso. Suas fotos evocam hoje em mim interpre-


tações mais secas e realistas. Mas ainda o guardo na memória,
página por página, porque cada uma delas exala sentimento. Mais
do que se fosse possível vê-las, aquelas fotografias se mostram na
lembrança em riqueza de detalhes. São como as nuvens de Stiglitz:
cada uma equivale a uma emoção. Minha cegueira revela suas
essências, pois, no fundo, para melhor ver uma fotografia é pre-
ciso fechar os olhos.
A idéia de usar aquele diário como base para escrever meu
livro me veio hoje, conversando com minha afilhada, Carolina.
Ela me trouxe a versão digital das crônicas de Clarice Lispector
sobre Brasília, para que eu as ouça no computador, e passou aqui
toda a manhã.
— Se você ganhasse na loteria, o que faria com o dinheiro,
padrinho? — me perguntou com sua voz meiga, que lembra a de
sua mãe.
— Eu, nada. Se pudesse enxergar, assistiria a filmes e mais
filmes e voltaria a fotografar.
Minha cegueira me impede de ver Carolina. Mas é como se a
visse. Sua voz atualiza o rosto e o corpo da criança que vi crescer.
Terá os mesmos cabelos lisos e escuros; os mesmos olhos negros e
espertos; a mesma tez branca.
— Você não quer organizar seus arquivos?
A pergunta de uma jovem de vinte anos a um velho de setenta
poderia ser refeita sob a forma de uma ameaça, que ela não fez
por delicadeza, mas que ainda assim ouvi: “se alguma coisa pres-
ta nessa infinidade de caixas e de arquivos de computador, é me-
lhor que você mesmo separe, antes de morrer; caso contrário, o
destino é o lixo.” Meus arquivos estão hoje divididos sem muito
O LIVRO DAS EMOÇÕES 11

rigor entre paisagens, retratos, nus, as fotos do ex-presidente Pau-


lo Antônio Fernandes, as da Vila Paulo Antônio e outros temas
de menor importância. Carolina é capaz de digitalizar o que for
preciso e reordenar meus arquivos no computador. Fui eu que lhe
transmiti o gosto pelos computadores, segundo sua mãe uma vez
me disse.
— Tenho uma amiga que quer ser fotógrafa, padrinho. Ela
admira seu trabalho e está à cata de um estágio. Para ela seria o
máximo ter acesso aos seus arquivos.
Pedi que me descrevesse a amiga.
— morena... Canta. Toca violão... Tem vinte e cinco anos.

8 de junho, manhã

Já em plena estação seca, caiu uma chuva, talvez a última


antes da longa estiagem.
Ouvi no computador a crônica de Clarice que, numa passa-
gem, define os brasiliários:
“Brasília é de um passado esplendoroso que já não existe mais.
Há milênios desapareceu esse tipo de civilização. No século IV
a.C. era habitada por homens e mulheres louros e altíssimos que
não eram americanos nem suecos e que faiscavam ao sol. Eram
todos cegos. ... Quanto mais belos os brasiliários, mais cegos e mais
puros e mais faiscantes, e menos filhos. Os brasiliários viviam cerca
de trezentos anos.”
Imaginei que, se pudesse viver trezentos anos e não tivesse
gerado um filho, seria a reencarnação de um brasiliário.
7 JOÃO ALMINO

9 de junho

Comentei com Muurício meu plano de reaproveitar o diário


fotográfico.
— Por que você não grava seus comentários das fotos? De-
pois a gente encarrega alguém de transformá-los em livro.
— Quero refletir, aprofundar as idéias.
— Isso só vai atrapalhar. Vá direto ao ponto. Conte o que
quer e mostre as fotos. Ninguém tem tempo para pensar.
Maurício me disse que todo o seu braço direito está tatuado.
Fez-me tocar os dois brinquinhos nas orelhas e a argola de ouro
no nariz. Ficou um homem corpulento e alto, ainda mais alto do
que eu. Lembra-me o que fui na juventude, e não só por causa
dos brinquinhos; sobretudo pelos anos de estudos não concluídos,
passando de um curso ao outro. E meu gosto pela fotografia ele
tem pela música, não a música clássica que é a paixão de Caroli-
na. É herdeiro dos velhos roqueiros de Brasília e compõe num rit-
mo chamado roquefusão.

10 de junho

Não vou seguir a sugestão de Maurício. Não pedirei a nin-


guém para escrever por mim. Se Homero, cego como eu, pôde
compor À Ilíada e A Odisséia, por que eu não seria capaz de
escrever minha odisseiazinha particular? Gosto de ouvir os fonemas
de cada letra e esta voz do computador, que posso modular segun-
do o meu humor, usando este programa para cegos, que me acal-
ma. Se necessário, posso também ouvir meus textos na câmara
O LIVRO DAS EMOÇÕES 13

falante. Vou precisar de ajuda apenas para selecionar e reordenar


as fotos de meu diário antigo, o diário fotográfico. Além disso, ainda
acho complicado mudar textos de lugar me fiando apenas nos
ouvidos. Não importa. Farei um mínimo de revisões e deixarei os
parágrafos na ordem em que forem surgindo.

Noite de São João, 2 horas da manhã

Não somente no livro que pretendo escrever, mas também neste


novo diário, vou comentar o que for surgindo, na ordem em que
for surgindo. Surgiu, por exemplo, agora — e fora de ordem —
minha cachorra Marcela. Há dias em que ela é a única presença
ao meu redor, se eu não contar o marmiteiro que me traz comida.
É uma paciente labrador cor de mel, com quem moro no terceiro
andar de um prédio da 213 Norte. Guia-me de um lado para o
outro e, quando não me guia, fica a meus pés. Late para outros
cachorros quando passam lá embaixo, e hoje late para os fogos de
artifício, o barulho da meninada, as músicas nordestinas e a qua-
drilha de São João. A quadra está animada, fico ouvindo os sons
do triângulo e da sanfona, visualizando as bandeirolas coloridas
tremendo ao vento, e não consigo dormir.

26 de junho

Não foi difícil o aprendizado da solidão. Para coroá-lo, preen-


cho com a escrita o tempo entre a visita de um e outro amigo. Como
são poucos e quase não me visitam, tenho tempo de sobra para
14 JOÃO ALMINO

preencher. À exceção dos que se foram de Brasília, já perdi os ami-


gos de minha geração. Restam os filhos dos amigos e algumas pou-
cas amizades feitas nos últimos anos. Espremendo a verdade à sua
essência, resta, além de Maurício, minha afilhada Carolina.
Pensei em começar o livro com retratos deles. Mas seria in-
verter a ordem da história. Maurício e Carolina não devem ter
precedência sobre seus pais. Aliás, sobre suas respectivas mães.

Ainda 26 de junho, 10 horas da noite

Pensando no que escrevi acima, devo confessar que, num pon-


to, não fui sincero. Nem sempre a solidão é fácil. Para ser exato,
há dias em que me transponho para aquela árvore do filme
Amarcord e lá, trepado num galho alto, grito sem parar: “Voglio
una donna! Voglio una donna! Voglio una donnaaa!” Às vezes
me vejo como Tirésias, castigado com a cegueira por ver Atena
nua. Eu a vi nua não apenas uma, mas várias vezes, até que ela
finalmente decidiu cobrir meus olhos com suas mãos. A deusa não
foi capaz de restaurar minha visão, mas em compensação me deu
o dom de usar a escrita como chão de minha memória. Sei que
isto deveria me bastar, pois convém aos velhos viver apenas de
memórias. Mas um sorriso amigo, uma mão carinhosa, uma voz
que me leia uma página de um bom livro e uma companhia para
um passeio no Parque da Cidade ou aqui perto no Parque Olhos
d'Água dariam um sentido mais nobre à minha existência.
No mais, o amor alheio enche um pouquinho o vazio de amor
dentro de mim. Faço o que posso para que Maurício e Carolina
O LIVRO DAS EMOÇÕES 15

acabem juntos. E óbvio que já nutrem uma simpatia mútua. Com


um pequeno empurrão, que não deixarei de dar, um cairá nos
braços do outro.

27 de junho

O livro que pretendo escrever com base no meu velho diário


fotográfico poderá ser considerado um álbum de minhas memó-
rias sentimentais e incompletas, de uma época em que eu via, e
via demais. Vou chamá-lo O livro das emoções. A vida não se
mede por minutos, nem memórias são escritas com a enumeração
de tudo que se passa diante dos ponteiros do relógio. Aliás, uso
um relógio sem ponteiros, que, tal como botões do rádio que vão
direto às estações com melhor emissão, correm aos fatos que ain-
da fazem meu coração bater. Parodiando o poeta, penetro cega-
mente no reino das imagens.

28 de junho

Maurício hoje me ajudou a selecionar cinco das fotos que ser-


virão de guia para o começo do livro. Não vale a pena usar todas
as do antigo diário, e penso acrescentar algumas que não estão lá.
O critério será o da emoção que senti ao fotografar, ser fotografa-
do ou ao contemplar uma fotografia.
16 JOÃO ALMINO

28 de junho, depois da novela das 8

Tive uma idéia para O livro das emoções. Vou dar a voz
não a mim, mas a outro Cadu, vinte anos mais novo, o que en-
xergava e compôs o diário fotográfico. É uma mameira de escon-
der minha bengala, bem como meu caminhar lento e cansado. Ele
senta-se a meu lado e vem falar comigo. Traz uma caixa cheia de
fotografias, que começa a me mostrar, uma a uma.

29 de junho

Com as primeiras fotos escolhidas, somente me falta disposi-


ção para começar a escrever.

[29 de junho]

1. Geometria da dúvida

Quando Joana e eu descobrimos que não poderíamos ter


filhos, não nos submetemos a exames para saber de quem era
o problema. Concluímos que aquela impossibilidade era uma
bênção: não queríamos ter filhos. Era pouco provável, con-
tudo, que a infertilidade fosse minha, pois há muitos anos em
Brasília outra mulher concebera um filho meu.
Tentávamos conviver apenas no prazer e nos desvenci-
lhar das obrigações, problemas e preocupações do dia-a-dia.
Acreditávamos poder evitar os ciúmes e as vinganças, bem
O LIVRO DAS EMOÇÕES 17

como o dever de fidelidade, que é a outra face do adultério.


Doce ilusão viver separado de Joana para nos sentirmos eter-
nos namorados, solteiros e sem filhos. Separado por apenas
alguns andares, é verdade. Após o suicídio de minha primei-
ra mulher, e desde que Joana se divorciara, havíamos decidi-
do morar no mesmo prédio, no Flamengo.
Ela era a proprietária de ambos os apartamentos. Havia
herdado do pai uma empresa de publicidade, administrada
por um dos irmãos. Se quisesse, viveria de renda. Mas de vez
em quando queria se mostrar útil e posar de empresária, aju-
dando o irmão. E sua paixão pela moda a levara a abrir uma
loja e a criar a grife “Joana Rodrigues”.
Era fevereiro de 2001, e eu tinha meus cingienta anos.
Com a idade, quem não tende ao ridículo? Cada um contri-
bui com sua dose de estupidez para a estupidez do mundo.
Milhões de homens numa noite como aquela, naquela mes-
ma cidade do Rio de Janeiro, olhavam para a mulher a seu
lado se perguntando se ela continuava sentindo desejo por
ele. Se ainda o amava. Se estava interessada por outro. Mas
nem todos correriam o risco, como eu, de cair do nono an-
dar, para fazer a foto número 1, a que se vê acima. Trata-se
da fotografia da fachada de um prédio dos anos cinquenta
do século passado, tirada de cima para baixo. Há um geo-
metrismo na composição definido pelos limites das janelas
iluminadas nos vários andares e pela disposição das pessoas
na entrada. À partir de uma distância de nove andares, vêem-
se várias cabeças pequenas e dispostas como num tabuleiro
de xadrez, cada uma voltada para uma direção. O calçamen-
to brilha no fundo da foto, espelhando alguma luz de poste.
18 JOÃO ALMINO

Somente uma pessoa, bem no centro, olha para cima. É um


homem de meia-idade, um pouco calvo e de cabelos claros.
Um motorista segura a porta do carro de luxo aberta atrás
dele.
Tenho centenas de fotos parecidas, mas aquela é a única
de um ângulo raro, em que aparece toda a fachada do prédio
desde meu andar até o solo. Interessara-me tanto pelo que
se passava embaixo que me reclinei com a câmara sobre a
janela para fazer a fotografia. Comprara uma lente refletora
que me permitia, sem ser notado, fotografar o que se via em
ângulos laterais. Tinha usado aquela lente para fotografar
expressões espontâneas na rua, nos pontos de ônibus, nas
saídas do metrô, na Cinelândia e mesmo numa das entradas
da favela da Rocinha. Agora, decidira fixar a câmara duran-
te toda uma semana em frente à janela com a lente voltada
para baixo, e espreitava, pelo visor, homens que entrassem
no prédio com expressão suspeita — por exemplo, um sorri-
so esperançoso. Feios, barrigudos, velhos, deixava de lado.
Joana não se interessaria por eles. Havia esquecido a catego-
ria dos feios e ricos, muito ricos, até que, naquela noite, re-
conheci, como um detalhe a encher aquela foto, o rosto distante
e minúsculo de Eduardo Kaufman olhando na direção de
minha câmara.
Não é uma fotografia para ser apreciada por suas quali-
dades estéticas ou a informação que transmite. Diante dela,
sou como o poeta que chora ao ler seu patético poema de
amor e sente pulsar nos versos o próprio corpo da amada,
embora consciente de que o mesmo poema pode parecer in-
sosso aos demais leitores. Ou então como o autor do roman-
O LIVRO DAS EMOÇÕES 19

ce autobiográfico que, tendo revelado tanto de si e escrito


com tanta emoção, sabe que aquela emoção não sensibiliza
quem se chateia com uma história sem trama. De fato, o
observador isento não percebe a coragem nem o desespero
presentes naquela fotografia. Cada foto é distinta segundo
quem a vê. Depois que disparei a objetiva, deixei passar vin-
te minutos e subi ao apartamento de Joana.

[29 de junho, noite]

2. O homem que via demais

Enchi os pulmões disposto a atirar palavras, como balas,


contra Joana e Eduardo, mas uma cortina cinza de timidez
me envolveu. Então preenchi meu silêncio com diálogos
imaginados entre os dois. Com conversas deles sobre mim.
Desta vez Eduardo não teria contado vantagem sobre a polí-
tica e os negócios. Teria proposto casamento a Joana. Ela teria
aceito a proposta diante do anel de brilhantes que ele teria
sacado do bolso interno do paletó. Ele a levaria para São
Paulo. Lá Joana admiraria cada vez mais as qualidades de
Eduardo, refinadas pelo dinheiro. Faria um tratamento con-
tra a infertilidade e teria filhos, lamentando os anos perdidos
ao lado de um homem grosso e imaturo como eu.
— Eduardo acaba de perguntar por você — Joana disse,
com a voz rouca que sempre me encantou.
Eu mal ouvia o que Eduardo falava. Reparava apenas no
ar superior de quem se julgava dono do mundo e de Joana.
20 JOÃO ALMINO

— Queria lhe fazer um convite — ele falou. — Enviá-lo


a Brasília, com tudo pago. Estou precisando de um fotógrafo
para um projeto sobre Paulo Antônio.
Ainda muito jovem, há mais de trinta anos, eu vivera em
Brasília com a irmã do então presidente Paulo Antônio
Fernandes e tinha sido autor de muitas das fotos de primeira
página do Correio Braziliense.
Eduardo certamente queria me mandar para longe de
Joana. Jamais aceitaria, nem sairia do apartamento dela an-
tes que o próprio Eduardo saísse. Sempre tinha comprado
brigas. Se fosse preciso, quebraria a cara daquele patife.
— O material que você tem é precioso; você é que não
se dá conta. Mais do que qualquer outro fotógrafo, você teve
acesso à vida privada de Paulo Antônio.
Ao contrário de hoje, meu problema era ver demais. Via
tudo o que se passava à volta, nos mínimos detalhes. O visí-
vel era o real, e o real era visível. Conhecer e ver eram a
mesma coisa. O que eu não via, provavelmente não existia.
Naquele momento eu via e melhor não ter visto. Não ter visto
Joana, não ter visto Eduardo Kaufman. Desviava o olhar, mas
os ombros nus de Joana dançavam para o movimento das
mãos de Eduardo. Captei aquela dança com minha câmara,
através do reflexo da janela. A foto acima, a de número 2,
não me deixa mentir: eu estava ali, presente, assistindo àquela
dança. Forneceu-me a evidência de que precisava. Era como
a prova de um crime. Depois passou a servir para me lembrar
como, com a idade, Joana se tornara ainda mais sedutora.
Vêem-se o perfil esguio, a perfeição de seu nariz e o volume
de seus seios. Seus cabelos que, quando a conheci, haviam
O LIVRO DAS EMOÇÕES 21

sido louros e compridos, eram então curtos e haviam reco-


brado sua cor natural, de um castanho-claro, que acrescen-
tava sobriedade a seu olhar aquilino. Fotografia não é parte
de filme, nem momento numa segiência de fatos. É tempo
de reflexão, observação e descoberta. Diante de uma foto-
grafia, é possível fechar os olhos, não para deixar de ver, mas
para ver mais. Por isso não surpreende que, embora cego, con-
tinue vendo — e vendo mais — aquela foto de Joana e Eduar-
do Kaufman, que, com seus reflexos e planos superpostos, é
também a foto de um pesadelo.

29 de junho, noite

Por hoje chega. Já é meia-noite, e criei o hábito de não dormir


depois das onze. Tenho acordado cedo e amanhã continuo.
No final da tarde Carolina me ligou para saber quando pode
trazer a amiga. Acertamos para daqui a cinco dias.

1º de julho

Não vou conseguir adiantar o livro. Há dois dias não paro de


pensar em Eduardo Kaufman, o que me paralisa. Tenho de me
decidir. Ou o esqueço e serei econômico em meus comentários sobre
ele, ou então o livro todo será sobre aquele canalha e suas ca-
nalhices. Um ser desprezível não merece um livro. Uma possibili-
dade é me limitar às fotografias, abandonando as palavras por
2h JOÃO ALMINO

completo. Penso na fotografia como um alfabeto infinito de ima-


gens que cria uma linguagem visual do mundo.

[1º de julho]

3. Noturno à beira-mar

Não entendia por que Joana se interessava por um crá-


pula. Só porque era rico, podre de rico? Rico arrogante. Acha-
va que dinheiro comprava tudo. Rico que se fazia passar por
generoso. Eu não ia ceder Joana. E não ia deixar transparecer
meus ciúmes daquele sujeitinho nojento. Conhecia Joana, ela
alardearia a notícia a meio mundo, como se houvesse muita
graça e pouca razão.
Um desejo sexual intenso e recíproco nos aproximara.
Nunca falávamos em amor ou casamento. Falta de roman-
tismo? Talvez. Mas precisávamos um do outro, tínhamos pra-
zer em estar juntos, e por que o coração não podia ser a
nascente daquele rio de desejo? Agora que seu desejo tinha
cessado, e para não perdê-la, imaginei que seu coração es-
corregadio, se não impalpável, seria sensível a uma aliança.
Lembrei-me da palavra “epifania” que eu ouvia na missa
quando criança, em Porto Alegre. Fui com o tempo desco-
brindo-lhe significados, de manifestação sublime, trans-
cendental, divina. A palavra dava um tempero de nobreza à
minha mente plebéia, amaciava meu caráter rude e me fazia
sentir uma pessoa superior, desprendida das baixezas carnais.
O LIVRO DAS EMOÇÕES a 6)

— Não adianta. Você é interesseiro. Só pensa nisso. Nunca


me deu carinho — Joana me disse ao recusar a aliança. De
fato não era uma jóia que impressionasse. O aro era fino, de
ouro pouco e barato. Eu devia ter previsto que, para derreter
Joana, o carinho tinha que ter peso e muitos quilates.
— Nisso o quê? — me ajoelhei, tentei beijar seus pés.
— Deixe de ser ridículo. Como você não consegue mais
mulher nenhuma, vem para cima de mim.
— Cansei. Nunca mais tu vais me ver — ameacei. Por
vaidade a iniciativa do rompimento deveria ser minha. Não
queria passar pela humilhação de ser abandonado por ela.
Sobretudo não queria ouvir a confirmação de que me deixa-
ria por Eduardo Kaufman. Calculei que não chegaríamos a
esses extremos. Minha ameaça a levaria a se arrepender do
que acabava de dizer.
— Já vai tarde. E tem mais: vou precisar do apartamen-
to. Pode aprontar as malas — gritou, furiosa.
Joana estava decidida a me expulsar do prédio e de sua
vida para uma tragédia brega e suburbana.
A noite despencou. Implacável, sem pena nem perdão. E
foi me dissolvendo aos poucos, como um assassino frio e pa-
ciente. De madrugada acordei suando frio. Uma vida intei-
ra, marcada pela inconstância e a instabilidade, me pesava
sobre as costas. Se não queria ser um Eduardo Kaufman,
muito menos queria ser eu mesmo. Deveria ter acumulado
diplomas, juntado dinheiro. Podia pelo menos ter começado
mais cedo a pagar o plano de previdência que me daria segu-
rança financeira quando não pudesse mais viver de minha
fotografia.
24 JOÃO ALMINO

Meu problema era que os outros, me considerando um


fotógrafo medíocre, não reconheciam o grande artista que
vivia dentro de mim. Era que Joana, me tomando por ho-
mem vulgar, era incapaz de enxergar em mim o grande aman-
te. Era que eu não conseguia esquecer Eduardo Kaufman.
Problema maior, que me afligia naquela madrugada, era que
pensava em ligar para ele para cobrar o emprego oferecido.
“Você é mesmo um artista”, às vezes me diziam em tom
de ironia. Eu me sentia artista quando às quatro da madru-
gada separava minhas poucas roupas, o equipamento foto-
gráfico e o laptop; quando arrumava a mala, olhava a carteira
de dinheiro vazia e previa fome, doença e decadência. Sen-
tia-me artista quando me despedia do Rio com uma foto
noturna, a de número 3, que colei acima.
Naquela fotografia entre preto e cinza-escuro, a água de-
senha curvas de espuma sobre a praia vazia. Percebem-se, em
vista panorâmica, as ondulações do mar e uma claridade
difusa no horizonte. Sobre o granulado da areia se vêem
marcas de passos quase apagadas. Como as outras que tirei
desde que começara a me preparar para partir, aquela era uma
foto de meu medo.

[1º de julho, tarde]

4. As formas do problema

De manhã cedo liguei para mamãe em Porto Alegre. Deu-


me notícias de minhas duas irmãs que ainda lhe faziam com-
O LIVRO DAS EMOÇÕES 25

panhia e das três mais velhas, do primeiro casamento, que


haviam se transferido para São Paulo com seus maridos.
— Vou a Brasília a trabalho — avisei.
Não, ainda não tinha me casado. Não, não ia nunca me
casar. Sim, criaria juízo. Não, drogas não, jamais, aquilo era
coisa do passado. Não, também deixara de beber, não se pre-
ocupasse. Sim, o dinheiro estava dando para o gasto e, em
Brasília, ia ganhar mais.
— Por que não te hospedas com um de teus irmãos? —
sugeriu.
Antônio, que seguira a carreira de engenheiro, era fruto
do primeiro casamento de mamãe. Apesar de ser apenas um
ano mais velho, falava comigo como se fosse meu pai. Ma-
mãe enviuvou e, do segundo casamento, nascemos eu, duas
irmãs e Gustavo, o Guga, mais novo do que eu e professor
universitário em Brasília.
— Eu endoidecia de vez se tivesse de morar um dia que
fosse com Antônio. E no apartamento do Guga não há espa-
ço — disse à mamãe, e encerrei a conversa com palavras cor-
retas e afáveis. Ela tinha sido professora de português e
continuava uma purista da língua. Sempre me corrigia o por-
tuguês e a conduta. Entre esta e aquele, eu a contentava com
o mais fácil, ou seja, o vocabulário e a gramática, embalados
em alguma fórmula de cortesia.
Com o sol já desperto, caminhei pela praia, a esmo, má-
quina a tiracolo, reparando no mar encrespado, na espuma
que nadava sobre meus pés, nos desenhos que a água, o ven-
to e a multidão que começava a chegar dos subúrbios faziam
na areia, como na foto abstrata acima, em preto-e-branco, a
26 JOÃO ALMINO

de número 4. Eu gostava de tornar as fotografias indiferen-


tes ao tempo e ao lugar. E no entanto a data e o lugar daque-
la foto ficaram gravados em mim, como marcas a ferro e fogo.
O uso da lente de noventa milímetros e o fechamento do
diafragma até uma abertura de f/16, em exposição de 1/60
de segundo, permitiram uma total profundidade de campo.
A luz da manhã incide em inclinação ótima na areia. Cada
grão de areia aparece em perfeita nitidez, realçado numa
impressão em prata. Inicialmente intitulei aquela fotografia
As formas da solução, mudando anos depois para seu título
atual. Muitas vezes dava títulos que revelassem o que eu sentia
e não fossem meramente descritivos. Aquelas formas enig-
máticas em textura tão nítida não se desenhavam apenas na
areia. Também na minha mente. Entre uma e outra distra-
ção, primeiro uma idéia grudara, como chiclete, no fundo de
meu pensamento: guardaria cópias das chaves do apartamen-
to de Joana. Depois, enquanto procurava o enquadramento
preciso, que juntasse o máximo de informação numa com-
posição ligeiramente assimétrica, fui me convencendo de que
meu problema essencialíssimo era que precisava do dinheiro
de Eduardo Kaufman para pagar aluguel se tivesse de deixar
o apartamento de Joana. Por isso arquivaria o orgulho e os
princípios para uso em tempos de vacas gordas. Aquele meu
problema essencialíssimo foi, ali na praia, tomando as formas
de uma solução imediata que me transportaria do Rio para
meu anti-Rio. Pelo menos assim pensei. Queria voltar a ex-
plorar as paisagens lunares de Brasília, seus traços femininos
e suas tintas avermelhadas.
O LIVRO DAS EMOÇÕES 21

4 de julho

Gostei que Carolina tivesse trazido a amiga, a aprendiz de


fotógrafa que quer me ajudar a organizar os arquivos. Chama-se
Laura. Embora mal conseguisse ver sua sombra, percebi, pela voz,
a figura delicada. Parece magra e alta. Transmitiu-me lembran-
ças de Joana. Seus pais, fazendeiros do Pantanal, a conhecem de
longa data e a hospedaram mais de uma vez.
Minha afilhada tinha pressa, partiu dizendo estar atrasada
para uma recepção na embaixada americana. Laura ficou uma
parte da manhã.
— Conheço várias fotos que o senhor publicou — disse.
— Proíbo que me chames de senhor. Não me faças lembrar
de minha velhice. Afinal, somos colegas.
Quis conhecer meus arquivos. Indiquei o local das caixas com
o material impresso e o dos discos rígidos com as reproduções di-
gitais. Para dar continuidade a meu Livro das emoções, pedi
apenas que Laura abrisse a pasta do computador com as fotos do
meu antigo diário fotográfico e me ajudasse a localizar a fotogra-
fia de uns olhos.
— (Quem é a dona destes olhos felinos? São bonitos, sedutores.
— Foi minha primeira foto de uma jornalista que conheci
quando regressei a Brasília.
Deixássemos o trabalho para outro dia, lhe disse. Conversa-
mos. Sempre se interessou por fotografia. Deduzi de um comentá-
rio seu que não tem namorado. Mora sozinha, num apartamento
alugado pelos pais.
— Usameu laboratório como e quando quiseres. É mais um
favor que me fazes. Está mesmo desativado...
28 JOÃO ALMINO

Ela vem do interior de Mato Grosso. Será que tem feições


indígenas? As mãos senti que são pequenas e de pele muito lisa. A
voz é contida sem ser tímida. Gostou de Marcela e a recíproca foi
verdadeira. Marcela chegou a choramingar de dengo em resposta
às carícias que recebeu.

[6 de julho, à noite]

5. Os olhos de Marcela

Desembarquei no Plano Piloto trazendo bagagem de fo-


tos e câmaras. Cheguei com tudo pago e um apartamento
emprestado por Eduardo Kaufman na 104 Sul. O acerto com
Eduardo incluía também a compra de equipamentos para meu
laboratório de fotografia.
Brasília excitava com carícias verdes o cerrado rústico. Eu a
redescobria sensual e audaciosa, de uma poesia variada, que podia
ser lida aqui como barroca, ali como arcádica, depois como con-
creta, acolá como marginal, mais adiante como puros haikais...
Lembrei-me do que Joana uma vez me dissera. Passei um
Carnaval com ela no Rio, à época em que eu vivia com Eva,
irmã de Paulo Antônio. Eva ficara em Brasília para acompa-
nhar os comícios carnavalescos do irmão. Eu estava na cama
com Joana quando ouvimos o clamor das ruas e, na televi-
são, a notícia do desaparecimento de Paulo Antônio. “Ne-
nhuma queda de governo vale a lembrança deste nosso
encontro; desta cama”, Joana me disse. E tinha razão, apesar
das tragédias que se seguiram.
O LIVRO DAS EMOÇÕES 29

Os tempos de Paulo Antônio estavam ultrapassados, mas


Eduardo Kaufman queria reavivar a lembrança do ex-presi-
dente desaparecido para parecer herdeiro de uma causa no-
bre, reforçando, assim, suas chances de se eleger deputado
federal.
— Importa menos seu governo do que o homem, e a
imagem que ficou dele na memória do povo — Eduardo
Kaufman esclarecia no seu escritório do Setor Bancário Norte.
— Vou financiar um documentário para a televisão sobre
Paulo Antônio. Hoje em dia a cultura é de imagem. O mun-
do inteiro se faz e se refaz em filmes e fotografias. E a televi-
são tem poder de encantamento; dá outro sentido até mesmo
a uma conversa banal.
Depois, dirigindo-se a mim:
— Cadu, quero coisas concretas: fotos.
— O que queres mesmo é ressuscitar ilusões — respondi.
Todos se entreolharam. Todos eram, além do próprio
Eduardo, um advogado especializado em captar recursos da
lei de incentivo à cultura, um cineasta, uma moça magrinha
de rosto expressivo e queixo fino e o chefe do escritório de
Eduardo em Brasília. Nos limites de visão da janela, Brasília
era sua própria promessa orgânica e escultural, a bossa nova
da arquitetura. Suspendia, cheia de graça, seus monumen-
tos no ar, como quiseram seus arquitetos.
A moça de rosto expressivo cruzou seu olhar com o meu.
Quantos anos teria? Não mais do que trinta. Assim como eu
reparara no tamanho avantajado de seus peitos para um cor-
po magro e pequeno, ela na certa apreciava meu físico alto e
musculoso. Deixei meu olhar atravessar sua blusa branca, de
30 JOÃO ALMINO

lá fina, e o sutiã igualmente branco cujo rendado superior era


perceptível. Deleitava-me com aqueles volumes que se ofe-
reciam desinibidamente sobre a mesa.
Pensei: será que Eduardo não temia que fosse ressuscita-
do, junto com Paulo Antônio, o boato sobre o romance en-
tre sua ex-mulher e o ex-presidente? Devia deixar aquele
cadáver em paz, em vez de disputá-lo como um troféu.
— Paulo Antônio era um recalcado e um ressentido.
Com mais esta provocação, colhi outro olhar da moça
magrinha, agora um olhar risonho. Preparei minha máqui-
na. Fiz de conta que fotografava a sala, usei o zum e tentei
flagrar de um bom ângulo a moça que sorrira para mim. Ela
fugiu de minha mira com a habilidade de quem se desvia da
bala de um revólver, e acabei seguindo a direção do dedo de
Eduardo Kaufman que apontava para a mesa.
Ali havia um folheto que estampava uma foto de Eduar-
do ao lado de meia dúzia de índios, todos abraçados ao tronco
de uma samaúma. A foto vinha acompanhada da explicação
de tudo o que Eduardo Kaufman e os índios fabricavam a
partir daquela árvore de um metro e meio de diâmetro e 40
de altura: da madeira, faziam barcos, compensado, celulose;
da pluma ou kapok, bóias e salva-vidas, enchimento de col-
chões e travesseiros, além de isolante térmico; da semente,
óleo comestível e para iluminação e fabricação de sabão; e
da água extraída das raízes e do caule, tônico capilar e remé-
dio para barriga-d'água.
Há pouco Eduardo enriquecera ainda mais — haviam me
contado — com a venda de uma de suas empresas a uma
companhia estrangeira. Era então não apenas um magnata
O LIVRO DAS EMOÇÕES El

da publicidade, mas dono de um conglomerado. Para posar


de defensor da natureza, despejava no mercado desde cami-
sinhas feitas com borracha natural até objetos de design com
tecnologia e mão-de-obra indígenas.
— O ressentimento pode produzir grandes obras, Cadu —
Eduardo me respondeu depois de algum tempo e vários assun-
tos, como se tivesse ficado ruminando minha provocação e
somente então tivesse encontrado as palavras que buscava.
— Pelo menos uma história vocês têm de pesquisar e
documentar. Revela o quanto Paulo Antônio se transformou
num verdadeiro super-homem aos olhos do povo — afirmou.
— Não quero dizer que seja certo ou errado. A realidade é a
realidade. A História com agá maiúsculo abrange a religio-
sidade popular e os processos de desmodernização. Estão
transformando Paulo Antônio num santo, como fizeram no
Nordeste com o padre Cícero. Ele baixa em terreiro de ma-
cumba. Tem adoradores no Jardim da Salvação, a começar
pela própria profetisa Íris Quelemém. Qual o Paulo Antô-
nio que aparece nos terreiros de macumba? Que tipo de
milagre ele faz entre seus fiéis? Marcela, que é jornalista,
pode pesquisar esta história.
Então a magrinha se chamava Marcela, bonito nome.
Depois ele se virou para mim:
— Você faz os registros fotográficos. E há também a Vila
Paulo Antônio, fundada há menos de dez anos, uma das mais
novas cidades-satélites de Brasília, já com quarenta mil ha-
bitantes. É preciso em todo esse trabalho usar o enfoque do
antropólogo, pois a memória que ficou de Paulo Antônio
revela muito sobre o nosso povo.
32 JOÃO ALMINO

Já era a terceira vez que se referia ao “povo”. Se eu pu-


desse, eliminava do vocabulário aquela palavra, abstração e
massa indistinta que enchia a boca dos demagogos, justifica-
va coisas díspares e provocava discussões acaloradas. Pelo
povo se matava, se roubava e se criavam crises.
— Paulo Antônio vai sair engrandecido de minhas fo-
tos, em primeiro lugar porque elas não falam — eu disse.
— Não falam? — Eduardo perguntou.
— Melhor ainda, não gritam.
Meu irmão Guga uma vez me comentara as vantagens de
um parlamento de mudos.
— A mudez sozinha já seria uma grande qualidade num
político — acrescentei.
Os olhos de Marcela sorriram, se não com aprovação, com
o reconhecimento de que minhas palavras traziam brilho à
conversa. Não hesitei. Era o momento decisivo. Aproximei
o zum e fiz a foto número 5. Seus olhos verdes e fundos, le-
vemente assustados, como de bicho selvagem e nervoso, fo-
ram tomados de surpresa por meu flash.

11 de julho

De novo Laura passou aqui uma parte da manhã. Desta vez


me ajudou a consertar a cronologia das fotos, pelas quais se inte-
ressou genuinamente. Encarou com naturalidade os nus. Gostou
sobretudo das flores. Quis saber se eu já havia escrito sobre os
olhos de Marcela e se ofereceu para me ajudar nas colagens de
fotografias ao longo de meu Livro das emoções.
O LIVRO DAS EMOÇÕES 33

— Prometo não ler. Só quero facilitar seu trabalho.


Lamentei que eu não pudesse ver as fotos que ela fazia.
— Não fotografo por fotografar. Minhas fotos são um jeito
de reagir ao que me incomoda — disse.
Depois compartilhou comigo suas opiniões sobre as notícias
do dia.
Gostaria de ter seu entusiasmo. Quando se é jovem tudo pa-
rece novidade, o futuro é longo, as transformações do mundo as-
sustam com suas ameaças e encantam com suas promessas. Para
os velhos como eu, o movimento visto a distância parece monóto-
no e repetitivo. Laura acompanha cada novo caso de corrupção
com uma emoção que eu já não posso ter para o que é cíclico.
Creio que é este um dos principais sintomas da velhice: a sensa-
ção de déjã vu que retira dramaticidade dos fatos presentes. Que
me importa que o mapa econômico do mundo tenha mudado nes-
tas duas últimas décadas? A humanidade não mudou, e a tecno-
logia ainda não conseguiu dominar a fúria da natureza, com seus
terremotos e furacões. Não quero dizer que nada tenha melhora-
do. Ninguém mais morre de câncer, nem mesmo de Aids. Mas se
não me entusiasmo com o que melhorou, tampouco me revolta o
que piorou. Tantos problemas novos têm surgido... Novas guer-
ras, novas doenças... Brasília ficou mais humana e por isso mais
cruel, capaz de crimes mais terríveis. Perdeu a aura de cidade fu-
turista para virar uma cidade como as outras.
Laura quer vir aqui com regularidade, talvez duas vezes por
semana.
— Tuas fotos não consigo ver, mas teus acordes posso escu-
tar. Da próxima vez, não esqueças de trazer o violão — lhe pedi.
34 JOÃO ALMINO

[11 de julho]

6. Era março na janela

— Sei que você é um cético, Cadu. Mas não podemos


abandonar nossos objetivos. Como alcançá-los, eis a ques-
tão — falou Eduardo, no apartamento da 104, antes de par-
tir para o aeroporto.
— E Ana? Posso procurar para este projeto? — lhe per-
guntei. Ana era a ex-mulher de Eduardo, que ainda manti-
nha o sobrenome Kaufman.
— Para ser franco, não é a nossa prioridade. Duvido que
ela acrescente alguma coisa.
— Fiz muitas fotos dela.
— Ah, é?
— Belíssimas. Antes da tentativa de suicídio, deves ter
sabido.
— Claro.
— E do casamento dela com aquele babaca.
— Perdi o contato com ela. Olha, dentro de um mês vol-
to para uma homenagem que Íris e os médiuns do Jardim da
Salvação vão fazer a Paulo Antônio. Quero que você registre.
Liguei para meus irmãos. Guga me convidou para uma
festa no dia seguinte. Seria no apartamento de Paulo Mar-
cos, que eu não via há muito.
— Coincidência, bicho, vem todo mundo aqui. Estamos
te esperando — depois me disse Paulo Marcos por telefone.
Antônio me convidou para um almoço dentro de uma se-
mana. Sua mulher estava bem, as crianças idem, todas de uma
O LIVRO DAS EMOÇÕES 35

inteligência rara... Eu não suportava ouvir aquilo. A verdade


era que ele sofria, engolia sapos e um dia ainda pegaria o re-
vólver e mataria a mulher, como numa tragédia carioca de
Nelson Rodrigues. Ou talvez não, era covarde demais para isso.
Era disciplinado e bom marido, imune às agressões dela. Ti-
nha o sentido do dever e vivia para a casa e a educação dos
filhos, uma mocinha de treze anos e um garoto de onze.
— Continuas solteiro? — me perguntou.
Servi-me de um uísque de vinte e cinco anos e, para pas-
sar O tempo, fiz um reconhecimento do apartamento de
Eduardo. Liguei um dos computadores e comecei a ler seus
conteúdos. Eduardo pusera trancas em alguns programas e
pastas, o que aguçou minha curiosidade. Naquela época se
eu quisesse seria um hacker. Destranquei tudo com facilida-
de. Que segredos eu poderia desvendar? Descobri que Eduar-
do havia entrado num site de garotas, “as mais quentes do
mercado, com atendimento discreto para empresários e po-
líticos”, onde as fotos que mais acessara eram de uma nissei
de vinte anos chamada Akiko. Encantei-me com Akiko. Pen-
sei em me comunicar com ela usando uma identidade com o
nome de Eduardo Kaufman.
Por acaso encontrei uma lista de nomes intitulada “Ope-
ração A”. Lembrei-me do que lera ainda naquela manhã na
Folha de S. Paulo. Reli a matéria com atenção. A Polícia Fede-
ral investigava um suposto esquema de caixa dois da base de
vários partidos políticos, montando a trinta milhões de reais
distribuídos entre quase oitenta candidatos a prefeito no Esta-
do de São Paulo. As contribuições vinham de cerca de qua-
renta empresas, várias curiosamente localizadas na Amazônia,
36 JOÃO ALMINO

clientes ou fornecedoras de uma conhecida estatal, com sede


ali mesmo em Brasília. O esquema envolvia também subornos
mediante desconto de cheques na boca do caixa, amparados
por notas fiscais frias, falsos contratos de consultoria e valores
pagos pela estatal que embutiam percentuais destinados tanto
a propinas quanto a contribuições de campanha. Uma fonte
da própria polícia havia vazado a informação.
Imaginei que um tal esquema pudesse fazer parte da es-
tratégia de Eduardo Kaufman rumo ao Planalto Central. Os
prefeitos beneficiados viriam a ser seus cabos eleitorais numa
eleição para deputado federal.
Servi-me de outro uísque. A quadra estava silenciosa.
Nem buzina se ouvia. Eu gostava daquela cidade. Só não
suportaria ser funcionário público, como a maioria ali. Não
abdicaria de minha liberdade de dizer e fazer o que quisesse,
quando quisesse. Sentir-me funcionário de Eduardo seria
provisório. Logo sobreviveria por conta própria. Por enquanto
Eduardo permitira instalar o laboratório de fotografia no seu
banheiro de empregada, mas eu pensava transferi-lo em bre-
ve para um estúdio numa das salas comerciais da Asa Norte.
Trouxe minha câmara para a janela. Buscava a clareza,
preto no branco, para desfazer o mistério da imagem e reco-
brar o sentido da desordem das coisas diante de mim. A foto
de número 6, acima, ordena coisas díspares, o natural e o
artificial, o vivo e o morto, e os faz conviver para sempre com
naturalidade. Surpreende tanto mais seja aparentemente sem
sentido e quanto menos revele a razão por que foi feita. A
tarde inteira coube naquele instante. Era março na janela.
As flores dos manacás-da-serra, no primeiro plano, ocupan-
O LIVRO DAS EMOÇÕES SN

do a maior parte do meu campo visual, tingem seu branco


com o rosa. Nada indica pressa. Uma pomba morta está dei-
tada ao chão de folhas, dura, de pés para cima. Quatro filas
de cadeiras vazias cortam a foto na diagonal. Um grupo de
empregadas, dirigindo-se para o lado esquerdo, leva a pas-
sear os cachorros das patroas. Um céu escandaloso joga luz
vermelha sobre o fim da tarde, pintando o gramado com uma
larga faixa de luz. Aquela poderia ser minha primeira foto para
o enorme painel de flores que eu pretendia compor em ho-
menagem a Brasília.

7. Quincas Borba e sua dona

No apartamento de Paulo Marcos encontrei o que preci-


sava: um grupo barulhento, que me enchia de uma energia
alegre e me trazia bons augúrios. Ele morava na Asa Norte, à
beira do Parque Olhos d'Água. Não era seu salário do Minis-
tério que pagava os sofás e cadeiras de couro, o tapete persa, O
vaso belga sobre o aparador e as telas de artistas contemporâ-
neos. O bom gosto e o dinheiro eram de Tânia, sua mulher.
Se Tom Jobim e Vinicius de Moraes a tivessem visto pas-
sar, era para ela que teriam composto sua canção, por maior
que seja a desvantagem da Asa Norte em relação a Ipanema.
Um poeta parnasiano a teria comparado a uma deusa. Digo
apenas que era cheia de graça e que seus olhos negros e gran-
des brilhavam de curiosidade e inteligência. Para completar
seu rosto branco, iluminado e fresco, acrescentem-se um nariz
afilado e mais perfeito do que o de qualquer plástica bem-
sucedida, uma boca risonha que fazia biquinhos de francesa
38 JOÃO ALMINO

quando falava, orelhas pequenas e cabelos lisos e curtos. Do


corpo nem falo, para não dar a impressão de que já vinha com
segundas, terceiras ou quartas intenções. Posso dizer que não
era magro como o das manequins, nem cheio como o de uma
Marilyn Monroe. Tinha as medidas certas para quem, como
eu, gostava de sentir que, por cima dos ossos, havia uma ca-
mada de carne macia.
— Você está super, como sempre — disse, ao me ver.
Embora a palavra “super” tivesse ficado suspensa, sozi-
nha, sem uma qualidade ou defeito que a complementasse,
eu tinha certeza de que a elipse, estampada no rosto conten-
te de Tânia, estava cheia de bons adjetivos.
Fotografei Quincas Borba, o weimaraner do casal. Depois
de fazer seu passeio pela sala, cheirando entre as pernas de
cada um dos presentes, repousava a cabeça sobre as coxas de
Tânia. Meu irmão Guga, com jeito desleixado, cabelos des-
penteados e barba por fazer, fumava um baseado. Acho que
foi ali, naquela ocasião, que notei, pela primeira vez, um cer-
to olhar de Guga sobre Tânia, que não seria lembrado se não
fosse pelo que se passou muito tempo depois. Acontecimen-
tos futuros ampliam, como lentes de aumento, fatos quase
imperceptíveis e aparentemente sem importância.
Ao ouvir o clic da máquina, Guga, que gostava de distri-
buir citações à direita e à esquerda, me repetiu, com ar mis-
terioso, a frase que me dissera quando decidi ser fotógrafo:
“O olho do homem serve de fotografia ao invisível.”
— O nome “Quincas Borba” foi posto por Guga — Tà-
nia me disse.
— Caminhamos para um beco sem saída — Guga res-
O LIVRO DAS EMOÇÕES 39

mungou uma de suas frases previsíveis, continuando alguma


conversa que eu perdera.
Era paranóico e depressivo, o que se agravava com o uso
de drogas. Um dia podia acabar metendo uma bala na cabe-
ça. Suas teorias se resumiam quase sempre à constatação de
que a vida era um longo lamento e nada valia a pena.
— Queria pedir tua opinião sobre um projeto que tenho.
No teu campo, a literatura. Penso em escrever um livro —
lhe revelei.
— Tu és favelado?
— Ainda não, mas chego lá.
— Transexual?
— O que tu achas?
— Se não estás no meio de nenhum conflito étnico, cul-
tural ou racial, tua história não interessa. A menos que substi-
tuas a narrativa por uma catástrofe ou uma cena hiperviolenta.
— Não tenho pretensão literária. Quero modestamente
ser exato sobre o que vi e vivi.
— Então, sobre o que é?
— É uma espécie de diário, usando minhas fotos; diga-
mos: um diário fotográfico.
— Ainda assim, precisa haver uma trama na tua vida,
que possa criar o enredo ou o suspense. Ou pelo menos tua
história deve ser exemplar em algum sentido: deve mostrar
que tu conseguiste construir alguma coisa, ainda que seja uma
família ou uma empresa, entendes?
Entendi. Por culpa de meu caráter dispersivo, eu de fato
nada construíra.
40 JOÃO ALMINO

[12 de julho]

Entre os convidados, além de Guga, eu conhecia um ar-


tista plástico com o apelido de um antigo e famoso bandido
do Rio, Escadinha, e Marcela, a moça magra de queixinho
fino e olhos negros que encontrara na reunião de Eduardo.
Há alguns anos o Escadinha ficara famoso com quadros
feitos de excrementos. Matérias fecais coloridas e sem cheiro,
vistas por uns como bonitas, por outros como dotadas de alto
poder crítico. Agora me anunciava que fazia sucesso com suas
fotos digitais, expostas no Centro Cultural Banco do Brasil.
Nunca o chamei por seu nome verdadeiro. “Escadinha” era
mais adequado ao personagem. Havia teorias divergentes so-
bre por que ganhara o apelido. Para uns, porque ingeria muita
cocaína. Para outros, porque sabia fugir, como o famoso trafi-
cante que fez baixar um helicóptero na prisão. Agreguei âque-
las uma teoria nova: porque subia rápido na vida.
— Nunca quis ser fotógrafo — ele disse. — Não enten-
do lhufas de fotografia. Mas por acaso a curadora de uma
exposição do MASP simplesmente a-do-rou um trabalho que
fiz com minha digital!
As fotos haviam sido publicadas em livro, que ele me
mostrou. Precisavam de mais contraste. Tinham cores con-
fusas, grãos pouco definidos e zonas desfocadas.
— À técnica não me interessa, Cadu. Mando imprimir
as fotos em São Paulo. Às vezes peço para corrigirem. Quan-
do não ficam boas, descarto.
— São lindas! — Marcela exclamou.
Não eram. Tinham um excesso de efeitos visuais, as co-
O LIVRO DAS EMOÇÕES 41

tes da noite deixando listras coloridas sobre travestis, bandi-


dos, prostitutas, cadáveres...
Escadinha fora à prisão da Papuda e trazia num pequeno
portfólio as fotografias em preto-e-branco de vários presos.
— Você se lembra dos dois caras envolvidos no assassi-
nato de Berta? Um deles é este sujeito aqui.
Fiquei chocado. Eu sabia que era meu filho, que eu nunca
sequer vira; o filho de Berenice, atual empregada de Ana
Kaufman. Com Berenice havia sido um escorrego de minutos.
— Não faço questão da paternidade — Berenice me dis-
sera —, vou-me embora daqui, criar o meu filho sozinha; só
quero dinheiro para a viagem e para montar meu próprio
negócio.
Dei-lhe o que eu tinha, e ela cumprira a promessa de
nunca mais me procurar.
No instantâneo feito pelo Escadinha, meu filho não se sente
à vontade diante da câmara. Seu movimento brusco, de quem
quer sair do campo de visão, provoca um ligeiro desfocado em
sua imagem. Seu olhar é inquisitivo e descontente. Parte de
seu rosto, de expressividade acentuada pelas sobrancelhas gros-
sas, está escondido pelo braço que talvez antes estivesse apoi-
ado na parede e que agora lhe serve de escudo, fazendo um
movimento como de luta, dança ou de passo de macumba.
Aquele braço peludo e musculoso que aparece no primeiro
plano está coberto de tatuagens. O outro está caído, relaxado,
com a mão apoiada na cintura da bermuda, trazendo um ci-
garro entre os dedos. A camisa aberta mostra os pêlos e mús-
culos do peito. Alto e bonito, não tem cara de assassino, mas
de jovem franco em quem se pode confiar.
42 JOÃO ALMINO

Sempre me sentira incompleto sem um filho a meu lado.


