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Luiz Augusto Araujo

Balaio
de gato

Luiz Augusto Araujo Pereira

Goiânia
2020
Ficha catalográfica

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

B869.3 Pereira, Luiz Augusto Araujo


Balaio de Gato / Luiz Augusto Araujo. – Goiânia : Editora Intera-
tiva,
2020.

124p. ; 20,5 cm.

Número ISBN: 978-85-908020-2-0


Prefixo Editorial: 908020

Romance; ficção e contos brasileiros

Copyright © 2020 Luiz Augusto Araujo

Projeto e arte final de Capa


BM2 Comunicação Criativa

Preparação de originais e revisão


Neuracy Pereira Silva Borges

Diagramação
Lara Karolina da Silva Vieira

Impressão
Gráfica PUC
Balaio
de gato
Contos e crônicas
Agradeço a Deus por me oportunizar a publicação
de mais um livro. Sou grato a minha esposa, às minhas
filhas, aos meus pais e irmãos e também aos diversos
amigos que leram os originais, fizeram críticas, sugestões
e, principalmente, encorajaram-me a publicar esta obra. O
meu muito obrigado a todos eles e às demais pessoas que
contribuíram direta ou indiretamente para a realização
deste trabalho.
CONSIDERAÇÕES DO AUTOR

Um olhar criativo sobre o cotidiano


da vida interiorana. Talvez essa frase sintetize a fonte de
inspiração para a maioria das histórias de o Balaio de Gato,
imaginadas por este autor que lhes escreve, quando ainda
era muito jovem e, de certa forma, até “irresponsável”.
Minhas ideias, convicções e visão de mundo evoluíram
bastante de lá para cá, mas a criatividade, o senso
crítico, o olhar atento aos detalhes e o humor refinado,
presentes nesta obra, ainda correm nas minhas veias.
Espero que você, prezado(a) leitor(a), possa apreciar a
leitura e viajar comigo nos contos e crônicas a seguir.

Esta é uma obra de ficção; qualquer semelhança com


nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera
coincidência.
SUMÁRIO

Na cama com Virgínia 17


Turma da Rua Ivonês 22
A jornalista 27
Oitenta e dois anos de idade 31
O Capital 36
O jogador 44
Estragos no coração 57
A nova máquina do sexo 67
O primeiro computador 69
O enigma da revista 72
Um minutinho, por favor! 80
Autopapo 226 84
O comprimido branco 93
Palavras para Karinne 99
Clube Catuaba 103
Carteira de motorista 107
O passageiro da poltrona 34 115
Pingos de chuva 120
APRESENTAÇÃO
 

Uma deliciosa viagem por histórias  que


nos fazem visualizar cada passo dos personagens. Assim
eu descreveria  a terceira  obra de Luiz Augusto Araujo,
jornalista, conferencista e escritor que, conhecido no ramo
corporativo, doa sua inquestionável criatividade para nos

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apresentar situações cômicas, trágicas ou, no mínimo,
curiosas.
Apesar de não serem relatos reais,  os contos e
crônicas retratadas  em  Balaio de Gato  nos trazem aquela
sensação de “já vivi” ou “conheço alguém que já viveu”, tudo
com uma linguagem simples, mas recheada de vocábulos
que revelam a riqueza intelectual do autor.
Dos esbarrões em estacionamentos e dilemas
da velhice e casamento, aos laços de amizades que se
desfazem com o tempo, as agradáveis linhas deste livro
revelam que o cotidiano, tanto o meu quanto o seu, nada
mais é que uma inesgotável fonte de inspiração. Ah,
quantas  histórias  fabulosas vivemos em cada dia dessa
aventura chamada vida!
 
Leopoldo Veiga Jardim.

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Na cama com
Virgínia

Entrei sem acender a luz. Com passos


de astronauta dirigi-me à cama onde Virgínia dormia.
Acomodei-me ao novo ninho, lentamente, com movimentos
calculados para não acordá-la. Confesso que ainda não
havia me acostumado a dividir a cama com alguém todos