Se não fosse a tolice de ter acreditado que a vida de solteiro e
a ausência de filhos ajudariam a manter acesa a chama do
desejo entre mim e Joana, a teria convencido a fazer tratamento
contra infertilidade e teria tido com ela não apenas um, mas
vários filhos. Apesar disso, nunca quisera procurar meu único
filho. Por que não fazê-lo agora? Imaginei-me tirando aquela
foto no lugar do Escadinha. A minha seria distinta, guardaria
mais respeito pelo fotografado; dignificaria meu filho.
Desta segunda vez que eu via Marcela, meu olhar penetrou
no conteúdo volumoso de sua blusa preta. Quem disse que pei-
tos orgulhosos montados numa barriga acanhada não podiam
ser atraentes? Valia a pena descer daqueles peitos pela barriga
de fora, estudar a forma do umbigo até me deter nos ossos angu-
losos dos quadris. Gostava de adivinhar se o triângulo entre as
pernas era muito ou pouco peludo, se os pêlos estavam escondi-
dos lá embaixo ou se enchiam toda a superfície do triângulo, se
houvera ou não depilação e se esta havia ou não desenhado a
forma de um retângulo vertical. Concluí que Marcela era avan-
tajada ali também, onde havia uma protuberância despropor-
cional aquele corpo mal equilibrado sobre pernas de palito. Não
era homem de um gosto só. Se preferia o esplendor de Joana e
venerava as formas clássicas de Tânia, podia também apreciar
quem, de costas, se via discreta.
— Coincidência, não é? — Marcela disse. Aquele nariz
que chegava antes do corpo marcava sua personalidade com
traço forte. Devia ir para a cama com vontade, seriedade e
dedicação. Aquela boca escancarada de lábios finos, muito fi-
nos, e a ausência de queixo reforçavam a graça daquele corpo.
O LIVRO DAS EMOÇÕES Cd6

— Escuta, você não trabalhou numa novela? — me


perguntou.
Há vários anos, fazendo uma ponta numa novela de tele-
visão, tivera minhas vinte e quatro horas de fama como ho-
mem bonito. Já a fama de péssimo ator, alcançada ao mesmo
tempo, ainda perdurava entre quem não me esquecera.
Por que me sentia tão bem? Talvez fossem o comentário
de Tânia, a pergunta de Marcela, a boa música, o bom papo
e também, claro, a boa bebida. Pensando bem, esta era a ra-
zão decisiva: quatro caipirinhas me transformavam num ho-
mem alegre e bonito.
Dizem que a bebida faz esquecer. Garanto que também
faz lembrar. Lembrei-me de Aída. Não a via há pelo menos
uma década. Sempre tivera uma grande admiração por ela.
Era aquela com quem poderia ter me casado se já não fosse
casada. Mas nunca ousara sequer beijá-la. Há alguns anos
tinham me dado a notícia de sua separação. Ninguém ali na
festa a conhecia. Será que se mudara de Brasília?
Concordei enfaticamente com as palavras gentis de Mar-
cela para cada prato e até para a temperatura da cerveja, como
pretexto para agradá-la e à dona da casa. Nosso assunto em
comum era o projeto de Eduardo Kaufman para o Jardim da
Salvação, que provocou a crítica de Guga:
— Diga a teu amigo Eduardo para não misturar religião
com política. Já na época da Inguisição a espiritualidade pro-
vocava intolerância e conflitos. Todos os fanáticos do mun-
do, de todas as religiões, acham que seu Deus é melhor.
Estabelecem um canal direto de comunicação com Ele para
justificar todo tipo de preconceito: contra outras culturas,
44 JOÃO ALMINO

outras religiões, contra quem não tem religião, contra os


gays... Fazem cruzadas, jihads, declaram guerra. Como o
mundo seria bem mais pacífico, se não houvesse religiões.
— De que você está falando, Guga? Você deve estar
piradão, cara. Ali não tem intolerância nem guerra. Íris in-
ventou uma espécie de religião ecumênica; estão abertos a
tudo, desde que haja uma base espiritual — Marcela elucidou,
com sua voz macia, fazendo gestos com as mãos e elevando
os olhos aos céus, como santo de altar, talvez porque acredi-
tasse que o espiritual era sublime e superior.
Em teoria, tirando a visão apocalíptica e paranóica, eu
podia concordar com Guga. Se não fosse pela presença de
Marcela, me calaria, pois não saberia dizer melhor do que ele.
Mas Marcela valia o sacrifício dos meus argumentos em sua
defesa. Reuni tudo o que pude de minha inteligência e sabe-
doria e opinei que...
Não vem ao caso e na verdade já esqueci. O principal foi
que minhas palavras serviram de introdução a um convite a
Marcela. Propus assistirmos a uma comédia leve no Píer.
Como as filas eram longas, pulei o pretexto e caímos no apar-
tamento da 104. Marcela não era nenhuma Joana, mas eu
era pragmático. Melhor uma pomba na mão.
Ela quis ver minhas fotografias. Depois que lhe mostrei
os principais portfólios e lhe expliquei os projetos em curso,
a pomba escapou das minhas mãos, deu voltas pela sala, pelo
quarto, sempre se desviando de mim, e voou. Mas me deixou
uma promessa: acharia divertido servir de modelo para um
de meus projetos.
No dia seguinte, o 102 informou que o telefone de Aída
O LIVRO DAS EMOÇÕES 45

não estava listado. Procurei-a na internet. Três resultados:


Aída, ao lado do filho no Parque da Cidade, sendo entrevis-
tada sobre a condição dos banheiros públicos; Aída assinan-
do uma petição a favor dos sem-teto; e um aviso no Ministério
dizendo que os e-mails deviam se dirigir a ela, chefe da seção
de pessoal. Separada ela estava, e havia muito. Teria se casa-
do de novo? Teria namorado?
Examinei na câmara digital as fotos do dia anterior. Apa-
guei todas, salvo uma, a de número 7 acima. Quincas Borba
apóia sua cabeça sobre as coxas de Tânia, sentada no chão em
posição de Buda. O pêlo sedoso de sua testa reflete a luz natu-
ral que entra pela janela. Há algo de humano em sua expres-
são. Talvez ele não goste da longa mirada de Guga sobre Tânia,
mirada que não aparece na foto, mas que está visceralmente
associada a ela. A dobra entre os olhos denota alguma preo-
cupação ou um ar de sofrimento, e o olhar de soslaio para a
câmara é de desconfiança. Separei aquela foto e mais outras
dez para ilustrar o diário que eu começaria a escrever e que
deveria retroceder aos meus últimos dias no Rio.

[14 de julho]

Liberté, égalité, intimité. Desenvolvemos, Laura e eu, um


clima de camaradagem, que nunca passará, como deve ser, da troca
de palavras amigas ou jocosas. Apertei suas mãos. Toquei seus
braços macios e sem pêlos e com isso reforcei a convicção de que
tem sangue indígena. Seu perfume me lembrou Joana. Perguntei
se podia fotografá-la. Escolhi o ângulo. Disparei a máquina vá-
16 JOÃO ALMINO

rias vezes. Claro, não pude ver o resultado, mas cada foto está
associada ao sorriso que imaginei em seu rosto, a palavras que
ouvi de sua boca, a seu cheiro e à delicadeza de suas mãos.
Pedi-lhe que localizasse uma foto em que uma calçada de en-
trequadra de Brasília imita as de Copacabana. Não posso impedir
que ela leia uma ou outra frase de meu Livro das emoções quando
me ajuda a intercalar as fotos. Mas devo redobrar a segurança em
relação a este diário, que preciso manter em segredo absoluto.
O peso da data me levou à Bastilha e à Revolução Francesa e
de lá, por vias travessas, a minha juventude, à única garrafa de
champagne que me restava e a uma velha canção de Serge
Gainsbourg.
— (Quero brindar à nossa amizade! — eu disse.
— À nossa amizade! — ela respondeu, fazendo tilintar sua
taça na minha, enquanto ouvíamos a canção de Gainsbourg:
Aux armes, et caetera...
Tremblez, tyrans et vous perfides
Popprobre de tous les partis
Tremblez! vos projets parricides
Vont enfin recevoir leurs prix!
«Aux armes, et caetera.

[14 de julho]

8. Emoção sem sentido

Teria de aguardar a segunda-feira para ligar para Aída.


Depois de tomar dois goles de uma das últimas garrafas de
O LIVRO DAS EMOÇÕES md

uísque no armário de Eduardo, pus a máquina fotográfica a


tiracolo e segui o caminho por entre as quadras até a igreji-
nha da 307. Era domingo, e assistia à missa mais gente do
que a igrejinha comportava. Velhos, jovens e crianças se aglo-
meravam do lado de fora. Tive escrúpulos de fotografar as
famílias de mendigos que se perfilavam em bom ângulo. Pre-
feria os manacás-da-serra, as quaresmeiras, que podiam com-
por o painel que eu concebera.
Segui para o Eixão, cheio de gente caminhando, corren-
do ou andando de bicicleta. Concebi um novo esporte: co-
lher sorrisos de mulheres bonitas. Eu sorria primeiro e me
sentia bem quando uma delas correspondia.
Passou um grupo de maratonistas. “Correr engorda”, pen-
sei, ao ver a quantidade de gordos correndo. Sobre o Eixo
Central, centenas de copos de plástico brilhavam ao sol.
Coloquei a máquina no chão. Pelo visor, parecia um mar sem
fim, com a textura das águas de E la nave va.
De volta, conectei o laptop e enviei um e-mail a Aída,
embora duvidasse que ela viesse a consultar seu endereço
eletrônico do trabalho num fim de semana.
Domingo à tarde, o que poderia ser pior do que me sen-
tar sozinho à mesa do Carpe Diem para tomar cerveja? Do
que caminhar sem destino e passar uma longa chuva de mar-
ço entre compras de supermercado e arrumação de negati-
vos? Dava-me conta de que, durante todos aqueles anos em
que fizera questão de viver sozinho, separado de Joana por
alguns andares, nunca estivera realmente sozinho. Enviei
outro e-mail, desta vez a Joana. Se ela me recebesse, eu vol-
taria correndo para o Rio.
48 JOÃO ALMINO

Fiz um breve levantamento das bebidas do armário da sala.


Enchi meio copo com uma aguardente dinamarquesa. Bebi,
à janela. O silêncio voltava à quadra. Repeti a dose da aguar-
dente. Os grilos agora cantavam que o mundo era belo, e valia
a pena viver, valia a pena amar. O dia se recolhia em seu
desmaio lento. Uma terceira dose, e aquela luz uniforme, sem
sombras, me emocionava. Naquelas horas, sempre me apai-
xonava pela paisagem. Tudo ficava bonito: o porteiro passan-
do com a vassoura na mão, um casalzinho desfilando pelo
centro da quadra, as crianças jogando bola no calçamento,
os bebedores de cerveja, ao longe, no bar da entrequadra...
Tudo aquilo devia acontecer ao mesmo tempo, junto com
folhas voando... Por isso usei a grande-angular. Para que a
emoção que me invadia se mostrasse na foto de número 8
acima, todo o espaço encolheu para caber no campo de vi-
são da câmara. Aquela é a foto de uma emoção de fim de
tarde, indefinível, sem sentido algum, composta pelo olhar
de um ébrio que se esquece na janela.

9. Copacabana em Brasília

Desci e segui a alameda, por entre as árvores. Ninguém


mais na comercial da 304. Do lado esquerdo, no meio da
quadra, um bar, talvez sorveteria, que apareceu desfocada na
foto que eu viria a fazer mais tarde. Lá bebi uma água-de-
coco. Na mesa ao fundo, para os lados do interior da quadra,
jovens comemoravam algum grande feito, ou talvez apenas
sua própria juventude: levantavam-se, abraçavam-se, grita-
vam ao mesmo tempo e riam, riam muito. A moça da mesa
O LIVRO DAS EMOÇÕES 49

em frente me encarou. “Isso não vai dar em nada”, pensei. Ia


insistir com o serviço de informações, queria o número de
telefone de Aída. Consultaria os e-mails, com sorte ela e Joana
teriam recebido minhas mensagens.
O garçom abriu um largo sorriso e se despediu de mim
como se eu fosse um velho amigo. Atravessei a rua e vim
vagarosamente examinando as imperfeições do chão e a feiúra
das vitrines. Diante de um manequim de seios à mostra fi-
quei a pensar que Aída já não seria a guria dos velhos tem-
pos. Talvez as rugas tivessem mudado a expressão de seu rosto.
Mas intuía que a beleza de seu corpo, moldado por muitos
anos de prática de balé, não tinha sido desfigurada pelo tem-
po nem pelo nascimento de seu filho há oito anos. Ão final
da entrequadra, quando preparava minha máquina fotográ-
fica diante de uma loja de produtos árabes, uma imagem mais
forte atraiu minha atenção.
Na foto que fiz, a de número 9, um cego está sentado à
beira da calçada de pedra portuguesa que imita os desenhos
de Copacabana. Sua cabeça está levemente reclinada, o olho
direito fechado, enquanto o esquerdo, de íris esbranquiçada,
deita o olhar morto e fixo sobre a água que a chuva acumu-
lara e na qual seu corpo se reflete. Ao fundo, a placa 104/
304. No chão, à sua esquerda, lê-se na tabuleta: “Ajude o
cego”. Há também a seu lado um pacote de canetas e adesi-
vos. Devia ficar exausto e sentir-se abandonado ao final do
dia. O homem bom que havia dentro de mim fez menção de
sacar alguma nota da carteira e trocá-la por um daqueles
adesivos. Mas o fotógrafo cruelmente controlou a cena, man-
dou o homem bom silenciar qualquer ruído e, aproveitando-
50 JOÃO ALMINO

se de sua invisibilidade, aproximou-se para buscar o melhor


ângulo. A cegueira do pobre coitado me ajudou a perder o
escrúpulo que de manhã me havia impedido de fotografar os
mendigos. Eu me emocionava e me indignava com o que via,
mas a emoção maior era a de retratar aquela cena, a de ad-
quirir a capacidade de mostrá-la depois a outros, de repro-
duzi-la, de guardá-la, de me apropriar dela para sempre. Meu
respeito pela fotografia era maior do que minha compaixão
por um miserável. Frio, calculista, me senti como o fotógrafo
que, entre impedir uma morte e tirar uma foto do assassina-
to, prefere a foto. A oportunidade, que faz o homem e faz o
ladrão, também faz o fotógrafo e sua ética.

[15 de julho]

10. Foto de uma ausência

A lembrança de Antonieta afastou Aída de meu pensamen-


to e me animou como nunca desde que eu chegara a Brasília.
Era por ela, e não por Aída, que sentia mais tesão naquela ci-
dade. Era ela, mais que ninguém, que poderia me fazer esque-
cer de Joana. Era uma nova Joana e uma Joana nova, de corpo
ainda mais vistoso. Uma Joana negra e desportiva — uma bem-
sucedida jogadora de basquete, que, segundo me haviam con-
tado, recusara um convite para posar para a Playboy. Antonieta
exagerava nas palavras tanto quanto na pintura e nas roupas,
mas era dos exageros dela que eu estava precisando. Há um
ano eu saíra com ela no Rio.
O LIVRO DAS EMOÇÕES 51

— Homem é diferente, gosta de sexo casual, até com uma


desconhecida — eu lhe dissera, à mesa do bar.
— Com mulher pode pintar o mesmo lance — ela me
respondera.
Ela tomaria o vôo para Brasília em poucas horas, e ha-
víamos prometido que voltaríamos a nos ver.
Ao telefone, já de volta ao apartamento, notei um tremi-
do na voz de Antonieta. Estava recém-casada ou com na-
morado firme, não entendi bem. Quem quer que fosse, estava
viajando e ia chegar dentro de uma semana, isso ela me dis-
sera. E por que me dissera? Não havia dúvida. Brasília não
me decepcionava. Em companhia daquele corpo negro e tor-
neado à perfeição, eu começaria minha longa exploração do
setor de motéis sul, na estrada de Belo Horizonte.
Já me vi namorando Antonieta e tendo de me justificar
com mamãe e Antônio. “Não é que seja preconceituosa, meu
filho”, ela diria, para logo acrescentar as possíveis complica-
ções e os problemas práticos de um namoro com uma negra.
Que fosse uma noite só, não importava, haja vista o exem-
plo de Ana Kaufman. Com ela tivera uma noite que nunca
acabara. Pensando bem, quase todas as mulheres de uma só
noite permaneciam. Contei. Eram muitas. Mas Ana perma-
necia de maneira especial. Poderia, quem sabe, me rea-
proximar dela. Não importava que fosse seis anos mais velha
do que eu. Estava casada com um otário, aquele casamento
não podia durar.
Um detalhe me incomodava: Berenice agora era empre-
gada de Ana. Em Brasília estava aquele filho meu, filho de
Berenice. Somente o conhecia pelo instantâneo do Escadinha.
E) JOÃO ALMINO

Pensei naqueles romances em que o personagem central, em


geral o próprio narrador, de uma hora para outra e em decor-
rência de uma iluminação, de um acidente trágico ou por uma
razão qualquer decide procurar o pai, a mãe, o assassino do pai
ou da mãe, o filho ou a filha, o marido ou a mulher desapare-
cidos, ou alguém que represente a promessa de amor... Curio-
sidade não me faltava. Mais cedo ou mais tarde eu teria de
conhecer Pezão — assim o chamavam. Era como se já tivesse
um encontro marcado com ele e apenas desconhecesse a data.
O que faria depois que deixasse a prisão? Por que eu não fazia
meu próprio ensaio fotográfico sobre a prisão da Papuda? Se
Escadinha tivera autorização para fotografar todos os presos,
por que eu não poderia fotografar um só, Pezão? Mas fotogra-
far para quê, se eu não tinha interesse em me identificar, em
reconhecê-lo como filho e em cuidar dele?
Como previsto, no sábado fui ao almoço oferecido por
Antônio. Ele morava no Lago Norte, numa casa recuada, toda
branca e de um só piso. Fazia-se de contente com sua vidinha.
Casara-se com uma mulher charmosa e temperamental, que
mandava nele e por qualquer coisa explodia.
Verônica gostava de cinema, como eu. Com as amigas, se
mostrava divertida. Com Antônio, enfezada. Ele sofria em
silêncio e talvez achasse que, para um homem feio e sem gra-
ça como ele, já era a sorte grande ter uma mulher a seu lado,
qualquer uma. E o que não dizer de uma mais jovem do que
ele? Podia ser que estivessem juntos por causa dos filhos ou
simplesmente por inércia.
Mais alta do que Antônio, morena de uma mistura bem
brasileira, Verônica se vestia como se tivesse metade de seus
O LIVRO DAS EMOÇÕES 53

trinta e oito anos. Seus olhos frívolos e nervosos, franzidos pela


miopia e ligeiramente vesgos, sorriam para mim. Ela fez ques-
tão de me mostrar o quarto de hóspedes, onde eu seria sempre
bem-vindo, e os quartos dos filhos, o de minha sobrinha, bem
arrumado e coberto de fotografias na parede, e o de meu so-
brinho, com roupas e papéis jogados no chão. Ao fundo do
corredor, o quarto do casal. Notei os espelhos compridos do
banheiro amplo, um na porta e outro dentro, diante dos quais
Verônica certamente gostava de se arrumar vendo-se de cor-
po inteiro. No terraço, duas redes de palha estavam pendura-
das nos tornos, prontas para serem armadas. No terreno dos
fundos, margeado por uma cerca viva, havia uma churrasqueira
e uma piscina pequena em forma de ameba.
Verônica me mostrou uma matéria do Correio Braziliense
sobre a exposição do Escadinha no CCBB. Uma página in-
teira, com reproduções de fotos e um texto intitulado “o êxi-
to de um fotógrafo”.
— Como você é fotógrafo, achei que podia se interessar
— me disse.
O trabalho do Escadinha não tinha a consistência, a qua-
lidade estética nem o acabamento técnico do meu. Eu con-
fiava que o tempo, juiz paciente e infalível, ainda nos colocasse
em nossos justos lugares.
A feijoada estava boa e a caipirinha, ainda melhor. En-
quanto ouvia as reclamações de Verônica, tomei quatro ou
cinco.
— Me desculpe pela feijoada, Cadu. Não ficou como eu
queria.
— Tu exageras — disse Antônio.
54 JOÃO ALMINO

— Pelos meus erros, assumo a minha culpa. Já aquela


desarrumação da sala e dos quartos dos meninos que você
viu, Cadu, e também esta grama crescida são culpa do Antô-
nio. Por mim, eu contratava mais uma arrumadeira e um jar-
dineiro, e o problema estava resolvido. Mas o Antônio é
pão-duro...
A lenga-lenga e as caipirinhas me deram sono. Verônica
armou uma rede no terraço, onde dormi até anoitecer. Depois
se mostrou decepcionada que eu não quisesse acompanhá-
los ao Iate Clube no dia seguinte.
Ainda da casa de Antônio, liguei para Antonieta. Ela não
quis sair naquela noite. Sugeriu que eu viesse encontrá-la no
Parque Olhos d'Água, onde ela caminhava todos os dias.
— Depois de amanhã bem cedo, às 71h30.
Contei a Antônio meus planos de namorar uma negra.
Sua reação foi mais moderada do que eu esperava.
— Isso não dá certo — sentenciou, lacônico.
Depois quis saber se eu ia me estabelecer definitivamen-
te em Brasília. Deu-me dicas de espaços para alugar, me falou
dos incentivos para abrir uma microempresa e me pergun-
tou se contribuo para alguma previdência privada.
— Viver é também trabalhar e construir alguma coisa,
mano — afirmou.
No dia seguinte, domingo, fui ao Parque Olhos d'Água
para ensaiar meu encontro com Antonieta. O céu estava
seminublado. Escurecia, e logo o sol iluminava o parque, o
chão. Com a máquina fotográfica em punho, tomei a vereda
interior De dentro do cimento que brilhava com o sol, as
árvores se erguiam como uma floresta de cobras. Seria um
bom lugar para segurar as mãos de Antonieta, lhe dizer que
O LIVRO DAS EMOÇÕES 55

nunca conhecera mulher mais bela, que eu a associava ao


Rio, passara meses e meses pensando nela, a lembrança dela
me surpreendia de madrugada, numa ida à praia ou no meio
de um filme. Mais adiante, um banco. Registrei, com a má-
quina fotográfica, um clima interior e misterioso, enquadran-
do somente uma pontinha daquele banco, com um jogo de
sombras e luz que se repetia no fundo de cascalho. Eu a convi-
daria para se sentar. Talvez ela não aceitasse, continuaríamos
a caminhada. Se as fotos ficassem boas, poderiam compor a
quarta parede de minha exposição, uma parede inteira dedicada
a Antonieta. Digo “a quarta” porque as outras já estavam ocu-
padas: uma com triângulos à moda de Volpi, outra, intimista,
com Joana; uma terceira com o painel de flores.
Logo a vegetação era mais densa, o caminho escurecia,
o sol filtrado pelas folhas, nenhum caminhante, “cuidado
ao atravessar este trecho”, dizia a placa, talvez porque fosse
um trecho abandonado, sem viv'alma, podíamos ser assal-
tados... Ali apertaria mais fortemente as mãos de Antonieta,
a puxaria em minha direção, a abraçaria de corpo inteiro,
sentindo seus seios espremerem-se sobre meu corpo. Fecha-
ria os olhos e nenhum beijo poderia ser mais concreto, ne-
nhum lábio mais sensível, peles apaixonadas uma pela outra,
seu sexo também beijando o meu. Olhando para o céu, vi a
formação das nuvens em desenho nítido, camadas sobre
camadas. Era o que poderia então fotografar para registrar
aquele abraço imaginário.
Segui caminhando, subi a pequena colina, talvez ali fosse
o melhor ponto de encontro. Viam-se outras colinas, cober-
tas de vegetação. Era como se aquela caminhada ocorresse
numa estradinha rural que nos levasse ao banco alto erústi-
56 JOÃO ALMINO

co à nossa frente. Nele nos sentaríamos, eu alisaria as coxas


de Antonieta, e ela sorriria para mim. Mais uma foto, a do
banco alto em primeiro plano, com um fundo de colinas pin-
tadas com várias colorações de verde.
Logo, no laguinho, o do olho d'água, sapos coaxavam. Do
outro lado, uma pequena ponte, pessoas correndo, se exerci-
tando. Não sabia se ela era romântica, se apreciaria a paisa-
gem... De Antonieta, só conhecia a expressão do rosto e as
formas do corpo. À exceção daquela tarde no Rio, nunca ha-
víamos conversado mais do que cinco minutos. Mas se ela se
detivesse na paisagem, eu fingiria que também gostava de apre-
ciar aquela vista. Ficaria admirando seus lábios e seios bicudos,
sua tez negra, seu sorriso largo, mostrando dentes perfeitos.
Na ausência dos seios, da tez negra e do sorriso largo de
Antonieta, fotografei a ponte, a água sob ela, algumas pe-
dras e o verde ao fundo, como numa paisagem japonesa.
De noite, recebi um e-mail de Antonieta. Ela achava
melhor eu não vir. Um brilho trêmulo e raivoso de uma luz
de poste longínquo piscou sobre as folhas da palmeira ali em
frente. Eu não desistiria, talvez ela mudasse de idéia. Liguei
para ela. Foi atenciosa:
— Sabe o que é? Não gosto de fazer nada escondido.
— Escondido por quê? E se eu fosse ao parque e nos
encontrássemos por acaso?
e que não sei o que você quer de mim, entende? Para
mim tudo é muito lento. Precisa ser construído aos poucos.
À gente mal se conhece, não é?
— “Tudo tem um começo.
— Agora não dá, Cadu. Um dia lhe explico.
Revelei a foto da paisagem japonesa pensando em mos-
O LIVRO DAS EMOÇÕES 57

trar a Antonieta a carga de desejo contida naquela imagem.


Foto de uma ausência, a de número 19, reproduzida acima.
Quem não sente a ausência de Antonieta naquela foto nem
ouve as batidas de meu coração crê tratar-se de uma plácida
paisagem de cartão-postal.

[15 de julho, à tarde]

11. Quincas anunciando o perigo

Apesar da recusa de Antonieta, seguí para o Parque Olhos


d'Água na manhã seguinte e na hora combinada, ainda com
a esperança de encontrá-la. Após duas voltas completas, em
que todos os locais das fotos do dia anterior haviam perdido
o encanto, me deparei com Tânia acompanhada de Quincas
Borba. Bastava uma mirada rápida para perceber os bicos de
seus seios eriçando-se de prazer Ou seria só de frio? Não havia
marcas de calcinha no seu collant preto e brilhoso, supe-
raderente ao corpo. Agradeci o almoço e elogiei cada deta-
lhe do apartamento, do tapete persa ao jarro belga.
— Você não quer vir com a gente à exposição do Es-
cadinha?
— Não sei. Estes dias ando ocupado. Tenho de adiantar a
pesquisa sobre Paulo Antônio que Eduardo me encomendou...
Seria eu capaz de trair um amigo? pensava, andando ao
lado de Tânia. Ela parecia gostar de Paulo Marcos, ele con-
fiava em mim... Desviava meu olhar de Tânia para a paisa-
gem e, por alguns segundos, meu pensamento era levado para
58 JOÃO ALMINO

uma zona de medo e prudência povoada por diabos apontan-


do seus tridentes para mim. Mas eram só alguns segundos. A
culpa era dela, por ser tão graciosa... E por que apertava mi-
nhas mãos enquanto sorria de contente?
Quincas começou a latir, censurando minhas intenções.
Depois se calou. Parecia agora consentir. Segurei firme as
mãos de Tânia, puxei-a em minha direção, deslizei as mãos
por suas costas e baixei-as por suas curvas, como para verifi-
car se de fato não vestia calcinha. Tânia riu e retorceu o cor-
po, como se sentisse cócegas.
— O que você pensa que está fazendo?
Eu não pensava nada, a menos que confusão de idéias seja
pensamento. Queria e não queria. Quincas sentiu o perigo e
latiu novamente. Fiquei aliviado. Aproveitei para fotografá-
lo. É a foto de número 11. Levanta a cabeça em direção à
câmara e mostra os dentes como uma fera. Decidi deixar as
coisas naquele ponto, me despedindo de Tânia com beijinhos
no rosto. O sábio cão me salvara de uma situação constran-
gedora, que teria atrapalhado para sempre minha amizade
com Paulo Marcos.

[15 de julho, tarde da noite]

12. Aída

Finalmente consegui falar com Aída no Ministério e a


convidei para almoçar no Bar Brasília. Estava com pouco
dinheiro, mas Aída na certa dividiria a conta comigo, como
O LIVRO DAS EMOÇÕES 520)

fizera na única vez em que almoçáramos juntos, há muitos


anos, num restaurante da Asa Norte. Ela era então bem ca-
sada, talvez me desejasse tanto quanto eu a ela, mas nada
jamais acontecera entre nós que fosse além de uma troca de
olhares lânguidos e palavras de afeto.
Passei o resto da manhã separando fotos de Ana e Joana.
Mandei outro e-mail para Joana: “Por que não vens me visitar?
Não é pedir muito. Passa alguns dias aqui comigo, sem compro-
misso.” Depois segui para o bar. Estava lotado, gente falando alto,
grupos de solteironas, de tomadores de cerveja, uma ou outra
jovem. Será que Aída era aquela senhora ao fundo, de cabelos
brancos e pele enrugada como as calçadas de Brasília?
Vi-me como Bertrand Morane, o personagem do filme de
Truffaut O homem que amava as mulheres, enquanto aprecia-
va meu chope e a linha de mulheres que me dava as costas
no buffet self service, suspensas sobre plataformas e sapatos
altos. Meus olhos penetravam por baixo de suas roupas para
examinar seus corpos nos mínimos detalhes e a variedade do
tamanho, forma, tecido e cor das calcinhas. Havia me torna-
do um especialista no assunto. Reparei numa tanga mínima
e branca por baixo de uma calça comprida também branca.
O arqueado das nádegas podia ser de Aída.
O tempo passa rápido quando a cabeça está distraída,
relaxada e tranquila. Mas quase pára quando observamos
impacientemente o próprio passar do tempo, medindo os
minutos com os olhos fixados no relógio. Aqueles minutos
equivaliam a horas de espera.
Eis que Aída me surpreendeu, mais jovem e em melhor
forma do que eu imaginara. Mantinha a postura de bailari-
60 JOÃO ALMINO

na. Não parava de sorrir, enquanto me contava a história de


sua vida em capítulos curtos. Queria saber se eu tinha na-
morada, noiva, se estava casado. Não podia aparentar a Aída
que era um perdedor, que a procurava porque Joana me aban-
donara e eu andava à deriva, não havendo conseguido se-
quer convencer Antonieta a caminhar a meu lado. Não, ao
contrário, precisava exibir uma caça. Falei de Marcela. Não,
não era nada sério, disse. Sim, uma transa, não podia cha-
mar de namoro. “Ficava” com ela, como diziam os jovens.
Aída estava divorciada e seu filho de oito anos se chama-
va Maurício. Tinha três irmãs, todas morando em Goiânia.
Falei sobre Guga e Antônio, sobre minha amizade com Tã-
nia e Paulo Marcos e finalmente sobre Antonieta.
— Antonieta Lobo? — perguntou.
— Ela mesma.
— Muito minha amiga. A gente sempre se vê.
Enquanto falava, Aída deixou que eu segurasse suas mãos
e as acariciasse.
Sugeri que seguíssemos para um motel.
— Você continua o mesmo, não tem jeito — ela disse,
rindo. — Não, não estou com cabeça para isso. Mas quero
voltar a te ver.
Eu misturava aquele rosto austero ao rosto do passado,
encaixava aquele corpo na imagem que guardava dele e, as-
sim, Aída continuava atraente, mesmo com os quilos a mais
e um filho chamado Maurício. Fiz naquele instante a foto
número 12, porque nossos olhares se cruzaram com ternura
e intensidade. Há doçura, bondade e paciência na expressão
de Aída. A luz natural da janela bate em cheio sobre seu ros-
O LIVRO DAS EMOÇÕES 61

to redondo e muito branco, de quem não toma sol, algumas


rugas visíveis sobre a testa, os cabelos claros caídos sobre os
ombros. O brilho de seus olhos é puro e transparente. Entre
os dedos de sua mão esquerda, em primeiro plano, a fumaça
sobe do cigarro. Somente depois da foto revelada notei seu
sorriso manchado pela leve marca de nicotina entre os den-
tes. Era um sorriso de quem me admirava, tanto quanto eu a
admirava. E a admiração recíproca era um bom começo para
o amor. Eis a prova de que a fotografia é capaz de armazenar
diálogos inteiros e momentos únicos que nos são caros.

17 de julho

Tento me obrigar a escrever todos os dias, mas ontem me fal-


tou ânimo. A secura do ar já vinha me incomodando. Dormindo
pouco e me alimentando mal, peguei um resfriado. Devo acres-
centar que O livro das emoções começou a me dar preocupa-
ção. Imagino que seja isto que os escritores chamam de bloqueio;
um bloqueio que se instalou porque terei ainda de escrever sobre
Eduardo Kaufman.
Maurício esteve aqui hoje. Vendo minhas fotos, acha que tive
uma infinidade de namoradas. Chegou mesmo a me perguntar de
chofre:
— Você transou com todas essas mulheres?
— Somente três ou quatro tiveram importância na minha vida
— respondi, com minha aritmética duvidosa, e quase emendei q
resposta para acrescentar duas ou três. — E a mais importante
de todas foi tua mãe.
62 JOÃO ALMINO

Não mostrei meus escritos a Maurício. Por mais aberto que ele
seja e por mais que goste de mim, não creio que viesse a apreciar o
que escrevi até agora sobre sua mãe. Eu não precisaria realçar tan-
to meu vício inveterado de voyeur, que nem a cegueira corrigiu. Talvez
na revisão eu vista mais completamente as mulheres naquele bar,
tape qualquer transparência com tecidos mais grossos, cores mais
escuras ou roupas íntimas menos minúsculas, ou então desvie a vista
para a luminária antiga, as pinturas na parede ou para os bancos
duros de madeira. De meu reencontro com Aída não esqueci se-
quer os detalhes mais mínimos e secundários.
Depois que ele saiu, fiquei refletindo sobre o desejo e a sua
aritmética, vistos da perspectiva de um velho. Tenho quase o do-
bro da idade de Humbert Humbert; em compensação, Laura é
mais do que duas vezes mais velha que Lolita, e por isso, se algo
acontecesse entre nós, não causaríamos o mesmo escândalo que
esses personagens de Nabokov. E haveria para mim a vantagem
de rejuvenescer, pois, como imagino que conste dos melhores ma-
nuais de medicina, um amor com uma jovem é como um tônico
da vida. Com Laura a meu lado eu viveria pelo menos mais vinte
anos; e quanto mais a gente vive, as idades que antes pareciam
distantes se aproximam. Se hoje Laura tem apenas pouco mais de
um terço de minha idade, em vinte anos já terá metade.
Encontrei um sentido muito concreto para a expressão “ou oito
ou oitenta”. É certo que Laura não tem oito anos, nem Joana atin-
giu os oitenta. Somemos oito e oitenta, façamos a média e devo
me contentar em ficar lá no passado, com Aída e seus quarenta e
quatro anos.
O LIVRO DAS EMOÇÕES 63

18 de julho

Acabo de dar duas voltas na quadra com Marcela. Sinto-me


um pouco melhor do resfriado e tento reaver minhas rotinas.

[18 de julho]

13. Ana em seu esplendor

Naqueles dias Eduardo me ligou. Não me disse o que fa-


zia no Rio, mas adivinhei que estivesse com Joana.
— Preciso da seleção das fotos de Paulo Antônio — cobrou.
— Não ficou pronta. Estes dias me dediquei às de Ana e
de outras amigas — mencionei Ana de propósito. — Mas
prometo ir ao Memorial Paulo Antônio. E vou pesquisar meu
arquivo pessoal.
Insistiu que queria uma amostra para dali a uma semana,
quando chegaria para a homenagem a Paulo Antônio no Jar-
dim da Salvação.
Rearrumei as garrafas no armário da sala, para disfarçar
o desfalque nas bebidas. Os espaços vazios das prateleiras
haviam crescido na exata proporção de minhas bebedeiras.
Daí a uma semana, acordei com Eduardo Kaufman inva-
dindo meu quarto. Claro, o apartamento era dele; nem por
isso deixava de ser um intruso, chegando sem avisar. Com
relutância aceitei seu convite para o almoço no Piantella.
Depois de acenar para vários dos frequentadores, me infor-
64 JOÃO ALMINO

mou que aquele careca lá ao fundo era o Deputado Sicrano,


um mau-caráter e seu arquiinimigo político.
— Corrupto? — Perguntei.
— Isso não sei. Mas deve ser. Quem não seria, se tivesse
certeza de não ser punido? Esses caras têm foro privilegiado.
Só podem ser julgados pelo Supremo Tribunal Federal.
Este aqui atrás era o Ministro da Justiça; aquele, o Sena-
dor Fulano; a morena que cochichava nos ouvidos dele, uma
colunista social; o que estava de pé fumando charuto, um
comentarista político muito conhecido... Com minha má-
quina a tiracolo e roupa batida, eu contrastava com os de-
mais e especialmente com Eduardo, vestido com seu terno
Armani, pastinha a seus pés.
Pelo janelão de vitrais horizontais ao alto, uma luz ama-
rela se projetava por paredes igualmente amarelas. Um frio
de ar-condicionado descia por minhas costas. Ambos pedi-
mos cerveja e filet chateaubriand.
— Eo trabalho, está pronto?
— Não. À organização das fotos de Ana e de Joana to-
mou mais tempo do que previ.
— Vai usar as fotos de Ana na sua exposição?
— Não decidi ainda o que fazer com elas. Queres comprar?
— Ou você faz logo o levantamento que lhe pedi, ou
tenho de contratar outro fotógrafo, entende? Pode ficar no
apartamento pelo tempo que quiser, desde que me prove a
cada semana que o projeto está caminhando. Marcela já pro-
duziu alguns textos. Me disse que tentou lhe mostrar...
Marcela, que aceitara ser modelo para meu projeto de
painéis de triângulos, me achou pouco profissional quando,
O LIVRO DAS EMOÇÕES 65

estando nua diante de mim, tentei beijá-la. Expliquei-lhe o


significado daquela série fotográfica, para a qual eu não con-
tratava modelos, porque, embora as fotos mostrassem ape-
nas um recorte anônimo do corpo feminino, era fundamental
que houvesse uma história por trás de cada uma delas.
— Não quero fazer parte de sua coleção de mulheres —
me disse, irritada.
Em resumo, eu enjoara de Marcela e por isso não respon-
dera aos seus telefonemas.
— Você vende as fotos de Ana com os negativos?
A razão era prudente, paciente, calma, mansa, como a
aceitação do convite para trabalhar naquele projeto com
Eduardo Kaufman. A loucura, a desrazão, eram intensos,
apaixonados, violentos. Falavam mais alto, como o ódio que
eu sentia dele. Queria ter coragem para fazer dele picadinho;
mandá-lo para o espaço. Ou pelo menos para lhe perguntar
sobre Joana. Três copos de cerveja não haviam sido suficien-
tes para isso. O princípio de realidade finalmente destilou
daquela raiva apenas um preço exorbitante pelas fotos de
Ana.
— Compro — Eduardo disse, sem se impressionar pelo
preço. — Mas lamento que nosso projeto esteja patinando.
Pelo menos montou seu laboratório? Não quero chegar ao
extremo de exigir que me mostre as faturas provando que
empregou mesmo o dinheiro nos equipamentos...
Antes de entregar as fotos de Ana a Eduardo, faria cópias.
Não havia nus. Eram fotos bem comportadas, em preto-e-
branco, a sensualidade e melancolia aparentes no olhar e na
expressão do rosto. Como se vê na de número 13, reproduzida
66 JOÃO ALMINO

acima, Ana tinha uma beleza nada convencional, que se


impunha com firmeza nos seus olhos repuxados, quase orien-
tais, lábios grossos, cabelos negros e nariz que não direi gran-
de, para não dar a impressão de desproporção, quando tudo
ali parecia feito na medida certa para exprimir sua inteligên-
cia e personalidade. Está reclinada no sofá de sua casa, na
posição de uma odalisca de Ingres, as curvas de seu corpo alto
e moreno realçadas pelo vestido preto.

[18 de julho, noite]

14. A harmonia, por um triz

Aída queria ver um filme sobre bandidos nos morros ca-


riocas, o submundo do crime, do tráfico de drogas, que pas-
sava na Academia de Tênis. Citei Guga:
— Isso é uma exaltação demagógica da violência e do
crime. Substituem as narrativas por uma catástrofe ou por
uma cena hiperviolenta.
— É a realidade — Aída argumentou. — Ás coisas são
assim, e alguém precisa mostrar.
— É. A realidade é a realidade — eu disse, com gotas de
ironia não percebidas por ela, repetindo a frase que Eduardo
Kaufman pronunciara na reunião um mês atrás, e emendei:
— E não é realista o sonho? O conforto dos ricos? E não será
real a minha vida, de passar o dia sem fazer nada, sem viver
uma única catástrofe, sem ser assaltado, sem encontrar um
bandido pela frente, sem conhecer a criminalidade?
O LIVRO DAS EMOÇÕES 67

— Mas nisso não há narrativa. Não daria um filme.


— Para mim, ainda mais real do que a violência é viver
com medo da violência, sem me enfrentar jamais com o pe-
trigo. O cinema não precisa me convencer de que as notícias
de jornal estão certas. Não preciso nem ler jornal.
— Se a violência não lhe parece real...
— Talvez seja só uma questão de probabilidade. O pro-
vável não acontece comigo, e o improvável acaba aconte-
cendo. Posso dormir ao relento em plena rodoviária ou deixar
a porta do meu apartamento aberta e não vou ser assaltado.
Posso me plantar na frente de um caixa automático esfregan-
do meu cartão de crédito no nariz do ladrão e não vou ser
vítima de sequestro relâmpago.
— Não esteja tão certo disso, meu caro. O que de mais
improvável aconteceu com você?
— “Tu teres surgido na minha vida.
— Estava para lhe dizer uma coisa: você é fotógrafo, cara;
e a fotografia é a única arte que precisa de um objeto concre-
to, real, na sua frente. Mais do que o cinema. A essência da
fotografia é representar a realidade, você sabe disso.
— Uma realidade instantânea, passageira e muitas ve-
zes mentirosa.
— O fato é que se pode duvidar de uma história, de uma
pintura, mas ninguém duvida de uma foto. Se ela mostra algu-
ma coisa é que aquela coisa estava ali, era real, pelo menos
naquele momento. E que foto você acha que seria mais realis-
ta, uma que você faça da Esplanada dos Ministérios, da Praça
dos Três Poderes ou de uma sessão no Congresso Nacional, ou
outra, retratando a Vila Paulo Antônio? Se é questão de pro-
68 JOÃO ALMINO

babilidade, a probabilidade maior de encontrar a miséria ea


violência está lá, naquela Vila, e não aqui no Plano Piloto. E lá
que você vai sentir o drama do povo. Por trás de cada foto,
uma tragédia. Faça isso, Cadu, vá um dia fotografar a Vila Paulo
Antônio, em vez de perder tempo com seus nus.
— É justamente o que vou ter de fazer para Eduardo
Kaufman.
— Ou pelo menos faça um trabalho realista. Não sei se
você viu uma exposição de um artista famoso, um pintor que
agora faz fotografia... Como é mesmo o nome? Ele chegou a
correr risco se enfrentando com bandidos, depois fez uma série
de fotos na Papuda...
Preferi ignorar a referência ao Escadinha. Não era só co-
migo que o provável não acontecia e o improvável acabava
acontecendo. Aquele êxito do Escadinha era improvável. O
mais provável deveria ser que a qualidade fosse reconhecida
e a banalidade relegada ao esquecimento. Ora, qualidade não
faltava a meu trabalho, e banalidade era o que sobrava no do
Escadinha. Algum curador cego apreciara seu trabalho me-
díocre e lhe dera notoriedade. Que me importava que o Es-
cadinha se arriscasse tirando suas fotos, se o resultado era um
produto comercial de baixa qualidade, com embalagem de
mercado, como um sabonete? Onde estavam os críticos que
não percebiam seu engodo nem meu gênio?
Pensei em confessar a Aída que aquela realidade retrata-
da pelo Escadinha estava mais próxima de mim do que dele,
pois um filho meu estava preso na Papuda; em lhe demons-
trar quão mal retratado Pezão fora pelo Escadinha, que não
conseguira sequer interessá-lo em ser fotografado. Que bo-
O LIVRO DAS EMOÇÕES 69

bagem, uma foto em que o fotografado tentava sair da cena!