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os dias, talvez pelo pouco tempo de casado: apenas duas
semanas. Morávamos em um apartamento, mas Virgínia
dizia “apertamento”. Seu senso de humor atraía-me ainda
mais. O imóvel localizava-se no centro da cidade, na Rua
Josimar Flávio de Giuliano esquina com a Avenida Eder
Chasley Leite, ao lado da concessionária de veículos do
Zeca Salvino.
Compramo-lo quando éramos noivos. Era pequeno,
porém quase confortável, com dois quartos, um banheiro,
uma pequena cozinha e uma sala que dava para uma
minúscula sacada. O suficiente para duas pessoas, pois não
pensávamos em ter filhos.
Depois de 15 dias de casados e alguns minutos para
completar a primeira noite sem sexo, deitei-me. Naquela
ocasião, preferi a partida do Palmeiras ao jogo da sedução.
Ao me aproximar da cama, ouvi a minha amada pronunciar
algo estranho. Não! Não fora o nome de outro homem, caros
leitores de Nelson Rodrigues. Apenas descobri que, além de
estar ao lado dela na alegria e na tristeza, na saúde e na
doença, também teria que conviver com um inconveniente
barulho.
A descoberta frustrou-me, é verdade. Mas dizem
que o amor é cego, e eu pensei comigo:
– Tomara que seja surdo também!
O ronco de Virgínia não iria atrapalhar a minha

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noite, uma noite especial em que o Palestra Itália sagrara-se
Campeão Brasileiro de Futebol. E o único barulho que eu
queria manter na mente era o do hino do campeão.
Tentei não ouvir o ronco, concentrei-me e pensei
que iria cair rapidinho no sono. Não adiantava! Fechava
os olhos, mas os ouvidos permaneciam abertos. Tentava
contar carneirinhos, porém acabava sempre perdendo as
contas do rebanho.
O ronco não era nada melódico e parecia um
trombone desafinado. E, o pior, tocado por quem não
possuía os dons musicais capazes de domá-lo. Ronc...
ronc... ronc... Era o som da sua sinfonia. Ra! Ra! Ra!... Era a
melodia da minha raiva.
– Antes tivesse acendido a luz, pois assim não seria
cúmplice dessa poluição sonora ­– bradei em pensamento.
Eu fazia o possível e o impossível para dormir,
mas o sono não vinha. Parecia que, a cada vez que tentava
esquecer o ronco, mais atenção dava a ele. Levantei-me,
fui à sala, abri a porta que dava para a minúscula sacada,
e, ali, permaneci por alguns minutos. Fumaria um cigarro
se fosse fumante. A situação era propícia. Porém, apenas
tomei um pouco de água e senti no rosto um zéfiro, que não
foi o suficiente para refrescar o meu nervosismo.
O relógio marcava duas horas da manhã. Das oito
recomendadas de sono, restavam-me cinco. Resolvi voltar.

Balaio de Gato 19
Eu tinha perdido a batalha, mas não a guerra. Dessa vez,
não tive os mesmos cuidados. Ao contrário, desejei acordar
Virgínia com a minha recomposição – o que, infelizmente,
não aconteceu. O barulho feito por mim, ao me deitar,
foi insignificante comparado ao som do ronco da minha
amada. Fechei os olhos, a alma e o coração. Concentrei-me
esperançoso e gritei em pensamento:
– Desta vez eu consigo!
Esforço em vão! Restavam-me somente quatro das
oito horas de sono, e aceitar a derrota era preciso. Resignado,
dirigi-me ao melhor companheiro de um homem casado:
o sofá.
No dia seguinte, como de costume, ela se levantou
primeiro. Entretanto, para sua surpresa, encontrou-me
longe da cama.
– Amorzinho!... é hora de trabalhar. Vamos
acordando! – disse-me com sua voz angelical. Sim, a voz
era suave e doce. Um concerto para os ouvidos.
Acordei e quase dei-me folga naquele dia. Parecia
que não havia dormido nem a metade das horas que me
restaram.
– Por que é que você dormiu no sofá? – perguntou
incrédula.
– Ontem assisti ao jogo e acabei pegando no sono –
menti, porque não tive a coragem de falar a verdade.

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– Mas nem parece que você dormiu, pois tá com
muita olheira...
– Não dormi direito, meu amor. Afinal, ninguém
dorme bem num sofá, não é mesmo? – olhei em seus
olhos para aumentar a credibilidade das minhas palavras.
Despedi-me com um longo beijo e fui para o trabalho.
No fim da tarde, retornei ao nosso lar e fui cumprir
alguns afazeres domésticos, aprendendo um pouco mais do
dia a dia da vida de casado. Naquela noite não teve show
do Palmeiras. Fizemos sexo! Amor, na fraseologia dos
românticos. Infelizmente, como não era costume, depois
do ato, Virgínia caiu no sono primeiro.