Quão melhor eu faria se o retratasse!
— Você não conhece nem as cidades-satélites, Cadu.
— Confesso que cheguei a Taguatinga, mas não cruzei a
fronteira da Ceilândia.
— Isso é imperdoável, Cadu. Vamos juntos a Samambaia,
à Vila Paulo Antônio e a outras cidades.
Passava Na estrada da vida, de Fellini, mesclando cruel-
dade e poesia. Foi a salvação. Seguimos para a Academia no
carro de Aída, um Golf azul com vários anos de uso. A histó-
ria de Gelsomina vendida por sua mãe paupérrima a Zampano
comoveu Aída e, assim, pude abraçá-la, como se a proteges-
se de um monstro.
À saída, como chovia, nos sentamos para um café numa
das mesinhas com vista para o lago e encontramos Verônica
e Antônio. De sandálias de salto alto, ela vestia uma saia
branca e curta e uma blusa de alça com babados. Gostei dos
brincos de prata trançada, que balançavam com sua cabeça
irrequieta. Tinham visto o filme violento que Aída inicial-
mente me propusera.
— São os novos românticos — critiquei. — Ainda vão
ser capazes de mostrar o massacre mais atroz e dissecar os
cadáveres em praça pública.
— Isso já foi feito — afirmou Verônica.
— Haverá sempre mais, cortar a carne em pedaços me-
nores, com a vítima ainda viva, sendo ultrajada e sofrendo as
dores mais terríveis antes de morrer. Com o público presen-
te, claro, como na arena romana.
70 JOÃO ALMINO

— Isso também já foi feito, você é que está por fora —


disse Verônica, com riso nos olhos.
Comparamos as misérias e os realismos dos dois filmes e,
para chegarmos mais rapidamente a um acordo, não contes-
tei a conclusão de Antônio:
— A realidade é a realidade.
Depois Aída quis passar por casa para buscar Maurício.
Todos os fins de semana ele saía com o pai e, àquela altura, já
devia estar de volta.
— Como foi hoje com seu pai? — Aída perguntou a
Maurício, quando chegamos.
— Não quero mais ir lá.
— Ele exige a presença de Maurício porque ganhou esse
direito na justiça, mas não dá atenção ao menino. Está sem-
pre ocupado. Esta foi a principal razão de nossa separação. É
autocentrado; só pensa nele, em trabalho, mesmo nos fins
de semana. Até Maurício está perdendo a paciência, não é,
meu filho?
— É um chato — Maurício respondeu.
— Ainda assim é teu pai — eu lhe disse, pensando no
meu filho, que certamente fazia de mim uma idéia muito pior
do que aquela: a de um pai que fugira, não o assumira e nun-
ca o procurara.
Maurício fechou a cara. Eu teria agora de me desdobrar
para recuperar sua simpatia. Passamos pela 104 para buscar
minha bolsa de fotografia, que eu gostava de sempre trazer a
tiracolo, e daí seguimos os três para um restaurante ali perto,
na ponta de uma entrequadra do começo da Asa Sul, um lugar
amplo e aberto. Não havia como não se tornar íntimo da mesa
O LIVRO DAS EMOÇÕES fa!

vizinha, ouvir as conversas gritadas e os assobios para os gar-


çons. Entramos na fila do buffet, homens barrigudos e de
bermuda, mulheres de roupas apertadas, baixas, altas, ma-
gras, gordas, gordíssimas, bundonas rendondonas, bundinhas
redondinhas ou achatadas, grupos de mulheres, de homens,
casais mais velhos, casaizinhos... Sentamo-nos numa mesa
para quatro, do lado de fora.
— Parecemos um casal perfeito, com um filho lindo —
eu disse.
Maurício não se sensibilizou com o elogio. Continuava sério
e não queria conversa comigo. Um grupo de coreanos nos abor-
dou para vender bugigangas, relógios, bichinhos de pelúcia au-
tomáticos, despertadores, rádios e canetas. Gastei alguns de meus
poucos trocados com um brinquedo para ele: um pintinho pe-
ludo e bem amarelo, que corria ao se apertar um botão.
Aída me fez um convite inesperado. Queria que a acom-
panhasse à igreja no domingo. Revelava-se uma católica com
simpatia pelos evangélicos e que acreditava em milagres.
— O mais próximo que estive de religião foi ter fotogra-
fado Íris no Jardim da Salvação — respondi.
Aída demonstrou interesse genuíno pelo Jardim e se sur-
preendeu que eu conhecesse pessoalmente a famosa profetisa.
— Ela andou desaparecida durante alguns anos. Isso só
fez aguçar a fé de seus seguidores. Já está muito velhinha —
expliquei.
A eficiência dos garçons era medida pela velocidade com
que traziam outro chope mal o copo se esvaziava. O meu se
esvaziou cinco ou seis vezes, e Maurício começou a brincar com
os descansos de cortiça que acompanhavam cada chope e onde
vinha estampada em vermelho a marca de uma cerveja.
zo JOÃO ALMINO

Preparei a máquina fotográfica, à espreita de um gesto


espontâneo de Aída ou de Maurício. Eu gostaria de aparecer
na fotografia, mas não podia, pois queria ao mesmo tempo
estar de trás da câmara, ser o olho a flagrar o esboço de feli-
cidade que se tornava visível naquele ambiente disforme.
Tentei encontrar um ângulo que mostrasse as árvores ao fun-
do. As flores dos manacás-da-serra começavam a trocar sua
cor rosa pelo roxo, lado a lado com os tons de violeta estam-
pados nas quaresmeiras. A claridade uniforme do sol já pos-
to iluminava à perfeição os rostos de Aída e de Maurício.
Curvei-me para bater a foto. Maurício perfilou-se, fez pose.
Não, melhor deixar a foto para depois. Aguardei um momento
de distração, me curvei novamente. Daquela vez Aída se vi-
rava para o lado, acenava para o garçom, e a luz já não era a
mesma, havia escurecido. Uma foto perdida, quase-foto, que
por um triz deixou de captar a harmonia daquela tarde e que,
por engano, guardei em meus arquivos. É a de número 14,
que se vê acima.

[20 de julho, primeiras horas da madrugada]

15. Maurício aos oito anos

Ensinei um truque a Maurício: com uma batida rápida


na ponta dos descansos de cortiça, eu os invertia e segurava-
os no ar. Maurício aprendeu a brincadeira rapidamente e
passou a fazê-la melhor do que eu. Indaguei-lhe sobre a es-
cola, os professores, os amigos, sobre Brasília... Perguntei tam-
O LIVRO DAS EMOÇÕES (3

bém sobre sua quadra, o que mais gostava e o que ia ser quan-
do crescesse. Deixei que ele posasse e colhi várias expressões
alegres. Uma delas se vê na foto de número 15. Alto para sua
idade, Maurício levanta os dois braços, como para espregui-
çar-se, a mão direita segurando a esquerda. O fundo escuro
da foto contrasta com o amarelo de sua camiseta, onde se lê
o número dez. Seu olhar é confiante e maroto. Está inteira-
mente à vontade diante da câmara.
— "Tu vais ser meu amigo, não é? — perguntei.
— Já sou.

21 de julho, madrugada

Tenho esta frase tão simples mais presente do que nunca, pois
Maurício é hoje meu melhor amigo e até mesmo confidente. Há
dias lhe mostrei as fotos de Laura. Ele as elogiou e, por tudo o que
comentou, concluí que acertei em cheio: ela é atraente, embora
de uma beleza não apreensível à primeira vista. Desenhei na mi-
nha mente um retrato de Laura. À cegueira tem a vantagem de
compor a beleza com mais elementos do que a mera aparência
física — e esta tendo seus contornos traçados pelo tato, que sente
o objeto mais de perto do que a visão.
— Não sei se é verdade, mas, pelo físico, me lembra Joana; e
de espírito tem algo de tua mãe — eu lhe disse.
Logo me arrependi de dar a impressão de estar interessado
numa jovem de vinte e cinco anos. Ele não entenderia se lhe ex-
blicasse que gosto de ouvir a voz dela e de imaginar suas formas.
Só passar aqui, me dar bom-dia, para mim já é muito. Ela enche
74 JOÃO ALMINO

meus dias de vida, o que não pode ser desprezado por quem já
sente o cheiro da morte. Referi-me à sua inteligência e sensibilida-
de. Ele ainda não a conhece, mas pareceu concordar comigo. Pedi
que abrisse um arquivo de fotos muito antigas de Joana, compa-
rasse com as de Laura e me confirmasse se as duas se parecem.
— Nem um pouco. São belezas diferentes. Para início de
conversa, uma é loura e outra morena.
— Esse louro é artificial — esclareci.
Laura tem vindo aqui todas as semanas, mas nunca me dera
um abraço tão carinhoso quanto hoje quando chegou. Talvez te-
nha se alegrado por me ver quase restabelecido. Senti seu corpo,
seus seios tocando meu torso. Será que depois de uma certa idade
perde-se o direito de sentir a presença física de uma mulher boni-
ta? Se existe o Criador, teve um impulso sádico quando inoculou
num velho o desejo por uma jovem.
E eu, o que desperto em Laura? Devo ser realista. A realida-
de é a realidade: ela tem simpatia por mim como teria por um avô.
Tenho sorte de estar cego para não ver diariamente no espelho mi-
nha face enrugada. Mas as mulheres surpreendem. Há entre elas
as que não se prendem aos detalhes físicos... E no tempo de meus
avós não parecia absurdo que um senhor de trinta e cinco anos se
casasse com uma mocinha de treze. Multipliquemos ambas as par-
celas por dois e, proporções guardadas, talvez não fosse completa-
mente absurdo que eu e Laura... Devo afastar de minha mente
essas elucubrações. Já me sentirei satisfeito em captar com meu
olfato o seu perfume e com meus ouvidos a delicadeza de sua voz.
(Quem sou eu para ter o direito de amá-la! Já sonhar com abra-
ços, por que não?
Quase não trabalhamos. Senti um prazer inesperado em lhe
O LIVRO DAS EMOÇÕES [6]

mostrar fotos de roupas sobre uma cama, fotos do corpo ausente de


Joana, sobre as quais teve a gentileza de não me fazer perguntas.
Não citei Joana. Ela achou as fotografias “bárbaras!”, foi o termo
que empregou, com exclamação e tudo. Viu nelas fetiche, elogiou o
enquadramento, os ângulos e o que considera minha marca: a dis-
posição geométrica, quase abstrata, dos objetos fotografados. Sepa-
rei a melhor daquelas fotografias para meu Livro das emoções.
Como prometido, Laura trouxe o violão. Dizer que não canta
bem seria eufemismo. Desafina. Desafina com uma voz suave, de
quem tem uma alma de cristal. Ou seria de algodão?

22 de julho

Hoje sonhei com Joana um sonho estranho em que ela me di-


zia: “não morra antes que eu chegue”, mas ela já havia chegado,
estava na minha frente, vestida inteiramente de branco. Acordei
com vontade de acrescentar algumas páginas a meu Livro das
emoções.

[22 de julho]

16. Como a matéria simples busca sua forma

Adiaria por mais alguns dias o trabalho que Eduardo me


encomendara. Ele que esperasse. Minha prioridade seria ex-
por minha criação atual. Numa parede, montaria três pai-
76 JOÃO ALMINO

néis gigantescos de fotos geométricas, lembrando Volpis


multicoloridos, uma floresta de pêlo púbico, em várias for-
mas: triangulares, retangulares, losangulares, elípticas, góti-
cas, barrocas, de bigodes breves ou de pêlos exuberantes.
Minha busca do absoluto. Disparara a câmara milhares de
vezes como quem tomava posse do objeto fotografado. Cole-
cionei aquelas formas como quem arquiva e cataloga expe-
riências; como quem quer preservar para si um pedaço do
mundo. Para simplificar, eu chamaria todas aquelas formas,
até mesmo os retângulos e as elipses, apenas de triângulos.
Servi-me de uma dose da última garrafa de uísquee dis-
pus alguns slides sobre a mesa. Pelo visor, comeceia analisar
um a um. Uns eram alegres, outros tristes. Uns tinham a exu-
berância de uma floresta tropical, outros pareciam savanas
ou desertos. Um deles era constituído por uma pele muito
branca, a parte que o biquíni havia protegido do sol, recorta-
da sobre um corpo dourado. Do centro do triângulo desciam
pêlos encaracolados também em forma triangular. Os pêlos
escureciam à medida que se aproximavam do rasgo vertical,
visível no vértice inferior. Nas bordas do triângulo negro de
outra foto, os pêlos pareciam delicados risquinhos desenha-
dos a lápis e deixavam entrever a pele morena. À medida que
chegavam ao centro do triângulo, iam se adensando, como a
vegetação que cresce nas margens de um rio. Noutro slide,
pelinhos ralos vinham coroados com uma tatuagem sobre a
parte superior do triângulo. Embaixo, um ângulo agudo era
cortado ao meio, e biquinhos arredondados se dispunham a
cada lado de seu vértice. Noutra foto, um rendado subia,
como heras, em forma de um triângulo isó a
O LIVRO DAS EMOÇÕES 71

Eu gostava de geometria e não me limitava àqueles tri-


ângulos tímidos e recatados. Contrastando com eles, mais de
metade das fotos pertencia à série desinibida e escancarada,
em que as pernas se abriam para mínha máquina fotográfica,
como na pintura A origem do mundo, de Gustave Courbet.
Era a de trapézios invertidos ou retângulos verticais, dentro
dos quais situavam-se elípses de lábios fechados ou abertos,
murchos ou ríjos, opacos ou lustrosos, emoldurados por pê-
los claros ou negros, de pequenos ou grandes volumes. Uma
das fotos lembrava uma folha seca, o traço central bem deli-
neado, do qual saíam penugens laterais. Parecia de Joana, mas
não era, Joana nunca se expusera assim para minha câmara,
os nus que fizera dela eram imagens roubadas, enquanto ela
dormia ou se banhava, e não serviam para aqueles painéis.
Mais uma foto, lábios compridos e abigodados afunilando-se
para baíxo, uma protuberância no meio deles, como língua
ou pênis atrofiados. Aquela outra não mostrava propriamente
lábios, apenas morrinhos enrugados que subiam do vale cen-
tral. Selecioneí uma minimalista, de penugens transparentes
cortadas por um rísco reto e bem feito.
Com as fotografadas de costas, os triângulos eram inver-
tidos e cortados ao meio, de alto a baixo. Um deles parecia
uma fruta gordinha e lustrosa, com dois gomos arredonda-
dos. Noutra foto, uma elipse cortada ao meio em perfeita si-
metria era margeada por uma elipse externa. Naquela outra
a elipse interna estava assustada e boquiaberta, mostrando
lá dentro sua carne avermelhada. Eu me lembrava de cada
dona, e não esquecera seus nomes.
78 JOÃO ALMINO

[23 de julho]

Pedi a opinião de Guga sobre minhas escolhas. Fumando


um cigarro de maconha, me disse:
— São fotos de desejos não realizados. Do sofrimento.
— Como tu sabes?
— Não quero dizer no sentido físico. Digo, como idéia
de busca da felicidade.
— Não estou procurando a felicidade.
— “Tu não me entendes. Deseja-se o que não se tem. O
desejo insatisfeito causa sofrimento, e cada desejo satisfeito
é substituído por outro. Mas não tem saída, meu caro. À vida
oscila entre o sofrimento e o tédio. Tua opção é pelo sofri-
mento. Se conseguires te libertar de teus desejos, será o té-
dio. A menos que consigas ver o mundo como um monge
budista, de forma desinteressada.
— Chega de filosofia, Guga. O que achas das fotos?
— Se queres que eu seja sincero, são monotemáticas e,
por isso mesmo, de uma monotonia soporífera.
— "Toda foto é única. Nenhuma é jamais igual à outra, e
isso por uma razão muito simples: porque nenhum instante
da vida se repete. Concordas?
— No caso dessa tua série, chega-se a perder essa dimen-
são da fotografia.
— Guga, veja a enorme variedade de formas! As fotos
não são homogêneas, meu irmão. De jeito nenhum! Depois,
há um interesse pelo que está por trás de cada uma. E tam-
bém por suas texturas, desenhos e volumes, sem falar do diá-
logo sutil entre os triângulos.
O LIVRO DAS EMOÇÕES 79

— Alguma destas é de tua namorada? — Percebi que se


referia a Aída.
— Ela detesta este tipo de foto.
— Me contastes que é muito religiosa.
— Não é por isso. Ela prefere que eu exponha algo que
define como “realista”, um ensaio fotográfico sobre miserá-
veis ou bandidos.
— Boa idéia, mas depende de como tu venhas a fazer. O
realismo da fotografia não tem por que esconder a presença
do fotógrafo. Gosto de fotos em que tu sentes uma conivên-
cia entre o fotógrafo e o fotografado, entendes? Elas podem
revelar mais da personalidade dos fotografados do que se o
fotógrafo se fizesse invisível para captar imagens espontâne-
as e naturais. Não apenas o fotógrafo deve se mostrar ao
fotografado. Deve também usar a câmara como um pincel,
para focar e desfocar planos, borrar cenas e mostrar o rastro
do movimento. Com isso, pode criar uma expressividade que
revele o clima interior dos personagens. Um bom exemplo é
o trabalho do Escadinha. Tem valor. Ele fotografou vários
presidiários da Papuda, não sei se vistes.
— Olha aqui, se eu fotografasse presidiários, podes crer
que eu faria bem melhor do que o Escadinha. Ele mesmo re-
conhece que não entende nada de fotografia. E uma coisa é
certa: eu nunca o imitaria. Através de minhas fotos quero
me apropriar de algo só para mim. Como fincar uma bandei-
ra num terreno virgem. Não tenho interesse em entrar num
território já ocupado.
A menos que encontrasse Pezão, e ele se deixasse foto-
grafar, pensei. Mas mesmo neste caso, à diferença do Escadi-
80 JOÃO ALMINO

nha, não faria apenas fotos de um presidiário. Minhas fotos


espelhariam uma emoção recôndita; teriam uma qualidade
distinta, por guardarem um segredo meu. Por que não lhe fazer
uma visita? Por que não fotografá-lo?
— Eu não conseguiria conviver com quem se ilude com
santos e milagres — Guga disse, a propósito de Aída.
— Pois para mim pouco importa se uma mulher que amo
acredita num Cristo evangélico ou católico, em pai-de-san-
to ou até em Papai Noel.
Eu acreditava na matéria, no que eu pudesse tocar, ou seja,
no corpo de Aída e não em suas crenças. Pensando nisso
depois que Guga partiu e nos planos de ir ao Jardim da Sal-
vação, enchi bem cheio um copo com uísque. A luz do sol
que chegava pela janela de vidro atravessava o copo. Daí
surgiu a foto de número 16, que separei para meu diário fo-
tográfico. Foi naquele momento que, contemplando os raios
que se espraiavam sobre a mesa de mogno a partir do copo e
percebendo como a matéria simples busca sua forma, tive a
idéia de criar um movimento cromático em cada um dos
painéis de triângulos, de cima para baixo e da esquerda para
a direita, abrangendo pêlos densos escuros, densos claros,
ralos escuros e ralos claros. Concluiria, embaixo, à direita,
com a ausência de pêlos, mostrando o sexo em nítidos riscos
verticais. Quem visse de longe diria composições de flores ou
frutas, em tons amarelos, negros e vermelhos. Apesar de mos-
trarem partes do corpo que em geral estão escondidas por
camadas de roupa, cada uma das fotografias — e também o
seu conjunto — se revestiriam de algo misterioso e sutil, como
se eu tivesse manipulado suas cores e acrescentado um véu
O LIVRO DAS EMOÇÕES 81

fino sobre suas superfícies; como se um desejo tosco tivesse


recebido um polimento bem acabado. .

[23 de julho, quase meia-noite]

17. Flores-de-abril

Haveria uma parede intimista na minha exposição, de-


dicada a uma única personagem, apenas insinuada através
do detalhe de uma peça íntima, uma ponta de cabelo ou o
fragmento de um perfil. Seriam fotos de Joana ou sobre ela, a
homenagem que secretamente lhe prestara ao longo de mui-
tos anos. Fotos que Joana não conhecia. E se ela visse minha
exposição? Que reação teria quando reconhecesse um deta-
lhe de seu corpo ou de suas roupas?
Todas as mulheres do mundo juntas não valiam uma
Joana. Eu lhe mandaria um cartão. Diria apenas: “Tu és úni-
ca.” Se ela me deixasse sentir seu cheiro, acariciar sua pele,
dormir encaixadinho, como fazíamos até há pouco tempo,
não precisava nem me dizer que me amava.
Liguei para ela. Para minha surpresa, desta vez atendeu meu
telefonema. Bom sinal. Implorei que fizéssemos mais uma ten-
tativa de vivermos juntos e deixei-a com a impressão de que
me contentaria com algumas migalhas de sua boa vontade.
— Só uma semana juntos, é tudo o que te peço. Vem a
Brasília ou então me recebe no Rio.
— Que sentido isso faz?
— Não tens nem um pingo de saudades?
82 JOÃO ALMINO

Não me respondeu.
— Morro de saudades de ti — eu disse.
— Você quer apenas uma mulher, qualquer uma, do seu
lado.
— Joana, vem a Brasília, ainda que seja por um fim de
semana — reduzi ainda mais meu pedido.
— Vou pensar no seu caso.
Ao ouvir aquela frase, me senti o vencedor de uma gran-
de batalha.
Se tinha muitas fotos de Joana e me sobravam triângulos,
me faltavam flores. Com elas, acrescentaria ainda uma tercei-
ra parede — e até mesmo uma quarta — à minha exposição,
caso conseguisse reuni-las em número suficiente. Busquei-as
na própria quadra. Fotografei as flores-de-abril, as paineiras,
barrigudas, com suas bordas cor-de-rosa e centros de tufos bran-
cos. Aquelas fotos fizeram meu dia. Selecionei a que me pare-
ceu mais vibrante, alegre e delicada. É a que se vê acima.

[24 de julho]

18. Duas ou três coisas incompreensíveis

Finalmente encontrei um pretexto para telefonar para Ana


Kaufman: convidá-la para me acompanhar na homenagem a
Paulo Antônio organizada pela profetisa Íris Quelemém.
— Soube por Joana que você estava em Brasília — falou.
Fria e de poucas palavras, declinou meu convite. Mas logo
O LIVRO DAS EMOÇÕES 83

depois recebi um telefonema de Carlos, seu marido. Surpre-


endi-me que me tratasse tão bem. Então não sabia o que se
passara entre Ana e eu? Queria ver Ana, não ele. Agora es-
tava obrigado a ir à residência do casal no Lago Sul, para um
almoço num sábado.
— Femsua homenagem, para lhe dar as boas-vindas —
Carlos me disse.
Certamente lá encontraria Berenice e talvez tivesse no-
tícias de meu filho.
No dia combinado, logo que cheguei, Ana me disse:
— "Temos uma surpresa para você.
Não quis me dizer o que era. Eu que esperasse. Imediata-
mente pensei em Pezão. Será que Berenice comentara algo
com Ana? Será que o traria para me apresentar?
Não se notavam marcas das queimaduras que Ana sofre-
ra, há menos de um ano e meio. Nenhuma cicatriz, nada.
Apenas para quem sabia, alguma mancha, disfarçada pela
roupa e a maquiagem. Parecia até mesmo rejuvenescida,
possivelmente pela plástica.
Enchendo as gavetas do CD player, Carlos lia, através de seus
óculos de fundo de garrafa, os títulos das músicas e comentava
as interpretações, sob o olhar atento de Josafá, o gato de Ana.
— Bonito cartaz — afirmei, apontando para a parede.
— É uma reprodução de Barnett Newman de 1965,
quando esteve na Bienal de São Paulo — esclareceu.
Num dos cantos da sala de jantar um quadro do Escadi-
nha apelava para o grotesco.
— Conheces o autor, digo, pessoalmente? — perguntei
a Ana.
84 JOÃO ALMINO

— Claro. É o único que presta em Brasília.


— Vejo que me tens em alta conta.
— Não falo de fotógrafos, mas de artistas plásticos. E você
não é de Brasília.
Quase protestei que nada houvesse meu sobre suas pare-
des, nem sequer num porta-retratos. Ali estava a diferença
entre seu apreço pelo meu trabalho e pelo do Escadinha.
Tocaram a campainha.
— A surpresa chegou — Ana disse.
Joana apareceu à porta, num vestido que eu não conhe-
cia, mais elegante que nunca, como se chegasse para um baile.
Viera passar apenas uns dias em Brasília, me disse. Não ousei
perguntar se era para me ver, mas confiei que meu telefone-
ma tivesse contribuído para sua decisão.
No começo me tratou com distância. Mas depois de dois
uísques, me pareceu à vontade. Cheguei a segurar suas mãos,
como se fôssemos namoradinhos.
— Como vai indo seu projeto com Eduardo? — me
perguntou.
Falei da cerimônia no Jardim da Salvação.
— Convidei Ana, mas ela não quer vir.
— “Tenho uma certa curiosidade. Acompanho você —
Joana se ofereceu. — Eduardo vai mesmo estar lá?
— Vem só para isso.
Aproximei-me das flores do jardim e comecei a disparar
a câmara à procura de um ângulo pouco usual. Meu olhar
atraiu a atenção de todos. Cercaram-me. Olhavam o que eu
olhava, como se vissem as flores pela primeira vez. Josafá tam-
bém se aproximou, como se quisesse saber o que atraía nossa
atenção, e começou a andar pelo jardim.
O LIVRO DAS EMOÇÕES 85

— Estou pensando em montar um negócio de flores. Já


tenho esta quantidade enorme de mudas. Se consegui até
cultivar rosas, tenho certeza de que posso ganhar dinheiro
com flores mais adequadas ao clima. E não estou falando de
flores secas — contou Carlos.
— Disso não entendo, mas se precisares fotografar flo-
res... — me ofereci. — Me dizem que devo me inspirar no
Escadinha e fotografar a realidade. Mas não crês que as flo-
res também são parte da realidade?
— Segundo um princípio budista, a realidade é o vazio,
a natureza última das coisas. Não existe a realidade, pelo
menos não a realidade permanente — Carlos explicou.
Ele falava com ar professoral. Então já aposentado, de-
pois de passar anos encerrado na Biblioteca da Câmara, não
perdia a oportunidade de demonstrar seu conhecimento
livresco. Ainda era rato de biblioteca. Vivia de leituras, de
histórias alheias. Contentava-se com Ana, flores e livros.
— Talvez possa aproveitar algumas de suas fotos numa
campanha publicitária — Joana me disse.
— Não, não estou interessado. São muito especiais. Pen-
so em fazer uma exposição — respondi, categórico, sem sa-
ber se ela se referia a algum comercial de sua loja ou a um
projeto de sua empresa de publicidade.
Duas obras ocupavam posições de destaque na sala de
estar. Uma era assinada por Ana Mariani e fora exposta numa
das bienais de São Paulo. Eram fotografias de casas e mais
casas do interior do Nordeste, todas num mesmo estilo, com
variações de cor e de incidência de luz. Outra era de Jac
Leirner e mostrava, em série, cartões de visita coletados
mundo afora.
86 JOÃO ALMINO

— Quero expor um trabalho parecido com estes — eu


disse. — Painéis de triângulos.
— Triângulos? — Ana perguntou.
— Ah, é? Você nunca tinha me falado nisso — Joana
completou.
— Triângulos amorosos? — Ana brincou.
— Não, uma coisa mais física.
— Mas é foto urbana? De natureza? De gente? — Joana
quis saber.
— De gente.
— Não autorizo você a usar nenhuma foto minha —
Joana disse, como se adivinhasse o meu projeto.
— "Tuas fotos não se encaixam na minha proposta.
— “Também não quero ver exposta nenhuma daquelas
fotos, viu? Sabe, Joana, ele fez umas fotos minhas o ano pas-
sado. Ótimas!
Finalmente Berenice apareceu. Cumprimentou-me edu-
cadamente. Não raro, numa festa, sobretudo em Brasília,
contava as mulheres com quem tivera um caso. Eu não me
chamava Don Juan nem minha conta havia chegado a mile e
tre, mas naquele instante bastava que chegasse a três para me
propiciar uma situação única: compreendia todas as mulhe-
res presentes.
Tomei um grande gole de uísque para ganhar coragem de
seguir Berenice até a cozinha. Queria saber de nosso filho.
Ajudar financeiramente não podia. Mas talvez fosse o mo-
mento de conhecê-lo.
Minha coragem não chegou a tempo. No meio do corre-
dor, me desviei para o banheiro, enquanto Berenice entrava
casa adentro.
O LIVRO DAS EMOÇÕES 87

Mais tarde, quando o uísque havia provocado os efeitos


esperados na minha cabeça e nas minhas pernas, fui camba-
leante até a área de serviço falar com ela.
— Não te perguntei sobre teu filho. — Não consegui
dizer “nosso filho”.
— Não se preocupe. Você não me deve nada, nem a ele.
— Ouvi dizer que está preso.
— Uma grande injustiça.
— Vou fazer uma visita a ele na prisão.
— Não, nem pense. Ele não sabe nada sobre você.
Depois indaguei a Ana:
— Conheces o filho de Berenice?
— É um sujeito complicado. Foi envolvido no assassina-
to de Berta, não sei se você sabe. Deve ser libertado em bre-
ve. Entregou todo mundo e vai se beneficiar da delação
premiada. Mas foi correto com o Formiga, meu sobrinho. De
fato eles dois não participaram de nada. Foi azar. Tinham más
companhias e estavam presentes quando tudo aconteceu,
nada mais.
Berta havia sido brutalmente assassinada no ano anteri-
or. Há décadas, quando éramos jovens, ela integrara nosso
grupo dos “inúteis” juntamente com Joana, Ana, eu e alguns
outros amigos.
— Ele morava com Berenice?
— Não. Tem uma casa na Vila Paulo Antônio.
Era a vila que tanto Eduardo Kaufman quanto Aída ha-
viam mencionado e que, segundo Marcela, fora implantada
em terrenos grilados do Distrito Federal. Pela primeira vez
me pareceu fazer sentido me munir do olhar do antropólogo
88 JOÃO ALMINO

para, dentro do projeto concebido por Eduardo Kaufman,


fotografar aquela nova cidade-satélite.
Na saída, Joana me deu uma carona em seu carro aluga-
do. Seu olhar estava despido de animosidade e tinha algo de
maternal.
— Sobra espaço no apartamento de Eduardo. Por que tu...
— Não, estou muito bem instalada num hotel. Prefiro
assim. Não vim aqui para ficar com você — me respondeu,
adivinhando minha proposta, mas, talvez notando minha
decepção, acrescentou:
— Podemos tomar um drink no bar do hotel.
O bar ficava ao fundo de um enorme hall por onde mu-
lheres sozinhas circulavam à procura de políticos ou funcio-
nários que vinham a Brasília sem suas famílias, empresários
que aqui chegavam para fazer lobby e outros homens de pas-
sagem para participar de reuniões. Era fim de semana, mui-
tos haviam voltado para suas cidades de origem, e havia um
flagrante desequilíbrio entre a oferta e a procura.
O chão de mármore, bem como as mesas em vidro e metal
brilhavam, refletindo as luzes azuis e amarelas que contorna-
vam o espelho na parede atrás do balcão.
— Você já tem onde expor? — Joana perguntou.
— Estou procurando espaço.
— Quero ver essas fotos.
— Vou te mostrar. Queria mesmo tua opinião.
Tomamos um uísque. Eu testava com cuidado seu interes-
se por mim, como se tivesse que seduzi-la pela primeira vez.
— Você pode subir comigo se prometer que vai se com-
portar — ela disse, depois que o copo se esvaziou.
O LIVRO DAS EMOÇÕES 89

— Juro sobre a Bíblia — abri minha mão direita sobre o


copo de uísque.
— Não quero saber de sexo, isso quero deixar bem cla-
ro. Não é nada contra você.
— Mas tu não sentes falta...
— Preciso de afago... Disso sinto falta.
Interpretei-a mal, pois quando chegou ao quarto recusou
meus beijos, minha massagem e minha proposta de um ba-
nho juntos. Tomamos uma sopa e depois assistimos televisão
de mãos dadas, ela juntinho a mim.
— Se você quiser, pode ficar para dormir. Só dormir —
frisou.
Ela não me desejava como antes, isso estava claro, mas
se deixou ver ao preparar-se para o banho. Ver Joana desvestir-
se era como tomar uma dose completa de vigor, que subia
por minha espinha dorsal até a cabeça. Como se vitaminas
de juventude e alegria fluíssem por entre minhas pernas. Não
trocaria Joana por outra mulher enquanto pudesse vê-la des-
pir-se como naquele momento, que eu apreciava em cada
detalhe, reparando no corpo arqueado, no deslizar da calcinha
pelas coxas longas, na fartura de nádegas. Eu conhecia cada
milímetro daquele corpo, da forma das mãos à pintinha pre-
ta entre os pêlos pubianos. Há muito eu já não ousava pedir
para que ela me mostrasse seu “sinal de beleza”, que era como
eu havia apelidado aquela pintinha preta.
Depois dormimos juntos. Apenas dormimos, e eu era feliz.
90 JOÃO ALMINO

[25 de julho]

Preparando-me para a chegada de Eduardo Kaufman,


passei os dias seguintes separando fotos de Paulo Antônio
abraçado a velhinhos, ao lado de crianças, correndo no par-
que de calção e camiseta ou fazendo comício.
Difícil julgar o valor de muitas das fotos sem reconhecer
quem estava ao lado de Paulo Antônio. Em alguns casos, os
desconhecidos acrescentavam uma qualidade à foto: mulhe-
res bonitas, meio desvestidas num carnaval; aquelas belas
rainhas da uva; figuras fardadas, paramentadas ou iden-
tificadas por mensagens em bonés e camisetas, como padres,
generais, líderes sindicais ou do Movimento dos Sem Terra.
Em algumas, deduzia-se pelo protocolo, Paulo Antônio po-
sava com outros chefes de Estado. Em várias das fotos, não
importava quem estivesse a seu lado; elas valiam pela atitu-
de de Paulo Antônio: por sua expressão de susto, seus risos,
caretas, choros ou seu olhar pensativo e sonhador. Eis aqui
uma enorme bandeira do Brasil acendendo os instintos naci-
onalistas e oferecendo um Paulo Antônio abraçado à pátria.
Acolá um crucifixo colocava as boas intenções em primeiro
plano e dava a impressão de que Deus estava ao lado do pre-
sidente. Senti-me todo-poderoso: não era exagero crer que
minha fotografia poderia ajudar a criar o passado, a própria
história. Com o espectro de fotografias que eu tinha, poderia
inventar Paulo Antônio à minha maneira.
No Memorial Paulo Antônio Fernandes, encontrei a foto
tirada num palanque de carnaval minutos antes de seu desa-
parecimento e também uma cópia de uma foto feita por mim,
O LIVRO DAS EMOÇÕES 91

a primeira de meu arquivo número um. É a famosa foto da posse


de Paulo Antônio em que se baseou o romance Idéias para onde
passar o fim do mundo e em que aparecem, entre outros, sua
irmã Eva, com quem vivi, e a profetisa Íris Quelemém, do Jar-
dim da Salvação. Foi feita no terceiro andar do Palácio Ita-
maraty. À cópia, que ainda guardo em versão digitalizada, tem
uma vantagem em relação ao original. Incorporou a pátina do
tempo. Suas beiradas estão rasgadas, e há uma mancha leve-
mente amarela sobre o fundo em que se vêem uma escultura
de Ceschiatti e os jardins de Burle Marx. Adguiriu um ar no-
bre, que sela sua relevância histórica.
Em maio as perspectivas de Brasília ainda estavam sal-
picadas pela cor-de-rosa das paineiras. De uma delas, um gru-
po de periquitos barulhentos saiu em revoada quando me
aproximei. Anunciavam coisa misteriosa, para que um des-
crente como eu pudesse melhor aproveitar sua ida ao Jardim
da Salvação. Joana viria comigo.
Eu fotografaria a credulidade estampada em rostos com-
penetrados e a ilusão de que não apenas existe um céu mas
também uma fórmula mágica de chegar lá.
Num bar do lado de fora, tomei uma péssima cachaça,
sob os protestos de Joana. Olhavam para sua elegância com
deferência como se fosse uma rainha, princesa, primeira
dama, atriz de telenovela ou, no mínimo, mulher de algum
político. Havia clima de comício, gente aglomerada na en-
trada do templo principal, à espera de Eduardo e de Íris
Quelemém.
Finalmente, abriram-se alas para que os dois entrassem.
Sentada em sua cadeira de rodas, Íris abençoou Eduardo,
92 JOÃO ALMINO

perfilado ao lado dela e de outros sacerdotes em frente à


multidão. Sorridente, ele apertava as mãos de todos.
Mostrou-se surpreso quando viu Joana. Abraçou-a, lhe
deu beijinhos e fez menção de colocá-la a seu lado para uma
fotografia que me recusei a fazer.
— Entendi. Viestes aqui para ver Eduardo.
— Que absurdo, Cadu, você pensar isso de mim. E por
que eu precisaria de vir até aqui para ver Eduardo?
Para ele as fotos tinham mais valor do que a homenagem
em si. Provavam a existência do evento em que ele, Eduar-
do, era o grande destaque. Por isso queria ser fotografado a
cada instante. Estava sempre atento à minha câmara e se
transformava diante dela.
Subiu ao palanque e fez seu discurso. Segundo a teoria
que eu vinha aperfeiçoando, os políticos devem ser medidos
não pela cor da ideologia, mas por decibéis. São mais con-
vincentes os mais inflamados, como Eduardo Kaufman foi
naquela tarde. Íris foi também levada ao palanque e coloca-
da a seu lado.
— Esta mulher é mesmo uma santa — disse uma sacer-
dotisa de vestido esvoaçante, com várias capas transparen-
tes em azul e rosa.
— Se não fosse por dinheiro, não fazia estas fotos —
comentei com Joana.
Meu papel era fotografar a homenagem e, como parte dela,
a sessão em que o próprio espírito de Paulo Antônio baixaria.
E baixou. Grunhiu, resmungou com voz de bêbado:
— Eu vos abençõo. Vós deveis construir aqui um tem-
plo evangélico. Dêem a ele o meu nome.
O LIVRO DAS EMOÇÕES 93

— Logo ele, que era bom orador e sabia entusiasmar as


platéias. Eis a prova de que a vida sobrenatural dispensa o
cérebro, que apodrece com o corpo aqui na terra, comido
pelas minhocas.
Joana riu de meu comentário.
— À companhia dos santos católicos lá no céu deve ter
sido mesmo uma chatice. Por isso, depois de morto, Paulo
Antônio virou evangélico — acrescentei, cochichando no
ouvido dela.
Notei o olhar incomodado de Eduardo Kaufman em nos-
sa direção.
Íris foi convidada a falar. Olhou para o céu com olhos de
visionária. Ergueu as mãos postas para algo invisível, que não
era simplesmente a viga mestra do prédio, nem a sereia
suspensa do teto, nem a Iemanjá desenhada sobre uma das
paredes, tampouco um dos santos da macumba enfileirados
no alto do templo. Ninguém entendia o que ela falava, mas
todos concordavam com suas ênfases e com a determinação
que se depreendia de sua forte gesticulação. Levavam-se por
sua ira contra o que se fez e o que se deixou de fazer e por sua
coragem de enfrentar a tudo e a todos. Ninguém poderia re-
ter uma só palavra do que pronunciara, mas não esqueceria
seu entusiasmo e indignação. A foto de número 18 é uma
das muitas que fiz de seus gestos ou expressões. Três dedos
de sua mão direita voltavam-se para o alto, enquanto sua face
enrugada se iluminava ao enunciar duas ou três coisas incom-
preensíveis. Três dedos da mão esquerda de Joana aparecem
do lado esquerdo da foto, dialogando com os de Íris. Entra-
ram na foto por acaso, mas compõem a cena como perfeita
94 JOÃO ALMINO

tradução do que não se podia entender. Joana quis me dizer


algo ao ouvido no momento exato em que eu disparava a cà-
mara, e seus cabelos esvoaçantes roçaram meu rosto. Tive
vontade de abraçá-la, de beijá-la, mas não me sentia ainda
seguro de sua reação.

[26 de julho]

19. Rastros do desejo

— Adão significa homem, humanidade; vem de Adamah,


do hebreu terra; de adom, vermelho, e dam, sangue. O co-
meço do mundo e da humanidade é aqui, nesta terra verme-
lha — ensinou um médium de braços curtos e peludos, mãos
gordas desproporcionalmente grandes para aquele corpo.
Usava uma camiseta marrom que fazia realçar a barriga pro-
nunciada, sobre a qual descia uma corrente de ouro com um
crucifixo, uma figa e uma estrela-de-Davi.
— À casualidade não existe — continuava. — Tudo está
previsto e tudo vai acontecer. É uma questão de tempo; o que
não for descoberto hoje será mais tarde. O livro já existe com-
pleto, na eternidade, e a palavra que ainda não foi dita, será
dita um dia. O mal pode vir para o bem, e o bem para o mal.
— Tanto faz as minhocas comerem esse imbecil hoje ou
daqui a um século. Tanto faz eu documentar esta homena-
gem ou não — cochichei novamente no ouvido de Joana. —
Posso fazer uma foto? — perguntei em voz alta ao médium,
me aproximando. Joana me acompanhou.
O LIVRO DAS EMOÇÕES 95

Ele posou para mim, contente. Depois, para colher ex-


pressões mais naturais, fingi interesse por sua filosofia, o que
o levou a me convidar para suas aulas de teologia todos os
domingos no próprio Jardim da Salvação. Prometi que seria
seu aluno.
— Você não presta — Joana me disse, quando nos afas-
tamos.
— Das palavras deste médium daria para concluir que a
verdade não tem mais mérito do que a mentira. Se a gente
não viver hoje, vai viver um dia. Tanto faz eu praticar o bem
quanto o mal. Mas, não, nem tudo é indiferente — comen-
tei com Joana. — Não é indiferente, por exemplo, que Eduar-
do me pague ou deixe de pagar.
Fui ao seu encontro e lhe cobrei o dinheiro. Em troca, ele
me cobrou o trabalho. Contabilizou as fotos que eu havia
produzido por dia e chegou, como resultado de sua conta de
dividir, a uma mera fração de foto. Joana nos observava a
distância.
— Por que teria de me preocupar com o número de fo-
tos por dia? — Contestei. — Tu vives na urgência do tempo,
não eu.
No dia seguinte, Eduardo me disse:
— Você conseguiu esgotar minha paciência. Não preci-
so mais dos seus serviços. Não é só que não tenha trabalhado
o suficiente...
— Não gostastes das fotos?
— Sinto que você não está interessado no trabalho. Fi-
que no apartamento por mais alguns dias, se precisar, enquan-
to decide o que fazer.
96 JOÃO ALMINO

Não seria fácil viver apenas de minha fotografia, mas quase


soltei foguetes de contentamento. Senti-me um homem livre e
usaria minha liberdade para me dedicar aos projetos pessoais.
Pus num copo o restinho de uísque da última garrafa do
armário e, vasculhando novamente um dos computadores de
Eduardo, descobri que estava livre sobretudo para denunciá-
lo. Um arquivo em Excel continha a mesma lista da tal “Ope-
ração A”, só que desta vez os nomes estavam associados a
quantias de dinheiro. Não sabia se era contrabando, favore-
cimento indevido, sonegação de impostos, tráfico de influên-
cia ou de drogas, financiamento ilegal de campanha eleitoral...
Mas algo havia ali. Eu ouvia rumores sobre aplicações espúrias
dos fundos de pensão, sobre superfaturamento em publicida-
de estatal... As leis escorregavam pelo lamaçal. Queria contri-
buir para o engrandecimento moral da nação, que era também
de meu interesse particular. Afinal, Eduardo havia roubado o
país e minha mulher. Eu estava livre, e minha liberdade ia cus-
tar caro a Eduardo Kaufman. Lembrei-me da samaúma e da
foto dele ao lado dos índios. Os produtos naturais e indígenas
seriam fachada para alguma ilegalidade. Ocorreu-me que o
crime passava pelo Planalto Central, mas a letra “A” significa-
va “Amazônia.” Mandaria uma carta anônima para a Receita
Federal com as listas daquela “Operação Amazônia” e fiz pla-
nos de voltar para o Rio com Joana.
Passei em revista as fotos que fizera de Eduardo no Jar-
dim da Salvação. Havia um close de seu rosto: a boca muito
aberta, mostrando todos os dentes, a testa enrugada, as so-
brancelhas arqueadas e cabelos levantados pelo vento. Mi-
nha vingança apenas começava. Ampliaria aquela foto, que,
O LIVRO DAS EMOÇÕES 97

sem que eu me desse conta, veio a ser um marco em meu


trabalho. Ela me deu a idéia de compor a série histriônica que,
como pretendo esclarecer mais tarde, viria a me render algu-
ma notoriedade.
— Virei um sem-teto. Posso me mudar para teu hotel?
— propus a Joana, sem lhe revelar que Eduardo ainda me
deixava ficar por alguns dias no apartamento.
— Já estou de partida.
— “Tu me levas contigo?
Com o pretexto de me despedir, fui vê-la, trazendo no
bolso uma aliança mais grossa do que a que ela recusara no
Rio. Deixei-me ficar, até que ela quis dormir, sem me expul-
sar do quarto. Enchi-me de esperança. Poderia ser um reco-
meço. Ela não protestou sequer quando me desvesti e me
deitei a seu lado.
Quando Joana e eu éramos dois estranhos, ela não impu-
nha limites à sua licenciosidade. Nada recusava. Por isso posso
dizer que até hoje nada de mais ousado na cama fiz com ou-
tra mulher. Mas eis que, fazia talvez um ano, de uma hora
para a outra, ela não gostava disso e muito menos daquilo,
não queria assim mas assado. Já convivia com ela por um
tempo suficiente para que surgissem desconfianças, queixas
e desentendimentos. A intimidade pusera fim ao encanta-
mento de nossa relação.
Entretanto, durante muitos meses algo se salvara: eu po-
dia sentir seu corpo. Mesmo que não quisesse fazer amor co-
migo, ela se deixava abraçar por trás, na cama, antes de
adormecer, e eu ali ficava, corpo colado no dela. Não protes-
tava quando meu tesão pressionava suas nádegas. Eu lamen-
98 JOÃO ALMINO

tava apenas que, passados aqueles meses e antes de nosso rom-


pimento no Rio, tivesse se tornado tão criativa na variação so-
bre um tema recorrente: estava tarde ou ela estava cansada
ou queria dormir ou acabava de acordar ou o braço doía ou
hoje não, Cadu, noutro dia... Às vezes a mentira vinha segui-
da de um bocejo; noutras, quando eu insistia, fazendo-me de
surdo, de um “não”. Um “não” que também tinha suas varia-
ções: podia ser seco, gritado, chorado, meloso, um “não, por
favor”, um “não, porra!” ou um não explicitado por um em-
purrão. Chegando o verão, a mesma mentira vinha embrulha-
da numa verdade: estava quente demais, ela dizia, as coxas
expostas pela camisola curta e transparente. “Não aperte” ou
então “não encoste, assim não consigo dormir”.
Agora, deitado a seu lado no quarto de hotel em Brasília,
eu agientaria sua recusa e até mesmo seu desprezo em troca
daquele privilégio perdido, resquício de amor. Enterraria com
o olhar e o tato o que se passava por sua cabeça. No momen-
to em que nossos corpos se tocassem, tudo poderia recome-
çar. Nossa breve separação certamente aguçara a falta que
ela sentia de mim. Quem sabe seríamos capazes até mesmo
de recobrar as primeiras sensações de nossos corpos nus e
abraçados.
Ela se limitou a mandar, ríspida:
— Não comece.
Contentei-me com a esperança de colar meu corpo no
dela no dia seguinte.
Mas no dia seguinte cometi o erro de lhe mostrar, a seu
pedido, o portfólio de minha exposição. Comecei pelas flores,
uma série ainda incompleta. Depois passei aos triângulos, que
O LIVRO DAS EMOÇÕES 99

a irritaram tanto que decidi lhe contar da homenagem que faria


a ela, numa parede especial. Não havia nada demais ali: uma
ponta de vestido, os pés, um fragmento do rosto...
— Olha, Cadu, fiz uma tentativa. Não dá, cara. Você
passou de todos os limites.
— É por causa das fotos?
— Não, não é por causa das fotos.
— Olha que eu havia te trazido. Pensei em... — mos-
trei-lhe a aliança.
— Você não entende nada. Não adianta nem discutir.
Depois me disse:
— Eduardo me contou... Como é que você perdeu essa
oportunidade, cara? Você é mesmo um idiota! Irresponsável!
Fora um erro acreditar que, sem nos preocuparmos com
a administração conjunta de um lar e a educação dos filhos,
teríamos apenas os lados bons do casamento. Sem os lados
ruins, que algemam um ao outro, Joana se sentira livre, não
precisava de mim para nada, eu era descartável.
Tomei uma última providência antes da partida de Joana.
Qual é a ética da fotografia? Que imagem será lícito roubar,
se apropriar? Aproveitando a hora de seu banho, retirei dos
armários peças que conviviam intimamente com seu corpo:
duas calcinhas minúsculas, meias de seda, um colar de péro-
las, brincos de brilhante, um vestido longo e um par de sapa-
tos. Fotografei-as sobre a cama, de diferentes ângulos —
veja-se a foto de número 19 acima. Cheirei e beijei lentamen-
te as calcinhas como um padre faria com uma estola.
— Eis o corpo de Joana — disse solenemente, em voz
alta.
100 JOÃO ALMINO

Não usaria aquelas fotos em minha exposição. À diferen-


ça de outras tantas, não queria retirá-las de sua esfera íntima
e privada para o consumo público. Queria guardá-las comi-
go, me apropriar do que elas representavam, do corpo inerte
de Joana permanentemente oferecido a mim. A nova alian-
ça que ela recusara envolvi com minha tristeza profunda e
com uma calcinha de renda preta, que guardei no bolso.