Balaio de Gato 21
Turma da Rua Ivonês

Na tarde ensolarada do dia 20 de agosto,


de um ano em que a Alemanha foi campeã mundial da
Copa do Mundo de Futebol, Pedro foi visitar um amigo
que há muito tempo não via. Cabral era o nome dele e
acabara de chegar da Europa, onde viveu oito anos, cinco

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deles estudando Direito numa renomada universidade da
Inglaterra. Lá, morou numa república de latinos e teve a
oportunidade de experimentar, além de uma boa educação,
outras culturas e costumes.
O senhor Juarez Antônio Vitório não gostou da
visita. Talvez o pai de Cabral tenha se esquecido de que as
crianças cresceram e já não inventariam mais as peraltices
de antes. Ele sempre achou que a convivência com Pedro
e os demais meninos da Rua Ivonês fosse prejudicial ao
filho. Os familiares e amigos diziam que a mudança do
seu primogênito para o continente europeu teria como
verdadeiro motivo afastá-lo dos amigos.
Cabral era de família rica e tradicional, enquanto
os seus amigos de infância eram de classe média. Pedro
mantinha certa estabilidade financeira pelo fato de ser de
uma família de funcionários públicos. Já Carloso tinha até
nome e status, mas dinheiro que era bom, isso não. O Ica era
filho de comerciantes que sempre viviam com problemas
no fluxo de caixa da empresa.
A distância e os ventos do velho continente
ajudaram a esfriar a amizade deles com o filho do senhor
Juarez, que retornou ao Brasil e, simplesmente, os ignorou.
Em momento algum manifestou interesse em revê-los.
Tempos depois, Pedro decidiu tomar a iniciativa e procurar
Cabral; afinal de contas, a época de Atari e dos sucrilhos

Balaio de Gato 23
havia terminado, mas haveria de ter sobrado algo da
amizade juvenil.
Cabelos longos e gestos requintados, Cabral não
parecia mais aquele garoto ingênuo e grosso em suas
maneiras. Mantinha uma postura refinada e delicada. Ao
ver o amigo, indagou:
– O Ica e o Carloso, como estão?
– Bem! Todos ainda moram na Rua Ivonês.
– Por que eles não vieram com você?
– Porque não foram convidados. Na verdade, nem
eu fui – disse Pedro mostrando um pequeno sorriso com
os lábios cerrados. Eles estão magoados porque não foram
convidados para a sua festa quando você retornou ao Brasil.
– Mas eu também não te convidei agora e você veio
me ver, não veio?
– É, mas eles...
– Não tem desculpas! Quer saber? Melhor que não
tenham vindo me visitar!
Pedro estranhou o comportamento e o tom
arrogante. No entanto, o que mais chamou sua atenção
foram os gestos exagerados de Cabral e o beijo que ganhou
no rosto, na despedida.
Ele foi embora e levou junto a decepção do encontro.
Com o passar do tempo, Pedro se cansou de insistir na
reaproximação. Para o Ica e o Carloso, ele nem deveria ter

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visitado o filho do senhor Juarez. Ficaram irritados com a
atitude do amigo em ir “cheirar o rabo” do “europeuzinho
de meia-tigela”.
O frio da Europa parece ter acompanhado Cabral.
Mas um coração latino não permanece congelado para
sempre e, numa hora qualquer, ele volta a bater. Nada como
o tempo – “que cura até queijo”, como dizia minha mãe –
para curar as feridas e colocar as coisas no seu devido lugar.
O reencontro de todos da turma da Rua Ivonês
ocorreu um ano depois do retorno de Cabral ao Brasil,
durante a cerimônia do seu casamento. Um acontecimento
que pegou todos de surpresa, inclusive os pais do noivo,
que não sabiam do namoro e nem do noivado do filho.
A festa foi linda! Tudo perfeito! Na pequena e
conservadora cidade de Ouvidor, interior de Goiás, foi
o assunto mais comentado do ano. Uma cerimônia que
oficializou a união homoafetiva de Cabral com o francês
Maurice, um ex-colega da universidade.
Todos ficaram atônitos! Ninguém poderia imaginar
ver aquilo, ninguém jamais pensou que Cabral fosse fazer
o que fez.
– Como o filho pôde fazer aquilo com o senhor
Juarez? – indagavam os familiares mais próximos – Uma
afronta convidar aquelas pessoas!
Contrariando seu pai, Cabral convidara  Pedro,

Balaio de Gato 25
Carloso e Ica para o seu casamento. Todos ficaram surpresos
em vê-los na cerimônia... Sabiam da antipatia que o senhor
Juarez nutria pelos colegas de infância do filho. Era uma
grande decepção para o austero pai.
A Europa pode até ter esfriado a amizade deles, mas
o calor latino foi mais forte e estreitou novamente os laços
da turma da Rua Ivonês.

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A jornalista

Ela recebeu uma boa educação, sempre


estudou nos melhores colégios de Goiânia (GO). Os pais
sonhavam vê-la jornalista e, desde cedo, prepararam-na
para a profissão, ensinando-a a gostar de literatura, assistir
aos noticiários e a ler jornais e revistas.