31 de julho

Ainda tenho as fotos de triângulos impressas em papel. No


verso de cada uma, um nome falso. Quis despistar Aída, se acaso
ela quisesse saber a quem pertenciam. Com o tempo deixei de
associá-las aos nomes verdadeiros. Já não tenho a memória de
antigamente. A maioria daqueles nomes agora esqueci, sem nun-
ca ter esquecido o corpo de cada mulher, incluindo a textura e
forma exata de seus triângulos.
Teria feito painéis ainda maiores com as mulheres que não pude
ter. Lembro-me delas tanto ou mais quanto das que me quiseram.
De várias não ousei me aproximar, por escrúpulo, respeito, timi-
dez, medo do ridículo ou por considerá-las inacessíveis. Outras
não me acharam suficientemente atraente... ou rico. Algumas,
diretas e sinceras, me disseram: “não estou interessada.” Outras
ainda, diante de minhas declarações apaixonadas, silenciavam,
sorriam com desdém ou mudavam de assunto, para depois, junto
às amigas, me transformarem em motivo de chacota. As compa-
decidas me davam um beijo para me consolar. Havia também as
que me cobriam de elogios, para introduzir um “desculpe, não te
O LIVRO DAS EMOÇÕES 101

amo”. Encheria todo um livro com esses casos. Um livro não, um


tratado de vários volumes, que não será escrito porque preciso de
memórias que me alegrem e me deixem com vontade de viver. Por
isso e também para impressionar Laura, prefiro ir aos triângulos.
Hoje me preparei para a chegada de Laura. Tomei um banho
demorado, pus loção, cortei as unhas das mãos e dos pés, fiz e
refiz a barba, cortei pêlos dos ouvidos e nariz, vesti minha melhor
roupa e a esperei com ansiedade quase toda a manhã.
Laura não me abraçou, mas viu os triângulos, e isso chegou a
me excitar. Imaginei o impossível: que ela quisesse um dia posar
nua para minha câmara. Seria uma experiência distinta, pois eu
estaria fotografando o que não vejo e ela estaria se mostrando a
um cego. Para compensar minha cegueira, as fotos seriam feitas
com a ajuda do tato. A alma de Laura não seria de cristal nem de
algodão, como escrevi dias atrás, mas de brasa que se acende, e
eu estaria ali para sentir o calor daquele fogo. Logo afastei da mente
aquela idéia insensata. Afinal, não acredito em alma.
Mas não era descabido mostrar a Laura como me divertira
com tantos triângulos e como fora objeto do desejo de mulheres
atraentes como Joana. Assim eu me valorizaria diante dela. As
mulheres raramente confessam a verdade: que gostam da concor-
rência e de homens disputados, não dos que se dedicam exclusi-
vamente a elas. Sei disso por Joana. Medi o seu amor com a escala
do ciúme, aquela pequena paixão vaidosa de quem exige exclusi-
vidade. E quando decidi deixar tudo e todas para me dedicar so-
mente a ela, ela me trocou por um crápula que atraía namoradas
com seu dinheiro e poder. Voltando ao meu valor de mercado aos
olhos de Laura, sei que não devo me interessar por quem tem ida-
de para ser minha neta. Mas a realidade é a realidade, como disse
102 JOÃO ALMINO

o crápula em questão. Não vou negá-la. Interesso-me pela reali-


dade, cujo nome é Laura.
Ela achou graça de minhas pesquisas sobre triângulos e quis
saber qual era o de Marcela. Depois de tantos anos, não vi pro-
blema em descrevê-lo, para que ela o localizasse. Lembrava-me
bem daquele retângulo composto por pêlos bem aparados dos qua-
tro lados, margeado embaixo por dois beiços inchados e pelados,
em cujo centro surgia uma pontinha de língua, como o badalo de
um sino.
— Uau! — ela exclamou, rindo.
Ninguém hoje em dia pagaria um centavo por minhas noções
de geometria nem por toda aquela vegetação triangular. Por zom-
baria do destino, somente ainda têm algum valor as muitas fotos
que fiz de Paulo Antônio Fernandes e de Eduardo Kaufman. Aliás,
Carolina me trouxe uma compradora potencial, que também se
interessou por minhas fotos de flores do Planalto. É a diretora de
um centro de pesquisa de uma universidade estrangeira, que está
montando um arquivo fotográfico sobre Brasília. Diz que me paga
um bom dinheiro, digitaliza todas as fotos e ainda me faz duas
cópias impressas de cada.

31 de julho, noite, quase primeiro de agosto

Há dias Maurício não vem aqui. Tive a idéia de convidá-lo e


também minha afilhada para tomar umas cervejas num fim de
tarde. Devo criar o máximo de oportunidades para que os dois se
encontrem. É tão óbvio que um foi feito para o outro... Tenho de
convencê-los dessa obviedade.
O LIVRO DAS EMOÇÕES 103

[1ºde agosto]

20. Políticos e ostras

Podia sobreviver sem Eduardo Kaufman, embora tivesse


de me adaptar a bebidas de pior qualidade e, o que era mais
grave, minha liberdade recém-conquistada fosse empregada
em fotografar casamentos e batizados.
Procurei trabalho através de amigos. Quando liguei para
Guga, ele já soubera, por Tânia, que Eduardo me havia
despedido.
— Aquele sujeito é mesmo um mau-caráter — me disse.
— O pior é que é desonesto.
Descrevi-lhe os documentos que enviara à Receita ca-
peados por uma carta convincente.
— Carta anônima? Não vai dar em nada, mano. Tu pre-
cisas entregar isso para a imprensa.
Contei a Aída que teria de voltar para o Rio se não con-
seguisse uma clientela.
— Eno Rio? Você tem de que viver?
— Não. Mas há mais campo. Conheço mais gente. —
Não lhe revelei que não desistira de Joana nem que a maior
vantagem de minha volta seria estar próximo dela.
Paulo Marcos me pareceu frio ao telefone.
— E Tânia?
— Não sei.
Não sei? Não ousei lhe perguntar.
Liguei para Marcela. Parecia contente de me ouvir. Atra-
vés de indicações dela, recebi um telefonema do dono de um
104 JOÃO ALMINO

restaurante famoso, que me contratou para registrar sua fes-


ta de aniversário. Convidei-a para me acompanhar.
— Estou apaixonada. E quando me apaixono sou cem
por cento fiel. Sabe, Cadu, acho que encontrei o homem de
meus sonhos: bom, fiel, sensível, carinhoso e inteligente. —
Só faltou acrescentar: “o contrário de você”.
— Estou te convidando única e exclusivamente para me
acompanhar.
Não convenci e fui sozinho. Se desse, teria fotografado o
perfume das mulheres, as conversas sobre política, a breguice
rica. As poucas mulheres atraentes — nenhuma tão bela
quanto Joana — ou me evitaram ou sorriram para minha
máquina, não para mim. Seria minha velhice chegando? Ou
pressentiam meu fracasso?
Preferiam, claro, ver-se acompanhadas do êxito fácil. Lá
estava entre elas o Escadinha. Cumprimentou-me como
quem dissesse: “veja onde estou e tu onde estás. Eu aqui,
como convidado, e tu penando para sobreviver. Eu, sem fa-
zer esforço, e tu te matando de trabalhar. Eu, grande artista,
e tu, mero fotógrafo de aniversário.”
Embora estivesse a trabalho, me servi de vários cham-
pagnes, que comprometeram não apenas meu equilíbrio e meu
estômago, mas também a qualidade das fotos. No entanto,
havia o que fotografar: políticos de várias tendências e ostras
de vários tamanhos. Ostras e mais ostras caíam de cascatas de
gelo sobre bacias gigantescas — as da foto acima, de número
20. Ostras frescas, trazidas no mesmo dia do Ceará.
O gordo de bigodes no centro da fotografia é o dono do
restaurante. Os outros são políticos. O interesse daquela foto
O LIVRO DAS EMOÇÕES 105

está na presença, à direita do aniversariante, do deputado


inimigo de Eduardo Kaufman, o que ele me apontara no
Piantella. Quando o vi, baixo, de barriga sobranceira, uns fios
louros e solitários de cabelo despontando sobre a careca lus-
trosa, e uma feiúra alva, franca e decidida, divisei com rapi-
dez meu plano: lhe daria munição para aniquilar Eduardo
Kaufman. Não podia ficar indefinidamente aguardando uma
providência da Receita Federal. Há pouco soubera que ele
integrava uma Comissão Parlamentar de Inquérito. Os do-
cumentos encontrados num dos computadores de Eduardo
Kaufman deveriam chegar com urgência a suas mãos e se-
riam a ponta do iceberg.
Ele me recebeu alguns dias depois. Agradeceu-me que eu
o tivesse procurado, se interessou pelos papéis que lhe mos-
trei e concordou que neles havia indício pelo menos de algu-
ma irregularidade. No entanto, seriam necessárias provas,
provas, provas. O que mais eu sabia sobre aquelas listas?
Como as havia obtido?

[1ºde agosto, noite]

21. Chefe arbitrando disputa por computadores

De aniversário em aniversário e de batizado em batizado,


fui chegando à conclusão de que, ao deixar de trabalhar para
Eduardo, minha liberdade não havia aumentado. Sentia-me
como os miseráveis, livres para se lamentar e passar fome.
Assim como o atleta de certo esporte radical se joga por de-
106 JOÃO ALMINO

zenas de metros sabendo estar seguro por um cabo que não o


deixa se espatifar no chão, ou como o trapezista vê embaixo
uma rede de segurança, eu percebia a vantagem de um em-
prego que me assegurasse o básico para minha sobrevivência
e me permitisse dedicar, nas horas vagas, a meus projetos nada
lucrativos. Ignorando o parecer de Guga, pensava mostrar
meus painéis de triângulos aos curadores do espaço do foyer
do Teatro Nacional, do Centro Cultural Banco do Brasil e
da Galeria da Caixa Econômica Federal.
Era maio de 2001, e o pilar seguro de meu esporte radical
veio a ser o Ministério onde Aída trabalhava. Ela me apre-
sentou a uma amiga, chefe de seção. Fui entrevistado e con-
segui um emprego. Meu primeiro emprego. Aída me oferecia
o argumento decisivo para adiar minha volta ao Rio. Seria
prestador de serviços, com direito a sala no subterrâneo, onde
se estendia, por longos corredores, algo semelhante a uma
pequena cidade, com suas ruelas e seu bazar árabe, e onde
era possível encontrar vendedores de carne, doces e frutas
frescas. Eu dividia a sala com vários empregados uniformiza-
dos de verde. Minha principal função era fotografar o ministro
apertando as mãos dos visitantes, sempre no mesmo conjunto
de sofás e com a mesma parede ao fundo, onde se viam uma
foto do presidente, um mapa e uma bandeira. Fazia também
fotos dos diretores de departamento, em sofás semelhantes ou
falando no auditório para uma platéia aborrecida.
No primeiro dia, assisti a uma conversa da diretora do
nosso departamento com seus chefes de seção e, assim, a uma
primeira aula sobre a administração de espertezas e vaidades,
que ocupa uma grande parte do tempo das chefias.
O LIVRO DAS EMOÇÕES 107

— Só peço opinião a quem tem o que dizer — afirmou.


À mim, ninguém pediria, pensei, enquanto me ocupava
com os clips na caixinha em frente. Pegava um e ia girando
de um lado para o outro, até se romper. Pegava outro, estica-
va-o como arame, depois quebrava-o ao meio. Abria um ter-
ceiro e deixava equilibrado, de pé, sobre a mesa, como uma
escultura de base piramidal. Com um quarto, fazia um qua-
drado. Com outro, um anel, enrolando-o no dedo. E desses
arames fui puxando uma idéia depois da outra e preparando
minha máquina para o momento certo, pois o bom fotógrafo
age como a onça diante de sua vítima, o pulo final resultan-
do de uma mistura de oportunidade, espera e agilidade.
— Você tem de encontrar uma forma engenhosa de des-
dizer esta notícia — a diretora ordenou a seu assessor de
comunicação.
Ela tinha um sorriso de quem se esforçava para ser simpá-
tica. Seu assessor lhe retribuía aquele sorriso com outro, de
quem tinha a obrigação de agradar. Embora nunca houvesse
trabalhado numa repartição, eu já tinha meus conhecimentos
básicos da administração pública, onde a competição não se
fazia pelo resultado do trabalho, mas pelo reconhecimento da
chefia, e para a chefia as realizações eram menos importantes
do que a notícia.
De repente, diante da diretora, dois desinibidos chefes de
seção começavam a brigar por três computadores novos. A
arte da fotografia é flagrar o momento em que os olhares dos
personagens e sua linguagem corporal revelam, como no tea-
tro, algo de suas personalidades. Algo de dramático, de sen-
sual, de estúpido... Ou de ridículo. Nada inventei naquela
108 JOÃO ALMINO

foto — a de número 21 acima — , que lembra um quadro de


Vermeer. Não busquei ângulos que distorcessem a expressão
de qualquer daqueles personagens. Apenas estava lá, a pos-
tos, como o fotógrafo deve estar, ao exercitar sua arte de alta
precisão. E precisão existe na luz que ilumina cada rosto, lança
um brilho tênue sobre a mesa, realça os desenhos do tapete e
divide o espaço em campos de claro e escuro. Existe também
na expressão de cada um dos fotografados e no seu nervoso
jogo de olhares.

22. Dia do aumento

Havia uma insatisfação geral. Reclamava-se da irrelevância


do trabalho, do desinteresse do ministro pelos funcionários, das
reformas inoportunas, das novas políticas, da personalidade da
chefe... Numa tarde as políticas e as reformas recuperaram seu
prestígio, o ministro e a chefe sua simpatia. O milagre, estam-
pado no bom humor da foto número 22 acima, fora operado
pelo aumento salarial. O personagem ao centro, de braços er-
guidos e olhos de satisfação, vocifera a notícia, que irradia ale-
gria em quem mais transita pelo longo corredor do primeiro
andar. É a foto de uma alegria comparável à de uma explosão
carnavalesca. O bom humor, que a fotografia pôde preservar,
durou o tempo de todos se acostumarem aos reais a mais e
passarem a considerá-los demasiado poucos para fazer face aos
novos gastos de mercado.
O LIVRO DAS EMOÇÕES 109

[2 de agosto]

23. Violeta

Meu olhar era como uma bola de metal brilhante, elásti-


ca e saltitante, que pulasse do chão ao teto e ziguezagueasse
de uma parede a outra, até soltar faíscas quando batesse nou-
tro metal brilhante. Uma tarde, quando deitei os olhos no
olhar lânguido de Violeta, as faíscas foram tantas que me
deixaram tonto. Já havia aprendido a deduzir de minha pou-
ca experiência de escritório uma regra de ouro: devia evitar
me envolver com colegas de trabalho, embora estivéssemos
em seções diversas, eu no subterrâneo e Violeta no primeiro
andar. Chato ficar com obrigação de lhes dar atenção e ali-
viar suas mágoas, quando era para ser transa inconsegiente.
Ficavam amigas demais ou de menos. À foto que fiz de Vio-
leta — a de número 23 — foi a seu pedido. Ela me lança um
olhar castanho, de modelo em passarela, de quem ao mesmo
tempo despreza e quer seduzir, um meio rosto iluminado pela
luz natural da janela e um brilho nos lábios sérios e verme-
lhos. Usando minha máscara de bom profissional, mantive a
distância necessária entre fotógrafo e fotografada. Obedece-
ria rigidamente à minha regra de ouro.

4 de agosto, madrugada

Acho que Laura está se cansando de mim. Quando passou aqui


ontem, foi direto ao laboratório. Incomodou-me a frieza de sua voz
110 JOÃO ALMINO

baixa e circunspecta. Não tinha posto perfume. Mal me cumprimen-


tou e não se ofereceu para continuar minha seleção das fotos. Seus
passos soavam mais fortes do que de hábito, como se seus sapatos
pisassem o chão com raiva. Será que acha que sou um velho enxerido?
Tive de lhe pedir por favor para colocar em ordem duas ou
três fotos, sobre as quais já escrevi. Foi tudo o que fez, apressada,
sem comentar as velhas canções que pus para ela ouvir, dos Beatles
e de Caetano Veloso.
Mais tarde Carlos me ligou. Não esperava sua chamada.
Gentil.
— (Como é que você está, meu amigo? O que anda fazendo?
— me perguntou.
— Estou escrevendo minhas memórias da perspectiva de um
homem vinte anos mais novo.
— Então preciso lhe enviar um dos contos preferidos de Ana,
não sei se você conhece. É de Borges e se intitula “O outro”.
Imediatamente me lembrei de uma discussão literária entre
Guga e Ana, há muitos e muitos anos.
— Acho que nunca o li.
— Vou lhe mandar em duas versões: uma eletrônica, para
você ouvir no computador, e outra, impressa, a ser lida para você.
Fui injusto com Carlos nas primeiras páginas deste diário. Se
disse que sobrevivi a todos os amigos de minha geração que ainda
moram em Brasília, é que ele é mais velho do que eu e nunca o
considerei propriamente meu amigo. Ainda assim é quem resta de
meu antigo círculo de amizades. Gosto de receber suas chama-
das, bem como sua atenção bondosa. Notando um pigarro em
minha garganta, talvez sequela de meu último resfriado, me fez
várias recomendações, sinceramente preocupado comigo.
O LIVRO DAS EMOÇÕES 111

Depois que nos despedimos, meus setenta anos bateram à


porta, se apoderaram de mim, me trouxeram a esta poltrona, re-
laxaram meus músculos e meus pensamentos e me deixaram a sós
com meu passado. Durante o resto do dia ouvi com voz de com-
putador o que escrevi até agora. Faz diferença escolher voz de
homem ou de mulher, de jovem ou velho, com timbres agudos ou
graves. Pus uma voz masculina e nova, mas não há como evitar o
tom monotônico do computador, que me dá medo e angústia. O
remédio foi ouvir a sinfonia número 41, Júpiter, de Mozart, com
Marcela a meus pés.

[7 de agosto]

24. Do desprezo de uma mulher no olhar do gato

Era um dia de ar frio e claro, começo do inverno. Aída


não quis ir comigo à casa de Ana Kaufman. Não a conhecia
e já a detestava.
Peguei carona com Tânia, para lhe fazer companhia, pois
Paulo Marcos viajara a São Paulo. Ela trazia no rosto quase
sem pintura a simpatia sincera das amizades profundas e es-
tava vestida com a elegância descontraída que sempre asso-
ciei às cariocas.
Levei para Ana novas cópias das fotos que fizera dela há
menos de dois anos, as mesmas vendidas a Eduardo. Já lhe
dera umas tantas, ainda naquela época, mas estas se viam
melhores, após reenguadramentos e um trabalho cuidadoso
de laboratório.
112 JOÃO ALMINO

Ana e seu gato Josafá tinham um jeito airoso de olhar, de


mexer com a cabeça e de se acomodar na poltrona. Josafá,
com sua pelagem lustrosa e amarelada, silenciosamente exi-
bia sua vida interior e suas patas brancas. Desprezava-me
tanto quanto Ana. Ela mal viu as fotos que eu lhe trouxe.
Parecia mais interessada em meu irmão Guga, com quem
arranjou assunto literário. Os dois adoravam Borges e troca-
vam impressões sobre seus contos.
— Meu livro preferido é El libro de Arena — dizia Ana.
— É nesse que está aquele conto da seita dos trinta? Se-
gundo o raciocínio de muitos dos sectários, quem olha uma
mulher para cobiçá-la já cometeu adultério em seu coração...
Veja só, Tânia! — Olhou para ela como galã de novela. — En-
tão todos os homens cometem adultério. E já que o desejo não
é menos culpável do que o ato, diz assim o texto, “os justos po-
dem se entregar sem nenhum risco à mais desaforada luxúria.”
Tânia retribuiu seu olhar e riu, embora com um riso que
me pareceu protocolar, de quem ri para ser gentil.
Doía-me por dentro, como frustração não admitida, que
Ana fosse condescendente para comigo, me vendo com ar
superior. E eu que pensava que uma mulher que fora minha,
que se dera de uma maneira tão completa, poderia ser recon-
quistada... Fotografei Josafá, e no olhar dele registrei o des-
prezo de Ana por mim. É o que se vê na foto número 24 acima.

25. Ar de domingo à tarde

Para compensar, Carlos tinha bom uísque. Servi-me de


uma dose tripla.
O LIVRO DAS EMOÇÕES 113

— Você não ia trazer sua namorada? — Ana me pergun-


tou. Eu lhe dissera que viria com Aída.'
— Não quis vir.
— Desta vez é sério, Cadu?
— Não só desta vez...
— Você sabe o que quero dizer. Você pensa em se casar
algum dia?
Quase lhe respondi que era por opção que não estava
casado; por estar convencido de que o desejo do homem era
vadio e corria de mulher em mulher.
— Pareces meu irmão Antônio. Já me casei várias vezes.
— Desculpe, não estou criticando. Mas você nunca le-
vou a sério suas relações. Nem o casamento com Joana você
assumiu.
— Conte um pouco de você. O que anda fazendo? —
Tânia me perguntou.
— Nada. Me dedico ao ócio. Depois de tentar fazer de
tudo e ter fracassado em tudo, cheguei à conclusão de que
nada vale a pena. — Ecoei uma frase do Guga, cujo signifi-
cado eu começava a entender.
Não era força de expressão. Cansara-me de procurar sen-
tido para o que não tinha sentido. Não esperava nada da vida,
nem do amor, não esperava sequer a conquista do nada e do
vazio. Contudo, isto não me deixava melancólico como o
Guga, nem conformista, mas, sim, aliviado e combativo. Sem
a angústia de quem teme a derrota, me esforçava para atin-
gir meus objetivos e principalmente para vencer meu maior
inimigo, o que roubara o país e minha mulher, Eduardo
Kaufman.
114 JOÃO ALMINO

— Cadu vai fundar o niilismo brasileiro — ironizou Ana.


— Foi o Imperador Septímio Severo quem disse: “Fui
tudo: nada vale a pena; Omnia fui, et nihil expedit” — falou
Carlos, exibindo seu latim de ex-seminarista.
— Você é acomodado, Cadu. Com seu talento, devia ir
à luta, montar seu laboratório fotográfico... — disse Ana.
— Está montado e dedicado a casamentos, batizados e
aniversários. Ninguém até agora me contratou para funerais.
— Se você quiser, posso indicar seu nome à diretora ar-
tística do Teatro Nacional, uma grande amiga minha. Deve
precisar de fotógrafo para a homenagem a Paulo Antônio que
está organizando.
— Paulo Antônio foi idolatrado pelas razões erradas. Pelo
nacionalismo. Pela megalomania. — Carlos opinou.
O sangue subiu à cabeça de Tânia. Ficava vermelha quan-
do se exaltava. Defendeu Paulo Antônio com paixão. Tinha
pontos de vista inabaláveis quando se tratava de política.
Se eu soubesse dizer de maneira inteligente, diria que
política não me interessava. Deixei que Guga se encarregas-
se de manter viva a discussão:
— Aqui, quem não é populista ou autoritário é as duas
coisas juntas.
— Não exagere. Há tradições liberais — Ana opinou.
— O liberalismo não se sustenta diante de tanta miséria
— Guga retrucou.
— Se Paulo Antônio não fosse negro não teria sido tão
popular — provocou Carlos.
— Muito pelo contrário, a velha discriminação racial
gerou desconfiança e rejeição em muita gente — Tânia ar-
gumentou,
O LIVRO DAS EMOÇÕES 115

— Uma coisa é certa: as diferenças ideológicas hoje em


dia contam pouco. Os problemas urgentes são os da fome,
da doença e da ignorância. E não há tantas maneiras assim...
— Ana tentava mudar o foco da discussão.
— Concordo que a principal diferença entre os políticos
não é ideológica. Eles podem ser classificados por decibéis.
Os que gritam mais alto são mais convincentes — eu disse,
pensando no discurso inflamado de Eduardo Kaufman no
Jardim da Salvação e expondo pela primeira vez em público
a teoria que eu vinha desenvolvendo.
— Por isso, Guga, o que mais conta hoje em dia é ser bom
administrador — Carlos retomou o raciocínio de Ana. — E
as linhas divisórias existem entre os corruptos e os não-
corruptos; entre os demagogos e os que querem resolver os
problemas; os que só vêem seus interesses particulares e os
que se preocupam com o bem comum. E você tem razão,
Cadu, existe também uma diferença entre quem quer con-
vencer à base de murros e urros e quem sabe expor suas ra-
zões com serenidade.
— Para não dependermos da qualidade das pessoas é que
precisamos melhorar as instituições — opinava Guga.
— Eduardo não está por trás desta homenagem, não é?
Porque se estiver, vai vetar minha participação — comentei
com Ana, sobre sua proposta para o Teatro Nacional.
— Não. Deve estar lá como convidado. Não mais do que
isso.
— Esse é um exemplo típico de demagogo — Carlos disse.
— A demagogia, ampliada pela mídia, é da essência da
política. Parecer fazer é mais eficaz do que fazer. Enquanto
116 JOÃO ALMINO

fazer pode provocar reações indesejáveis, qualquer ator de


segunda, como Eduardo Kaufman, exerce um poder de se-
dução diante das câmaras — disse Guga.
O que me incomodava era que fosse ladrão. O que teria
a Receita feito com minha carta e os documentos que eu
enviara?
— O que eu queria mesmo era fazer uma exposição de
minha obra — esclareci a Ana.
— Vou lembrar à minha amiga suas fotos de Paulo
Antônio.
— Ágora queria expor outro tipo de trabalho.
— Você tem fotos bonitas. Deve expor, sim — afirmou
Tânia.
— O problema é que ninguém se interessa...
— "Temos uma amiga que abriu uma galeria. Vou logo
avisando, o lugar é estranho. Mas, tirando isso, o espaço é óti-
mo. Que tipo de trabalho você exporia? — Tânia perguntou.
Referi-me, de forma vaga, aos painéis de triângulos, como
abstrações baseadas na disposição geométrica de detalhes de
corpos, algo que lembrava, como eu indicara a Ana outra vez,
aqueles dois quadros na sala — o de fotografias de séries de
casas e o que mostrava rótulos e cartões. Queria também
dedicar uma parede a Brasília, através de plantas e flores,
contrastando a estação das chuvas à da seca.
Caminhando pelo jardim à procura do melhor ângulo para
uma fotografia, encontrei Formiga, o sobrinho de Ana. Já o
vira algumas vezes, a última há cerca de dois anos.
— Precisando da branquinha, da boa, me procure. Te-
nho também um fumo poderoso.
O LIVRO DAS EMOÇÕES 117

Quando a luz do sol perdeu sua agressividade e as sombras


já se alongavam sobre o chão, registrei, na foto panorâmica
reproduzida acima (a de número 25), o clima de domingo à
tarde que nos envolvia a todos. No primeiro plano, um tapete
de flores vermelhas. À direita, as colunas de madeira através
das quais se avista a piscina. Ao fundo, à esquerda, os arcos da
Ponte JK entrelaçados, como uma flor. Na cena central, a pro-
va impressa de que os olhares de Tânia e Guga se cruzam. Eles
conversam animadamente no terraço coberto com palha de
carnaúba, enquanto o lago Paranoá brilha salpicado de barcos
a vela, Plano Piloto ao fundo.

11 de agosto

Os sintomas de mais uma gripe e minhas dores de coluna são


suficientes para enterrar minhas fantasias de juventude. Tenho
passado muito tempo deitado, ouvindo os barulhos dos vizinhos e
sentindo os cheiros que entram pela janela. Nesta idade, uma mera
gripe pode ser fatal.
Agarro-me, como se fossem troncos de árvore no meio da cor-
renteza, a estes objetos que já são parte de mim e ainda me provo-
cam: roupas de Joana e um coração de prata, que preservo como
relíquias, e sobretudo fotografias e mais fotografias, que são como
uma escrita de tudo o que fui. Enxertada em meu corpo, em mi-
nha pele, está a bagagem de lembranças misturada a um resto de
devaneio, que às vezes chamo de esperança e se veste de mágico
de circo para enganar a morte certa.
118 JOÃO ALMINO

Carlos passou para me visitar e me trouxe o conto prometi-


do. O livro de páginas grossas e porosas pertenceu a Ana, me
disse. Deu-me também uma cópia digital, que poderei ouvir no
computador. O tom de sua voz evidenciava o corpo curvado pela
idade.
Velhos conversam sobre doenças e sobre as vantagens da ju-
ventude sobre a velhice. Não é nosso caso. Embora as novidades
já não me pareçam novas, meus instintos ainda guardam algo de
minha juventude. Quanto a Carlos, já agia como um velho quando
o conheci. Por isso não me surpreende que defenda as vantagens
da velhice sobre a juventude.
— Está em Platão que a idade substitui os prazeres do corpo
pelos da conversa e traz um grande sentido de calma e liberdade.
Quando perguntaram a Sófocles como o desejo sexual evoluta com
a idade, ele respondeu que sentia como se tivesse escapado de um
tirano louco e furioso; isso é Platão quem conta.
É provável que Carlos tenha razão. Mas sua filosofia, como a
de Platão, pouco me serve quando penso em Joana ou Laura vem
aqui. A idade não tem virtudes próprias. Provoca um efeito dife-
rente em cada um. Apenas reage, como um produto químico, àquilo
que já trazemos dentro de nós, ou seja, a nossos próprios defeitos
e qualidades. Não respondi a Carlos, mas sou capaz de apostar
que isto também está em Platão.
— Lamento apenas que seja justamente quando a gente apren-
de a viver que tem de se despedir da vida — Carlos acrescentou.
O LIVRO DAS EMOÇÕES 119

[16 de agosto]

26. Ana e seus três maridos

Tinha passado a viver no meu estúdio do final da Asa


Norte, quando recebi um telefonema da diretora artística do
Teatro Nacional. Confirmava o convite para que eu registrasse
a homenagem a Paulo Antônio Fernandes. Além disso, a
curadora da exposição que seria inaugurada na mesma oca-
sião gostaria de ver meu trabalho.
Levei-lhe meus portfólios, e ela escolheu três fotos da série
que eu estivera preparando para Eduardo Kaufman. Uma era
da posse de Paulo Antônio. No dia previsto, fui ao Teatro
Nacional de máquina fotográfica em punho. Aída ficou de
me apanhar quando terminasse. De lá sairíamos para jantar.
Escadinha desfilava de um lado para o outro, distribuin-
do sorrisos e cumprimentos. Frequentar todas as recepções
era um ingrediente de sua fórmula do sucesso, que também
incluía ser simpático, contar vantagem sobre o que fazia e
inventar conceitos incompreensíveis. Não era difícil enganar
quem, como a maioria da humanidade, era incapaz de ver.
Eduardo Kaufman tomou a palavra. Falou no drama so-
cial. Em esperança. Mentiu através de números. Três ou qua-
tro vezes se referiu ao futuro e também à memória de Paulo
Antônio, o líder que ajudara a modernizar o país. Foi muito
aplaudido. A foto que tirei de baixo para cima registra seu
olhar quebrado e o sorriso falso desenhado nos cantos da boca.
Começa com pernas gordas e compridas que vão se estrei-
tando e termina com uma cabeça minúscula, uma foto que
120 JOÃO ALMINO

vim a vender, juntamente com outras do mesmo gênero, em


circunstâncias que ainda pretendo narrar.
Intrigou-me uma cena cujo significado somente compre-
endi dias depois. O deputado que me recebera, o suposto
inimigo de Eduardo, o cumprimentou efusivamente. Não
pareciam trocar palavras ásperas. Comportavam-se como
velhos amigos.
Quando vi Eduardo se dirigir a Ana, me aproximei. Ele
me tratou com indiferença. Se soubera de minha denúncia à
Receita, não deixou transparecer.
Ana trajava um vestido longo e azul-escuro, cigarro à mão.
Elogiou minhas fotos na exposição e pediu que a fotografasse
entre o ex-marido Eduardo Kaufman e o atual marido Carlos.
Tudo muito moderno, pensei, surpreendido pela atitude tanto
de Ana, que parecia haver esquecido o escândalo de sua sepa-
ração de Eduardo, quanto de Carlos, que fingia estar à vonta-
de ao lado de quem tanto criticara. Depois Ana sugeriu que
me juntasse para uma foto do grupo, que fiz no tripé, usando
um disparador de cabo: da esquerda para a direita, eu, ela,
Carlos e Eduardo. É a foto acima, a de número 26. Nela todos
sorriem seus sorrisos de coquetel, menos eu, genuinamente
contente por estar promovido a um grau equivalente ao de
marido ou ex-marido. Eu posava para a posteridade. Queria
uma foto, como alguém já terá dito, que refletisse minha es-
sência, correspondesse a minha imagem neutra e representas-
se quem eu acreditava ser. Sentia-me valorizado ao lado de Ana,
percebendo que ela voltava a ter apreço por mim.
— Dona Ana e seus três maridos — cochichei no ouvi-
do dela.
O LIVRO DAS EMOÇÕES 124

— Você, marido? — ela riu.


— O que foi? — Carlos perguntou.
— Não, nada — ela respondeu e piscou um olho para mim.
Demorei a perceber que a imagem neutra não existe, pois
a fotografia não capta senão o instante passageiro e que nun-
ca mais se repete.

21. O anão e a profetisa

Quando Aída chegou para me apanhar como combina-


do, Íris Quelemém saía. Eu a via contra a vegetação que con-
tornava o Teatro Nacional. Algumas pessoas vinham beijar
suas mãos. Lembrei-me que ali mesmo, há muitos anos, uma
multidão se juntara em torno dela. Aída desceu do carro e
veio ao meu encontro. Queria ver Íris de perto e pediu que
eu a apresentasse à famosa profetisa. Não sei se Íris me reco-
nheceu, mas foi gentil comigo e resmungou para Aída algo
que não entendemos. Diante do céu de Brasília escancarado
para todo o cosmos, Aída me fez prometer que iríamos um
fim de semana ao Jardim da Salvação.
No centro de uma das fotografias que fiz, as mãos morenas
e enrugadas de Íris espremem com carinho nervoso a cabeça
de uma criança. Na penumbra, o Teatro Nacional é uma pirà-
mide estranha, exibindo listras brancas sobre vidro negro, cu-
bos e mais cubos de branco sobre branco. A profetisa, rosto
grave, deformado por seus quase noventa anos, aparece raquí-
tica e encolhida, de perfil, sendo empurrada em sua cadeira de
rodas por um anão gorduchinho, vestido com um uniforme
marrom e coberto de fitas e medalhas. Sei que não fica bem
122 JOÃO ALMINO

descrever alguém por seu peso e altura. Mas não consigo uma
maneira mais clara de traduzir em palavras a imagem que fi-
cou registrada em minha cabeça e também naquela fotogra-
fia, a de número 27 acima.

17 de agosto

Hoje o calor e o ar seco somente se tornaram suportáveis quan-


do, atendendo a meu convite, Maurício e Carolina passaram por
aqui no fim da tarde.
Carolina chegou antes. Marcela era uma alegria só. Come-
çou a latir já quando o carro estacionou e gemeu longamente quan-
do minha afilhada entrou no apartamento, como se reclamasse de
sua longa ausência.
— Então, sua estagiária está se saindo bem? — Carolina
perguntou.
— Não veio na última semana. Por isso acabei me atrasan-
do na escrita de meu livro.
— Está viajando.
— Se falares com ela, diga-lhe que estou com saudades.
— Você gosta de Laura, não é, padrinho?
Cerquei minha estagiária de adjetivos inocentes e elogiei suas
qualidades, sem denotar nada que fosse além de uma relação pro-
fissional e de amizade, para finalmente justificar que apreciasse
sua companhia.
— Tanto mais que toca bem violão e lê para mim.
Menti. Ela nada leu para mim, embora eu pretenda lhe pedir
que me leia o conto que Carlos me trouxe há poucos dias. Prefiro
O LIVRO DAS EMOÇÕES 123

sua voz à da câmara falante. Mentira maior é que não é a ausên-


cia de Laura, e sim um bloqueio, que atrasa a redação de meu
livro. É várias vezes mais difícil escrever buscando a forma defi-
nitiva já na primeira tentativa, tanto mais depois da recente sele-
ção de fotos que Laura me ajudou a fazer.
Quando Maurício chegou, pedi que abrisse no computador o
arquivo com a primeira daquelas fotos.
— Deve ser o ipê-roxo, bem na entrada da quadra de Aída.
Tu te lembras? — lhe perguntei.
— Nunca esqueci uma história que você me contou quando
eu era criança — me disse Carolina. — Que depois de criar o
arco-íris, Deus chegou com seus pincéis e o primeiro que pintou
no mundo foram as flores. Delas vem o colorido do mundo, você
dizia. Sempre penso naquela história quando vejo suas fotos de
flores.
Gostei de ouvir seu relato. Fazia-me lembrar que algum dia
eu agira como um padrinho devotado e de coração sensível.
Preenchemos o restinho da tarde com conversas moles sobre
as ocupações dos dois e minha desocupação. Consertamos os pro-
blemas do mundo, do Brasil e de Brasília, eu com tudo o que já
vivi e mais meu ceticismo, e eles, com seu entusiasmo e espírito
crítico. As soluções foram simples e levaram apenas um par de
horas. No mundo, enquadramos países egoístas e governantes
loucos. No Brasil, mudamos o governo. Finalmente, acabamos
com o caos de Brasília e ainda aproveitei para:criar um enorme
espaço escultórico na Esplanada dos Ministérios e voltar ao pla-
no de Lúcio Costa de construir cafés em torno da rodoviária.
Maurício sempre me dá a impressão de que ainda não sabe o
que será na vida e, enquanto não sabe, a música ocupa todo o seu
124 JOÃO ALMINO

tempo. Se o chamasse de irresponsável deveria aplicar o mesmo


adjetivo a mim.
Saíram juntos, ele e minha afilhada, exatamente como plane-
jei. Reconheço os barulhos de seus carros e sei que cada um se-
guiu no seu. Nada impede que tenham marcado um encontro,
quem sabe ainda para esta noite. Pela forma como se dirigiam um
ao outro, estavam contentes de se ver.

[18 de agosto]

28. O ipê-roxo

Maurício passava o fim de semana com o pai. Fiz um


drinque à base da vodka que Aída guardava no congelador.
Ela estava ali na minha frente, com um livro aberto em suas
mãos, e seus gestos eram feitos de delicadeza e afeto. Tece-
mos as horas ouvindo música e conversando vividamente
interessados um no que o outro dizia. A noite nos cobria com
seus lençóis densos e compridos e nos tragava para o fundo
de seus precipícios negros. Resolvemos esticá-la por estrelas
silenciosas e lufadas de verdade, e ouvimos o aplauso dos anjos
nos confins do tempo. Banhamo-nos, mais do que de espe-
rança, de certeza.
Aída se ergueu para baixar a persiana, vestida numa ca-
misola fina, branca, que mostrava o desenho de seu corpo.
Seu andar ondulado ensaiava o vôo de uma garça. Abracei-a
com ardor e nos beijamos demoradamente.
— Esperamos dez anos por isto — ela disse.
O LIVRO DAS EMOÇÕES 125

— Naquela época terias transado comigo?


— Vontade não faltava, mas sempre fui fiel a meu mari-
do, embora ele não merecesse.
Ela me deu solenemente uma caixinha de presente e, den-
tro dela, um coração de prata com nossos nomes gravados.
Depois senti um prazer raro e doce de ficar deitado ao lado
dela, na cama. Tudo aconteceu muito rápido, entreiem Aída
com vontade. Ela se abriu para mim com a flexibilidade de
uma bailarina, em split de cento e oitenta graus. O gozo foi
tanto que, enquanto meu sêmen era expelido, caiu saliva de
minha boca sobre sua pele delicada. Percorri com olhos fa-
mintos seu corpo branco, de quem não tomava sol. Sobre o
abdômen, havia a marca de um corte, e os seios talvez tives-
sem sofrido uma plástica.
Lágrimas desceram dos olhos de Aída. Eram lágrimas de
prazer, ela disse, de achar que aquele momento jamais se re-
petiria. Por que não? Perguntei. Claro que ia se repetir mui-
tas e muitas vezes.
No banho ensaboei o corpo de Aída, acariciei seus seios
com a espuma e ficamos deslizando nossos corpos um no
outro. Enxuguei carinhosamente cada milímetro de sua pele.
Pus gotinhas de perfume atrás de suas orelhas. Ainda per-
manecemos abraçados na cama, sem dizer uma palavra, eu
cheirando seu perfume, ela de olhar triste, sereno, de uma
serenidade e uma tristeza que ela disse serem felizes, como
felizes haviam sido as suas lágrimas.
— Por que você não vem morar comigo! — perguntou
de repente.
Não respondi, mas a idéia não me desagradava.
126 JOÃO ALMINO

[19 de agosto]

Comecei a frequentar Aída mais amiúde. Falávamos de


tudo. Compartia com ela meus planos e minhas preocupa-
ções. Num dia em que vi publicada, com a assinatura de um
diretor de uma estatal, uma lista semelhante à que eu en-
contrara num dos computadores de Eduardo, comentei com
ela minhas suspeitas.
— Se você descobriu mesmo alguma coisa, passe a in-
formação à imprensa — me sugeriu.
— É também o que Guga pensa.
O deputado que eu procurara tinha mudado de legenda.
Seu novo partido fechara um acordo com o de Eduardo em
São Paulo. Os ex-inimigos haviam passado a ser aliados de
campanha. A imprensa parecia de fato um melhor caminho
para minha vingança.
Através de contatos de Guga, consegui ser recebido por
um repórter do Correio Braziliense a quem indiquei o que
deveria ser investigado: o caixa dois das empresas de Eduar-
do sediadas na Amazônia; contas bancárias dele ou de seus
laranjas nas ilhas Jersey ou em Cayman; a lista dos políticos
beneficiados e a das empresas participantes do esquema.
Minha suposição, lhe disse, era que Eduardo Kaufman havia
montado um esquema de financiamento de campanhas elei-
torais de prefeitos, calculando receber apoios políticos quan-
do se candidatasse a deputado federal. Canalizava recursos
próprios e de terceiros através de agentes. Nenhuma doação
era declarada. Contei-lhe também das festas financiadas em
Brasília pelo mesmo esquema.
O LIVRO DAS EMOÇÕES * om

— Financiamento ilegal de campanhas eleitorais é mui-


to comum — ele respondeu. — Mas, de concreto, o que você
tem? Se pelo menos eu pudesse seguir algumas pistas...
Mostrei-lhe as duas listas.
— É um começo, mas é pouco — afirmou. — Onde é
que estão Os comprovantes de transferências de recursos, de
depósitos, de saques? Você não tem mais nada? Talvez junto
desses documentos esteja a contabilidade do caixa dois. Se
você conseguir mais alguma coisa, me procure.
Arrependi-me de não ter feito uma varredura completa
em todos os computadores de Eduardo. Lá deveriam estar as
provas definitivas ou pelo menos outros documentos que o
incriminassem. No mínimo dos mínimos haveria as datas da
feitura dos arquivos.

[19 de agosto, noite]

Era junho de 2001, e na companhia de Aída me especi-


alizaria em desgraças sociais. No cinema ela queria ver retra-
tadas as injustiças, patrões cruéis, magnatas se dando bem,
miseráveis tangidos pela fome, policiais corruptos, o drama
da prostituição, a violência provocada pelo tráfico de dro-
gas. A contragosto cedi a seus apelos, a realidade era a reali-
dade. Na Academia assistimos a vários filmes, dois deles sobre
as tragédias do Nordeste, atores de televisão falando com
sotaque nordestino, personagens vendendo seus próprios
órgãos, comendo calangos e preás para sobreviver à seca e
128 JOÃO ALMINO

depois emigrando para São Paulo, onde eram mortos na rua


ou na cadeia...
Um dos filmes se baseava na autobiografia de um sem-
terra. Outro, também de cunho autobiográfico, narrava a
história de uma adolescente ludibriada, levada como prosti-
tuta para a Espanha.
Aída se maravilhava que fossem histórias verdadeiras, que
os personagens existissem na vida real, que a ficção não fosse
ficção, que as notícias de jornal pudessem se estender de-
talhadamente por duzentas, trezentas ou seiscentas páginas,
com riqueza de gírias, e depois fossem levadas ao cinema.
Ao contrário de Aída, eu não tinha o otimismo da revolta.
Além disso, não precisava provar uma bondade que me era
alheia. Nossas divergências sobre cinema e religião não impedi-
am, contudo, que fôssemos um casalzinho de namorados apai-
xonados. Queria estar junto de Aída e preferia os filmes à missa.
— Olha esse ipê-roxo — apontei.
Brasília tinha mil canteiros e quatro mil árvores nativas
que, em meados de junho, se cobriam de flores. Uma delas se
destacava, a da foto acima, de número 28: um ipê-roxo, so-
bre um azul uniforme, de um céu sem nuvens. Era a árvore
de Aída, que, na entrada de sua quadra, a 216 Norte, junto
com o amarelo das sibipirunas, enfeitava o cair das tardes,
trazendo o inverno.
— Lique as raízes são tão profundas que chegam ao len-
çol freático. Por isso ele se enche de flores mesmo na seca —
disse Aída.
Elegi aquele ipê como símbolo do que eu deveria fazer:
ficar num só lugar, com raízes profundas. Com Aída, mesmo
O LIVRO DAS EMOÇÕES 29

que não concordássemos em tudo, havia a promessa de uma


relação estável.

29. A modelo ideal ou a metamorfose do fotógrafo

Quando, finalmente, após as recusas dos museus e centros


culturais, a galeria indicada por Tânia e instalada numa gara-
gem ampla e abandonada do Guará aceitou fazer minha expo-
sição, Aída quis me convencer em vão a trocar meus triângulos
por fotos que eu deveria fazer na Vila Paulo Antônio. Ela me
acompanharia, me ajudaria. Mas o que para ela era qualidade,
para mim parecia defeito. As fotos provariam teses conheci-
das e seriam bem mais repetitivas do que meus triângulos.
— À fotografia tem de surpreender — eu lhe disse.
— E você acha que está surpreendendo com essa por-
nografia?
— Ninguém jamais fez uma composição de seiscentos
desses triângulos, dispostos com variações de cor, tonalidade
e forma.
Entre os que não vieram ao vernissage, Guga ligou se
desculpando.
— Tu tens razão de valorizar a cumplicidade entre o fo-
tógrafo e os fotografados. E cumplicidade é o que não falta
nos meus painéis de triângulos — aproveitei para pôr os pin-
gos nos is.
O sobrinho de Ana, o Formiga, passou rapidamente e me
fez elogios rasgados:
— Nunca vi nada igual. Foi tia Ana quem me falou da
exposição.
130 JOÃO ALMINO

Contudo, Ana não veio. Nem Antonieta. Nem mesmo


Marcela, que se deixara fotografar para aquele meu projeto e
a quem eu fazia uma homenagem secreta, colocando seu
triângulo no centro de um dos painéis. Não vieram nem se
desculparam.
Antônio, que soubera de detalhes da exposição por Guga,
me disse ao telefone:
— “Tu não te emendas. Tuas coleções não servem para
nada, mano. Tu nunca estarás saciado.
— É como uma refeição — resolvi provocá-lo. — Não
te sacias de uma vez por todas. No dia seguinte, queres mais.
E quanto melhor, mais queres.
Verônica exibia simpatia, saltos altíssimos e um vestido
vermelho. Achei atraentes seus olhos vesgos por trás de uma
armação retrô, que examinavam detalhes das fotografias,
como se quisessem descobrir segredos ou realizar análises ci-
entíficas. Aída permaneceu até o fim e repetia aos presentes,
em tom de pilhéria, que não servira de modelo para qualquer
das fotos.
Quando o Escadinha chegou, os dois fotógrafos que, por
própria conta e risco, faziam a cobertura do vernissage se acer-
caram para nos retratar. Era como se eu estivesse recebendo o
reconhecimento de uma autoridade em fotografia. Passou pou-
co tempo e não emitiu parecer sobre meu trabalho.
Vieram meus amigos fiéis, Paulo Marcos e Tânia.
— Você não perde tempo, não é, Cadu? — Tânia brincou.
Inesperadamente, como um fantasma que me despertas-
se no meio de um longo sono, apareceu uma das fotografa-
das, de cabelos desgrenhados e beleza maltratada pela idade.
O LIVRO DAS EMOÇÕES 131

Eu a conhecera numa luarada, dividindo com ela o chimar-


rão, num perfeito entrosamento entre o Nordeste — a moça
era do Recife — e o Pampa. Era uma noite fria num descam-
pado do Planalto, e ela usava um poncho peruano. Tinha
vinte e poucos anos, pele macia e morena. Levei-a à luz do
luar para um lugar ermo, ali perto, e deitei o poncho no chão.
Enquanto me deliciava com cada milímetro de minha pene-
tração vagarosa e delicada, ela gritava “não” cada vez mais
alto. O terceiro “não”, por seu tom cantado e choroso, en-
tendi significar “sim, entre com toda a paixão de que é ca-
paz”. Não digo que agi como um animal selvagem, porque
nem todos copulam com tanta energia e violência. Houve
uma pequena luta corporal, e, após dominá-la pela força, ela
relaxou. Fizemos amor aquela única vez. Eu registrara o en-
contro com um close do triângulo, único de todos os que
expus fotografado em meio a tal desvario e com um mínimo
de recursos técnicos.
Soube que ela ficara traumatizada. Se me encontrasse me
mataria. Agora, diante de mim, talvez guardasse rancor e um
revólver.
— Preciso falar com você, Vou procurá-lo no Ministério.
Sabia, portanto, onde me encontrar.
Após várias taças de um péssimo vinho branco, ia dar o
vernissage por encerrado, quando aprendi que regras de ouro
têm exceções de ouro. À exceção se chamava Lívia e era
minha colega de trabalho. Apareceu com seus olhos verdes
e cabelos frisados. Seu corpo arredondado e volumoso, gor-
do na medida certa e por inteiro, sem chances como mane-
quim, seria adequado a um quadro renascentista.
132 JOÃO ALMINO

— Gostei de seus nus. Ousados, sensuais e criativos, uma


coisa meio debochada. Gostei — repetiu.
Imaginei-a sentada à mesa do trabalho, nua, as mãos so-
bre o teclado do computador, as nádegas maiores do que a
cadeira, sua imagem contrastando com a parcimônia e sisu-
dez do ambiente.
Talvez os goles de vinho tenham me ajudado a lhe dizer:
— A exposição seria mil vezes melhor se tu ocupasses
uma de minhas paredes.
— Você nunca me convidou!
Fotografei ali mesmo o rosto de Lívia com minha câmara
digital.
Mais tarde me vi no painel esquerdo de um tríptico de
Bosch sendo levado pelos ares por monstros horrendos. Sen-
tia-me o próprio Santo Antônio, o das tentações, pairando
sobre cenas de punição. Não era só que as exceções de ouro
despertassem em mim os resquícios de minha moral cristã.
Elas eram para homens fúteis, imaturos e fracos. Eu não pre-
cisava delas. A prova era que Lívia ficava relegada a uma
fantasia passageira, a uma tentação para que eu pudesse ter
certeza de minha mudança.
— Contigo me sinto outro — beijei Aída carinhosamente
no rosto. -— Pela primeira vez me contento com uma só mulher.
— Não precisa mentir — ela me contestou. — Não vou
dizer que não tenha ciúmes. Mas sei como você é. Pago um
preço altíssimo por estar com você.
Apaguei a imagem de Lívia de minha câmara digital e pedi
que Aída sorrisse para mim. Em vez de usar a lógica e a razão
numa torrente de palavras para demonstrar meu afeto por
O LIVRO DAS EMOÇÕES 133

ela, prefiro mostrar a foto 29 acima, que não inventa nem


engana, diz tudo e vale um milhão de palavras. A luz artifici-
al projeta uma sombra de Aída sobre a mesa, onde repousa
um vaso de flores. As persianas riscam em horizontal o fun-
do da foto. A corrente de emoção que nos unia é visível nos
olhos e lábios de Aída. Nenhuma das minhas fotos, salvo uma
de Joana quando a conheci, transmite um sentimento seme-
lhante. Pelos olhos é possível medir a paixão de uma mulher,
e não há dúvida que o olhar de Aída é apaixonado, tão apai-
xonado quanto era o meu naquele instante.

[20 de agosto, manhã]

30. Lixo em tarde romântica

Mudei-me para o apartamento de Aída, e criamos roti-


nas para estarmos juntos. Cozinhávamos. Caminhávamos em
torno da quadra. Às vezes íamos ao bar da entrequadra to-
mar uma cerveja. A cama passou a ser também uma rotina,
da qual não nos cansávamos. À diferença de Joana, Aída me
desejava. Poucas carícias eram suficientes para deixá-la
molhadinha e doida por mim.
Víamos televisão juntos, ela, eu e Maurício. No noticiá-
rio, a violência no Rio: Vigário Geral, Rocinha... Crimes,
ocupação dos morros pela polícia, envolvimento da polícia
com o tráfico... Era ao crime e à miséria, as duas únicas rea-
lidades, que eu deveria me dedicar com minha fotografia,
134 JOÃO ALMINO

Aída insistia. Maurício, assustado com as notícias, andava


armado de canivete e se pudesse comprava um revólver.
— O Plano Piloto não é o Rio, Maurício — eu tentava
tranquilizá-lo.
Uma tarde, sentados, Aída e eu, no gramado do Pontão
do Lago, comentei:
— Mamãe quer que eu procure mais meus irmãos. Mas
não tenho nada em comum com eles. Me irritam. Com Antô-
nio, meu problema vem de longe. Quando éramos guris, sem-
pre estava certo. Tirava boas notas. Já tinha opiniões sensatas.
E virou um sujeito sério, fechado, de poucos amigos. Comedi-
do até na bebida. Nunca o vi bêbado. Já Guga é intelectual e
depressivo. Tanto um quanto outro me fazem cobranças. An-
tônio acha que sou vagabundo. Guga, que sou ignorante.
— Guga é mesmo presunçoso — Aída respondeu. —
Antônio não conheço, mas, pelo que você diz, não quero nem
conhecer. Deve ser um chato.
— Minha relação com mamãe também nunca foi fácil.
Quando eu era guri, eu a provocava a tal ponto que chegou
a me bater. Ela não gostava de mim, pelo menos não tanto
quanto de Antônio e Guga. Antônio fazia tudo o que ela
queria. E Guga era malandro, fazia o que bem queria sem que
ela soubesse.
Enquanto falava, eu fazia como um contorcionista o
enquadramento da foto acima, a de número 30. Aída olha
para baixo, para a água, ou para o fundo de sua alma. En-
quanto eu explorava suas formas, desenhadas no canto di-
reito da fotografia, observava as garrafas de plástico e os cacos
de vidro jogados no chão e outros restos de lixo, que ocupam
O LIVRO DAS EMOÇÕES 135

o fundo da foto, deixados, quem sabe, em outras tardes ro-


mânticas. Aída captava minha insegurança no ar trans-
parente daquela tarde. Ou terá sido nos meus pés, mais
precisamente em meus tênis irrequietos, cujas pontas são
visíveis no primeiro plano? Ela ouvia com atenção pensati-
va. Pontuava minhas frases com uma inspiração profunda,
como quem quer vencer o cansaço ou a tristeza. Eu nunca
tivera confidente, fosse homem ou mulher. Com Aída a meu
lado, me despia, por fim, de minhas defesas. Seus ouvidos
embalavam meus medos e hesitações, e minha cabeça era um
lixo de confidências.

31. O papagaio ou o sentido da vida

Aída queixou-se de dor nas costas, e nos sentamos à mesa


de um bar de entrequadra. As histórias de nossas vidas não
precisavam provar nada, ter final feliz nem um sentido aci-
ma delas mesmas. Se de vez em quando eu pudesse experi-
mentar a sensação que estava sentindo, possuiria a prova fácil
de que Guga estava redondamente errado: a vida valia a pena
ser vivida. A tarde ensolarada de inverno, em pleno julho,
passava nos vários copos de cerveja, levando casaizinhos de
namorados de mãos dadas, crianças de bicicleta, cachorros
ao lado de seus donos, empregadas, vendedores ambulantes...
Usando uma grande-angular, tirei uma foto de um menino
soltando uma pipa.
À noite dei um arranjo de flores a Aída, com cravos ao
centro. Recebíamos Antonieta e o namorado para jantar.
Gostavam de mim, Aída dizia. Eu os via pouco, mas Aída
136 JOÃO ALMINO

falava com frequência com Antonieta por telefone e às vezes


saíam juntas.
Tânia chegou sozinha. O grande choque para todos nós
naquela noite foi que se separara de Paulo Marcos e somente
então nos dava a notícia.
— O que aconteceu? — perguntei.
— Nada. Coisas da vida.
— Não é possível que se separem assim sem mais nem
menos.
— Querido, tudo é possível.
Não parecia abalada pela separação. Trazia no rosto a ale-
gria, e às vezes também o cansaço e aborrecimento próprios
das grávidas. Quase não se notava sua barriga. Ela ainda não
fizera ecografia, mas pressentia que seria uma menina.
— Nunca o vi tão bem. Você está ótimo, tranqúilo... —
me elogiou.
A tranquilidade que ela enxergava em mim acabou quan-
do a moça-do-triângulo-na-parede, a que me procurara na
exposição, me telefonou no meio do jantar. Podia ser chan-
tagem, mas, após uma semana de procrastinação e noites mal
dormidas, não havia como fugir.
— (Como conseguistes meu telefone?
— Pelo nome de Aída no auxílio à lista.
Assustei-me. Sabia demais sobre mim, e já a imaginei
envolvendo Aída em sua chantagem. Marquei encontro para
o dia seguinte depois do expediente, num bar da esquina da
403 Sul. Na melhor hipótese, talvez ela quisesse apenas uma
satisfação. Afinal, nunca me autorizara a expor aquela foto.
O argumento de Guga, que eu antes refutara, serviria à mi-
O LIVRO DAS EMOÇÕES EST

nha defesa: os triângulos eram iguais. Pipes das aparências,


nenhum era dela.
— Quem era? — me perguntou Aída.
— Cliente. Aniversário de quinze anos.
Mais tarde Tânia puxou pelo meu braço e me chamou a
um canto:
— Sei que ainda é cedo para falar disso. Mas quero que
você seja o padrinho de batismo de minha filha.
Não citou Paulo Marcos. Era como se a filha fosse apenas
dela.
— Ese for menino?
— Pensei muito. Menino ou menina, o padrinho tem de
ser você.
Aquele gesto de amizade valia o sacrifício de ir à igreja, e
eu tinha certeza de que seria um bom padrinho.
Considerando tudo o que me acontecera desde que saíra
com Aída para nosso passeio no Pontão do Lago, achei que a
foto do menino soltando pipa definia o clima daquele dia e
da fase que eu atravessava. Era aquele o tipo de foto de que
gostava então. Havia me cansado de fotografar políticos.
Abandonara os triângulos e desprezava as fotos de casamen-
to, batizado ou aniversário, que fazia por dinheiro.
O menino levanta uma pipa sob o céu azul. O papagaio
voa alto, um losango de quatro cores. O menino olha fasci-
nado para o alto enquanto corre sobre a grama margeada de
costelas-de-adão e espadas-de-são-jorge. Assim como um
livro cresce ou diminui segundo a percepção e imaginação
de quem o lê, haverá quem não veja naquela foto mais do
que uma criança, como tantas outras, correndo entre pré-
138 JOÃO ALMINO

dios de apartamento. Mas haverá também quem imagine a


extraordinária leveza da pipa no céu, seu movimento gracio-
so, note o paralelismo de cores primárias entre a pipa e a
paisagem, entre o losango da pipa e os traços perceptíveis
desenhados pela grama e o cimento... Haverá sobretudo quem
veja no olhar absorto e confiante daquele menino sua ale-
gria e liberdade. Pensei em intitular aquela foto, a de núme-
ro 31, simplesmente “um dia feliz” ou “um dia quase perfeito”,
o “quase” vindo por conta do telefonema da moça-do-triân-
gulo-na-parede.

21 de agosto

Lembro-me quando pegava Carolina no colo, quando ela dava


os primeiros passos, aprendia as primeiras palavras; quando, ao me
ver, vinha correndo me abraçar; quando a levava para passear no
parque da quadra... Os anos passaram — para ser exato, vinte anos
e cinco meses —, e ela esteve aqui hoje, acompanhando Laura.
Marcela novamente lhe fez festas, desta vez ainda mais sonoras. Deu
vários latidos de alegria e depois grunhiu como se quisesse falar.
— Você reclamou tanto que o trabalho estava atrasado, que
decidi vir ajudar a Laura — Carolina disse.
Passou-me pela cabeça que Laura não queira mais ficar a sós
comigo para evitar constrangimentos.
— Venho também lhe trazer uma boa notícia. Uma editora
de São Paulo quer fazer um livro sobre Paulo Antônio e, como
você é considerado o principal fotógrafo dele — foram suas pala-
vras textuais —, querem incluir fotos de sua autoria.
O LIVRO DAS EMOÇÕES 139

Meu trabalho está enfim sendo reconhecido, de forma inespe-


rada, e minha afilhada está fazendo as vezes de minha agente. Pro-
meteu me ajudar a separar as fotos de Paulo Antônio. Salvo exceções,
esta parte dos arquivos ainda não está digitalizada. Muitos dos ne-
gativos, em alguns casos acompanhados de cópias contato, estão
guardados em pastas. Entre eles se encontram os que comecei a
pesquisar para Eduardo Kaufman há mais de duas décadas.
— Você viu muita coisa. Fotografou políticos. Sabe dos bas-
tidores do governo de Paulo Antônio... — disse Carolina. O ba-
rulho nervoso das folhas de papel revelavam a avidez com que
folheava o material.
Depois me fez várias perguntas difíceis de responder, sobre a
política de ontem e a de hoje. Quase lhe agradeci por confiar tais
perguntas a um velho como eu. Não podia responder qualquer
coisa, pois para ela minha opinião tinha valor. Lembrei-me de sua
mãe, tão apaixonada por política e tão certa de seus pontos de vista.
— Não consigo ver a política como o partido azul contra o
vermelho — respondi, reproduzindo uma opinião de Guga. — O
que me interessa é certa maneira de viver.
Não disse “sim” nem “não” em relação a Paulo Antônio. E
aproveitei para falar mal de Eduardo Kaufman.
— Têm visto Maurício? — perguntei.
— Para falar a verdade, não. Nunca nos encontramos.
Quase afirmei, sem rodeios, que Maurício é um bom partido
e as mulheres não precisam aguardar a iniciativa dos homens.
Contive-me. Apenas exprimi o quanto gosto dele.
Minha afilhada se despediu prometendo me levar a um con-
certo de um grupo que está despontando e consegue recriar a
música nordestina.
140 JOÃO ALMINO

— Você também vem, não é Laura? — propôs.


Laura prometeu que sim, se juntaria a nós dois. Localizou na
internet músicas do grupo, para que eu as ouvisse. Depois passa-
mos, ela e eu, a manhã tentando pôr ordem nas fotos que me aju-
darão a continuar meu Livro das emoções. Lembrei-me de uma,
tirada da janela do apartamento de Aída, que mostra um verde
novo salpicado com as cores do ipê.
— Que impressionante sua memória — Laura me disse.
— Oquemarcao coração da gente fica gravado. O resto é lixo.
Laura estava vivamente interessada pelas fotos. Sua voz pa-
recia mansa, e voltei a sentir seu perfume. Paranóia pensar que
ela quisesse me abandonar.
— Não quero esconder nada de ti — lhe disse. — Vais me
ajudar a escolher uma ou duas fotos de um arquivo que nunca
mostrei a ninguém.
Eram fotos de Lívia.
— Não digas nem mesmo a Carolina que pretendo incluir
estas fotos no livro. Fica como um segredo entre nós.
Fazia-me bem obter a cumplicidade de Laura.
— Lembra o trabalho do Helmut Newton.
— Ele não teria escolhido uma modelo tão volumosa.
Finalmente, pedi a Laura que me lesse o conto que Carlos me
trouxe. Não tropeçou no espanhol e me leu com voz carinhosa e
pausada o diálogo daqueles dois personagens chamados Jorge Luis
Borges, um jovem e um velho, sentados num mesmo banco, em
dois tempos e lugares, em frente ao rio Charles, em Cambridge,
norte de Boston, e em Genebra a uns passos do Ródano. O velho
havia perdido quase por completo a vista. Via, como eu, a cor
amarela, sombras e luzes. Disse ao seu outro mais jovem o que
O LIVRO DAS EMOÇÕES 141

também digo aqui: que a cegueira gradual não é coisa trágica; é


como um lento entardecer de verão.
Depois que Laura partiu, fiquei com aquela música nordesti-
nana cabeça e cheguei a assobiá-la para Marcela.

22 de agosto

Não vou seguir o roteiro das fotos que selecionei ontem com
Laura, pois devo comentar, com ou sem foto, o desenlace de uma
história que ficou pendente.

[22 de agosto]

32. Nu sobre mesa de trabalho e 33. Nu de brincos

— Estou desesperada — a moça-do-triângulo-na-pare-


de me disse à mesa do bar, dois chopes grandes à nossa fren-
te. — Não arranjo emprego. E não posso ficar sem fazer nada.
Preciso urgentemente de dinheiro. Sei que você conhece
Eduardo Kaufman. Será que não consegue com ele um em-
prego para mim? Você sabe, nesta idade não é fácil.
— Eusei — respondi, sem acrescentar nada além de um
franzido na testa.
— Vivimuito bem minha juventude. Me sentia livre. Fiz
o que bem entendia.
A vida é bela, pensei, aliviado de ouvir aquelas frases isen-
tas de arrependimento e sobretudo de não ver uma arma
142 JOÃO ALMINO

apontada para mim. A felicidade era um momento de passa-


gem por uma das saídas do inferno. As labaredas me empur-
raram porta afora, e saí flutuando, leve como um balão.
Fizemos promessas, eu de que falaria com Eduardo Kaufman,
sabendo que não o faria, e ela de que convenceria um amigo
seu, jornalista, a escrever sobre minha obra fotográfica, no
que não acreditei. Mais do que de mentiras, era uma troca
de gentilezas.
Pela primeira vez Aída me perguntou onde e com quem
eu estivera. Preferi desconversar e me atrapalhei. Dei-lhe a
impressão de que escondia algo, e de fato escondia. Queria
lhe poupar explicações. Melhor enterrar meu passado para
que ela se convencesse de uma vez por todas de que sozinha
me completava.

[22 de agosto, noite]

Que sozinha me completasse era, porém, ilusão minha.


Quando soube que Lívia estava de mudança para São Paulo,
pensei primeiro nas flores da renúncia, uma invenção de ma-
mãe quando eu era criança. À cada renúncia ou sacrifício
meus, mamãe me ensinou, eu deveria acrescentar uma flor
num jarro. Só de pensar em Lívia eu teria de encher vários
jarros. Ocorreu-me que juntaria todas aquelas flores e as
entregaria a Aída em jarros de porcelana que ia fabricando
com belos desenhos e filigranas de ouro em minha mente.
Eis que os jarros se romperam todos de uma só vez numa
tarde daquele inverno. Eu decidira resistir à tentação, mas
O LIVRO DAS EMOÇÕES 143

não previra que Lívia desfilaria diante de mim num vestido


preto que lhe moldava o corpo.
— Estou vestida e desvestida para as fotos —, ela disse,
com a despreocupação de quem parte.
Santo Antônio se desprendeu dos monstros que o carre-
gavam no céu do painel de Bosch e se arrastou pela terra,
indiferente às cenas de castigo. Melhor dizendo, não pensei
duas vezes e, se pensei uma, meu pensamento ansioso e
embaralhado mal conseguia acompanhar o nervosismo e a
rapidez de minhas mãos. Mamãe que me desculpasse, com o
tempo eu tinha aprendido que a renúncia e o sacrifício nem
sempre compensavam. “Tu ainda vais te arrepender”, ouvi
sua voz ameaçadora e pressenti que ela tinha razão. Mas
melhor se arrepender da luxúria do que da covardia. E que
virtude poderia haver na covardia? Como bom profissional,
eu devia separar as fotos que eu faria, do desejo que sentia
por Lívia. Preferi ser mau profissional. Pagaria com o preço
da irresponsabilidade, um preço baixo para quem, como eu,
não tinha uma carreira nem uma reputação a perder.
Eram quatro da tarde, e seguimos para o andar de cima. In-
diferentes ao risco que corríamos, fizemos fotos sobre a mesa de
trabalho da chefe da seção, sobre os papéis, o retrato do Presi-
dente ao fundo. Devia cruzar o sinal? Cruzei. E ali ficamos al-
guns minutos, Lívia reclinada sobre a mesa de trabalho da chefe.
O prazer não se mede pelo tempo mas pela intensidade. Quem
disse que não pode ser delicioso o que se faz na pressa?
Ouvimos passos. Sentei-me à mesa, Lívia não queria pa-
rar. Ajoelhou-se e baixou os lábios entre minhas pernas. Fe-
chei os olhos, fosse o que Deus quisesse. Sei que não deveria
144 JOÃO ALMINO

colocar Deus naquela história. Seria na verdade o que Viole-


ta quisesse. Ela apenas abriu a porta, se desculpou e partiu,
imperturbável.
Revelei as fotos e as enviei a Lívia — duas delas estão
reproduzidas acima. Ela ficou registrada naquelas fotos como uma
borboleta que enfeitou uma tarde. Passou pelo meu jardim ba-
tendo asas e voou para longe. Talvez nunca mais voltasse.

34. Vista parcial da felicidade num dia de agosto

Alguns dias depois , um domingo, Aída sugeriu:


— Vamos ao Jardim da Salvação. Quero ver o meu futuro.
Aceitei. Também queria ver o meu futuro. Queria ver
nosso futuro juntos.
Maurício foi conosco e, já na entrada do Jardim, ficou
deslumbrado com o altar onde repousavam imagens orien-
tais e a figura de um negro de barbas e cabelos brancos.
— Este é Pai Joãozinho de Angola — disse uma vestal
de voz tímida e vestido esvoaçante de filó azul.
Identifiquei-me. Para algo haviam servido minhas cone-
xões com o Jardim da Salvação, e muito especialmente meu
interesse fingido pelo médium professor de teologia, o que
pregava que a casualidade não existia e que tudo, absoluta-
mente tudo, estava previsto até o final dos tempos. Ele me
chamou de “irmão” e “amigo” e nos ajudou a sermos recebi-
dos pela profetisa Íris Quelemém. Devíamos aguardar na sala
de culto, para onde fomos encaminhados.
— Estamos abertos a muitas divindades — apregoou um
senhor de farda marrom, coberta de medalhas e cruzada de
O LIVRO DAS EMOÇÕES 145

faixas amarelas e vermelhas, indicativas de seu grau hierár-


quico. — Nossa filosofia aceita especialmente as religiões
mediúnicas: o Espiritismo Kardecista, à Umbanda, o Can-
domblé, a Fraternidade Eclética Espiritualista Universal, o
Vale do Amanhecer, a Religião de Deus e mesmo outras, como
o Santo Daime e a União do Vegetal. Temos em comum a
mediunidade como meio para a relação de possessão, uma
relação sagrada, que provoca a incorporação de espíritos de
deuses e de homens em agentes como nós. Alguma dúvida?
— Queria dizer que sou católica — esclareceu Aída.
— É possível ser católico e alcançar a espiritualidade
deste Jardim. Aliás, muitos que vêm aqui são católicos. Ou-
tros pertencem a denominações protestantes ou evangélicas,
inclusive as pentecostais. E vem também gente de outras sei-
tas cristãs que não são nem católicas nem evangélicas, como
As Testemunhas de Jeová, os Mórmons e os Adventistas do
Sétimo Dia.
Aída quis conhecer a sala de operações. Na ante-sala do
“hospital”, várias cadeiras enfileiravam-se em semicírculo. Ali
ficavam os pacientes. Esperavam por um médium através de
quem um famoso médico operava sem cortes.
Finalmente, Íris nos recebeu.
— A interferência humana nos astros — nos disse —
pode mudar os destinos previstos pela astrologia. Os homens
são capazes de enviar naves para destruir cometas a dezenas
de milhões de quilômetros da terra. Um dia ainda vão mu-
dar as órbitas de outros astros.
Depois, levou Aída para uma sala pequena e escura.
— Você está passando por uma fase ascendente na ativi-
146 JOÃO ALMINO

dade profissional e vai ser bem-sucedida nos seus planos para


o futuro — viu em sua bola de cristal. — Sua história na terra
ainda não se completou. Você vai ter muito o que viver. No
amor, com persistência e sabedoria, as pequenas turbulências
vão ser passageiras. Vão culminar numa plenitude nunca an-
tes alcançada. A missão de cada um tem um tempo para se
completar; algumas se completam ainda em vida, outras so-
mente muitos anos depois da morte, às vezes até mesmo sécu-
los. Por isso eu a aconselho a fazer calmamente e sem prazos
aquilo em que você acredita e que julga necessário fazer.
Ao me receber, me transmitiu ensinamentos que podiam
se resumir no seguinte: o sofrimento compensa. Gostei de
acreditar naqueles ensinamentos, embora somente muito
mais tarde viesse a entendê-los. Olhando para sua bola de
cristal, profetisou:
— Seurfilho vai unir vocês dois. Ele precisa de vocês. Será
fonte de preocupações e também de muitas alegrias. E vai
ajudá-los na velhice.
Maurício ficara sentado num sofá do lado de fora. Íris não
dissera “o filho de Aída” nem, por engano, “o filho de vocês”;
apenas “seu filho”. O comentário somente podia se aplicar a
Pezão, o meu filho com Berenice. Finalmente, me ordenou:
— Olhe para a frente sem medo.
Na frente, eu não enxergava mais do que suas rugas e
ainda algumas dúvidas. Não acreditava que ela tivesse pre-
visto o futuro, mas com certeza me fez lembrar que ele exis-
tia e que uma parte dele dependia de mim.
Saí dali com duas resoluções tomadas. A primeira era que
eu devia procurar Pezão. A segunda me deixava eufórico.
O LIVRO DAS EMOÇÕES 147

Havia chegado a hora de propor casamento a Aída. Como


diria Guga com suas citações eruditas, a razão era simplesmente
simples: se gostávamos tanto um do outro, por que não me
casar com ela de papel passado, como meus pais e Antônio
haviam feito, como mamãe sempre exigira?
À noite, Aída e eu fizemos amor como se estivéssemos
casados há quarenta anos. Com isso não digo que foi sexo
sem graça nem imaginação. Era bom que não houvesse an-
siedade nem pressa em nossos movimentos e que nossos cor-
pos já conhecessem seus trejeitos, se acomodassem um ao
outro, encaixando-se perfeita e confortavelmente, como dois
ímãs que se atraem. Assim ficamos até que o sono nos che-
gasse e cada um se virasse para seu lado. Não podia conside-
rar aquela relação com Aída como uma paixão ensandecida.
Era uma amizade com sexo, o casamento trangúilo e em tom
pastel que sempre desejara e que contrastava com meu pas-
sado atribulado e de cores berrantes em companhia de Joana.
Amanhecia o dia e o bem-te-vi cantava sem parar: “Bem-
te-vi! Bem-te-vi!” Da janela do apartamento de Aída, um
verde vibrante, salpicado de roxo pelo ipê, brilhava com a
primeira luz do sol. Fiz, então, aquela foto de número 34.

[23 de agosto]

35. Fixações número 1

Em agosto de 2001 recebi no endereço do trabalho um


bilhete da mulher-do-triângulo-na-parede acompanhado de
148 JOÃO ALMINO

um artigo de jornal. Ela cumprira sua parte de nosso trato.


Um crítico escrevera sobre minha exposição. Eu queria acre-
ditar que não importavam as opiniões alheias, mas eis que
importavam muitíssimo, de quem quer que fossem, mesmo a
de um crítico, um só, inexpressivo e desprezível, incapaz de
entender os significados mais profundos de meu trabalho e
que escrevia, provavelmente movido pela inveja, num jornal
que ninguém lia. Se me tivessem sido apenas faladas, aque-
las palavras podiam entrar por um ouvido e sair pelo outro.
Mas o que se escreve, se é salvo do lixo, pode ficar se exibin-
do para sempre, como uma fotografia, e acabar sendo con-
fundido com a realidade.
Sabe-se que o primeiro dos sentimentos do homem foi o
orgulho; o segundo, a vaidade. Somos capazes de matar por
uma bobagem dessas. Uso o plural majestático para que meus
defeitos se transformem numa desculpável característica
humana. Devo admitir, me senti ferido em meu orgulho e em
minha vaidade. Queria que meu trabalho seduzisse, sur-
preendesse ou chocasse. Eis que meu crítico o considerou en-
fadonho, gráfico e vulgar, além de nada original. A indiferença
e o silêncio teriam me doído menos do que aquele interesse
ferino por minha obra.
Reproduzo acima um dos painéis da exposição, para que
possa ser julgado com isenção e objetividade, embora para
isso seja necessário imaginá-lo cem vezes maior.
O LIVRO DAS EMOÇÕES 149

[23 de agosto, tarde]

36. Casal Feliz

Tive um pesadelo. A vestal que encontráramos na entra-


da do Jardim da Salvação me era trazida por Maurício. Um
espinho havia entrado no seu corpo logo acima da vulva.
Pediu-me para ajudá-la a retirá-lo. Olhei. Ela nada vestia por
baixo do saiote. Não tinha pêlos. E todo o seu corpo era de
um branco leitoso. Levava-a ao templo no carro de Aída,
procurava em vão estacioná-lo e acabava deixando-o num
lugar proibido. Depois andávamos de mãos dadas, passáva-
mos por uma passarela envidraçada ao lado da multidão,
agora era eu que estava nu, deslizávamos sobre um chão
ensaboado, eu não sabia onde iríamos parar e me preocupa-
va que Aída e Maurício nos vissem através do vidro. Acor-
dei aliviado de que fosse apenas um sonho.
Liguei para Antônio:
— Acho que vou me casar.
— Tu vais gostar. Nunca é tarde para ter filhos.
— Não é em filhos que estou pensando — e quase lhe
contei que filho eu já tinha.
Na verdade, Antônio tinha razão, eu nunca me sentiria
realizado enquanto não fosse um pai para alguém e não po-
dia dizer que fora jamais um pai para Pezão. Mas Aída não
precisava conceber outro filho, eu poderia adotar Maurício.
Ou, quem sabe, poderia me aproximar de Pezão e reconhe-
cer a paternidade. Somente um filho biológico transmitiria
meus genes às gerações futuras.
150 JOÃO ALMINO

Como Antônio queria conhecer Aída, meu telefonema


resultou num convite para um de seus almoços de domingo.
— Então, quando é o casamento? — nos perguntou logo
que chegamos.
— Está muito bem como está. Não estamos pensando
nisso — Aída respondeu.
Eu ainda não criara coragem de fazer minha intenção
desembocar numa proposta de casamento e, diante daquela
resposta de Aída, preferi me calar, sob o olhar de interroga-
ção e censura de Antônio.
Quando nos sentamos à mesa, ele quis saber de minha
participação nas homenagens a Paulo Antônio Fernandes,
razão de minha vinda a Brasília. Contei-lhe meus problemas
com Eduardo Kaufman.
— Sujeitinho oportunista — Verônica disse.
— Não sejas radical. Contigo é assim: todo político é
oportunista — Antônio respondeu.
— Sou, sou radical, sim. Não tem um que preste. Esse Eduar-
do, além de oportunista, banca surubas para os políticos.
Ea que tu és intransigente. Ninguém no mundo presta.
À partir dessa pequena desavença, Antônio e Verônica
fizeram uma elaborada demonstração dos golpes de sua es-
grima conjugal. Eram como dois barris de pólvora que explo-
diam ao jogarem faíscas um sobre o outro. As faíscas vinham
sob a forma de uma palavra, uma falta de palavra, um olhar
ou uma falta de olhar. Ambos se sentiam ofendidos sem ra-
zão aparente e julgavam que o outro era demasiado susceptí-
vel a comentários inocentes.
O LIVRO DAS EMOÇÕES ESl

Aída parecia chocada com a forma como os dois se compor-


tavam. Meus sobrinhos, também à mesa, nada comentavam.
— Isso me interessa. É certo que Eduardo financia essas
festas? — perguntei a Verônica, indiferente à briga conjugal.
— Dizem, não é? Parece que usa um serviço de garotas
de programa.
Lembrei-me do site que eu consultara no apartamento da
104. Os indícios do envolvimento de Eduardo eram claros:
Verônica ouvira falar... e havia a comprovação dos acessos
feitos pelo computador. Talvez Akiko, a japonesinha que
aparecia no site, a campeã de acessos daquele computador
de Eduardo, algum dia me pudesse ser útil.
— Formam um casalzinho tão bonito! — Verônica dis-
se, se oferecendo para fazer uma foto minha com Aída, a que
se vê acima, uma foto sorridente de nossos rostos tocando
um no outro.
Tenho enorme carinho por aquela fotografia que não foi
feita por mim e que prefiro a qualquer foto de casamento.
Pela ternura de nossas expressões, é a melhor de todas as fo-
tos minhas com Aída. Quem a observa objetivamente — até
mesmo Verônica, que a fez — não conseguiria perceber seu
valor. Há fotografias que somente têm valor subjetivo, às vezes
para quem fotografou e neste caso para quem foi fotografa-
do, como a página do diário que registra o que nos tocou no
íntimo e cuja dimensão somente nós entendemos.
Alguns dias depois, pus num porta-retratos aquela foto-
grafia e a dei de presente a Aída. Sem agradecimento ou co-
mentário, ela dispôs o porta-retratos sobre a cômoda do
quarto e me disse:
LS JOÃO ALMINO

— Preciso falar com você. Algo muito sério.


O que seria? Parecia abatida, sem cor, como se estivesse ain-
da chocada pelo conhecimento repentino de algo terrível. Será
que alguém lhe contara o que se passara entre mim e Lívia? Eu
não podia permitir que, por causa de uma bobagem chamada
Lívia, fosse rasgada a imagem de felicidade estampada naquela
foto sobre a cômoda. Pensei em lhe contar tudo, fingindo arre-
pendimento profundo. Digo “fingindo” porque se, de um lado,
Lívia havia acrescentado à minha coleção de triângulos sobre-
tudo um certo mal-estar, de outro eu não sentia nada equiva-
lente a um arrependimento e, muito menos, profundo.
— Aída, sei que para ti tanto faz. Para mim não. Queria
que tu aceitasses ser minha mulher. Que nos casássemos, na
igreja é no civil, como tem de ser. Olha esta foto, que não
engana: somos um casal feliz.
Aída começou a chorar. Chorava muito.
— Depois a gente conversa. Quero ficar sozinha — dis-
se, aos soluços.
Maurício entrou no quarto. Aída o abraçou, ainda cho-
rando.

28 de agosto

Quando Maurício chegou hoje pela manhã, o abracei, me lem-


brando daquele abraço que Aída lhe dera há duas décadas. Veio
a meu pedido, para me ajudar a organizar as fotos de sua mãe.
Mesmo quando eu enxergava, nunca quis revê-las, mas são, de
todas, as mais nítidas em minha memória.
O LIVRO DAS EMOÇÕES 153

Estava assustado com alguma cena de violência que presenciou.


— “Tu te lembras quando tu andavas armado de canivete e eu
te dizia que Brasília não era o Rio? Hoje te daria razão — falei.
Perguntei-lhe se havia visto Carolina. Não, não havia. Tentei
lhe dizer o quanto os dois se parecem. Têm a mesma sensibilidade
e os mesmos interesses. Mencionei a inteligência e o gosto musical
de minha afilhada.
— Não toca um instrumento como tu, mas sabe apreciar a
boa música.
Descrevi o concerto a que me levou há poucos dias. Enfim,
deixei em Maurício uma impressão mais viva de minha afilhada.
Por casualidade ele conheceu Laura, que lhe fez elogios a mim
e lhe descreveu o trabalho que vem realizando comigo. Que bom
que Laura me elogia!
No meu futuro, duas luzinhas brilham. Uma, com brilho novo,
se chama Laura. A outra traz um brilho amarelo, antigo e persis-
tente. É Joana. São estrelas longínquas. Mas ainda posso vê-las.
As estrelinhas do futuro me ofuscaram a tal ponto que quase
desisti de organizar as fotos de Aída. Percebi meu erro a tempo.
Seria abandonar o que me foi tão caro por um futuro inacessível.
Não quero curar minha dor de ontem com minhas fantasias de
hoje. Nunca vou esquecer Aída. Sobretudo não vou esquecer
aqueles dias de espera e agonia.
Ditei a Maurício os arquivos correspondentes às fotos de Aída.
Renumerei algumas. Servirão de roteiro para o que eu vier a es-
crever nos próximos dias. Continuo evitando mostrar a Maurício
o que já escrevi. Temo que nossas memórias não coincidam e que,
ao ler certas passagens, ache que quero me valorizar diante dele,
aparentando uma bondade que não tenho. Mas quando terminar
154 JOÃO ALMINO

vou lhe pedir que faça a revisão de meu Livro das emoções. Que
ele melhore o estilo e, se não gostar do conteúdo, que me perdoe.
Não pus nem porei ali nada a mais do que foi vivido. A menos,
sim. Faltarão sempre palavras para descrever a dor profunda.
— Laura tem razão — Maurício me disse. — Você não es-
quece uma imagem.
— Esqueço, sim, e muitas. Mas não me esqueço de tinem de
tua mãe.
Agora que ele partiu, vim atualizar no computador este meu
diário e escrever mais algumas páginas de meu Livro das emo-
ções. Servi-me de uma taça de vinho. Pela janela entra o cheiro
alcoolizado dos carros que lotam as ruas. Ainda bem que não di-
rijo e quase não saio de casa.
Os helicópteros deixam o céu confuso. Consigo neutralizar seus
barulhos ouvindo Cole Porter em volume alto. Marcela está a meus
pés e, bela maneira como apóia a cabeça sobre meus sapatos, sei
que está contente com minha escolha musical.

[29 de agosto]

37. Angústia disfarçada nas bolas do boliche

— Eu devia ter-lhe contado antes — Aída me disse, pas-


sadas algumas horas de sua crise de choro. — Agi de manei-
ra egoísta. Achei que pelo menos viveria alguns dias felizes
antes de morrer. Os médicos me dão no máximo seis meses.
Era um câncer detectado tarde demais. Já havia metástase.
O LIVRO DAS EMOÇÕES 155

Não sabia o que responder. Abracei-a por minutos que du-


raram uma eternidade e, mais tarde, tentei lhe injetar ânimo:
— Tu és muito resistente. Vais sair desta.
— Não. Não tem mais jeito. Os médicos já me desenga-
naram.
— O que quer que aconteça, vou estar do teu lado. Vou
cuidar de ti.
— Promete que vai cuidar de Maurício?
— Vou cuidar de ti e dele.
Sentia-me bem em ser amoroso, útil e principalmente ín-
tegro, com um propósito na vida. Era bom mostrar-me bom.
Sentir-me bom. Ser bom. O certo era bom, e o bom era certo.
Convidei Maurício para jogar boliche. Seguimos no car-
ro de Aída até o Parkshopping. Lá ficamos até tarde, con-
centrados no jogo, sem trocar palavra. Daí vem a foto acima,
de número 37. Não é pela composição correta, nem porque
me agrade a forma como enquadrei as bolas que esta foto
merece estar reproduzida aqui. Poderia ser confundida com
uma boa foto de publicidade. Mas para mim é especial, pois
nela está gravado o choque que senti. Nunca uma notícia
havia retirado o meu chão e desfeito meus horizontes como
aquela. Eu poderia escrever todo um livro sobre como uma
doença pode interromper nossos cálculos, planos e previsões,
acabar com o sentido da história que escrevíamos sobre a
terra, deixar-nos sem rumo, perplexos diante do que é ines-
perado e injusto. Aída não saía do meu pensamento, que ia e
voltava pregado nas bolas do boliche. Life is just what happens
to you while you're busy making other plans.
156 JOÃO ALMINO

38. Maurício pensando em Sharon Stone

— Trouxe um filme em que aparece uma mulher be-


líssima, nuinha, nuinha — eu disse a Maurício no dia seguin-
te. Um filme que há anos eu não revia.
Saímos para passear pela quadra. Mostrei a goiaba no alto
da goiabeira. O galho duro como vidro se quebrou com o peso
de Maurício. Levei-o para casa e apliquei pacientemente os
curativos sobre seu braço ferido. Era a primeira vez que me
fazia de enfermeiro ou mesmo que cuidava de alguém.
Beijei o coro cabeludo de Maurício. Só não dizia que era
injustiça divina o que estava acontecendo com ele e com sua
mãe, porque não acreditava em Deus.
— Eos seus deveres, já fez?
— Não. Hoje não quero. Vamos assistir ao filme que você
trouxe.
Difícil imaginar que Aída morresse, mas se isso aconte-
cesse, eu tomaria de fato a mim a responsabilidade de criar
Maurício, mesmo que para isso precisasse redobrar meu es-
forço para ganhar dinheiro. Meu amor por Aída ia sobrevi-
ver na minha dedicação a Maurício. Aquela poderia ser minha
missão na vida. Esperava viver o suficiente para vê-lo se trans-
formar num homem realizado.
O sol da tarde invadia a sala. As sobrancelhas grossas e
pretas demarcavam o rosto magro e moreno de Maurício.
Registrei na foto acima, de número 40, um brilho nos olhos
e um riso espontâneo de quem está contente com a possibi-
lidade de ver Sharon Stone nua. Naquele olhar e naquele riso,
eu divisava outra possibilidade, cara e sublime: eu seria um
O LIVRO DAS EMOÇÕES 15%

verdadeiro pai para Maurício, levando-o diariamente à es-


cola, ajudando-o nos seus deveres, brincando com ele e as-
sistindo a filmes juntos.

[30 de agosto]

39. Espaçonave com coroa de espinhos

Os mesmos descampados, as mesmas esplanadas, o mes-


mo parque, que antes tinham cores vibrantes e variadas,
haviam adquirido uma tonalidade sépia. Ficaria sozinho no
mundo. Era mais uma razão para fotografar. Ao fotografar me
sentia acompanhado, ainda não sabia por quem. Mas um dia
mostraria aquelas fotos ou aquelas fotos se mostrariam.
Brasília ardia como brasa. Caminhei a esmo, curvado pela
tristeza. Foi daí que surgiu a série de fotos de calçadas racha-
das. De algumas rachaduras saíam tufos de capim. Por ou-
tras apenas se via o barro vermelho.
De uma apanhei o celofane que envolvia uma carteira de
cigarro vazia. Fui brincando com ele entre os dedos, sem pres-
tar atenção em mim nem no papel. Passou na minha frente
uma foto viva, uns meninos famintos, mãe barriguda, perfei-
to enquadramento do drama social. Agora vinha outra, pa-
recia de Cartier Bresson, uma menina saltando a poça d'água,
ainda suspensa no ar, enquanto a expressão dos velhinhos,
ao fundo, era de dor e inquietação. Os momentos foram fu-
gazes. As fotos sumiram. Os rostos dos velhinhos agora eram
158 JOÃO ALMINO

inexpressivos. A menina, de costas, balançava seu vestido de


florzinhas em direção a um bloco de apartamentos.
Apareceu um gringo, desconhecido. Um gringo se reco-
nhece pelo movimento dos lábios, o corpo sem ritmo, e pelo
estilo e tamanho dos sapatos. Esperei que aqueles sapatos
dessem passos largos sobre o fundo composto pelo lixo joga-
do no gramado ao canto do meio-fio, as folhas secas, peda-
ços de isopor, papel furado, pontas de cigarro, uma bola de
encher estourada, papel alumínio cintilando ao sol, papelão,
telhas quebradas... Joguei sobre aquele lixo o celofane que
ainda trazia na mão. Foto de quê? Não sabia. Foto de um passo
largo, reconhecível, sobre restos abandonados.
Caminhei ainda vários quilômetros, suando minha camisa
e meus pensamentos por aquelas entrequadras repetitivas,
com seu “ar de elegante monotonia”, como disse alguém fa-
moso. “O olho do homem serve de fotografia ao invisível,
como o ouvido serve de eco ao silêncio”, me lembrei da frase
completa citada por meu irmão Guga. As paisagens se repe-
tiam, como no bolero de Ravel, blocos e mais blocos, trevos
e mais trevos, até que as nuvens sangraram no céu de fim de
tarde.
Desci em direção à Esplanada. Contemplei a criação hu-
mana como se fosse divina, a anticidade, símbolo e desejo,
que veio humanizar o Planalto Central; a técnica em busca
da beleza, como disse Niemeyer. Eu já tinha visto aqueles
prédios milhares de vezes, mas meu olhar sobre eles era novo.
No primeiro plano, o batistério em forma de espaçonave me
transportava para um mundo estranho e longínquo, onde a
voz de Aída ressoava, diminuta, em meio ao nevoeiro e ia
O LIVRO DAS EMOÇÕES 159

pouco a pouco sumindo. Mas eu via suas mãos cruzadas so-


bre o peito segurando uma rosa vermelha que eu lhe dera.
Estava pálida e de olhos cerrados. Fiz o enquadramento para
a foto de número 41 acima, de cores metálicas ressaltadas pela
impressão em cibacrome. Por trás do batistério, a catedral se
erguia como coroa de espinhos. Eu não acreditava em Deus,
mas ali entreguei minha alma a Ele.

[30 de agosto, noite]

40. A escrita misteriosa

Continuei caminhando, agora em direção à Asa Sul. A


praça enorme, sem árvore nem fonte, uma imensidão de pe-
dras e concreto, estava salpicada de vendedores ambulantes,
gravatas e mais gravatas penduradas num varal, paisagem
racional e surreal, em pleno Setor Bancário Sul. As ruínas
do moderno eram ruínas de meus sonhos.
Depois, em frente ao Bloco E da 102 Sul, uma praça aban-
donada, alguns bancos, ninguém. Sentei-me. O desânimo se
abateu sobre mim como consciência de vida fracassada. Sen-
tia-me indefeso diante de um mundo cruel. Chorei pela pri-
meira vez desde que regressara a Brasília. Não chorava por
Aída. Chorava por mim mesmo. Pelo fato de que, ao perdê-
la, perderia o que de melhor adquirira nos últimos anos ou
talvez em toda a minha vida: algum sentido de dignidade e a
expectativa de um amor estável.
160 JOÃO ALMINO

Notei a placa: “Jesus, a única salvação”. Eu, entrando


numa igreja? Jamais faria isso. Li novamente: “Jesus, a única
salvação”. Nada de mau poderia me acontecer. Entrei.
Na porta, outra placa: “Preocupado com o dia de ama-
nhã? Com a falta de emprego? De amor?” Vinha a resposta
embaixo: “Buscai, em primeiro lugar, o seu reino e a sua jus-
tiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas. Portanto,
não vos inquieteis com o dia de amanhã, pois o amanhã tra-
rá os seus cuidados (Mateus 6: 33 e 34).”
— Irmão, vê-se que está precisando de ajuda — disse
uma mulher bem vestida, de cabelos negros e muito lisos,
descendo até a cintura. Trazia nas mãos uma bíblia.
Permaneci calado.
— O Senhor está sempre atento aos nossos problemas.
Ele ajuda a quem quer ser ajudado — ela continuou.
Segui mudo.
— Se precisar, pode nos procurar, a qualquer hora do dia
ou da noite — a mulher ainda disse, me entregando um car-
tão com números de telefone, fax e endereços eletrônicos.
Desorientado, pus o cartão no bolso.
A luz que entrava pelos janelões de vidro fazia desenhos
pelas paredes curvas, em forma de hieróglifos que eu deveria
interpretar. Era uma escrita misteriosa, feita para mim, a da
foto que se vê acima. Há três faixas de rendado cinza subin-
do sobre a parede azul-clara, onde li um resto de esperança.
Aída tinha fé. A fé podia mover montanhas, milagres eram
possíveis para pessoas especiais, e não havia no mundo nin-
guém mais crente nem mais especial do que Aída.
O LIVRO DAS EMOÇÕES 161

31 de agosto, tarde da noite

Hoje, quando Laura chegou, Marcela saltou sobre ela e lhe


fez muita festa. Laura então me disse que tinha sido apresentada
à outra e primeira Marcela.
— (Quando soube que eu conhecia você, não escondeu a ale-
gria nem do marido. Contou, na frente dele, que tinha sido sua
namorada.
Pela expressão usada, “namorada”, ficava claro que guardava
boas recordações de mim. É justo incluir mais algumas linhas sobre
ela no meu Livro das emoções, embora o que vale a pena narrar
não encontre respaldo nem no meu diário antigo, já encerrado quan-
do voltamos a nos ver, nem em qualquer fotografia, amenos que eu
consiga encontrar uma certa foto de uma cama vazia.
— Éumasenhora ainda bem esperta. Magra. Um jeito ner
voso de falar, olhos agitados. Ela mesma me disse que está nova
em folha, depois de várias plásticas e de um tratamento completo
de regeneração.
— Não precisava disso para se ver jovem. Deve ter no máxi-
mo cingienta anos.
— Queria saber se você era casado, se tinha filhos. Falei que
tem uma cadela.
— Espero que não tenhas dito o nome.
— Deixei para ela descobrir.
Marcela respirou fundo, como se entendesse.
Com ninguém mais adquiri o grau de liberdade para falar
sobre mim do que com Laura. Que seu estágio se eternize! Será
uma maneira de me injetar, a cada vez que vem, doses de ju-
ventude.
162 JOÃO ALMINO

Para meu livro ela me ajudou a buscar mais uma foto do ipê-
roxo; e outra, de Antonieta deitada na cama com Aída.
— Era uma amiga nossa. Foi uma mulher belíssima —
expliquei.
Chamou-lhe atenção o garoto de olhar triste, recostado sobre
a janela.
— É Maurício no dia de meu casamento com Aída.
— Posso imprimir? — ela me pediu e me contou que tem visto
Maurício de vez em quando. Mais não disse, nem perguntei.

[2 de setembro]

41. O sacrifício na primavera

Vendo o cartão sobre minha mesinha-de-cabeceira, Aída


quis saber de que igreja se tratava. Falei-lhe da placa com os
dizeres “Jesus, a única salvação” e lhe contei tudo o mais que
acontecera.
— Pode ser um chamamento, um aviso.
Dois dias depois voltou a repetir aquela sua impressão.
Lembro-me bem da data, porque era onze de setembro e Pau-
lo Marcos me telefonou para comentar as cenas de horror na
televisão. Saímos ele, Carlos e Ana para um bar de entrequadra.
— Para a gente isso não tem nenhuma importância —
Paulo Marcos observou.
— Acaba afetando todo mundo, meu caro, sobretudo
porque decidiram que é uma guerra. Isso vai acabar gerando
mais terroristas, mais ressentimento, as células vão se reprodu-
O LIVRO DAS EMOÇÕES 163

zir sozinhas em tudo que é lugar, no Oriente Médio, na Eu-


ropa, nos EUA... — Carlos opinou.
— É a intolerância contra a intolerância — Ana falou.
Eu vivia meu próprio onze de setembro, e decidi telefo-
nar para um dos números no cartão. Expliquei a situação de
Aída, consultei se receberiam não membros da igreja e lá
fomos já no domingo seguinte.
No templo, um pedreiro pernambucano de cerca de ses-
senta anos afirmava que, quando era possuído pelo diabo, ba-
tia contra as paredes, rolava pelo chão e se machucava todo.
— Mas desde que Jesus me retirou das drogas e me li-
bertou de Satanás — afirmou —, somente me dedico a duas
coisas: a minha família e à igreja. Dou este testemunho para
honra e glória do Jesus misericordioso.
Uma mulher tomou a palavra para falar de seu casamento:
— Quando conheci meu marido, ele acabava de ser sal-
vo pelo Senhor, depois de passar mais de vinte anos vivendo
como um marginal. Eu não acreditava em religião. Em pou-
co tempo me batizei, descendo às águas sob o fogo do Espíri-
to Santo. Se conheci e hoje amo Jesus, foi por amor ao meu
marido.
O relato de um senhor de meia-idade nos chamou a
atenção:
— Faz três anos eu tinha sido diagnosticado com um
câncer incurável no pulmão. Depois de várias sessões em
nossa igreja, o médico que me havia desenganado compro-
vou que o tumor tinha desaparecido e nunca entendeu como
o Deus do Impossível me salvou.
Depois assistimos a uma sessão de descarrego. Os presen-
tes movimentavam os braços, gritavam frases em uníssono, e
164 JOÃO ALMINO

alguns entravam em transe. Um bispo, vestido de branco, pe-


gou a cabeça de uma possessa com as duas mãos e a mexeu de
um lado para o outro. Assim começou a cerimônia de liberta-
ção. As orações para estimular a manifestação do demônio
foram num crescendo, acompanhadas de timbres graves de um
piano elétrico. Os presentes giravam de olhos fechados, com
as mãos cruzadas e postas sobre o centro da cabeça. Depois
jogavam as mãos ora em direção à possessa, ora para trás.
— Qualé o seu nome, demônio? — o bispo perguntou à
mulher.
Ela se ajoelhou e colocou as mãos para trás. O bispo re-
petiu a pergunta várias vezes, até que ela respondeu, de for-
ma quase incompreensível, com uma voz irada e gutural:
— Exu.
— Quem mais? Está só? Há outros demônios presentes?
— Estou só — a mulher respondeu.
— Qual é o seu nome, Exu?
— Exu Caveira.
— O que você tem feito com esta pobre mulher, Exu
Caveira?
— Estou levando para a perdição.
— Ela não tem culpa disto. É o Exu que está dentro dela.
O que vocês acham? Jesus pode salvá-la deste satanás?
— Pode — a multidão respondeu.
— Vocês acham que ela pode ser salva? Sim ou não?
— Sim — todos responderam.
— Em nome de Jesus, sai do corpo desta mulher — dis-
se O bispo, colocando as mãos sobre sua cabeça. Repetiu vá-
rias vezes, aumentando a voz:
O LIVRO DAS EMOÇÕES 165

— Sai, sai, em nome de Jesus. Quero que vocês me aju-


dem e rezem comigo: “Sai, sai, sai”.
A multidão gritou em coro, todos levantando as mãos e
depois jogando-as para trás:
= Sat sai Sal.
A mulher abriu os olhos, como se estivesse voltando a si.
— A senhora está se sentindo bem? — perguntou o bispo.
— Estou, sim.
— Graças ao senhor.
— Graças ao senhor — todos repetiram.
Aída assistiu a tudo muito serena, mas não quis se sub-
meter àquele ritual. O bispo lhe entregou uma fitinha bran-
ca com a inscrição Pai das Luzes, para que ela a amarrasse no
pulso enquanto mentalizasse o mal do qual desejava ser li-
bertada. Abençoou-nos com galho de arruda e deu-nos água
fluidificada.
— Coloque essas porções de sal sobre a mesa ou nos can-
tos do apartamento. Este sabonete de arruda é para livrar o
corpo das impurezas, e este frasco de óleo é para afastar mau-
olhado.
Não sei o quanto de fé Aída depositou naquilo. Mas me
disse que passaria a usar o sabonete e o frasco de óleo.
Na volta, notei que as acácias pintavam de amarelo o
fundo da quadra, e as folhas da sapucaia haviam trocado o
verde pelo roxo. Outro roxo, mais vivo, se mostrava no ipê
que havia florido, como era de se esperar num mês de setem-
bro. Para quem não conhece minha história, a foto de nú-
mero 41, daquele ipê-roxo sobre um céu liso e muito azul,
parece inocente e alegre. Mas ao chegarmos à quadra naquele
166 JOÃO ALMINO

domingo, a árvore de Aída, que eu elegera como símbolo do


que eu deveria ser e que eu agora fotografava, parecia triste
e infeliz, significando sacrifício e morte.

[4 de setembro]

42. Paisagem, seus sentidos ocultos

Ana me chamou para sua festa de aniversário. Sem saber


da doença de Aída, pediu que eu lhe transmitisse também o
convite. Não o fiz para não irritá-la. Ainda que estivesse sa-
dia, jamais aceitaria um convite de Ana. Fui sozinho, sem
culpa, pois me sentia cansado, merecia cercar-me de alegria
e tinha direito a uma pausa na minha dedicação a Aída.
Disputei a dança de Tânia com meu irmão Guga e fui
compensado por minha persistência. Enquanto Guga chei-
rava pó e, lá para as tantas, grande dançarino que era, fazia
sucesso com todas as moças disponíveis, me concentrei em
Tânia. Sua gravidez ainda recente não lhe retirava o ânimo
e acrescentava uma beleza radiante a seu rosto.
— Fiz a ecografia. Vai ser menina — ela me disse.
Cheguei a pensar que eu poderia ser mais do que um pa-
drinho, um pai, para aquela criança. Melhor do que assumir
um filho que se tornara um marginal. Acabei dançando com
Tânia até altas horas. Há muito não me divertia tanto.
Quando cheguei em casa, Aída dormia com Antonieta a
seu lado. Ao fotografá-las, acabei acordando-as. Aquela é a
única foto que jamais fiz de Antonieta. Desde que ela evita-
O LIVRO DAS EMOÇÕES 167

ra nosso encontro no Parque Olhos d'Água, nunca eu ficara


à vontade diante dela, nem mesmo depois que ela passara a
frequentar amiúde nosso apartamento. Falava comigo como
se nada tivesse acontecido entre nós. Melhor assim. De fato,
pouco acontecera fora de minha imaginação, e mesmo esta,
que tanto voara, tivera suas asas cortadas.
— Por onde você andava? — Aída me perguntou, quan-
do Antonieta se foi.
— Saí para fotografar.
Não era de todo mentira. Trazia a máquina a tiracolo e
fizera uma foto de Tânia.
— À estas horas? — Certamente notou meu cheiro de
álcool.
No dia seguinte Ana lhe telefonou para lamentar sua
doença e, sem querer, me delatou. Nunca pude esquecer os
olhos de tristeza de Aída naquele dia, fixos diante de uma
das janelas de seu apartamento, como se analisassem detida-
mente a paisagem longínqua, feita de morros parecidos com
os que eu fotografara no dia do meu passeio imaginário com
Antonieta no parque Olhos d'Água. Ali também eu encon-
trara Tânia. Montei a câmara sobre o tripé e usei a teleobje-
tiva. Um avião minúsculo cruzava o horizonte. O que se vê
além dos morros e aquém da máquina fotográfica é o que
torna aquela foto cara para mim. Parecia uma paisagem an-
tes da tormenta ou já no centro de um furação. Ainda assim
me acalmava e envolvia de beleza os meus erros, pois, nas
camadas verdes e azuladas dos morros longínquos, era feita
das formas e cores da dúvida, da promessa, da frustração, da
culpa e também do amor.
168 JOÃO ALMINO

4 de setembro

O prazer da minha dança com Tânia, que fora tanto, acabou


ali mesmo, naquela madrugada, mas a culpa permanece até hoje,
pois é da natureza do prazer ser passageiro, enquanto a culpa é
renitente.
Tantos são os nomes da dor — abandono, egoísmo, desprezo,
amargura... Com Marcela aqui a meu lado, serei esquecido. Se
alguém se lembrar de mim, que seja pelos amores que tive, tão
diferentes uns dos outros. Amores todos.

5 de setembro

Hoje tomei meia garrafa de vinho tinto. Há muito larguei as


drogas e também as bebidas destiladas. Na velhice, o organismo
não resiste. O vinho tinto nem sempre está de acordo com a tem-
peratura de Brasília, mas os desacordos têm seus méritos. Ofereci
uma taça a Laura. Ela não bebe. Tampouco fuma.
Com ela passei em revista pelo menos três anos. Pedi que se-
lecionasse uma foto de Antônio, Verônica e os filhos, bem como
uma série feita na Vila Paulo Antônio, de que trago lembranças
fortes.
Hoje a Vila Paulo Antônio é das cidades mais violentas do
entorno de Brasília. Há alguns anos pediram minhas fotos para
um livro sobre seu “antes e depois”. O “antes” eu achava sem
graça, feio e miserável. Com o tempo, o sem graça, o feio e o mi-
serável foram levados pelo progresso a extensões maiores e a um
O LIVRO DAS EMOÇÕES 169

patamar mais alto de infortúnio. As ruas que fotografei, cuja ter-


ra batida conservava uma certa dignidade rural, foram mal ves-
tidas pelo asfalto esburacado e pelo comércio pobre, como um índio
nu que deixasse a selva para se tornar maltrapilho na cidade.
— “Tens visto Maurício? — perguntei a Laura.
— Sempre. Ainda ontem nos encontramos.
— Ele me abandonou.
— Ele te adora. Jamais te abandonaria.
Fico com a impressão de que estão namorando. Isso não me
surpreende mas me desagrada, pois ainda quero que Carolina seja
a escolhida. Por dever de padrinho, farei tudo o que estiver a meu
alcance para que seja este o desenlace.
A hipótese do namoro me contraria também por outra razão.
Por mais descabido e mesmo absurdo que seja pensar assim, é como
se eu estivesse perdendo Laura para Maurício. Enviei um e-mail
a ele. Por que anda desaparecido?

7 de setembro

Escrevi durante exatos três meses, um pouco quase todos os


dias. Não sei se terei ânimo para manter este ritmo.
Hoje é o dia da pátria, e estão comemorando na rua minhas
virtudes e defeitos nacionais. Ouvi no computador a descrição do
desfile militar feita por um canal de televisão. Escutei também um
discurso sobre tudo o que o país conquistou no mundo, na indús-
tria, na agricultura, no espaço... Loas e mais loas aos avanços
tecnológicos... Não cheguei a me emocionar. Preferia avanços mo-
170 JOÃO ALMINO

rais e políticos. Meu patriotismo nunca foi além da tentativa de


destruir Eduardo Kaufman, um câncer em nossa cultura política.
Na verdade, ainda não decidi sequer se sou contra ou a favor
de fronteiras nacionais. Aprendi uma lição de política internacio-
nal: às vezes quem defende fronteiras quer preservar a injustiça e
a mediocridade, e quem é favorável a abolir fronteiras tem certe-
za de que será o invasor.

7 de setembro, à tarde

A primeira fotografia, feita por Niepce, tem a idade do Brasil


independente: é de 1822 e mostra uma mesa posta ao ar livre,
árvores ao fundo. Esta reflexão me veio a propósito de nada, mas
me dá o pretexto para me juntar à festa de rua. Comemoro o
surgimento da fotografia.

[10 de setembro]

43. Sem tirar nem pôr

Quando Maurício notou os pratos de sal distribuídos pe-


los cantos do apartamento, tive uma conversa franca com ele.
— Prefiro te contar que tua mãe está sofrendo de uma
doença muito grave...
— Já sei. Ela tem câncer, não é?
Abracei Maurício.
O LIVRO DAS EMOÇÕES la

— Não quero ficar com meu pai. Quero morar com você.
— Prometo que vou te fazer companhia. Ou melhor, tu
vens viver comigo.
— Papai não quer Quer que eu vá morar com ele.
— Vamos ver. A gente dá um jeito.
À primeira providência seria me casar com Aída. Ela es-
tava divorciada, podia se casar. Voltei ao assunto.
— Não quero que você se case por pena de mim — ela
me disse.
— Quero me casar contigo porque gosto de ti. Eu já ti-
nha te proposto casamento.
— Antes de saber de minha doença.
— Ela não me faz mudar de idéia.
Juntei a papelada. Queria que o casamento fosse realiza-
do logo e com separação de bens, para que a família de Aída
não presumisse que eu pretendia disputar a herança. A fa-
mília se limitava a três irmãs pálidas, duas mais velhas e uma
mais nova, que haviam chegado de Goiânia e estavam acam-
padas em nosso apartamento.
Em questão de dias, convenci o juiz e o padre a virem em
casa para as cerimônias. Casamento no civil, seguido do ca-
tólico. Presentes apenas Tânia e Paulo Marcos, ainda sepa-
rados, Antonieta com o namorado e as irmãs de Aída. Tânia,
compenetrada em sua beleza séria, era a madrinha do casa-
mento católico.
A alegria de Aída, ajudada pela maquiagem e o amarelo
vibrante de seu vestido, se sobrepunha aos efeitos da doen-
ça. Não quero aqui me deter na descrição da chuva que
parecia salpicar de tristeza a felicidade daquela tarde de se-
172 JOÃO ALMINO

tembro. Os nordestinos haviam trazido a denominação de


“chuvas do caju” para aquelas poucas chuvas extemporâneas
que coincidiam com o início da floração dos cajueiros.
— Você vai cuidar bem de Maurício? — Aída me pediu
novamente.
— Não só vou cuidar dele. Vou adotar Maurício. Ado-
tar de papel passado. Já iniciei os trâmites.
Fiz uma foto de Maurício, pensativo e recostado sobre a
janela antes de se iniciar o casamento civil. Um pé apoiado
sobre a parede, cabelo despenteado, ele olha para a câmara com
dúvida e desconfiança. Veste uma camisa de mangas largas e
compridas e está com as mãos nos bolsos. Há fotos que somente
ganham seu pleno significado quando comparadas com outras
do mesmo objeto fotografado. É o caso desta em contraste com
a de número 15. Maurício já tem um ar de adolescente, e não
só por sua altura. Amadurecera em questão de meses. Uma
foto se mede também pela sua capacidade de retratar da ma-
neira mais exata e verdadeira a pessoa fotografada. Para mim,
a foto de número 43 acima é absolutamente fiel; é o próprio
Maurício naquele momento, sem tirar nem pôr.

[10 de setembro, final da tarde]

44. Aída, Maurício e eu

— Por que não vamos ao Jardim da Salvação? — propus


a Aída, me lembrando da sala de operações e do médium,
professor de teologia, que já me considerava um amigo.
O LIVRO DAS EMOÇÕES 173

Através dele, consegui agendar a operação de Aída para


daí a poucos dias, furando uma enorme fila.
— Posso ir também? — Maurício perguntou, quando
estávamos de partida.
— Não. Desta vez é melhor não. Pode ser demorado.
Você fica com suas tias — Aída disse. — Além do mais seu
pai vai passar aqui hoje.
Maurício amarrou a cara.
Não encontrei a única foto que fiz naquela ida ao Jardim
da Salvação. Caso a localize, levará o número 44. E se não
localizar, paciência! Há fatos que preciso narrar, com foto ou
sem foto.
Na sala de operações, ao tomar conhecimento de que
Aída sofria de um câncer incurável, uma sacerdotisa foi
categórica:
— Não há doença incurável. Pelo menos não aqui.
Contou a história de um paciente terminal de câncer que
começara a se recuperar ali mesmo, depois da intervenção
do médium. A operação de Aída ocorreria sem cortes. Uma
energia passaria das mãos do médium ao corpo dela, como
uma quimioterapia milagrosa.
Aída sentiu-se mal. Ficou tonta.
— É calor — eu lhe disse.
— Quero ir embora.
— Só mais um pouquinho, até o médium chegar.
Se somente uma pessoa acreditar numa impossibilidade,
como a água se transformar em vinho e o vinho em sangue,
passará por louco. Mas se forem muitas, poderão sair do do-
mínio da loucura para o da fé religiosa. Se para Aída e uma
174 JOÃO ALMINO

parcela significativa da humanidade, Jesus Cristo nascera de


uma virgem, resuscitara dos mortos e subira aos céus, se po-
dia ser comido sob a forma de um biscoito redondo e fino e
se algumas palavras ditas sobre um vinho da Califórnia, da
Borgonha ou do Vale do São Francisco o transformavam em
sangue do mesmo Cristo, por que não poderia ela confiar nos
poderes curativos do bisturi invisível?
Uma fita azul cruzava a roupa cágui do médium. Diante dele,
uma mulher se ajoelhou. Ele pôs as mãos sobre sua cabeça:
— Sem fé a energia não fará efeito. Tenha fé e a senhora
será curada.
No quarto escuro, um facho de luz entrava pela telha de
vidro como mensagem divina. Aída ficou compenetrada. Sua
fragilidade se tornou flagrante. Sentiu algo, que ela depois
qualificou apenas como “indefinível”, quando o médium pôs
as mãos sobre ela.
Era sua última chance. Por isso prometi aos deuses e a
todos os espíritos do Jardim da Salvação que passaria a acre-
ditar neles e os adoraria durante o resto da minha vida, fre-
quentando igrejas, templos, pirâmides, terreiros de macumba,
se Aída se salvasse. Isso era chantagear os céus, tentar bar-
ganhar com a divindade, mas naquele momento não apenas
me parecia aceitável aos deuses minha única moeda de tro-
ca, como tudo indicava que pelo menos algum deles me ou-
vira, pois o ânimo de Aída melhorou.
Ão chegarmos ao apartamento, nos deparamos com o pai
de Maurício.
— Preciso falar contigo, a sós — me disse.
O LIVRO DAS EMOÇÕES rãs)

Saímos até a entrada do prédio. Encarou-me com seus


olhos já naturalmente furiosos:
— Você é um depravado! Fica mostrando vídeos porno-
gráficos a Maurício.
— Eu?
— Não adianta negar, ele mesmo me contou. E se você
não sair daqui já, vou entrar na justiça para levar Maurício
de uma vez. Não queria fazer isso agora, porque ele é uma
companhia para Aída. Mas você não me deixa alternativa.
Alto, de cabelos claros e encaracolados e um nariz adunco,
tinha o dobro de meus músculos. Melhor que ganhasse a
batalha verbal, e eu continuasse com Aída e Maurício. De
fato, ele errou dois alvos: não conseguiu me expulsar do apar-
tamento, nem levou Maurício; mas acertou, sem saber, um
terceiro: me fez desistir do processo de adoção.
— O que ele queria? — Aída perguntou.
— Nada — respondi. — Esquece! Quero fazer uma foto
de nós três.
É a única em que aparecemos exclusivamente os três,
Aída, Maurício e eu. Tirei com o disparador automático.
Maurício está sentado no colo de Aída, na cama; eu, ao lado
dela, abraço-a. Nunca gostei de ver aquela foto, pois Aída,
embora de ânimo recuperado, estava fisicamente abatida, e
eu fingia uma serenidade que não podia ter. Procurava olhar
para os dois com carinho, porém meus olhos mal disfarça-
vam a aflição.
176 JOÃO ALMINO

[11 de setembro]

45. Paisagem tingida de cinza

Sentia-me um ser superior, capaz pela primeira vez de me


dedicar dia e noite a uma causa, ou mais precisamente a uma
pessoa. Vivia para o dia-a-dia, para Aída. Ficava horas a seu
lado, lhe dava seus remédios contra a dor, atendia o telefo-
ne, tomava recados, preparava o jantar e levava Maurício à
escola. Ela se angustiava, e eu vivia na sua angústia; sofria, e
eu vivia no seu sofrimento. Eu declinava os convites para sair
à noite, até mesmo os de Paulo Marcos. Conseguira uma dis-
pensa informal no trabalho. A chefe gostava de Aída, com-
preendia que estivesse precisando de mim e não descontava
um centavo de meus salários.
Mas se algum deus aceitara a oferta que eu fizera no Jar-
dim da Salvação, outros a acharam ofensiva. A metástase se
espalhava. Os médicos não recomendavam operação, nem
julgavam necessário que Aída fosse hospitalizada. Os remé-
dios eram paliativos.
Numa tarde de dezembro, admirávamos os flambloyants
cor de sangue que se debruçavam sobre a cerca viva, com
cambuís ao fundo, quando Aída, mudando o tom da voz,
encheu de gravidade sua expressão:
— Tânia seria uma ótima mulher para você. Gosta de
você, isto se vê. Convidou você para ser o padrinho da filha...
— O que estás dizendo?
— Vou morrer. Você não devia ficar sozinho.
— Ninguém vai te substituir — afirmei, cheio de admi-
O LIVRO DAS EMOÇÕES [a

ração pela grandeza do coração de Aída e por seu gesto


magnânimo.
Eu não merecia Aída nem Tânia. Na verdade, não merecia
as mulheres, sempre mais amorosas e mais sábias do que eu.

[12 de setembro]

Na única outra foto dos últimos dias de Aída, seu rosto


descorado e abatido transmite um ar de resignação. Está
rodeada por suas irmãs, Maurício na frente, contra a parede
amarela do quarto. Uma aura desenvolvida ao longo de sua
vida ilumina a dimensão moral e espiritual de seu corpo deteri-
orado e fraco.
No enterro, a única presença que me desagradou foi do
Escadinha, que mal conhecia Aída e veio sem ser convida-
do. Irritou-me ao falar de seus projetos. Uma grande empresa
de bebidas comprara várias de suas fotos para uma publici-
dade a ser exibida em jornais, revistas, na televisão e em
outdoors de todo o país.
Não tirei foto do enterro, nem de Aída morta. Porém, mais
do que qualquer outra, sua imagem no caixão fúnebre está
gravada em minha memória. Ali sua bondade e seu amor por
mim estavam preservados para sempre. Seu rosto, cingido
pelo perfume das flores, eram todos os seus rostos, inclusive
o de sua juventude, aquele que eu vira pela primeira vez há
vinte anos. À morte realçava seu amor ao próximo, seu
sentimento religioso e sua dignidade. Deixava-me uma feri-
da que nem o tempo seria capaz de sarar. O que eu perdera
178 JOÃO ALMINO

era irreparável, único e insubstituível. A vida que me resta-


va empalidecera.
Eu não tinha direito a nada dela. Nem queria ter, à exce-
ção de Maurício, se pudesse. Guardaria apenas o coração de
prata com nossos nomes gravados.
A foto de número 45, a primeira após a morte de Aída, fiz
na tarde nublada que se seguiu ao seu enterrro, depois daque-
les meses de agonia serena. Bebera sozinho minha cerveja no
bar aonde íamos com fregiiência, quando tive a súbita percep-
ção de que Brasília mudara em seus mínimos detalhes. Todo o
universo se tingira de cinza, como se uma nova cópia de um
filme colorido viesse em preto-e-branco. Nenhuma outra pai-
sagem me poderia ser mais familiar e, no entanto, os prédios,
os cartazes na entrequadra, as placas cheias de números, os
trevos do eixinho ao fundo, tudo me parecia estranho, sob a
luz uniforme do sol encoberto de um janeiro.

46. Pezão e Formiga

Naqueles dias, me mudei para meu estúdio do final da Asa


Norte e voltei ao Ministério. Alguns dos colegas que não ha-
viam ido ao enterro me deram os pêsames. Outros me lança-
ram um olhar distante, que atribuí a uma de duas razões: um
comentário maldoso de Violeta sobre mim ou simplesmente
haver perdido minha madrinha e protetora, Aída. Sobre mi-
nha mesa, encontrei uma carta de Lívia, enviada já há algum
tempo. Agradecia as fotos mas me proibia de publicá-las.
De lá liguei para Maurício. Sentia-me responsável por ele
e queria cumprir minha promessa a Aída.
O LIVRO DAS EMOÇÕES AS

— Nunca mais ligue para meu filho, seu safado — gri-


tou o pai de Maurício, do outro lado da linha, interrompen-
do nossa conversa. — Repare bem no que estou lhe dizendo.
Safado! Se ligar de novo, quebro a sua cara, seu canalha.
O mundo mudara e também o humor da chefe da seção.
Anunciou-me, sem rodeios, que em um mês já não precisa-
ria de meus serviços.
Sentia-me como um trapezista sem a rede de proteção,
prestes a cair. Vendo minhas piruetas no ar, Antônio teria a
prova acabada de que eu deveria tê-lo ouvido: “viver é tam-
bém trabalhar e construir alguma coisa, mano.” Eu tinha me
dedicado a viver. A vida antes, a vida na frente e acima de
tudo. Vivera para as mulheres e, numa hora como aquela,
era ainda delas que eu mais precisava. Mas, entre as que ti-
nham me amado, Eva se suicidara e Aída morrera. Imaginei-
me numa quermesse, sendo leiloado diante de uma platéia
de mulheres, aquelas todas de meus triângulos, sentadas,
como uma massa uniforme, e Joana de pé, em tamanho gran-
de, aqui na frente. Ao anúncio do objeto leiloado, ou seja,
eu mesmo, elas exibiam seus corpos e um sorriso irônico.
Nenhuma daria um vintém por mim. Joana seria a primeira
a dizer que eu nada valia. Será que Tânia, que agora eu dis-
tinguia claramente na primeira fila, sentada com as pernas
cruzadas, um olhar ao mesmo tempo sereno e interessado,
seria capaz de me arrematar por meu preço de liquidação?
Somente a fotografia me redimia; era o que me restava.
Se a fotografia era uma maneira de ver o mundo, eu começa-
va a vê-lo de forma diferente e devia principalmente a Aída
aquela mudança. Aída se guiara por valores superiores. Sua
180 JOÃO ALMINO

lembrança me ajudava a encarar a vida com menos cinismo,


e ela teria ficado contente em saber de meus novos projetos
fotográficos. Devo reconhecer também que a crítica que re-
cebi à minha exposição não me fora indiferente e pode ter
contribuído para que abrisse ainda mais meus ouvidos às su-
gestões que, em vida, Aída me fizera. Além disso, pesaram
em minhas considerações que estivesse perdendo o emprego
e que fotografar as cidades-satélites mais miseráveis poderia,
ao contrário das fotos que vinha fazendo, me trazer algum
retorno comercial. Atraífa-me sobretudo a idéia de fotogra-
far a Vila Paulo Antônio. Cansava-me dos arcos gigantescos
de Brasília, desafiando a pequenez dos homens e a lei da gra-
vidade. Faria um ensaio sobre o contraste entre a cidade fu-
turista e as anti-Brasílias, entre a monumentalidade moderna
e os esgotos a céu aberto; entre as leves estruturas vazadas e
os muros sujos subindo do chão.
O difícil era realizar uma obra original, que trouxesse
minha marca. Decidi visitar Pezão no presídio da Papuda.
Tinha de vê-lo; não deveria adiar aquele encontro, que mais
cedo ou mais tarde teria de acontecer. Queria conhecê-lo e
fotografá-lo. Não plagiaria o Escadinha; meu estilo era ou-
tro, e seriam fotos apenas de Pezão, de nenhum outro preso.
Pela primeira vez punha os pés numa prisão. Se o Escadi-
nha viera ali e fotografara tantos presos, por que eu não seria
capaz de visitar meu filho e obter a autorização para fotografá-
lo? Estava preparado para o pior. Sabia da má reputação da
cadeia. Numa rebelião de presos há menos de um mês, três
presidiários haviam sido mortos. Apesar de ser dia de visita,
esperei quase uma hora. Enquanto aguardava no saguão de
O LIVRO DAS EMOÇÕES 181

entrada, encontrei repórteres interessados na história da can-


tora mexicana Gloria Trevi, que se encontrava então presa ali
na Papuda, acusada de rapto, violação e corrupção de meno-
res, e que engravidara, após ter sido, pelo que se dizia, violada
por dois funcionários da penitenciária. Eu não sabia ainda como
me dirigir a Pezão nem tinha a menor idéia do que falaria.
— Qual é a tua, bicho? — ele me perguntou, com ex-
pressão de desagrado. Como me vira ao lado dos repórteres,
achou que eu fosse um deles.
Notei um sorriso de deboche no seu rosto negro e angu-
loso, onde eu divisava um misto de desconfiança e destemor.
Olhos grandes, atentos, cabelos encaracolados cortados quase
rentes ao coro cabeludo, era um homem robusto e alto, que
dissimulava sua insegurança cultivando músculos.
Fui improvisando, palavra por palavra, o que dizer. Apre-
sentei-me como amigo de Berenice e de Ana, conhecia For-
miga, chegara a Brasília há alguns meses, era fotógrafo... De
início, não ousei lhe pedir que posasse para mim, mesmo por-
que não haviam me deixado entrar com a câmara. Mas insi-
nuei meu interesse em obter autorização para fotografá-lo.
— Para aparecer em jornal?
— Não, não é. Pode ficar tranquilo. Ainda não sei o que
vou fazer com as fotos.
— Então não interessa, meu irmão. Dá o fora.
O que será que o Escadinha tinha que eu não tinha? Por
que ele conseguira persuadir todos os presos a posar para ele
e eu não conseguia convencer Pezão?
— Vou passar um tempo na Vila Paulo Antônio fotogra-
fando — lhe contei.
182 JOÃO ALMINO

Ele parecia impaciente, sem entender a razão de minha


presença.
— É que Berenice me falou de tua casa na Vila Paulo
Antônio... Será que tu não podes... me alugar?
A idéia me veio naturalmente, ajudada também pela ne-
cessidade de pagar um aluguel barato quando não pudesse
mais contar com o salário do Ministério. Desde a morte de
Aída, eu atravessava um período difícil, minha vida parecia
sem sentido, evitava sair até mesmo com os amigos... Por que
não morar por uns tempos na Vila Paulo Antônio, como um
monge em retiro espiritual, ainda por cima podendo fotogra-
far o que queria e talvez até vender minhas fotos?
— Não dá, cara. Vou precisar da casa já, já.
— Seria por uma semana, duas no máximo.
— Depende da grana. Estou precisando de grana, cara.
Não consegui descolar um emprego aqui dentro, entende?
Reservam para quem tem bom comportamento. Sou o que
eles chamam de “não-classificado”.
Acertamos os termos do aluguel, e saí de lá com a im-
pressão de haver participado de um bom encontro de negó-
cios. O comércio fazia amigos — assim eu esperava.
Berenice me telefonou, furiosa, quando soube pelo pró-
prio filho de minha visita, e quis impedir meu aluguel da casa.
Diante de minha determinação, implorou que eu nada con-
tasse a Pezão sobre o que se passara entre nós. Ela preferia
assim. Que ele jamais soubesse.
Instalei meu laboratório na casa de Pezão, mas teria de
deixá-la em duas semanas, quando ele saísse da prisão. Execu-
tei uma série de fotos em paisagens que teriam alimentado a
O LIVRO DAS EMOÇÕES 183

revolta sincera de Aída; em ruas que haviam seguido um pla-


no inspirado por Brasília e se haviam enchido de desordem e
miséria. Fiz enquadramentos de lixos e esgotos em ambientes
desertos como o local do crime, por onde às vezes perambulava
algum personagem anônimo. Não fui roubado nem agredido,
talvez por causa do respeito que a casa de Pezão imprimia na-
quela Vila ou por uma razão mais simples, aquela que uma vez
explicara a Aída: o provável jamais acontecia comigo.
Logo me dei conta de que aquelas fotos eram frias. Nelas
não cabiam o sonho nem a imaginação. A miséria não é um
dado apenas objetivo. Não consiste em materiais precários,
nem na inexistência de coisas ou alimentos. Precisa de um
rosto onde se possa observar o sentimento da falta e o desejo
não satisfeito. Eu queria fotografar não apenas a necessida-
de, mas também a inveja, o desejo e a revolta.
Eu já adquirira a prática de fotografar pessoas — políticos
e mulheres, principalmente. Agora usaria minha máquina não
para exaltar o personagem, nem para festejá-lo, nem mesmo
para criticá-lo, mas sim para entendê-lo. Seguindo os precei-
tos de grandes mestres da fotografia, disparei o motor da má-
quina sobre uma mulher que encontrei casualmente na rua,
como se fosse uma metralhadora na busca do instante preciso
e da exposição certa não apenas de luz, volumes e textura, mas
também de pobreza, exploração e dignidade. Numa das fotos
que fiz, há um grupo de mulheres de costas. É a fila da cesta
básica. Uma só — aquela que eu fotografava — olha para trás,
na direção da câmara. Li no seu rosto enrugado, de indigna-
ção e desespero, os cantos dos olhos franzidos, a boca semi-
aberta mostrando a ausência de dentes, um protesto contra o
184 JOÃO ALMINO

comportamento do fotógrafo que explorava sua miséria para


fins estéticos e comerciais. Pondo em prática conhecidas teo-
rias, queria surpreendê-la, para que o choque revelasse algum
segredo, um caráter ou característica antes escondidos, e cap-
tasse seus gestos inconscientes, que depois da fotografia se tor-
nariam a realidade visível e óbvia. Seu protesto era justificado,
eu tinha de fato tendência a estetizar a miséria, e só não trans-
formei aquela fotografia em comércio porque o editor de um
jornal local, que Guga me apresentara para que eu denuncias-
se Eduardo Kaufman, não quis comprar meu ensaio fotográfi-
co sobre a Vila Paulo Antônio.
O resultado daquele ensaio tampouco me satisfez. Eu
devia procurar a conivência dos fotografados, como Guga
sugerira. Minhas fotos deveriam revelar o que houvesse de
especial e único em cada um deles; eu deveria conhecer seus
nomes e estabelecer, se não uma relação, pelo menos um
contato com eles. A solução seria resgatar meu projeto de
transformar o próprio Pezão em personagem principal de
minhas fotografias.
Na véspera de sua saída da prisão, tive com ele uma bre-
ve conversa. Não queria me comportar como turista, eu lhe
disse, nem como repórter apressado. Será que ele poderia ser
meu “guia” e “mestre” na Vila Paulo Antônio?
— Pago mais uma semana de aluguel, se puder continu-
ar usando tua casa. Nem precisaria dormir lá. Apenas deixa-
ria O equipamento e a usaria como base para continuar o
trabalho começado. Seria o caso de dividir a casa contigo du-
rante não mais do que uma única semana.
Não lhe disse que aquela era também uma forma que o
O LIVRO DAS EMOÇÕES 185

pai encontrava de ajudar seu filho sem que este percebesse,


nem que queria ter uma oportunidade de conviver com ele
para talvez forjar uma amizade.
— “Tudo bem, meu irmão. Formiga me passou sua ficha
— respondeu, aceitando a proposta imediatamente, para
minha surpresa. Depois eu soube que Formiga retribuíra com
elogios a mim as palavras gentis que eu às vezes lhe dirigia.
Através dos relatos dele, Pezão me via como um fotógrafo
famoso e também como um degenerado, o que lhe parecia
uma qualidade.
Nossa diferença nos aproximou. Eu me sentia bem em ser
aceito por ele. Admirava seu temperamento ousado e rude,
bem como suas palavras sinceras. Ele se sentia uma celebri-
dade por ter um fotógrafo “famoso” dedicado a ele, interes-
sado por seus gestos e seus passos, o que facilitava meu
objetivo prioritário: ganhar sua confiança. Na primeira se-
mana, fotografei a alegria de seu reencontro com os amigos.
Bebíamos num bar próximo à sua casa e depois caminháva-
mos pelas ruas, sem destino, como vagabundos. Eu fotogra-
fava detalhes da miséria, enquanto Pezão e seus amigos, entre
os quais Formiga, fumavam maconha.
A semana estendeu-se por duas, e, na segunda, me dei-
xaram fotografá-los em ação. Guiaram-me ao submundo de
seu submundo, às bocas de fumo, de prostituição, à realida-
de, enfim, que tanto Aída gostava de citar. Uma realidade
com face desumana, que eu sabia retratar com muito mais
vida e riqueza do que o Escadinha.
— Hoje uma bala perdida atravessou um defunto durante
o enterro — Formiga contava às gargalhadas.
186 JOÃO ALMINO

Logo aquilo era pretexto para se falar de crimes famosos,


da violência que crescia, de amigos assassinados. Achei me-
lhor cultivar aquela camaradagem do que revelar a Pezão o
segredo que Berenice queria guardar.
Eram uns vagabundos. Não, vagabundo é gente que não
faz nada. Eles faziam. Não quero falar em drogas, nem em
envolvimento com a polícia. Por isso me limito a dizer que es-
tavam sempre ocupados com suas maldades. Para ser franco,
também me entreti com elas, apesar das dores de cabeça que
resultavam de um misto de preocupação e de cachaça barata.
Minhas novas fotos da Vila Paulo Antônio mostravam os
interiores, os amigos de Pezão e ações do cotidiano. Eu me
via como um foto-jornalista de uma seção de crônicas.
Uma foto marcou o momento a partir do qual eu sabia
haver conquistado a confiança de Pezão. Na foto acima, em
preto-e-branco, feita num bar da Vila Paulo Antônio, note-
se o contraste entre os músculos do torso grande de Pezão e
as costelas aparentes do corpo franzino de Formiga; entre a
expressão de desafio do primeiro e a de deboche do segundo,
com seu cigarro meio caído no canto da boca. A idéia foi deles,
de se fazerem fotografar nus da cintura para cima, a mesa de
bilhar ao fundo. De propósito captei-os em movimento, como
se a fotografia anunciasse por gestos o que ainda está por vir.
Senti que não apenas me aceitavam; gostavam de mim. Viam-
me como um ser raro, que se divertia com suas estripolias.
Nem de longe temiam que eu viesse a utilizar minha foto
contra qualquer um deles.
O LIVRO DAS EMOÇÕES 187

[13 de setembro]

47. Retrato de família

Sem o emprego e até formar uma nova clientela, seria


difícil pagar aluguel no Plano Piloto. Para algo servia a famí-
lia. Pedi dinheiro emprestado a Antônio.
— Se eu não conseguir quitar a dívida, mano, podes
debitá-la de minha parte da herança, quando mamãe morrer.
— Não queiras matar a velha antes da hora — ele pro-
testou.— E por que não ficas comigo por uns tempos?
Aceitei, precisando que “os tempos” não passariam do
Carnaval, ou mais precisamente dos dias necessários para eu
encontrar apartamento.
— "Ju estás te degradando, Cadu. Onde já se viu morar
na Vila Paulo Antônio?
— Queria fotografar...
— Não justifica. É perigoso. Não é lugar nem para se
visitar.
Mudei-me para a casa de Antônio, levando comigo meu
equipamento fotográfico.
Logo no primeiro dia, ao café-da-manhã, fiquei sem gra-
ça quando Verônica quis me transformar num modelo para
Antônio:
— Veja seu irmão. Tem quase a mesma idade que você,
e parece muitíssimo mais novo. Gosta da vida, se diverte.
Neguei terminantemente:
— Não gosto da vida que levo, tanto mais agora.
188 JOÃO ALMINO

— Mas isso é uma fase, passa logo. Já no caso do Antô-


nio... Ele é quadrado mesmo.
Antônio não respondia. Sempre havia sido assim. Ela era
falante, expansiva; ele calado, fechado.
— Casamento é uma arte difícil, mano. Verônica não é
perfeita, mas ninguém é. Depois, vale a pena construir algo
que fique, uma família, um patrimônio, deixar os filhos bem
encaminhados na vida — Antônio comentou a sós comigo.
— Seu irmão não tem um pingo de humor. É um grosso
— Verônica me disse, quando ele saiu.
À noite, pronta para ir a uma festa com ele, reclamou que
não notava sua roupa.
— Não há roupa que não fique ótima no teu corpo, meu
bem — ele respondeu.
— Não venha com ironia para cima de mim. E não me
chame de meu bem.
— Noto teu corpo, a roupa é secundária. Na verdade te
prefiro nua.
— Não se meta a engraçado!
— Por que será, hein, Cadu, que as mulheres estão sem-
pre insatisfeitas? Por que toda atenção é pouca? Querem
continuar o resto da vida a menininha que todo mundo nota,
“ah, como ela está bonitinha”, “ah, que gracinha”, “ah, que
roupinha mais linda” — disse Antônio.
Como ele agora se recusasse a acompanhá-la à festa,
Verônica afirmou, categórica:
— Então vou com Cadu.
Eu não teria jamais aceito aquela imposição se não fosse
por insistência do próprio Antônio. Ele deu a entender que
eu lhe faria um grande favor se a acompanhasse.
O LIVRO DAS EMOÇÕES 189

Enquanto observava Verônica requebrar graciosamente


seus quadris num vestido apertado, fiquei à mesa do bar en-
tornando um copo atrás do outro e pensei na frase do meu
irmão: “noto teu corpo, a roupa é secundária...”
A foto acima, de número 47, foi tirada no dia seguinte:
Antônio com o braço direito sobre os ombros de Verônica, e
na frente deles meus sobrinhos, todos sorridentes no jardim
da casa, no Lago Norte. Eu já notara que há muito Antônio
e Verônica não se tocavam. Nenhum beijo, nenhum carinho.
Já ouvira, de um em relação ao outro, as frases mais ásperas.
Daquela vez, respondendo a uma reclamação de Antônio,
Verônica gritou com ele:
— Você não para de me recriminar; e nunca me faz um
elogio. Se não gosta de mim como sou, por que está casado
comigo, seu desgraçado?
Antônio tentou abraçá-la e beijá-la no rosto.
— Não se aproxime — ela disse, com cara de nojo.
A foto, feita por mim a pedido de minha sobrinha, dis-
tendeu os ânimos por um instante. É uma típica foto de fa-
mília, como talvez bilhões haverá pelo mundo, mas é sempre
esta foto de aparência harmoniosa que me vem à mente quan-
do penso no irrealismo e na falsidade de que a fotografia é
capaz. Foto de uma mentira. Mas não tenho outra que me
lembre melhor aqueles dias passados em companhia de meu
irmão. É também a única que jamais fiz de Verônica, e, por
razões que ainda vou expor, ela merece um registro fotográ-
fico em meu livro.
190 JOÃO ALMINO

[14 de setembro]

48. Barriga de Tânia

No domingo seguinte, Antônio convidou Guga para o


almoço. Para minha surpresa, Tânia, com sua barriga de oito
meses, veio junto.
A chuva atrapalhou o plano de Verônica de fazer um
churrasco ao ar livre.
— Detesto esta cidade — ela disse. — Não vejo a hora
de sair daqui.
— Tu só gostas dos lugares depois que sais — disse
Antônio.
— É que nossa vida só piora. A cada fase nova descubro
que antes foi melhor.
— Já sabemos que o inferno é o presente. O passado e o
futuro sempre são melhores — afirmou Guga, que compa-
rou Verônica ao Goofus Bird, da fauna de Wisconsin e Min-
nesota. — É um pássaro, segundo Borges, que constrói o
ninho ao revés e voa para trás. Não lhe importa para onde
vai, e sim de onde veio.
Notei o olhar embevecido de Tânia ao ouvi-lo.
— Quem é Borges? — Verônica perguntou.
Depois, num canto de varanda, enquanto me ocupava em
fazer e beber caipirinhas, e os demais hóspedes se entretinham
com seus pratos, perguntei a Tânia por Paulo Marcos.
— Não sei por onde anda. Não me dá notícia. Foi me-
lhor assim, sabe, Cadu? A relação tinha deixado de funcio-
O LIVRO DAS EMOÇÕES 191

nar. Mas esqueça Paulo Marcos. Me conte de você. Estava


desaparecido!
Com a coragem que o álcool me injetava, ousei lhe per-
guntar:
— Estás namorando o Guga?
— Que idéia?!
— O Guga não seria mesmo a pessoa certa para ti. Não
é confiável. É um irresponsável.
— Logo quem fala assim, não é, Guga? — ela disse.
Virei-me. Guga estava atrás de mim. Deu-nos as costas
e, enquanto fazia menção de partir, acrescentei, para que ele
ouvisse:
— Depressivo e paranóico como ele sei que não sou.
Alegrava-me ver a barriga de Tânia e saber que dentro dela
crescia minha futura afilhada, que viria selar nossos vínculos
de afeto e amizade. Tânia me deixou fotografar sua barriga,
que se vê como um perfeito arco, em vestido preto de bolinhas
brancas, sobre o fundo liso e pêssego da parede da sala. Uma
foto clara e simples, capaz de limpar meus pensamentos.

16 de setembro

Ao me ajudar a localizar hoje a foto de um ipê-branco, Mau-


rício me confirmou que está saindo com Laura já há várias sema-
nas. Meu primeiro impulso foi o de convencê-lo a desistir do
namoro. Mas talvez porque a resignação dos velhos vencesse a
crueldade dos cegos, no fundo fiquei aliviado e mesmo contente.
192 JOÃO ALMINO

Aquele namoro me trouxe à realidade. Já não sou um adolescente


para viver de ilusões, nem envelheci a ponto de menosprezar a
beleza de um amor nascente. Somo a felicidade de um à do outro,
e fico feliz em dobro.
Maurício quer me reconciliar com Guga.
— Foi ele quem deixou de me procurar.
— Esse ele viesse lhe fazer uma visita?
— Jamais faria isso. Guarda seus ressentimentos para o res-
to da vida. Não é do tipo que perdoa.
— Mas se vier? Você o recebe?
Mudei de assunto, para não ter de confessar que não sinto a
mínima vontade de rever Guga.

23 de setembro

Penso em abandonar meu Livro das emoções, e não apenas


pelas dúvidas com relação às páginas já escritas. O problema maior
está por vir, pois meu diário antigo — o diário fotográfico — se
encerrou pouco depois da morte de Aída. Dele somente me resta,
de aproveitável, a foto do ipê-branco que Maurício me ajudou a
localizar. Passado o ponto em que meu diário acaba, terei de fa-
bricar pensamento novo e procurar em arquivos dispersos foto-
grafias para acompanhá-lo. Talvez isto explique porque não tenha
escrito uma só linha durante toda esta semana.
O LIVRO DAS EMOÇÕES 198

[23 de setembro]

49. Ipê-branco

Descobri um ritual de Verônica todas as manhãs, depois


que Antônio ia para o trabalho. Havia um jogo de reflexos que
começava com o espelho comprido da porta entreaberta do
seu banheiro. De um determinado ângulo do corredor — ou
na entrada do quarto do casal — era possível vê-la em frente
ao armário do banheiro, quando entrava e saía do banho.
Nunca me sentira atraído por Verônica. Ela não fora sequer
minha parceira do esporte que eu concebera nas minhas ca-
minhadas aos domingos no Eixão, o de colher sorrisos de mu-
lheres bonitas. Seus lábios grossos e sua boca larga eram
desproporcionais ao queixo curto, e seu nariz apontava para
cima de forma desafiante. Os dentes da frente eram demasia-
do grandes, e a boca entreaberta exibia um excesso de gengi-
vas. Mas desvestindo-se, refletida nos espelhos, sua figura alta
adquiria um ar de elegante vivacidade. Ao som do CD que
deixava tocando no quarto, movimentava o corpo, se olhava
no espelho de um lado e de outro com seus olhos levemente
vesgos e levava as mãos aos cabelos. Com rapidez se desfazia
das roupas e das sandálias. Acima das nádegas, tinha duas
covinhas simétricas. Do lado esquerdo de onde os biquínis
haviam desenhado, contra o sol, um minúsculo triângulo, via-
se uma marca escura, provavelmente uma cicatriz deixada por
uma verruga. Os tornozelos eram finos e as pernas bem-feitas.
Os peitos de mamilos grandes e bicos apontados para cima
balançavam com os movimentos de seu corpo. Ela se mostra-
194 JOÃO ALMINO

va distraída, um olhar vago, e às vezes cantarolava uma can-


ção. Ao sair do banho, examinava longamente o rosto e ten-
tava desfazer com a pressão dos dedos as rugas sobre a testa e
nos cantos dos olhos. Depois de secar os cabelos negros e lhes
aplicar a escova com firmeza e dedicação, passava lentamente
creme sobre as nádegas e as coxas. Não me cansava de vê-la
nas pequenas variações de cada um desses movimentos roti-
neiros e algumas vezes cheguei a usar um binóculo que eu havia
aposentado quando deixara o Rio.
Um dia, presenciando, pela porta semi-aberta do banhei-
ro, Verônica trocar de roupa para ir à piscina, me deixei flagrar.
Ela se demorou nua na minha frente, como se pensasse so-
bre o que fazer, seguramente me vendo de soslaio. Abri mi-
nha braguilha e pus para fora meu pau duro, que eu sabia
impressionar pelo tamanho. Imaginei vários cenários possí-
veis: ela vir correndo em minha direção e acabarmos na cama;
ela pôr as mãos nos olhos, envergonhada; me expulsar ime-
diatamente de casa, depois de me chamar de tarado, per-
vertido ou exibicionista; rir de mim, delicadamente me
considerando imaturo; tentar cobrir-se, fechar a porta e de-
pois contar tudo a Antônio.
Nada disso aconteceu. Deu-me as costas, experimentou
um biquíni, logo outro, os deixava cair no chão, baixava-se
para apanhá-los, e me pareceu evidente que aquele compor-
tamento não deveria ser atribuído a sua miopia; ela queria
me exibir de propósito e dos mais diferentes ângulos sua bunda
firme e saliente.
Não gostava de Verônica, mas durante vários dias sua
nudez esguia insistia em se mostrar no meio da noite e de meus
O LIVRO DAS EMOÇÕES 195

pensamentos ainda em luto. Eu foderia Verônica, foderia de


raiva, e minha raiva liberava meus instintos mais baixos e
violentos. Ora me via batendo nela, jogando-a no chão, ora
minha imaginação a punha de joelhos, me chupando, ou
então de quatro, sendo enrabada por mim. Ia me masturbar
no banheiro, pensando que meu irmão um dia nos flagraria
na cama, e não que me matasse por isso, mas que eu fosse
capaz de matá-lo em legítima defesa.
Passadas duas semanas e antes que alguma de minhas
elucubrações se tornasse real, consegui alugar uma quitinete
no terceiro andar de uma das entrequadras da Asa Norte. A
arquitetura da entrequadra era de um modernoso sem gra-
ça, que se afastava do plano original, em que os prédios, ex-
clusivamente comerciais, não deveriam ultrapassar dois
andares. À vantagem era que agora ali mesmo eu poderia não
apenas morar, mas também montar meu laboratório.
Lívia me enviou um e-mail. De passagem por Brasília,
queria me ver. Acompanhei-a ao Parkshopping e depois co-
memos uma salada num restaurante do Lago Sul. Eu passara
aquele mês como um sonâmbulo, sem perceber a cidade. As
chuvas regulares da estação haviam derramado um verde
novo na grama e nas árvores do Eixão. Vários outdoors com
a foto de que o Escadinha me falara no enterro de Aída fazi-
am anúncio de uma bebida. Invejei não a qualidade de seu
trabalho, que como sempre era pouca, mas o dinheiro pelo
qual um fotógrafo inescrupuloso se vendia à publicidade, que
certamente era muito.
— Ponho todos os homens numa gaveta. De vez em
quando, tiro um de lá. Uso um pouquinho e torno a colocá-
196 JOÃO ALMINO

lo na gaveta. Quando acho que o cara não vale mais a pena,


jogo no lixo — Lívia me disse.
Vi-me fora da gaveta, pronto para o lixo. Não falamos de
nossa aventura passageira, nem de Aída. Conversamos sobre o
Ministério e o que andávamos fazendo. Passamos várias horas
juntos, talvez esperando que alguma nova química se produzis-
se entre nós. Mas os ingredientes de nossos humores cozinha-
vam em panelas distintas, incapazes de produzir sabores de
qualquer espécie, muito menos os apimentados. Despedimo-nos
com palavras cordiais, sem promessa de novo encontro.
Algumas semanas após minha mudança, me encontrei por
acaso com Paulo Marcos no comércio da entrequadra. Ele e
Tânia haviam se reconciliado, ele disse, e ela daria a luz a
qualquer momento.
— Estava mesmo para te ligar. Queremos te convidar
para ser padrinho de batismo de nossa filha — acrescentou.
Deduzi que Tânia nada comentara com ele sobre o con-
vite que já me fizera. Embora a surpresa que demonstrei fos-
se fingida, era genuína a alegria com que aceitei aquele
convite pela segunda vez. Que alívio Tânia ter preferido o
marido ao Guga!
O tempo vinha sendo marcado pelas flores, todas regis-
tradas em minha máquina fotográfica para meu projeto de
longo prazo, meu painel em homenagem a Brasília. Fotogra-
fei o ipê-branco e florido nos fundos de meu novo prédio.
Revelei aquela foto, a de número 49 acima, ampliei-a em im-
pressão cromogênica de um metro e trinta por um metro,
emoldurei-a e pendurei-a sobre a parede de minha sala. To-
mei-a como símbolo leve e alegre de um recomeço.
O LIVRO DAS EMOÇÕES 197

[24 de setembro]

50. A cartomante

Carolina nasceu num mês de março e encheu o vazio que


Maurício deixara e que eu não poderia jamais preencher se-
quer com meu próprio filho. Depois de ter convivido com
Pezão, me dei conta de que era impossível desenvolver uma
relação paternal satisfatória com um filho tão diferente de
mim, que eu não vira crescer e para cuja educação eu não
contribuíra. Encarava Carolina como a filha que não tivera.
Que alegria ser seu padrinho... Quando eu chegava, me re-
conhecia, sorria para mim e vinha facilmente para os meus
braços. Havia dias em que eu amanhecia sorrindo só de pen-
sar que ela existia.
Aquela minha alegria andava abraçada com outra, na
exata medida em que Carolina andava abraçada com sua mãe.
No fundo eu queria mais, muito mais, porém me contentava
com o que tinha e era recompensado com uma nobreza e uma
paz de espírito nunca antes experimentados. Bastavam o olhar
carinhoso de Tânia, a certeza de que ela gostava de mim com
um gostar que vinha do fundo de sua alma, sentir os eflúvios
daquele seu afeto e dedicar meu carinho a ela, sem perder a
amizade de Paulo Marcos nem o respeito que eu sentia pelo
amor entre os dois.
198 JOÃO ALMINO

[25 de setembro]

Os dias se passavam nessa paz costumeira até que uma


madrugada, chegando em casa depois de tomar minha dose
usual de cachaça no bar da entrequadra, quase fui morto por
dois sujeitos. Bateram-me e ameaçaram-me de morte sem
dizer a razão. Não encontrava uma explicação para aquele
atentado. Não tinha inimigos, não me haviam roubado... Fui
atendido na emergência do Hospital Regional da Asa Norte,
mas recorri ao prestígio de Ana para obter uma transferên-
cia para o Hospital Sara Kubitschek.
Depois de muito refletir, concluí que não podia haver
outro mandante para aquela agressão, senão Eduardo Kau-
fman. Ele se candidatara a deputado federal, e estávamos nos
aproximando das eleições. Minhas denúncias não apenas
podiam ter chegado a seus ouvidos, como também deviam
estar começando a surtir efeito. Talvez temendo o que ainda
estava por vir, e sobretudo o dano que eu poderia causar a
sua campanha, mandara me matar, nada menos.
Primeiro encarei minha conclusão como mera suposição.
Mas deduzi que havia uma altíssima probabilidade de que a
suposição fosse verdadeira quando recebi a visita de Eduar-
do Kaufman e soube, através dele, que ele mesmo inter-
mediara minha transferência de hospital. O que poderia
justificar tamanha gentileza, senão a necessidade de despis-
tar seu ato criminoso?
Quando tive a certeza absoluta de que Eduardo era mes-
mo o culpado, somente me restou uma pergunta: como lhe
dar o troco à altura? Usando suas mesmas armas? Se estives-
O LIVRO DAS EMOÇÕES 199

se no Nordeste ou na Amazônia, custariam apenas duzentos


reais contratar um capanga — e isso valia mais do que Eduar-
do Kaufman, que não valia nada. Aliás, dizer que não valia
nada era supervalorizá-lo. Na verdade, ele contribuía para
piorar o mundo; tinha um valor abaixo de zero.
Circunstâncias fortuitas me encaminharam à resposta.
Um dia Pezão e Formiga vieram me ver no hospital. Assusta-
ram-se com meu corpo engessado e com meu rosto marcado
pelos golpes recebidos. Aquela visita inesperada nos rea-
proximou. Tanto assim que, quando me senti melhor, voltei
à Vila Paulo Antônio para continuar meu ensaio fotográfico.
Na tarde de um sábado, após andar pelas ruas daquela
cidade-satélite à procura de faces ou ângulos novos, Pezão
me trouxe uma maconha da melhor qualidade, e ficamos os
dois em congraçamento com o universo, dividindo nossas
intimidades e ignorância. Foi assim que me inteirei das habi-
lidades de Pezão em roubos e seguestros-relâmpago, enquanto
ele conhecia meu ódio de Eduardo Kaufman.
— A virtude não compensa, bicho — disse Pezão.
Ele fazia planos de juntar dinheiro para se mudar para o Lago.
— Quero comer boceta de madame — anunciou.
Meus planos eram mais modestos: me vingar de Eduardo
Kaufman. Eu tinha não apenas a chave do universo, mas tam-
bém a do apartamento dele. Pus abaixo minha intenção de
ser um guia exemplar para meu filho. Era homem feito, não
o mudaria. Ele é que poderia me aperfeiçoar, liberando em
mim a dose certa de maldade para ser aplicada na pessoa certa.
Juntamos meu ódio à cobiça dele e começamos a divisar a
estratégia de minha vingança.
200 IOÃO ALMINO

Pezão propôs espreitar a chegada de Eduardo para se-


questrá-lo. Queria dinheiro, muito dinheiro. Já eu achava
melhor agir na ausência de Eduardo, que estava então dedi-
cado aos últimos meses de sua campanha eleitoral. Queria
apenas seus computadores, todos os três, nos quais encontra-
ria as provas que buscava. Não queria dinheiro, muito me-
nos me envolver num segiúestro. Era covarde demais para isso.
— Nada além dos computadores — repeti.
No fundo eu era bom. Os bons temem, nunca sabem ao
certo e por isso deixam margem à dúvida. Não são capazes de
fechar os olhos nem de tapar os ouvidos. Os maus, ao contrá-
rio, têm certeza do que fazem. São apaixonados e não medem
as consegiiências de seus atos. Talvez meçam, e tenham a co-
ragem de encarar a morte sem medo. Assim era Pezão.
Já escurecera quando deixei sua casa. Numa rua próxi-
ma, me chamou a atenção a placa de uma cartomante. Uma
mulher de olhos grandes, à janela, me convidou para entrar.
Levou-me a um quarto de pouca luz, com paredes enrugadas
e caiadas de branco, sobre as quais se via um crucifixo, e dis-
pôs as cartas do tarô sobre a mesa.
— Quem é esta morena alta que sorri para você? — per-
guntou, mostrando uma das cartas.
Como eu nada respondesse, acrescentou:
— Ela vai aparecer na sua vida quando menos espere.
Tânia não podia ser, tinha a tez branca e eu sempre esta-
va à sua espera. Lembrei-me de Antonieta e também do que
dissera o médium no Jardim da Salvação, que não existem
desencontros nem casualidades, apenas a fatalidade ditada
pela sabedoria do tempo.
O LIVRO DAS EMOÇÕES 201

À cartomante também previu o desenlace de uma velha


desavença.
— Uma solução a contento exigirá de você uma grande
dose de ousadia.
Embora não acreditasse em cartomantes, fazia sentido usar
minha dose máxima de ousadia contra Eduardo Kaufman, o que,
pensando bem, significava concordar com Pezão. Que Pezão fi-
zesse o que quisesse, desde que me trouxesse os computadores.
Que Eduardo recebesse um troco à altura pela agressão a mim.
Eu não precisava revelar estar de posse daqueles computadores.
Apenas extrairia deles informações adicionais para incriminar
Eduardo, com base nas quais passaria pistas seguras aos jornais.
Agradeci à cartomante por ter aberto as portas de meu
futuro. Ao sair, fiz a foto acima, a de número 50. À janela
enquadra em azul sua figura doce. Tem os olhos muito gran-
des, que querem saltar de seu rosto redondo, cabelos ondu-
lados até a cintura e corpo saído de um quadro de Botero.
No primeiro plano, à direita, um pequizeiro exibe suas flores
exuberantes, em cinco pincéis peludos em forma de leques
amarelados. No ângulo esquerdo, a lua é uma enorme bola-
cha iluminada que se ergue no fim da longa avenida margeada
de árvores pequenas e postes de luz.

[25 de setembro, noite]

51. Balé com camburão da polícia

Eu não precisava ir à Vila Paulo Antônio para fazer as fotos


que Aída tantas vezes me sugerira. No dia seguinte, um do-
202 JOÃO ALMINO

mingo, nas proximidades da rodoviária, vários policiais chu-


tavam dois negros para dentro de um camburão da polícia.
Os rapazes reagiam também a pontapés. Foram então imobi-
lizados e tiveram seus braços torcidos. Um dos policiais co-
meçou a espancá-los com cacetete.
— Mentira, não fiz nada! — dizia um dos espancados.
— Cale a boca, seu sem-vergonha! — gritava o policial.
Começou a juntar gente. Eu, que sempre evitava aglo-
merações e fugia de cenas de violência, gostava de estar ali,
presenciando calmamente o que se passava. Não temia levar
um balaço. Havia algo de heróico em minha atitude. Se eu
morresse, era como se morresse por Aída. Estava disposto a
acompanhá-la no outro mundo.
— Vocês têm de respeitar os direitos humanos — gritou
uma moça.
— Direitos humanos é o cacete — bradou um senhor
de meia-idade. — Bandido merece porrada.
— Solta os homens, eles não fizeram nada — disse um
pivete.
Às imagens se impuseram diante de minha câmara. Fo-
tografaria o sentimento de impotência diante da injustiça. Um
dos presos conseguiu soltar-se. Um policial atirou para cima.
Um balé confuso me envolveu, gente saltando em todas as
direções. Somente eu fiquei observando a cena de perto.
Disparei a objetiva sobre as últimas cenas, até que os presos
foram colocados dentro do camburão da polícia.
Imprimi uma daquelas fotos. Pena que Aída já não estives-
se ali para vê-la. Se eu escrevesse, falaria do protesto da multi-
dão e do uso da expressão “direitos humanos”. Talvez com razão
O LIVRO DAS EMOÇÕES 203

quase ninguém estivesse do lado da polícia, assim como rara-


mente se estava do lado do governo, fosse ele de direita, de
esquerda, de centro ou espichado para todos os lados como
rosa dos ventos. Que teriam feito os rapazes? Certamente o
tratamento que se aplicava a eles era proporcional à quanti-
dade de sangue negro que traziam nas veias. Talvez tivessem
infringido alguma lei, mas aqui havia leis e leis, as que pega-
vam e as que não pegavam. Aída me teria dito, com razão, que,
seguisse eu aqueles presos e destrinchasse suas histórias, cer-
tamente descobriria dramas pungentes, angústias sem-fim,
grandes tragédias — e aquilo era a realidade, algo bem maior
do que meu ceticismo, cinismo ou indiferença.
Se tinha dúvidas sobre a função social ou pedagógica
daquela foto, parecia menos duvidoso que me rendesse al-
guns reais. Era uma boa imagem de foto-reportagem, que eu
deveria vender a um jornal. Juntei-a às que fizera na Vila Paulo
Antônio. É a de número 53, acima.

[26 de setembro]

52. Akiko numa tarde de agosto

Por mais que descresse das palavras da cartomante, não


conseguia esquecê-las. Estava decidido a empregar toda a
minha ousadia contra Eduardo Kaufman e ainda não esgo-
tara minha munição. Enquanto aguardava os computadores
que Pezão me traria, eu poderia executar o plano Akiko. Não
204 JOÃO ALMINO

tinha dinheiro para esbanjar em prostitutas, mas Eduardo


Kaufman justificava meu investimento extravagante. Era a
primeira vez que eu treparia desde a morte de Aída, encer-
rando uma abstinência de sete meses. Akiko prestava servi-
ço a domicílio, em hotel — desde que a conta fosse paga pelo
cliente — ou então recebia num apartamento não muito lon-
ge do meu, na Asa Norte, o que preferi. Paguei os vinte por
cento adicionais por serviços completos, interessado no que
ela pudesse me contar.
Ela não só ouvira falar em Eduardo, como também pre-
tendia votar nele se conseguisse ir em outubro a São Paulo,
onde seu título estava cadastrado.
— É lindo e um grande orador — disse.
— Fostes a alguma das festas que ele deu?
— Que festas?
— Estás escondendo o leite.
— Você veio aqui para conversar ou o quê? — me per-
guntou, deitando-se na cama.
Ela se abriu para mim de todas as formas, mas, por mais
que eu tentasse, não consegui endurecer o pau. Chupou-o
lentamente, massageando com delicadeza meus testículos.
Acariciou meu ânus com seus dedos finos e com a própria
língua, prometendo que isso me excitaria, e nada. Chupou-
me novamente, aplicando suas melhores técnicas. Quando
minha demora começava a lhe dar prejuízo, me disse:
— Você é caso perdido. É o primeiro cara que brocha
comigo.
Tentei ainda outras vezes, esfregando o pênis na entrada
de sua vagina, em suas nádegas, em suas coxas, em seus sei-
O LIVRO DAS EMOÇÕES 205

os, em seus lábios, e nada. Era Eduardo Kaufman atrapalhan-


do minha ereção. Akiko foi implacável. Não aceitou retirar
o adicional de vinte por cento.
— Num caso como o seu, eu devia cobrar muito mais.
Não pus a culpa daquele fracasso na cartomante. Talvez
sua previsão não estivesse errada; minha ousadia é que fora
pouca.
Ao final, propus a Akiko substituir a trepada por uma fo-
tografia. Ela aceitou, desde que eu pagasse em dobro. De pé,
nua, diante do monitor do computador, roendo as unhas, me
lembrou Marcela. Mantinha de sua ascendência oriental não
apenas os olhos repuxados, mas também uma suavidade nos
gestos e uma delicadeza no falar. Armei a câmara e tirei a foto
de número 52 acima. A arrumação do espaço e os livros na
estante são de moça instruída. O corpo fino e leve, de pouca
bunda, quase não traz marcas do sol. Está tatuado com um
pássaro vermelho e preto abaixo do umbigo e inteiramente
depilado entre as coxas, onde se vê, discreto e nítido, o risco
vertical de seu sexo. Akiko inclina a cabeça para um lado, como
um pássaro. Seu olhar tem algo de angelical. O lábio inferior,
saliente, é como de um bebê prestes a chorar.
Assim comecei a classificar aplicadamente meus fracas-
sos, que chamei de experiência para que me servissem de
trampolim para o golpe final e mortal em Eduardo Kaufman.

53. A estratégia das aparências

Recordo-me que era setembro de 2002, oito meses após


a morte de Aída, e estava sozinho com Tânia na sala de seu
206 JOÃO ALMINO

apartamento. Carolina, com sete meses, brincava em seu


cercadinho.
— Aproveite — disse a Tânia. — Esta é a fase de ouro
dos bebês. Já ficam sentadinhos, mas ainda não correm.
Tânia estava silenciosa e pensativa. Ficamos à janela,
próximos um do outro, vendo as mangueiras e também as
buganvílias, que pareciam querer florir mais cedo.
— Continuo fazendo fotos para meu painel de flores, que
em breve vou dar por concluído.
Aquelas buganvílias me trouxeram a lembrança de uns
flamboyants ou, mais precisamente, de uma conversa que eu
tivera com Aída.
— Aída me disse que eu devia me casar contigo.
— E você, o que achou da sugestão?
— "Tu sabes que sempre gostei de ti.
— Tem Paulo Marcos...
— "Tu me pões na fila, então?
— Você não é só o primeiro da fila. É o único. — Deu
um beijo maternal sobre minha testa.
— E Guga?
— Que absurdo você ter ciúmes de seu irmão. É até ofen-
sivo. Não se esqueça que sou uma mulher casada. — Falou
em tom sério, mas logo emendou num sorriso: — Bobo... —
Beliscou minha bochecha e passou as mãos sobre meus ca-
belos, como se quisesse despenteá-los.
Desde minha conversa com Tânia na casa de Antônio,
Guga deixara de falar comigo.
Segurei as mãos de Tânia.
— Aceita um convite meu para jantar?
O LIVRO DAS EMOÇÕES Om

— O que vou dizer a Paulo Marcos?


— Ele não está viajando?
— Melhor não. Com qualquer um eu sairia, menos com
você.
— Posso saber por quê?
— Prefiro não dizer.
Tentei beijá-la.
— Não seja louco. Disse que ponho você na fila. Mas tem
de ficar do outro lado da linha amarela, esperando a vez, bem
comportado.
— ÃÁceito, se disseres que me amas.
— "Te amo.
Demos um beijo demorado.
— Ah — ela suspirou. — Este foi o último. A partir de
agora, vale nosso acerto. Promete?
Aquele beijo desencadeou confissões, minhas, exagera-
das, de que a amava desde que a vira pela primeira vez; dela,
de que tivera um sonho quentíssimo comigo em que “tudo”
havia rolado. De novo nos beijamos.
— Se Paulo Marcos não fosse um cara tão legal, eu seria
capaz de fazer uma loucura — ela concluiu.
Não gosto das fotos que fiz das mangueiras naquele iní-
cio de tarde, demasiado banais, como banais são as manguei-
ras em Brasília. Já a foto número 53 acima, que tem suas cores
riscadas pelas sombras das buganvílias contra o sol do meio-
dia, feita na mesma ocasião, jamais poderia ser banal para
mim, pois está indissoluvelmente ligada àquele beijo.
208 JOÃO ALMINO

[5 de outubro]

54. Fracasso à custa de muito esforço

Somente soube do roubo ao apartamento de Eduardo


Kaufman quando a polícia me abordou. Que medíocre era
Pezão, um mero roubo de aparelhos eletrônicos! Como ne-
nhuma porta do apartamento fora arrombada, eu era suspei-
to. Pezão não me dera notícias, nem sequer de computadores.
Não o denunciei aos policiais, nem quando decidiram me
prender. Passei poucas horas no xadrez. Eduardo Kaufman
mandou me soltar e depois me telefonou:
— Sei que você é inocente. Jamais seria capaz de uma
coisa dessas.

[5 de outubro, noite]

Procurei Pezão.
— Preciso te contar algo muito sério — anunciei, sobre
a mesa do bar, depois de vários chopes.
— Se quer descolar grana do negócio, desista. Não ti-
nha computador lá, meu irmão.
— Sou teu pai.
— O que é isso, cara? Está ficando maluco?
Contei-lhe em detalhes.
— Você, meu pai? — Balançava a cabeça, parecendo não
acreditar.
— Quero uma foto contigo.
O LIVRO DAS EMOÇÕES 209

— Não. Esqueça, bicho — me deu as costas, talvez des-


confiando de que eu quisesse entregá-lo à polícia.
— “Tenho tantas fotos tuas — falei, para lembrá-lo de que
eu não precisaria de mais uma, se a razão fosse aquela. —
Mas não tenho uma de nós dois.
Ainda assim se recusou a posar. Esta é a razão da foto núme-
ro 54, de costas, letras brancas estampadas na sua camiseta ver-
melha e apertada, um boné amarelo virado para trás, na direção
da câmara, com um bordado vermelho em forma de diagrama
chinês, a bermuda larga, frouxa, sobre pernas batatudas, fortes,
celular preso à cintura, como um revólver, focos de luz multicor
do lado esquerdo. Uma foto que o fotógrafo quis jogar no lixo,
mas o pai guardou. Eu havia fracassado, e aquela era a foto de
meu fracasso, mais um para minha coleção. Um fracasso conse-
guido à custa de muita dedicação e esforço.

7 de outubro

Passados tantos anos, há dois dias Pezão veio me visitar, o que


me levou a recordar de uma foto em que ele aparece de costas e
que minha afilhada Carolina ontem me ajudou a localizar. Inse-
ri-a, então, em meu Livro das emoções.
É hoje um sujeito respeitável, com pelo menos um grande so-
nho realizado: mora no Lago Sul. Notei, pelo abraço que lhe dei,
que seu corpo está ainda mais volumoso. Enquanto ele falava, eu
ouvia os sons finos e tilintantes de várias pulseiras nos seus braços
inquietos. Resolveu me fazer uma demanda de reconhecimento de
paternidade e me exige um exame de DNA. Talvez pense que vou
210 JOÃO ALMINO

deixar alguma herança e não saiba que minhas dívidas valem mais
do que meus bens, ainda que faça bom negócio com minha
Hasselblad e minhas Leicas antigas.
— Não precisa o exame — eu lhe disse. — Reconhecê-lo
como filho, que eu saiba o único que fiz, é como me completar.
Vai servir para provar o sentido maior de um prazer passageiro.
Ainda assim ele exige o exame.

8 de outubro

Carolina me lembra cada vez mais sua mãe, até mesmo nas
atenções para comigo. Quis vir almoçar aqui e me trouxe a comida
pronta. Ela mesma fizera um lombo de porco, acompanhado de
farofa. Falamos sobre os fantásticos desenvolvimentos da genética e
da medicina, dos desafios da Amazônia e do Nordeste, da miséria
constante, das mais recentes guerras e da nova geografia econômi-
ca do mundo. Já estou velho o suficiente para saber que o futuro
que vislumbrávamos nunca foi nem será atingido, mas ainda guar-
do juventude bastante para viver sem passado nem futuro e sobre-
tudo para jogar conversa fora com uma jovem simpática.
— (Quando a realidade decepcionar, não se dê por vencida.
E nunca deixe de aproveitar o lado bom da vida — aconselhei-a.
Minha afilhada se ofereceu para ajudar na organização das
fotos, caso Laura não possa vir com a mesma fregiiência. Assus-
tei-me com a hipótese.
— Por que Laura não pode mais vir?
— Não, não sei. Ela não me disse nada. Só penso que, tendo
de conciliar seu trabalho com as tarefas de dona de casa...
O LIVRO DAS EMOÇÕES 2

— Mas ela pode continuar trabalhando no meu laboratório.


O laboratório é dela.
Prefiro não saber se Laura e Maurício já estão para se casar.
Seria um erro tomar uma decisão dessas de forma tão precipitada.

[10 de outubro]

55. Foto perdida ou a lógica do acaso

Nos anos que se seguiram à morte de Aída, fui pouco a


pouco me transformando num sujeito de poucos amigos.
Sozinho, bebia para esquecê-la e, em certos dias, a ponto de
me embriagar. De vez em quando aceitava passar os domin-
gos com Antônio e Verônica, desde que Guga não apareces-
se. Verônica me cobria de atenções. Nossa relação parecia
de ex-amantes. Era como se conhecêssemos os segredos um
do outro. Sua nudez havia amaciado a raiva que eu sentira
dela. Assim, eu a desculpava mais facilmente por tudo, até
mesmo e principalmente por existir.
Em final de outubro de 2002, participei com ela das festas
da eleição presidencial. Dias depois, em novembro, com a aju-
da dela, selecionei um conjunto de fotos de Eduardo Kaufman
em posições cômicas e ridículas, ao lado de Paulo Antônio ou
de Ana. Eduardo fora eleito deputado federal por São Paulo
com a maior votação do país, levando consigo para a Câmara
mais quatro candidatos de seu partido que haviam tido vota-
ções inexpressivas. As fotos que Verônica e eu selecionamos
eram no mínimo capazes de lhe acarretar estrago político.
Dio JOÃO ALMINO

Minha colaboração com Verônica não apenas teve as


consequências para meu futuro que ainda pretendo comen-
tar. No presente me levou a pensar na morena que a carto-
mante vira nas cartas. Aquela morena permaneceu dias
inteiros em meu espírito com a expressão da própria Verônica.
Depois mostrou um rosto mais bonito que o dela e abriu um
sorriso espontâneo que nunca fora seu. Foi aos poucos se
tornando ainda mais alta e de corpo ainda mais moreno e
exuberante. Não era em Antonieta que eu pensara na casa
da cartomante?
Eu a via raras vezes e sempre por acaso. Criei coragem de
procurá-la. O pretexto foi lhe dar de presente uma das fotos
que fizera no Parque Olhos d'Água, a da paisagem japonesa,
que aqui recebeu o número 10. O gesto que eu imaginara ser-
vir de início a uma nova relação esgotou-se nele mesmo. Ela
me recebeu com uma frieza gentil. Não percebeu a carga de
emoção armazenada naquela foto. Em compensação, passei
a integrar sua lista de endereços de e-mail e, por esta razão,
recebia suas mensagens reencaminhadas e, depois que se
casou, também notícias do nascimento de cada filho, acom-
panhadas de fotos. Com o tempo entendi que eu quisera
conquistá-la não por amor, mas por vaidade. Além disso, as
mulheres são flores que devem ser colhidas quando brotam.
Passada a ocasião, podem murchar. Ainda assim as lembran-
ças de Antonieta me alegravam, porque nas lembranças a flor
apenas desabrochava, pronta para ser colhida.
Disse que me transformara num sujeito de poucos ami-
gos. Mas, espremendo aqueles “poucos” à sua dimensão es-
sencial, havia na verdade me transformado num sujeito de
O LIVRO DAS EMOÇÕES 213

apenas dois amigos. De fato, o que aliviava minha solidão,


marcando as semanas, os meses e os anos, eram meus domin-
gos em companhia de minha afilhada. Comprava-lhe presen-
tes, empurrava o seu carrinho nos passeios ao parque... Com
isso mantive a amizade de Tânia e Paulo Marcos, que com
frequência me convidavam para algum programa.
Por insistência deles, uma noite — deve ter sido em 2004
—, os acompanhei a um vernissage do Escadinha. Sabia de
seu êxito. Seu nome sempre vinha à baila pelo muito que
cobrava por suas fotografias, agora estampadas em pratos,
copos e objetos de design. Virara um empresário de sua pró-
pria arte. Nunca o via, exceto em alguma mesa de bar, sem-
pre em companhia de Paulo Marcos.
São misteriosos os itinerários do acaso. Naquela noite, lá
encontrei Marcela exultante ao me rever.
Nos próximos dias eu ia a um dos almoços domingueiros
em casa de Ana, e Marcela aceitou me acompanhar. Eram
almoços sempre regados a bebidas fartas, nos quais Berenice
continuava me evitando, mesmo eu tendo concordado em
É deixar de procurar Pezão.
Ali pela penúltima vez vi Guga. Discutia-se política, e eu
chegava à conclusão de que a afinidade de opinião e o afeto
nem sempre andavam lado a lado. Eu poderia concordar com
tudo o que Guga dizia, apesar de nossas relações estremecidas.
E gostava cada vez mais de Tânia, embora discordasse de seu
romantismo político. Ela era uma defensora tão apaixonada
de Paulo Antônio, que chegava a ter simpatia por tudo o que
Eduardo Kaufman fizera para recuperar a memória do ex-
presidente. Sentia-me como um muçulmano que quisesse se
214 JOÃO ALMINO

casar com uma judia ortodoxa, ou como um huguenote que


se enamorasse de uma católica durante as guerras de religião.
Da política local se passava ao Oriente Médio e à Guerra
do Iraque.
— Usam os princípios e a moral segundo as conveniên-
cias. São arrogantes e mentem descaradamente. Ora estão a
favor das ditaduras, ora das democracias — dizia Guga.
Todos condenavam claramente o uso da mentira e o des-
respeito ao direito internacional, menos Paulo Marcos:
— Tudo depende do rumo dos acontecimentos mundiais,
da possibilidade de democracia no Oriente Médio... Na polí-
tica o que importa é o resultado.
— Você também é daqueles que acreditam que os fins
justificam os meios? — perguntou Guga.
— Estão falando daqui ou do Oriente Médio? — Ana
quis saber,
— Já se disse que liberdade é o que se conquista. Onde
já se viu forçar quem quer que seja a ser livre? — afirmou
Carlos.
— Pode haver ações moralmente certas, mas politica-
mente erradas. Assim como pode haver ações politicamente
responsáveis e moralmente discutíveis — defendeu Paulo
Marcos.
— Deve-se fazer o que é certo, não interessa o que acon-
teça — disse Tânia.
— Segundo a ética da convicção. Já segundo a da res-
ponsabilidade... — insistiu Paulo Marcos.
— Ea dairresponsabilidade? É a de quem fecha os olhos
para o que há de errado, por comodismo, fidelidade a uma
O LIVRO DAS EMOÇÕES vu E

causa, obediência ou simplesmente por achar que as coisas


são assim mesmo — Carlos opinou. — Uma espécie de ética
da acomodação.
— Sempre temos essa desavença, eu e Paulo Marcos —
falou Tânia.
— Bom, aqui não sei, mas lá a cultura é outra. Deve ser
respeitada. Se eles mesmos não querem democracia... Se são
as próprias mulheres que querem levar aquela vida... —
Marcela opinava.
— Vamos aos fatos: o mundo não é racional; o direito
vai para a lata do lixo quando conflita com os interesses, e
cada um usa a força que tem. Mas não concordo com sua
posição relativista, Marcela. Há coisas que se deve defender
em qualquer lugar — afirmava Guga.
— Em matéria de cultura, nada é definitivo. Mesmo os
piores conflitos culturais podem se desfazer a longo prazo.
Vejam meu caso: tenho nome de apóstolos do novo testamen-
to, sou filho de uma judia e casado com uma neta de muçul-
manos sírios — disse Paulo Marcos.
Ana me chamou a um canto e reclamou que eu tivesse
vendido suas fotos a Eduardo Kaufman.
— Aquelas fotos não têm nada demais. São as mesmas
que te dei.
— E você acha que isso é um atenuante! — respondeu
indignada.
Até hoje creio que sua reação resultou de uma canalhice de
Eduardo. Ele provavelmente a chantageou com aquelas fotos,
exagerou o que mostravam ou então narrou as circunstâncias
da venda de uma forma tal a me depreciar aos olhos dela.
216 JOÃO ALMINO

No final da tarde, levei Marcela a meu estúdio. Eu ainda


não perdera o hábito de contabilizar os minutos. Depois de
uma hora e um uísque, Marcela e eu estávamos na cama. Ão
final de duas, tinha sido mais fácil e menos gostoso do que
imaginara. Sexo sem culpa e sem consegiiência; também sem
grandes dores ou prazeres. Ultramoderno e ultrabanal.
Marcela era a primeira mulher que eu levava para a cama
com algum êxito desde a morte de Aída, já há mais de dois
anos. Mas aquela noite de sexo me fez sobretudo sentir sau-
dades de Joana, como há muito não me ocorrera. Somente
ela, nenhuma outra, seria capaz de romper aquela alternância
de desejo sem sexo e sexo sem desejo. Ia lhe enviar um e-
mail ou, melhor ainda, uma carta à antiga. Adormeci um
idealista de uma idéia fixa: queria reaver o que havia perdi-
do, quem havia perdido.
Amanheci realista. Joana era inalcançável. Desde que
voltara para o Rio, não me dera notícias. Talvez ainda visse
Eduardo Kaufman. Provavelmente se transformara numa de
suas amantes.
Marcela estava ali a meu lado, disponível. Beijei seus sei-
os. Foi o suficiente para acendê-la, como se acende um fogo
em papel embebido em álcool. A juventude e leveza da magri-
nha tinham suas vantagens: Joana não teria conseguido fazer
piruetas nem dar tantos pulinhos em cima de mim; não teria a
mesma bundinha agitada ao fazer amor. Trocamos frases as mais
diretas e rasteiras, exibi o mais baixo calão que eu conhecia e
lhe gritei o que mais pudesse chocar. Marcela não ficava atrás,
dominava aquele rico vocabulário melhor do que eu, não se
intimidava, como se fosse experiente em fazer sexo por telefo-
O LIVRO DAS EMOÇÕES 217

ne. Falava rápido e muito, como um ruído ou um chiado num


rádio jamais desligado, mas que ainda assim eu desligava para
me concentrar apenas na sua figura e nos seus gestos. Conti-
nuava nua na cama, exibindo pêlos pubianos bem aparados,
duas faixas estreitas em V entre as pernas. Cuidava deles como
quem cuida dos bigodes. Seu corpo acompanhava bem o espí-
rito: fino, distinto, cortês. Era magrinho por inteiro, sem um
milímetro de gordura, músculo juntinho ao osso, coxas exa-
tas. Ela podia não ter me dado o prazer farto e suculento de
uma Joana. Mas tinha me alegrado com sua alegria, e eu con-
tinuava gostando de seu nome: Marcela.
— Se um dia eu tiver uma filha, vou dar o teu nome:
Marcela.
Ela ficou ainda mais alegre e, com sua alegria aumenta-
da, me alegrou também ainda mais, prova irrefutável de que
a alegria é um vírus altamente contagiante. De fato eu gos-
tava daquele nome e reiterei, agora como se fosse profecia,
que, para completar meu destino na terra, um dia teria uma
filha chamada Marcela.
— Filho homem já tenho.
— Você nunca me disse.
— É um bandido, assaltante. Acho que até assassino.
Ela riu, pensando que fosse brincadeira.
— Sabe que uma cartomante previu que uma morena ia
aparecer de surpresa na minha vida?
Seus seios volumosos eram rijos, de arcos perfeitos e ma-
milos redondos, escuros, com pontas eriçadas.
— São lindos — apalpei-os.
— Não é o primeiro a me dizer.
218 JOÃO ALMINO

— Se fosse refazer meu projeto dos painéis, faria com


seios. Círculos em vez de triângulos. Há uma enorme varie-
dade de tamanhos, cores e formas. E se acrescentarmos as
formas, cores e texturas dos mamilos... Concordo com a teo-
ria de que a natureza pode ser toda representada por triân-
gulos, retângulos e círculos.
Bem-humorada, ela concordou comigo e descreveu meus
painéis hipotéticos com riqueza de detalhes, como se ela
mesma os tivesse composto.
Quando armei minha câmara, ela fugiu de meu campo
visual, como gata arisca. É o que explica a foto perdida, a de
número 55, em que aparece uma cama desarrumada e apenas
a mão direita de Marcela, borrada no canto esquerdo. Se sua
calcinha e a camisinha que eu usara repousassem sobre a cama,
eu alegaria tratar-se de uma foto à Tracey Emin, a artista bri-
tânica que transformou sua cama em obra de arte. Mas que
valor podia ter uma foto de uma cama vazia e desarrumada,
lençóis embolados e travesseiros jogados num dos lados?
Um valor alto, não hesito em dizer; o valor de uma com-
panhia firme e fiel para um homem que sofria as agruras de
sua solidão. A prova é que a guardei anos a fio. Aquela foto
era como uma anotação para mim mesmo, uma espécie de
rabisco que não devia ser mostrado e que eu apreciava em
segredo sempre que queria evocar uma noite alegre e des-
compromissada.
O LIVRO DAS EMOÇÕES 219

10 de outubro, fim da tarde

Laura hoje me perguntou, com razão, se não tenho outras fotos


de Marcela. Não parece certo abandonar personagens no meio
da história, mas o que se pode fazer quando eles somem na vida
real? Será que, somente porque não foi o grande amor de minha
vida ou porque deixou de me dar notícias, Marcela não mereceria
minha escrita? Talvez na revisão eu substitua as histórias da ma-
grinha apenas por uma frase: esta é minha cadela Marcela, cujo
nome homenageia uma antiga... Amiga? Transa? Não, namora-
da! “Namorada” foi o termo que ela usou na conversa com Laura.
Agora que Laura está para se casar, estreitamos ainda mais
nossa amizade. À tal ponto perdi o medo de lhe falar sobre mim,
que pela primeira vez agora à tarde, enquanto ouvíamos música,
consegui verbalizar o lugar ocupado em minha vida por Joana e
pelas mães de Maurício e Carolina. A história amorosa que lhe
contei, em capítulos curtos, é distinta da que tenho escrito no meu
Livro das emoções. Saiu de forma espontânea. À medida que
falava, fui tendo clareza sobre o que antes parecia confuso, e Joana
esteve presente do começo ao fim. Na verdade, minha história com
ela não terminou, é o que penso e ainda espero.
— Falei para ela de você. Ela lhe tem carinho — Laura dis-
se. — Você não quer lhe escrever?
A última vez que a encontrei foi há sete anos e quarenta dias,
em circunstâncias que eu deveria contar no meu livro. Minha vida
foi feita de pequenos fracassos e desencontros, uma vida vivida às
avessas, não pelo que consegui realizar, mas pelo que deixei de fazer.
Joana existe para provar esta minha tese e me trazer a lembrança
do que poderia ter sido.
220 JOÃO ALMINO

[11 de outubro]

56. As últimas flores

Fiquei contente em doar minhas fotos das cidades-satéli-


tes, inclusive as que fiz com Pezão na Vila Paulo Antônio, a
uma entidade filantrópica que se interessou em recuperá-las
e organizá-las, havendo colocado uma delas na capa de uma
brochura.
Fiquei ainda mais contente quando, através de um agen-
te, consegui um bom preço pelo conjunto de fotos que eu
selecionara com Verônica, aquelas em que Eduardo Kaufman
aparecia em posições cômicas ao lado de Paulo Antônio e de
Ana. Um comprador que não quis se identificar adquiriu toda
a coleção de uma só vez. Na política os inimigos de ontem
podem ser os amigos de hoje, mas todo político tem seus ini-
migos de hoje. Supus que algum inimigo de Eduardo pudes-
se, portanto, fazer excelente uso daquelas fotos. O tempo se
encarregara de reduzir minhas pretensões. Já que eu não con-
seguira a grande vingança, me bastava a vingança pequena.
Não, Eduardo eu não perdoava nem jamais perdoaria.
Estaria mentindo se dissesse que era bem-sucedido no que
eu fazia, mas conseguia sobreviver sem grandes percalços. Até
que comecei a ter problemas de visão. Talvez haja quem,
numa situação como a minha, aproveitasse para narrar uma
longa tragédia. Prefiro ser breve e me limitar a dizer que,
embora tenha sido um choque saber que não haveria cura
para aquele mal, minha revolta não durou muito. Minhas
frustrações cabem perfeitamente neste parágrafo. Fui me re-
O LIVRO DAS EMOÇÕES 22

signando pouco a pouco à minha nova condição, como quem


consegue criar calos para caminhar sobre brasas. Perdi ini-
cialmente minha visão lateral e, embora tenha sido medicado
tão logo detectei a doença, pude apenas reduzir a velocidade
de sua progressão. Cheguei a um ponto em que, nos visores
de minhas câmaras, se desenhavam figuras borradas, cores
mais do que formas, sombras... Quem via minhas fotos via o
claro e o nítido que eu não podia ver e que, se tivesse visto,
talvez não tivesse fotografado.
Meus problemas de visão foram um divisor de águas ra-
dical em minha vida e em minha fotografia. Mudei meus
hábitos. Por obrigação, passei a usufruir do repouso sistemá-
tico. Por necessidade, adquiri a virtude da paciência. A do-
ença me fez escapar dos maus livros e foi pouco a pouco me
retirando do mundo superficial e apressado das imagens para
o da reflexão. Com isso passei a ouvir com liberdade os ecos
de meu próprio pensamento.
A foto por excelência daquele divisor de águas foi feita
em novembro de 2005. Lembro-me bem, pois havia algo de
podre no reino da Dinamarca, com Comissões Parlamentares
de Inquérito investigando simulações de concorrência, lici-
tações fraudadas, superfaturamentos, uso indevido de fundos
de pensão, pagamentos ilícitos, caixa dois para financiamento
de campanhas eleitorais... e Eduardo Kaufman não fora se-
quer citado!
A fotografia retrata os flambloyants cor de sangue de-
bruçados sobre uma cerca viva, com os cambuís verde e
amarelo ao fundo, diante dos quais um dia Aída conversara
comigo sobre Tânia. Eu notava pela primeira vez que meus
222 JOÃO ALMINO

olhos já não viam com perfeita nitidez e ainda não sabia que
aqueles eram os sintomas da doença impiedosa. Foi a última
das fotos para meu painel de flores, a de número 56 acima.

[15 de outubro]

57. A realidade também são flores

Por causa de meu crescente problema de visão, em geral


eu ganhava menos dinheiro com as fotos recentes do que com
as antigas, especialmente as de meu arquivo sobre Paulo
Antônio Fernandes, para o que indiretamente Eduardo con-
tribuía, ao ser o principal promotor da recuperação da me-
mória do ex-presidente. Este passava a ser discutido em filmes,
programas de TV e livros. Seu nome ocupava praças, ruas,
estradas e aeroportos.
Mas um dia Tânia comprou, de presente para Paulo Mar-
cos, o painel de flores que durante anos eu estivera compon-
do, que incluía a foto número 53 com as buganvílias e que
eu concluíra com os flamboyants — de todas as minhas obras
recentes, a única vendida a bom preço, desconfio que por
caridade de Tânia.
Era como se eu estivesse, sem saber, compondo aquele
painel exclusivamente para ela. Naquele dia, tive um sonho
com Tânia: ela estava deitada de bruços sobre a cama, eu
retirava delicadamente sua calcinha quase cor da pele e no-
tava que, sobre suas nádegas, havia espinhas. Ela se virava e
tentava se cobrir com as mãos. Seus seios se eriçavam. Os
O LIVRO DAS EMOÇÕES 223

mamilos compridos, como pênis excitados, apontavam para


a frente. “Não preciso de mais nada. Isto me basta. Estou feliz
em saber que você me quer”, ela me dizia. Eu enxergava com
perfeita nitidez, e todas as cores eram fortes, tão fortes que
emitiam calor. No sonho Tânia tinha uma pele mais rosada e
formas mais volumosas do que no original. Parecia alta. Suas
coxas eram longas, as nádegas bem-feitas, arqueadas. Eu ape-
nas não entendia por que haviam nascido aquelas espinhas.
Nunca vio painel de flores montado. Dei a um moldureiro
indicações precisas sobre a disposição de cada foto no pai-
nel, em que a estação das chuvas, de fundo verde, contrasta
com a da seca, em tom amarelo pálido. A fotografia do con-
junto, exposta acima, foi feita pela própria Tânia.

[17 de outubro]

58. Marcela pulando sobre mim

À medida que progredia minha cegueira, fui tendo ainda


mais tempo para o ócio. Aprendi braile para me ocupar com
algumas leituras quando perdesse por completo minha visão
e um dia, há dezesseis anos, aí por abril de 2006, adquiri
Marcela para me acompanhar em minhas caminhadas. O
procurador-geral da República denunciara quarenta políti-
cos e empresários por formação de quadrilha, e eu queria saber
e Eduardo Kaufman era um deles. Já não conseguia ler e tive
de pedir ajuda a uma vizinha.
224 JOÃO ALMINO

Era frustrante comprovar que Eduardo escapara uma vez


mais. Em compensação, a cadela da vizinha dera cria, e dois
filhotes ainda estavam à venda. Quando uma das cadelinhas
começou a pular sobre mim, me ocorreu o nome “Marcela”.
Havia prometido a Marcela dar aquele nome a minha filha.
A cadelinha de três meses que se enganchava nas minhas
pernas era o mais próximo de uma filha que eu tivera ou ja-
mais teria, e eu continuava achando o nome bonito. Fiz um
teste. Chamei-a: “Marcela!” Ela veio correndo para meus
braços. Cumpriria o prometido. Sem filhas nem gatas, daria
a minha cadela o nome de Marcela.

[19 de outubro]

Carolina, então com quatro anos, puxava o rabo ou as


orelhas de Marcela, enquanto Tânia e eu especulávamos
sobre se era mais violento o Rio ou São Paulo, agora que os
atentados da máfia do Primeiro Comando da Capital domi-
navam a cena paulista, e se Eduardo Kaufman se incluía en-
tre os sanguessugas, os parlamentares que extraíam, com
emendas, dinheiro do orçamento da união para a compra
superfaturada de ambulâncias para prefeituras.
— Não. Ele é rico demais para precisar disso — ela
opinava.
— Ouvi no rádio que os cientistas mediram a distância
entre Brasília e o inferno. São apenas quarenta quilômetros.
Depois descíamos todos — Marcela, Carolina, Tânia e eu
— para passear pela quadra. Vendo-a mal desenhada e usan-
O LIVRO DAS EMOÇÕES PAPAS)

do o disparador automático, tirei uma foto de Marcela pulan-


do sobre mim. Ela ri, e olha de soslaio, como se fosse gente.
Seria um exagero afirmar que eu era feliz, porque a felicidade
é uma miragem que conseguimos ver quando olhamos para trás
ou para a frente. Mas nada me fazia infeliz, e ter a fiel compa-
nhia de Marcela me deixava menos longe da felicidade.

19 de outubro, noite

Há alguns anos ainda era trangúilo viver no Plano Piloto. Hoje


a cidade está asfixiada pelo inchaço do entorno. São milhões de
pessoas disputando as águas escassas e o espaço urbano limitado.
E imagino que seja por causa dos quilômetros e quilômetros de
asfalto que quase não tem chovido, que o ar continua seco e o
tempo ainda não refrescou. Hoje faz um calor insuportável.
Maurício e Laura passaram por aqui e me convidaram sole-
nemente para ser padrinho de casamento. Aceitei de bom grado.
Parecem feitos um para o outro. Provam que o casamento está
longe de ser uma instituição falida. Eu é que não tive sorte.
Convidaram Joana para madrinha.
— O que você acha? — Maurício quis saber.
— Não acho nada. O casamento não é meu. E se ela aceitou...
— Ficou contentíssima quando dissemos que tamos convidá-
lo para padrinho.
Eu também nunca estive tão contente, e não porque imagine que
Joana se interesse por mim. Talvez seja pelo clima do casamento, por
estar cercado de um amor novo e ver Maurício e Laura felizes.
226 JOÃO ALMINO

[22 de outubro]

59. O olhar mecânico

O tempo foi sendo marcado pelos distintos graus de mi-


nha deficiência de visão e de minha correspondente incapa-
cidade de fotografar. Até que, passados alguns anos, atingi a
fase das fotografias do escuro, fotos de vozes e outros sons,
por vezes de meros ruídos ou do que me era revelado pelo
tato e pelo cheiro. Quando minha vista fraca desenxergava
as coisas, minha memória e consciência avivavam-nas. Via o
que meus olhos não viam. As cores daquilo que nos cerca
somente existem para nossos olhos, que quase nada captam
da luz do mundo. Mas quando nossos olhos se apagam, essas
cores deixam de distraí-los, e eles sentem-se livres para ex-
plorar o que está além da mera aparência. Com o tempo me
convenci de que a verdade pode ser mais nítida no escuro da
mais negra noite e divisei outro sentido para aquela frase que
Guga uma vez me pronunciara e que eu nunca esquecera:
“O olho do homem serve de fotografia ao invisível, como o
ouvido serve de eco ao silêncio.”
Como minhas fotografias de vozes e outros sons não con-
seguiam ser comercializadas, deixei de trabalhar. Passei a ser
sustentado por Antônio com meu dinheiro futuro, ou seja,
finalmente o persuadi a aceitar descontar de minha herança
certa o que ele me adiantava. Quando meu avô morrera,
mamãe tinha preferido se mudar da estância para Porto Ale-
gre, onde Guga já se encontrava. Com a venda das terras,
adquirira uma ótima casa, cuja oitava parte um dia seria mi-
O LIVRO DAS EMOÇÕES Zi

nha e se juntaria à pequena aposentadoria de autônomo para


financiar minhas marmitas.
À herança não tardou. Não quis pedir dinheiro a Antô-
nio para ir ao enterro de mamãe, nem ele me ofereceu. As-
sim, minha dívida pecuniária com ele não aumentou, ao
contrário de minha dívida de gratidão para com ela. Não sou
homem de chorar mesmo quando sobra razão, sobretudo
porque fui menino que chorava sem razão. Mas quando
Antônio me contou que mamãe pronunciou meu nome, em
coma, a apenas algumas horas da morte, chorei meu choro
silencioso e sentido. Sua falta era maior do que eu jamais
poderia ter previsto. Várias vezes sonhei com ela. Sei o quanto
ela me amava e quão pouco eu sabia retribuir o seu amor.
Raramente lhe fiz uma visita. Pouco conversávamos, além da
troca de trivialidades por telefone.
Antônio também me disse que haviam sido palavras tex-
tuais dela alguns dias antes: “Diga a Cadu que procure Guga.
Quero que se reconciliem.” No fundo de minha teimosia sem-
pre guardei seus ensinamentos. Porém aquele conselho eu
deveria descartar. Guga era quem deixara de me procurar. E
por que mamãe não dirigira o conselho a ele, que chegara a
tempo de assistir à sua morte?
De vez em quando eu bebia mais do que devia, pensando
em mamãe e também ainda em Aída. Eu já não via o sufi-
ciente para caminhar sozinho na rua. Um dia, cambaleante,
fui atropelado por um carro. Jogado contra a calçada, bati
com a cabeça no meio-fio. Esbravejei contra o motorista. Ain-
da com a máquina na mão, que eu teimava em levar comigo,
contando com minha sorte em não ser roubado, tentava em
228 JOÃO ALMINO

vão fotografar o que não via, o carro que partia sem me pres-
tar socorro.
— É um louco — gritou um menino. Outros riam à mi-
nha volta.
Distingui a voz grossa de um adolescente:
— Deixem Cadu em paz.
Uma vez mais o improvável acontecia comigo: minha
câmara ficou intacta e, respondendo aos movimentos nervo-
sos de meu dedo indicador, registrou algumas cenas. Dizem-
me que na fotografia desfocada reproduzida acima, a de
número 59, que prova a hipótese de um inconsciente ótico, a
luz é misteriosa, há um movimento colorido em forma de esse
e uma plasticidade de obra de arte. Uma foto mecânica, de
enquadramento adivinhado pelo olhar objetivo da máquina,
um olhar que às vezes surpreende, que pode ver mais do que
o olhar humano e que conseguiu fixar para sempre não ape-
nas aquele exato momento, mas também o que veio depois.

[22 de outubro, tarde da noite]

60. Tateando Tânia

À voz que eu reconhecera era de Maurício. Ele queria me


levar para o hospital. Recusei. Sentira apenas uma leve tontu-
ra, € OS ferimentos pareciam superficiais. Finalmente me dei-
xou em meu estúdio e me fez curativos. Mais tarde recebi uma
chamada de Tânia. Estava a caminho. Maurício a avisara.
O LIVRO DAS EMOÇÕES 229

Como eu continuava me recusando a ir ao hospital, Tã-


nia insistiu em refazer os curativos, talvez para comprovar a
pouca gravidade do que ocorrera. Quis saber se a batida fora
forte, se eu não sentia dores na cabeça. Paulo Marcos viajara
a Miami, a trabalho, me disse.
Naquela noite tive um pesadelo. Sonhei que abraçava
Tânia, descobria que a amava de verdade, como nunca ama-
ra outra mulher. Ela me abraçava, dizia que seríamos felizes.
Estávamos de mãos dadas, saindo do quarto e, quando abrí-
amos a porta, dávamos de encontro a uma parede. “A porta
é mais adiante”, Tânia dizia. Andávamos mais alguns pas-
sos. Ao abrirmos a segunda porta, víamos Paulo Marcos acom-
panhado de mamãe, ele de cara amarrada, e mamãe com
expresão de surpresa, ainda sem saber como reagir. Depois
ela me acusava, me lançando seu olhar severo: “Cometestes
um erro de regência!” Acordei sobressaltado, com a sensa-
ção de que mamãe estava sentada ali a meu lado, na cama.
Tânia e eu saímos juntos várias vezes. Quando estava a
seu lado, seu interesse pelo que lhe contava me fazia sentir
inteligente. As palavras nos vinham com facilidade, enchendo
rapidamente o tempo demasiado curto para tudo o que tí-
nhamos que nos dizer. Nem sempre concordava com ela. Ela
tinha posições partidárias e acreditava nos líderes de seu par-
tido, sobretudo quando estavam na oposição. Mas eu perdo-
ava suas opiniões políticas, tanto quanto ela perdoava minha
indiferença. Somente uma coisa eu jamais perdoaria e por isso
nunca lhe perguntei o que se passara entre ela e Guga, por-
que não queria ouvir o inaceitável. Tampouco soube se ela
falava com Paulo Marcos de nossos encontros.
230 JOÃO ALMINO

Passei anos fantasiando o dia em que ele morresse. Não


desejava isso claramente. Gostava dele. Mas quando punha na
balança a leveza da amizade sincera que sentia por ele e a con-
sistência e solidez do que eu sentia por ela, a balança pendia
para a bandeja de afeto, admiração e desejo onde repousava
meu amor por Tânia. A tez de Tânia não era escura, mas po-
dia ficar bem queimada de sol, seus olhos e cabelos eram ne-
gros, e fora inesperado nosso reencontro. Eu não precisava
sequer acreditar nas cartas do tarô para tornar realidade a pre-
visão da cartomante. Pensei várias vezes em relembrar a Tâ-
nia nosso diálogo antigo e em lhe dizer que, quando ela estivesse
livre, eu estaria pronto para vivermos juntos.
Com o passar do tempo, acabei entendendo as antigas pre-
leções de Guga sobre o desejo e a felicidade. Ele tinha razão,
o desejo me fizera sofrer, porque a gente deseja aquilo de que
sente falta, e o desejo é como uma célula que se reproduz fa-
cilmente, satisfeito um, outro surge. Estava conseguindo me
libertar de meus desejos, vendo o mundo de forma desinte-
ressada, adquirindo, apesar do avanço de minha cegueira,
uma paz que antes jamais conhecera. Era bom não poder me
mirar no espelho, deixar de admirar as formas de meu rosto
e de lamentar as marcas visíveis do envelhecimento, como
se Narciso tivesse sido definitivamente convencido pelo cego
Tirésias de que viveria melhor se não se visse refletido. Tal-
vez eu estivesse menos centrado em mim. Era suficiente me
alegrar com a alegria de Tânia.
Contemplava serenamente o mundo que tanto me ator-
mentara. Ele agora se demorava impassível diante de mim,
como brilhosa e sedutora fantasia feminina esquecida no chão
O LIVRO DAS EMOÇÕES 231

do quarto na manhã de quarta-feira depois de ter me tirado


o sossego na noite de carnaval. Passei a prezar o comporta-
mento asceta, de quem quer realizar algo maior do que si
mesmo; construir a virtude através da resignação. Era possí-
vel lutar contra a vaidade e renunciar às aspirações mate-
riais. Só não consegui perdoar Eduardo Kaufman.
Um dia Tânia e Paulo Marcos me levaram a um concerto
no Teatro Martins Pena. Deixei Marcela em casa e segui, com
minha bengala. O cheiro do veludo velho, do tapete e de pro-
dutos de limpeza me causava enjôo, quando, para o cúmulo dos
cúmulos, no intervalo, Eduardo Kaufman veio falar comigo.
— Queria lhe dizer que fui eu mesmo que adquiri as fo-
tos que você fez de mim. São muito engraçadas, meu caro.
Tenho mostrado para os amigos, e fazem o maior sucesso. Se
você ainda tiver outras, eu compro.
Sua fala foi liberando minha raiva há anos acumulada. Eu
precisava pelo menos lhe dar um soco. Era um ato de desespe-
ro, meu acerto de contas mínimo, já que nada mais eu pudera
nem poderia fazer. Localizei-o com minha bengala, fechei os
punhos e disparei meu braço direito com toda a força em sua
direção. O soco no ar me desequilibrou, quase me fazendo cair.
— Está ficando louco? — ele repetia, desviando-se de
mim, enquanto eu fazia novas tentativas.
Finalmente, com toda a violência de que fui capaz, des-
feri um golpe numa quina de parede. Eis que minha vingan-
ça se resumia a uma tentativa de soco, e seu único resultado
notável era minha mão ensangientada.
Tânia testemunhou tudo. Foi compreensiva e — creio ser
esta a palavra certa — amorosa. Tendo sua fiel amizade, me
232 JOÃO ALMINO

parecia que a vida rodava como um filme leve, sonho ma-


tutino que deixava luzir um facho de realidade — a que já
não iludia nem podia desapontar. Quando ela veio me con-
fortar no dia seguinte, pedi que posasse para mim. Toquei
com os dedos os seus cabelos, para ter a certeza do enqua-
dramento de seu rosto, e os seus lábios, para medir a ex-
pressão de seu sorriso. Se me dissessem que já não era bela,
não acreditaria, pois meu tato confirmava a imagem que
meus olhos haviam preservado intacta. A fotografia faz pa-
rar o tempo e pode guardar o sentimento para que seja
revivido na lembrança. A foto acima, de número 60, foi a
última que fiz de Tânia.

30 de outubro

Pedi a Carolina notícias de seus pais. Passou-me seus endere-


ços de e-mail.
— Vão adorar receber notícias suas.
Enviei uma mensagem curta a Tânia, dizendo que minha afi-
lhada tem me feito companhia e que Brasília nunca voltou a ser a
mesma desde que ela e Paulo Marcos partiram para Miami.

2 de novembro

Faz nove ou dez dias que não escrevo uma linha para meu
Livro das emoções. Não estava me sentindo bem e creio que por
isso pensei num acerto de contas, agora que melhorei: render ho-
O LIVRO DAS EMOÇÕES 233

menagem e exprimir minha gratidão aos mortos. Por sugestão


minha, hoje Carolina, Maurício, Laura e eu fomos ao cemitério.
Fazia tempo que não atravessava a cidade de carro. Fui com
minha afilhada. Segutamos pelo Eixão, e eu ia medindo as distân-
cias pelo número de trevos, que eu reconhecia pelos ruídos altos e
roucos dos pneus do carro. Depois ia adivinhando pelas curvas e
paradas os lugares por onde passava.
Conhecer Brasília não é conhecer a Esplanada dos Ministérios,
nem a Praça dos Três Poderes, nem as superquadras, tampouco o
Lago Sul ou as cidades-satélites. Eu sentia dentro de mim o peso de
seu drama, de suas intrigas, de seus contrastes, sua desordem
disfarçada de linhas retas, sua modemidade carcomida e suja, sua
poeira, sua luz, seu sol quente, a podridão dos porões do poder, as
lágrimas derramadas e os risos ouvidos nos corredores do Congres-
so, tantos atores, minha lembrança do desejo, um extrato do deser-
to, do nada, aquilo tudo de que eu extraía meus restos de esperança.
Via-me como um louco que quisesse recuperar o mito e a utopia de
Brasília, sua beleza e seu sonho de igualdade.
A quantidade de flores que trazíamos denunciava a quanti-
dade de nossos mortos. Primeiro, Maurício e eu depositamos flo-
res ao pé do túmulo de Aída, perto da lage de pedra com os dizeres:
“Lutei pela justiça e vivi para fazer os outros felizes.” Pedi a Mau-
rício que limpasse e avivasse aqueles dizeres, que as irmãs de Aída
tinham mandado gravar. É um túmulo simples, como são os
túmulos do cemitério de Brasília. Cobri-me com a sombra das
árvores que cresceram em torno dele, inebriado pelos cheiros das
coroas de flores que trouxemos. Diante do túmulo de Aída, beijei
o coração de prata que ela me deu. Gosto de rituais.
Pedi para que me levassem aos túmulos de alguns amigos que
234 JOÃO ALMINO

não esqueço e também estão ali debaixo da terra. Não acredito


em vida depois da morte, mas é como se eles de alguma forma
ainda vivessem para mim. Como se, através daquelas flores que
trazíamos, eu pudesse me comunicar com eles para lhes dizer o
quanto do que sou — sobretudo o que de bom houver em mim —
devo a cada um eles. Eu ia sentindo o cheiro das flores pelas quais
passávamos, tentando identificar o perfume de cada uma.
Encontramos Carlos no túmulo de Ana, onde sobressata o
cheiro do jasmim. Perguntou-me por Guga.
— Não tenho idéia do que faz nem por onde anda —
respondi.
Carlos talvez não saiba de minhas desavenças com Guga. Viu-
nos juntos no enterro de Ana, há poucos meses, onde não troquei
palavra com meu irmão, apesar de ter se aproximado de mim e
apertado meu ombro como se dissesse “esqueçamos o passado” ou
então “devemos chorar juntos nosso passado comum”.
A grandeza de Ana pairava acima de mim e de Carlos. Emo-
cionei-me com a emoção dele, expressa em sua voz. Infelizmente
Ana morreu sem que tivéssemos tido a oportunidade de refazer a
velha amizade. Por uma coisa tão pequena, como a venda de suas
belas imagens a seu ex-marido, se ofendeu mais do que eu poderia
imaginar e perdeu a confiança em mim. Carlos nunca descobriu
a verdadeira razão pela qual Ana se afastou de mim e continua
me tratando gentilmente quando me encontra.
Ele nos convidou a todos para ir a sua casa. Hoje em dia re-
conheço as casas por seus cheiros, e, ao chegar, o cheiro daquela
casa me fez recordar das outras vezes em que ali estive. Era como
se o espírito de Ana se fizesse presente no perfume dos móveis,
tapetes ou das vigas de madeira.
O LIVRO DAS EMOÇÕES 235

— Pena que nunca tenham permitido a ocupação pública das


margens do lago — Carlos disse, e descreveu a paisagem, sara-
pintada de muitíssimos barcos à vela.
Eu acrescentava sua descrição à foto antiga que eu fizera
daquele mesmo ângulo e, assim, podia enxergar talvez até com
mais riqueza de detalhes do que os demais presentes.
Ficamos no terraço conversando uma boa parte da tarde sobre
nossos mortos e, a propósito, Carlos recitou um poeta português:
— “Amorte é muda. Quando a morte fala, é porque é vida.”
A julgar pela extensão de nossas falas, a morte de Ana era
uma vida que nunca se extinguiria.
Perguntei por Berenice. Estava acamada. Levaram-me a seu
quarto, que exalava um cheiro forte de mofo e urina.
— Não quero você se envolvendo com meu filho — ela me
disse, quando nos deixaram a sós. Sua voz denotava fragilidade e
envelhecimento.
Atribuí o comentário à sua senilidade. Eu não estava me en-
volvendo com Pezão e quis ser sincero com ela e comigo mesmo:
— O filho também é meu.
— Não, não é. Há muito tempo devia ter-lhe contado. Foiuma
tontice minha daquela época. O filho não é seu. Fique sabendo. Você
me desculpe. A culpa foi toda minha. Toda minha — repetia. —
Foi mentira minha. Estava com a cabeça muito atrapalhada na-
quela época. E precisava do dinheiro. Me perdoe. Não quero mor-
rer com esse peso na consciência, não quero, não quero.
Parecia lúcida e sincera. Fiquei desconcertado.
— Estás inventando esta história.
— Para que inventar?
— Para eu não procurar Pezão.
236 JOÃO ALMINO

— Sei que ele é que foi procurar você. Contei a verdade, e


ele não acreditou.
Tenho a impressão de que as forças motoras de minha vida
foram puros ventos, mas ventos fortes, destes que dão sentido cer-
to ao movimento e levam consigo o que encontram pela frente.
Continuo remoendo aquela frase: “O filho não é seu”. Agora faz
todo o sentido atender ao pedido de Pezão: vou fazer o exame de
DNA. Ele sempre foi para mim a prova da infertilidade de Joana.
Só não faço também um teste de fertilidade, porque já estou velho
demais para isso.
Agora posso ser mais plenamente o brasiliário cego — e com
toda a beleza a que tenha direito — daquela crônica de Clarice,
que decidi ouvir novamente:
“Brasília... era habitada por homens e mulheres louros e
altíssimos que não eram americanos e nem suecos e que faisca-
vam do sol. Eram todos cegos. ... Quanto mais belos os brasiliários,
mais cegos... e menos filhos. Os brasiliários viviam cerca de tre-
zentos anos.”
Somente me falta uma qualidade: poder viver trezentos anos.

[2 de novembro]

61. O visível e o invisível

Tentei em vão esquecer Eduardo Kaufman. Era popular


e se elegera para seu terceiro mandato. Estava no noticiário
como membro da Comissão de Ética e com novos projetos
de lei para combater a corrupção e moralizar o financiamen-
O LIVRO DAS EMOÇÕES 237

to das campanhas, ajudando, assim, a cultivar o amor pátrio


pelas longas leis postergadas e, quando promulgadas, nunca
cumpridas. Como se isso não bastasse para invadir meu coti-
diano, um dia mandou um assessor me procurar.
— O deputado sabe como o senhor está se sentindo e
das dificuldades que está enfrentando. Por isso faz questão
de ajudá-lo.
Eduardo propunha reunir num livro as fotos que eu fize-
ra dele e me pagaria por minha autorização para expô-las.
Pensei muito no que responder. Seria a segunda vez que me
venderia a ele. Além disso, fora uma falta de respeito a compra
daquelas fotos. Quantos reais valiam meus princípios?
Concluí que não estaria me vendendo. Eduardo não per-
cebia a armadilha em que caía. As vinganças que eu planeja-
va iam consistentemente diminuindo de tamanho com o
tempo, mas, em compensação, se tornando mais viáveis.
Aquela era minúscula, porém concreta e possível. Dei-lhe por
escrito a autorização que me pedia, e ele me enviou em troca
o pagamento com a soma correspondente. O preço de cada
foto era baixo, se comparado com o de minhas fotos antigas
de Paulo Antônio. Contudo, como eram muitas, a soma era
suficiente para cobrir por várias semanas as despesas com a
monotonia de meu cotidiano.
O grotesco daquelas fotos não era invenção do olhar do
fotógrafo. Estava patente nos gestos e comportamento do fo-
tografado. Podia haver prova maior do que a foto teatral de
número 61 acima, em que Eduardo Kaufman aparece de boca
aberta, em pose de cantor de ópera, olhos semifechados, ao
lado de uma Ana estupefata? A propaganda de um banco co-
238 JOÃO ALMINO

nhecido, visível ao fundo, é alusão a suas negociatas. As notas


de reais e a frase que, com o corte feito pelo enquadramento,
se limitou à palavra “contribua” são referência ao dinheiro ilí-
cito que circulou em suas campanhas. À criancinha que passa
e aparece embaixo, no primeiro plano, um índio barrigudo e
miserável, bem como a palavra “nunca” em destaque num
cartaz afixado atrás de Eduardo, acrescentam mais uma suges-
tiva camada de interpretação. Escolhi aquela foto para a capa
do livro proposto, pela nitidez de todos os seus planos, sua
luminosidade e o ótimo contraste de suas cores.

2 de novembro

Depois de tantos anos sem fotografar, fiz agora, quase meia-


noite do dia 2 de novembro, uma série de fotos que só para mim
não serão misteriosas e incompreensíveis. São de chaves e duas
alianças sobre uma renda retangular e preta, acomodadas numa
caixa, lembrando uma obra de Joseph Cornell. Senti-me como
menino travesso. Recortei a renda da calcinha de Joana que guar-
dei por tantos anos.
Num dia grave como este não deveriam caber pensamentos
lúbricos, mas pensamentos não reivindicam direito de passagem.
Se tento afastá-los, tornam-se mais presentes. Se insisto em
escondê-los debaixo de uma lage de pudor e bom senso, ficam
agressivos, como uma placa de proibição, como um touro a me
atacar, como abelhas africanas capazes de me matar, como um
cachorro que ladrasse para mim sem parar.
O LIVRO DAS EMOÇÕES 239

3 de novembro

Ficaram ladrando a noite toda. O ex-jovem voltava a se ver


no quarto de Joana, no Rio, ela recompondo suas ligas e desfilan-
do de um lado para o outro. Lembrei-me daquele Carnaval que
passei com ela no Rio, ouvindo o clamor das ruas e o que ela me
dizia, que nenhuma queda de governo equivalia à lembrança da-
quele nosso encontro. Paulo Antônio e toda a sua era me valem
menos do que o perfume, os abraços e gemidos de Joana naquela
tarde distante. Será que ainda poderei tê-la em meus braços, mesmo
que apenas para que nossas peles se toquem? Será que sobrevive
seu fascínio por Eduardo Kaufman?

8 de novembro

Estou adoentado e por isso há dias não escrevo. Ontem Mau-


rício velo me fazer uma visita.
— É verdade que você pretende dedicar seu livro a Joana?
— perguntou, acrescentando que ela já está em Brasília.
— Primeiro, ainda não o concluí. Segundo, não pretendo
publicá-lo. E, terceiro, tenho escrito principalmente em memória
de Aída. Não gosto de sentimentalismo nem de objetos, mas nun-
ca me desfiz do coraçãozinho de prata que Aída me deu e me
entristeço quando penso nela.
Misturei meia sinceridade com boas maneiras para dizer aqui-
lo. Digo que fui meio sincero, não porque tenha mentido, mas
porque o resto omiti. Deveria ter confessado que se Joana entrasse
aqui hoje, trocaria tudo o que escrevi por um abraço dela.
240 JOÃO ALMINO

— Por que você não faz uma publicação digital para a


internet? Seria até mais lida e lhe renderia direitos autorais.
Maurício discou um número e quis que eu convidasse Joana
para me visitar.
— Não, não neste estado.
Desconfio de que ele ou Laura andem lendo este meu diário.
Sabem demais sobre mim. Até adivinham o que penso. Em quem
penso. Não quero procurar Joana. Temo tanto que ela não queira
como que queira me ver. Na primeira hipótese, ainda vai me doer
a confirmação de que não me deseja. Na segunda, não me senti-
ria melhor, pois veria nisso uma promessa de amor, que, em nossa
idade, é sobretudo de lamúrias compartilhadas.

20 de novembro

Se muitos são os nomes da dor, como cheguei a escrever neste


diário, outros tantos são os do prazer. Umas poucas palavras, e
principalmente três pontos de exclamação, foram capazes de mu-
dar meu humor repentinamente. Ouço, repetidas vezes, como se
fosse música, as palavras de um e-mail na voz do computador.
Vou reproduzi-las aqui, sem cortes nem abreviações:

Querido Cadu,
que grata surpresa receber seu e-mail. Paulo Marcos e eu
estamos bem. Miami é agradável nesta época do ano. Já não está
tão quente. Dias lindos, de céu azul, depois da temporada de fu-
racões, que este ano quase nos pôs a perder a casa. Paulo Marcos
O LIVRO DAS EMOÇÕES 241

adora isto aqui. Eu já me adaptei, até mesmo à mania americana


de eleger periodicamente o inimigo da vez. Os políticos têm o po-
der de simplificar o mundo e de fazer todos acreditarem no novo
mapa e nas novas armas.
E você? Como está? De vez em quando temos notícias suas
pela Carolina. Não esqueço nossas muitas conversas. Temos em
nossa sala seu painel de flores e guardo com muito carinho as fo-
tos que você fez de mim. Espero visitá-lo numa próxima ida a
Brasília.
Recebemos o convite de casamento do Maurício. Infelizmente
não poderemos comparecer.
Mande notícias sempre que puder. Paulo Marcos envia abraços.
Saudades, muitas!!!
Tânia.

Volto a sentir prazer em ouvir a música das noites, com seus


grilos, sapos e o roncar dos carros passando no Eixão, até o baru-
lho do elevador e o da televisão do vizinho; em sentir o gosto do
que me toca os lábios, em explorar formas com minhas mãos, em
ler em braile; em cheirar a chuva, o perfume das mulheres e mes-
mo o fedor dos pêlos de Marcela.

Sinto prazer hoje sobretudo em saber da alegria de Maurício.


Amanhã será seu casamento com Laura.
242 JOÃO ALMINO

22 de novembro

Ontem à noite Carolina me levou ao casamento, no Santuá-


rio Dom Bosco da 702 Sul. As igrejas têm um cheiro peculiar.
Talvez seja a mistura dos incensos, das velas e das flores, sem fa-
lar do suor das multidões.
O som dos violinos reverberava pelas paredes. A seleção mu-
sical feita por Laura misturava algo de Bach aos Beatles e a
Gershwin, além de alguns sucessos recentes que não conheço.
Joana estava lá. Não sei de quem foi a idéia de me fazer sen-
tar a seu lado. Usava um dos perfumes dos velhos tempos. Veio
falar comigo e me perguntou se podia me fazer uma visita.
Guga me deu um abraço, desta vez menos tímido do que no
enterro de Ana. Continuo com dificuldade de lhe dirigir a pala-
vra. Em nossa relação vai ficar sempre uma ferida aberta. Senti
que dissemos o fundamental: somos imperfeitos e, por isso, inca-
pazes de borrar o ressentimento; mas nos perdoamos.
Na saída encontrei também Antonieta. A última vez que eu
a vira, há muitos anos, notara que o tempo havia passado para
ela. Sua velhice, que vinha paulatinamente se acercando da mi-
nha, a ultrapassara em grande velocidade. Seus olhos haviam afun-
dado. Pareciam esmaecidos e opacos. Ela perdera sua sensualidade,
o rosto marcado pelas preocupações do dia-a-dia e certamente pelos
anos dedicados aos filhos.
Sorte minha, portanto, não poder vê-la desta vez. Assim pude
imaginá-la jovem, num bar do Rio e misturada às veredas, ao céu
e ao lago do Parque Olhos d'Água. Estava acompanhada do ma-
rido e dos filhos, quatro ao todo, a mais velha parece que amiga
de Carolina.
O LIVRO DAS EMOÇÕES 243

[22 de novembro, com revisão de 9 de dezembro]

62. O amor físico

Apesar das promessas do assessor, passaram-se meses sem


que fossem expostas minhas fotos de Eduardo. Tampouco
havia notícia de livro. Eu, que inicialmente hesitara em ven-
der aquelas fotos, passei a aguardar ansiosamente que vies-
sem a público. Liguei, reclamei. O assessor esclareceu que o
projeto tivera de ser adiado.
Um dia, finalmente, com Eduardo já concluindo seu ter-
ceiro mandato, as fotos foram expostas. Nas entrevistas que
me fizeram, disse sinceramente o que pensava sobre ele. Sem
provas, se o chamasse de corrupto, poderia ser processado.
Revelei, porém, que ele quisera me matar e demonstrei que
seu caráter estava patente naquelas fotos. Acharam graça —
até Eduardo achou graça — no fato de um cego poder des-
crever uma foto nos mínimos detalhes.
Aquela foi minha única exposição bem-sucedida, e não
só porque ser fotógrafo cego fosse um prato cheio para os
jornais, nem porque o público tivesse piedade de mim. Eduar-
do era famoso, eu conseguira descobrir pérolas de sua vida
pregressa e o colocara ao lado de Paulo Antônio e de belda-
des como a jovem Ana Kaufman. Houve também o efeito-
Escadinha, que me fez subir vários degraus. No vernissage,
ele pôs as mãos nos meus ombros, andou um pouco comigo
pela sala e me disse:
— Faça de conta que está conversando comigo e que
somos amigos íntimos,
244 JOÃO ALMINO

Multiplicaram-se as fotos de nossa conversa fingida, que


depois saíram estampadas nos jornais, junto com os elogios
do próprio Escadinha ao meu trabalho.
Pensei que aquele conjunto de fotos de Eduardo Kaufman,
finalmente expostas, pudesse demonstrar uma tese sobre o
fotografado, seu caráter e seus defeitos. Demonstrou, ao con-
trário, para os comentaristas, uma tese sobre o fotógrafo, es-
pecialmente sobre minhas qualidades de humorista criativo,
que, como um mágico, conseguia transformar um persona-
gem sério em grotesco; de fotógrafo caricaturista que não
recorria a montagens nem a manipulações. Eu me sentia como
uma criança cujas travessuras os adultos achavam geniais. As
fotos foram ampliadas, reduzidas, republicadas em jornais e
revistas, reenquadradas para ressaltar um ou outro detalhe e
contrastadas com fotos “sérias” de Eduardo Kaufman feitas
por outros fotógrafos. Eu tudo fizera para jogar Eduardo por
terra, mas ele, como aquele boneco da minha infância, o João-
Teimoso, balançava para um lado e para o outro e, no final,
sempre voltava a ficar de pé.
Fui mal interpretado e, assim, reconhecido pelas razões
erradas. Gostaram do que não tive intenção de fazer. Que
prazer eu podia sentir em conquistar a glória por engano? Já
o que exigira de mim sensibilidade, apuro técnico e inteli-
gência seria enterrado e esquecido junto comigo, se antes não
fosse para o lixo.
À repercussão da exposição foi tal que Verônica e Antô-
nio, então morando em Natal, se inteiraram dela pela televi-
são. De lá me ligaram. Verônica sentia-se parte do projeto.
O LIVRO DAS EMOÇÕES 245

— Fiz a seleção das fotos contigo — fez questão de


relembrar.
— Finalmente encontrastes teu caminho — me disse
Antônio.
Para mim, pessoalmente, o maior êxito da exposição foi
ela ter atraído a presença de Joana. Não a esperava. Ela pas-
sou pouco tempo no vernissage, tempo suficiente para me
desconcertar. Eu queria que todos os demais convidados par-
tissem e me deixassem sozinho com ela. Precisava falar com
ela, descobrir se ainda sentia algo por mim. Em meio à mul-
tidão, ela me cumprimentou efusivamente e deixou seu per-
fume em minhas mãos, que passei dias sem lavar.
Depois me mandou uma mensagem reiterando seus pa-
rabéns. Tentei lhe telefonar várias vezes e lhe escrevi, sem
obter resposta.
Porque aquela exposição ficou para mim principalmente
associada à presença e à ausência dela, e também para que o
rosto de Eduardo não apareça de novo impresso neste livro,
prefiro trocar a fotografia que encabeça esta seção. No lugar
de uma foto daquela série mal compreendida, entra uma do
trabalho fadado ao esquecimento. O retrato acima, de nú-
mero 62, como se vê, é de Joana. Foi tirado logo que a co-
nheci. Durante muito tempo eu o trazia na carteira. Ficou
amassado, adquiriu manchas e a pátina do tempo. Um dia,
quando quis reproduzi-lo, preferi fazê-lo a partir daquela foto
que eu carregava no bolso e já tinha sua história própria, em
vez de recorrer ao negativo. Digitalizei-a e fiz nova impres-
são. O retrato continuava lá, mais sutil do que no original, e
com cores menos fortes, justaposto às tintas que o tempo e o
246 JOÃO ALMINO

acaso lhe haviam aplicado. A fotografia é capaz de reprodu-


zir para sempre o instante singular e de provocar o retorno
do que estava esquecido, escondido ou morto. O corpo de
Joana está molhado pela água do rio próximo a Pirenópolis
em que nos banháramos. O cabelo desce escorrido até os
ombros. Ela olha para mim e há desejo e amor no seu olhar,
uma seriedade sedutora na forma dos seus lábios. Esta é a foto
por excelência daquele desejo, daquele amor que não esque-
ço. Uma foto que me traz de volta o perfume e a maciez da
pele de Joana; que reaviva sentimentos adormecidos e tem o
dom de ressuscitar, pela lembrança, o amor físico, carnal, em
todo o seu frescor.

30 de novembro

Marcela adoeceu. Desconfio que não quer ficar sozinha e, por


isso, pretende disputar comigo uma corrida ao túmulo. Carolina
se ofereceu para levá-la ao veterinário, se for preciso.
Já não estou tão confiante de ser o brasiliário belo das crôni-
cas de Clarice, que voltei a ouvir. “Brasília é o fantasma de um
velho cego com cajado fazendo toc-toc-toc. E sem cachorro, coi-
tado”, ela também escreveu.

1º de dezembro, noite, no hospital

Joana reclinava seu corpo sobre minha cama, apoiando as


mãos no colchão, e a cama começava a tremer. Angustiado, e por
O LIVRO DAS EMOÇÕES 241

mais que abrisse meus olhos, eu não conseguia ver o que se passa-
va. Joana gemia, e seu corpo balançava. Agora eu ouvia clara-
mente um homem gemendo, colado atrás dela, desencadeando um
vai-e-vem de movimentos bruscos, a saia de Joana, levantada,
roçando as minhas pernas. “Me come, Eduardo, me come”, ela
dizia. “Quero te dar. Quero te dar aqui na frente deste bosta.”
Minha cama balançava mais fortemente. Além de não enxergar,
um pano tapava a minha boca e haviam me amarrado à cama.
Joana gritava mais alto: “Vem, Eduardo. Vem. Mete, mete mais,
meu bem, mete tudo.” Eu tentava em vão me soltar.
Acordei suando frio, sentindo um profundo mal-estar. O so-
nho, real demais, me afetou fisicamente. Meu corpo ainda dói todo,
por fora e por dentro. Minha cabeça pesa.
— O senhor chamou várias vezes pelo nome deJoana. E pediu
o laptop — disse uma enfermeira que arrumava minha cama e
tentou me animar com comentários a uma novela de televisão.

5 de dezembro

Senti um tremor quando a voz de Tânia se aproximou da porta


do quarto. O calendário recuou vinte anos. Era como se a visse,
com o corpo e o rosto da época de meu regresso a Brasília. Sem
me mexer na cama, ouvi um cochicho entre ela e a enfermeira
que cuida de mim. Há cinco anos não nos encontrávamos. Qua-
se lhe pedi que não entrasse; era preferível a recordação ao con-
fronto com a miséria do presente. Mas a realidade é o presente, e
este se impôs, implacável.
248 JOÃO ALMINO

Resgatei todos os vestígios de minha juventude e me vesti com


uma face alegre. Tânia entrou e sentou-se à beira de minha cama.
Eu sabia que seu olhar era sereno e triste. A enfermeira, notando
a gravidade de seus gestos, nos deixou a sós. Durante minutos,
Tânia deixou sua mão esquecida sobre uma de minhas pernas, e
não dissemos uma palavra. Haviam restado de nossas promessas
de amor dois corações desencontrados.
— Dessa eu não passo — eu lhe disse.
— Jájá você se recupera e sai daqui. Ainda vai enterrar to-
dos nós — Tânia me falou com voz maternal e protetora, aper-
tando minhas mãos.
Continuávamos sozinhos e podíamos falar o que quiséssemos.
Quisemos pouco. Ela me atualizou nas notícias sobre Paulo Mar-
cos e conhecidos comuns, não sem deixar perceber um nervosis-
mo carinhoso em sua voz. Eu revidei com minhas despedidas dela
e do mundo, sem qualquer lamento, convencido de que, contas
feitas, guardava da vida um saldo positivo.
— Tire essas idéias da cabeça — ela disse. — Amanhã ve-
nho aqui de novo.
— Já vais embora?
— Prometo que venho amanhã e depois de amanhã. E todos
os dias enquanto estiver em Brasília.
Minha afilhada entrou.
— Faça companhia a ele. E não deixe ele escarafunchar es-
sas idéias mórbidas — Tânia lhe disse.
— Vêm chegando mais visitas, padrinho — Carolina anunciou.
Ouvi as vozes de Laura e Joana.
— Está como ele quer, sempre cercado de admiradoras —
Joana comentou, em tom risonho. — Veja como você é amado,
Cadu. Suas mulheres são fiéis.
O LIVRO DAS EMOÇÕES 249

— Como está se sentindo? — Laura apertou minhas mãos


com força e me deu um beijo na testa.
— Agora, muito melhor. Cada vez melhor — respondi.
Suas vozes eram uma música de fundo que me embalava e,
talvez por virem misturadas aos efeitos dos remédios, acabaram
me fazendo dormir.
Quando acordei, estava sozinho com Joana. Habituei-me a exa-
minar os escuros no fundo de minha retina. Em geral, estrelas peque-
nas flutuam sobre um mar cinza ou vejo círculos de cor laranja, leves
camadas azuladas, retângulos marrom-escuro sobre fundo marrom-
claro... Era fim de tarde e, deitado no meu leito de hospital, sentia
calafrios, a cor da morte não era o preto, nem o cinza, nem o roxo,
eraacor da areia banhada por um sol vermelho que eu via com meus
olhos cegos a partir do alto de uma duna. No fundo de minha retina,
impondo-se sobre as manchas habituais, a forma de Joana se dese-
nhava. As cores se misturavam, turvas, e eu via Joana se despindo.
Não era sonho. Ela estava nua e jovem. Um tufo subiu de meu corpo
fazendo pressão sobre o lençol. Joana me ressuscitava. Eu trocaria
todo o meu passado pelo meu restinho de futuro.
— Vem cá, Joana, vem! — Era ela, de fato.
— Cadu, querido. Como você está se sentindo? — Não me
incomodava ouvir novamente aquela pergunta, pois sua voz rou-
ca me acariciava.
— Vem cá! — Tentei puxá-la pelas coxas.
— Não faça esforço. Você precisa repousar.
— Joana, tu voltastes para mim? Viestes para dividir comigo
meu restinho de vida?
— Sou sua amiga, sempre. — E depois de uma pausa: —
Você não merece o que está passando.
250 JOÃO ALMINO

O perfume de Joana entrava por minhas narinas misturado


ao cheiro de éter do hospital. Tentei novamente apalpá-la.
— Calma, já lhe disse. Não faça esforço.
Consegui tocar com as pontas dos dedos os seus joelhos, que
logo se afastaram de mim.
— Somente me digas: considerarias voltar a viver comigo?
— insisti.
— Não me faça arrepender de ter vindo.
— Continuas vendo aquele desgraçado do Eduardo Kauf-
man, não continuas?
— (Que pergunta mais cretina!
— Procure ali em cima uma caixa que montei há poucos dias.
Ela não perdeu o hábito dos sapatos altos, cujas marteladas
ouvi dirigirem-se ao armário.
— As chaves que estão aí são as de teu apartamento — eu
lhe disse.
— E por que guardou estas chaves?
— Não sei. Deve ser porque queria voltar.
— Não iam servir. Mudei as fechaduras várias vezes.
— Vêo que mais há dentro.
Ouvi seu riso. Senti o prazer de quem fosse recompensado por
toda uma vida de trabalho disciplinado e persistente.
— E tu, nunca mais casastes? — perguntei.
— Não, nunca.
— (Quero que saibas de uma coisa: és a mulher de minha vida.
Joana, eu te amo — disse com dificuldade essas palavras que me
soqvam de um sentimentalismo rasteiro. Quando se ama não é
necessário dizer, mas eu devia dizer. Aquele desejo de fazer sexo com
ela eu não sentira jamais com intensidade igual por nenhuma outra
mulher. Decidi chamar de amor aquela intensidade.
O LIVRO DAS EMOÇÕES 251

— Amou igual a qualquer saia que passasse pela sua frente.


— Nenhuma mulher é igual a ti. Amar mesmo, só tu. E não
coloco isso no passado.
— Não convence, Cadu. Você nunca me amou. Eu, sim, o
amei muito, mas você não correspondeu. Um dia cansei.
— Nunca é tarde.
— Se você me visse, desistia. Estou velha e feia.
— És a mesma de sempre. Tens a voz, os olhos, o cheiro, a
pele e o corpo de quando te conheci.
— Só os olhos, com menos brilho.
— Me digas uma coisa: o que é a Operação Amazônia?
— Operação o quê?
— Ouve esta frase que gravei no meu laptop. — Fez-se um
silêncio de hospital enquanto eu a localizava. — “Se há algum
crime que a humanidade ainda não cometeu, esse crime novo será
aqui inaugurado. E tão pouco secreto, tão bem adequado ao pla-
nalto, que ninguém jamais saberá.” — Era mais um trecho de
uma daquelas crônicas de Clarice.
— Maurício me disse que você escreveu um livro para mim.
— Invenção dele. Eu tinha a intenção de escrever, mas...
— Desistiu?
— Olivro era para te seduzir.
— Prometo ler.
— Então vou te entregar como está, não concluído. O final
vai depender de ti.
Pulo o choro, pois prefiro a alegria que se seguiu e que senti
pela forma como Joana apertou minhas mãos ao se despedir.
— Antes de morrer, eu queria receber um abraço teu, de corpo
inteiro. Queria que tu te deitasses aqui sobre mim.
252 JOÃO ALMINO

— Não se preocupe. Você não vai morrer tão cedo.


Ficará o livro para ela, um livro mais do que aberto, escanca-
rado, em que me mostro por inteiro, com a esperança de que ela
me receba de volta, ainda que seja em pensamento. Mas para que
o livro seja para ela e mais ninguém, precisaria reescrevê-lo. Tra-
balhando com afinco o estilo, posso encontrar uma forma de
agradá-la, de lhe demonstrar o quanto ela representa para mim e
de eliminar a discrepância entre a história de amor que um dia
contei a Laura e o que escrevi até agora. Não deixarei, contudo,
de ser fiel ao que sou. Aliás, nem conseguiria, pois carrego comigo
tudo o que vi e vivi, tudo o que deixei de ver e viver, e não posso
evitar assumir a feição do que armazenei com o tempo.

7 de dezembro, seis meses e um dia desde


que comecei a escrever este diário

Sonhei que Joana chegava ao meu enterro e acontecia algo inu-


sitado e constrangedor. Havia sido enterrado com o pau duro. Ou-
viam-se risinhos, comentava-se o fato aqui e ali. Somente Joana
chorava. Eu tentava me mover, me levantar para abraçá-la. Trans-
formara-me em estátua exposta em praça pública, o pênis em granito
apontando para cima. Os transeuntes passavam, rindo. Eu também
tinha vontade de rir e, vendo o choro de Joana, aumentava minha
vontade de rir, queria rir em voz alta, mas a voz não saía, e meus
lábios, em forma de gargalhada, não se mexiam. Entre o tédio e o
sofrimento havia um gozo e uma gargalhada esculpidos em pedra.
Joana então me abraçava. Seu corpo molhado era maleável
como uma borracha, se moldava sobre a pedra, e a pedra, que era
O LIVRO DAS EMOÇÕES 253

apenas uma casca de meu próprio corpo, começava a se despeda-


gar. Joana me abraçava mais, e minha pele se tornava hipersensí-
vel. Em meu corpo nu, eu sentia seus abraços como se fosse pela
primeira vez.
Acordei com a sensação de que não morrerei tão cedo. Quando
chegar aos cem anos, a medicina me levará aos duzentos e de lá
aos trezentos. Vou adquirir, assim, mais uma qualidade dos
brasiliários da crônica de Clarice: poderei viver trezentos anos.
Às outras características já tenho: não tenho filhos, sou cego, alto
e, apesar dos muitos cabelos brancos, ainda sou louro.
Se eu pudesse fotografava o final daquele sonho e o imprimi-
ria nas paredes de minha mente.

8 de dezembro

Não, não é preciso fotografar aquele sonho. A foto já existe.


Quando procuro algo que dê sentido à vida, penso no domingo de
um verão distante, quando ouvia o barulho da água, olhava para
Joana, tão bonita, e aquele simples olhar juntava tudo à minha
volta, me comovendo de maneira profunda. Naquele instante
minha pele em fogo acendia Joana, e as peças do caos se encaixa-
vam perfeitamente, dando sentido ao universo. Beijei os lábios
molhados de Joana e senti um arrepio de ternura e desejo. Meu
coração era um sonho de futuros entre abraços e estrelas.
Toda fotografia é prova de um encontro, às vezes marcado,
outras vezes fortuito. É um haikai, desprovido de retórica, que
apenas flagra o que está frente à câmara. Não é mais do que ins-
trumento, janela invisível através da qual vemos o objeto de nossa
254 JOÃO ALMINO

emoção. Tenho uma fotografia daquele instante, que bem poderia


substituir a de número 62. Mais do que passar pelo tempo é o tempo
que passa por ela repetidas vezes, revelando a cada ocasião novos
detalhes, sentidos novos para uma expressão, um olhar ou um gesto
de Joana.
O sentido é dado pelo amor e também por sua falta; por aquele
instante e pela distância que me separa dele; pelos momentos feli-
zes, os risos compartidos, uma caminhada de mãos dadas à beira-
mar, e as incertezas, a busca permanente, a saudade, os desencontros
e até a incompreensão. Meu retrato se faz com os fragmentos dessa
matéria dispersa. Nenhum corpo é igual ao outro, e o de Joana dei-
xou em mim para sempre as marcas de sua escrita.
Sem o instante, não existe o tempo, e, sem a eternidade, o ins-
tante se desfiguraria, deixaria de ser o que é, não poderia expor
para sempre sua face exclusiva e única. A fotografia tem a capa-
cidade de sobreviver a seus materiais perecíveis, ao reproduzir-se
a si mesma, aspirando à eternidade. Tenho a impressão de que,
quando o mundo acabar, sobreviverão suas imagens fotográficas.

9 de dezembro

Imprimi O livro das emoções para entregar a Joana. Não


fiz mudanças, a não ser a substituição da última fotografia e o
acréscimo do último parágrafo.
Este livro foi composto na tipologia
Goudy Old Style BT, em corpo 12/16, e impresso
em papel off-white 80g/m? no Sistema Cameron
da Divisão Gráfica da Distribuidora Record.
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Escritor e diplomata, João
Almino nasceu em Mossoró,
no Rio Grande do Norte, em
1950. Aclamado pela crítica
por seus romances [déias
para onde passar o fim do
mundo (indicado ao Prêmio
Wouk
Bia
Foto: Jabuti, e ganhador de prêmio
E DES. do Instituto Nacional do Livro
e do Prêmio Candango de Literatura), Samba-enredo e As
cinco estações do amor, tem feito de Brasília tema constante
de sua obra de ficção. Este último livro recebeu o Prêmio
Casa de las Américas 2003 e foi publicado no México e EUA.
Seus escritos de história e filosofia política são referência
fundamental para os estudiosos do autoritarismo e da
democracia. Doutorou-se em Paris, orientado pelo filósofo
Claude Lefort. Ensinou na UNAM (México), UnB, Instituto Rio
Branco, Berkeley e Stanford.

Capa: Rico Lins + Studio


Foto de capa: Jair Alves
Sobre o autor:

“João Almino reforça a posição que já alcançara com os dois livros


anteriores: a de um dos melhores romancistas de sua geração.”
Adelto Gonçalves, /orna/ da Tarde

“Ele é agora uma poderosa presença no que poderíamos chamar “a


veia existencialista” do gênero.”
Hans Ulrich Gumbrecht, professor de literatura da Universidade de Stanford

“Esse novo e extraordinário romance de João Almino redefine a nação


brasileira como algo que esteve para ser inventado pelos homens.”
Silviano Santiago, escritor e crítico literário

“João Almino é um narrador quase único, que sabe transmitir idéias


profundas sem que estas tirem vida da substância das histórias
que conta.”
Alberto Ruy-Sanchez, escritor

“À presença de um rigoroso trabalho técnico de estrutura e de lin-


guagem é transparente.”
Heloísa Buarque de Hollanda, Jorna/ do Brasil

“Almino vislumbra na ficcionalidade uma forma especial de pensa-


mento... O romance de Almino propõe assim a verdadeira força da
experiência literária: literatura é pensamento em ação; literatura é
filosofia que não pára de pensar.”
João Cezar de Castro Rocha, crítico literário e professor de literatura
da VER!

“Entre os melhores autores de nosso país. O Brasil está resumido em


suas páginas, que são verdadeiramente antológicas.”
Moacyr Scliar, escritor

Ihnaliw

| Il
91788501 | ,

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