Balaio de Gato 27
Vanessa já estava com 28 anos e havia quatro
trabalhava na imprensa. Seu pai era dono de uma farmácia
de manipulação, localizada na Avenida Cláudio Marques,
no bairro Moacir Júnior. Entre as receitas e formulações,
lia tudo de Guimarães Rosa. Era um fanático pela literatura
brasileira. Dizia que havia no mundo dois livros que o
ser humano não poderia morrer sem antes lê-los: a Bíblia
Sagrada e o Grande Sertão: Veredas. Para o farmacêutico, o
médico era o maior escritor brasileiro de todos os tempos.
Reconhecia, era verdade, o mérito e o talento de Machado,
todavia não admitia comparações. Já a filha preferia as
poesias de Drummond.
A jornalista, que iniciou em programas esportivos
no rádio, migrou para o impresso, passando por vários
cadernos do jornal Diário da Manhã, Jornal Opção e,
atualmente, trabalhava como repórter na editoria de
Cidades em O Popular. Numa tarde ensolarada do mês de
maio, o seu telefone tocou e do outro lado da linha alguém
lhe ofereceu a chave para a realização de um sonho. Era uma
proposta de trabalho num grande jornal diário de São Paulo
(SP). O convite apareceu em seu caminho como a pedra do
poeta. No seu caso, o obstáculo tinha o nome de dona Sônia.
Apesar da ligação literária com o pai, era pela mãe que o
coração de Vanessa batia mais forte.
A filha, acostumada a dar notícias profissionalmente,

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não sabia como informar aquele fato em casa. Depois de
respirar dúvidas durante uma semana, ela decidiu escrever
algumas páginas sobre o seu destino e, com exclusividade,
dar a notícia do seu novo emprego à família. Prefiro não
dar detalhes da sua despedida, mas posso garantir ter sido
muito dolorosa, principalmente para dona Sônia.
No início, a adaptação na cidade da garoa foi
bastante difícil. Sem os beijos de boa-noite da mãe, a filha os
procurou no colega de trabalho Ricaldo Alves. Caro leitor(a)
atento, informo que não houve erro de digitação, o nome do
jornalista foi grafado corretamente.
O dia a dia na capital paulista ficou mais fácil ao lado
do namorado, mas quando Vanessa ficava sozinha em casa
o seu olhar no horizonte ainda buscava por dona Sônia.
Com a filha longe, a mãe não tinha mais para quem
oferecer os seus beijos, pois o esposo mirava os olhos
somente para a homeopatia, alopatia e a “guimarãestia”. A
ausência de Vanessa contribuía para piorar o estado de saúde
de dona Sônia. Todavia, o marido a proibia de mencionar
isso quando as duas se falavam ao telefone, pois não queria
ver a mulher como uma pedra no caminho da filha.
Aos poucos, todos se acostumaram com a distância.
O estado de saúde da mãe se estabilizou e a jornalista se
arraigou de vez na maior metrópole brasileira. Depois de
um ano trabalhando como repórter de Política, a jornalista

Balaio de Gato 29
já era sondada para assumir a editoria do caderno.
O pai guardava todas as matérias produzidas e
publicadas pela filha, organizadas numa pasta. Fazia questão
de mostrar aos familiares e amigos cada publicação. Aquelas
que saíam na primeira página do jornal eram ostentadas e
tinham um lugar especial no arquivo pessoal do “pai-coruja”.
O farmacêutico deixou de colecionar as matérias
depois de três anos que a filha se mudara para a capital
paulista. A última reportagem arquivada na pasta foi
manchete de capa em todos os jornais do país.
A reportagem destacava a notícia trágica da morte
da jornalista Vanessa Campos Sobrinho, assassinada pelo
namorado e também jornalista Ricaldo Alves, às 22 horas,
da noite de 21 de agosto de 2012.

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Oitenta e dois anos
de idade

Eu tinha acabado de acordar naquela


manhã de domingo. O relógio, daqueles despertadores bem
antigos, marcava sete horas. Sentado na cama, ainda dei um
longo bocejo e estiquei os braços, antes de me levantar e ir
ao banheiro, arrastando as velhas sandálias de couro.

Balaio de Gato 31
Com os dedos polegar e indicador da mão direita, na
forma de uma chave, estiquei a pele do rosto em direção às
extremidades do pescoço. Talvez na esperança de trazer um
pouco da juventude perdida. Porém, bastava desprendê-la
para que as pelancas voltassem a se formar. No espelho do
banheiro, eu via o reflexo do meu pescoço.
– Igual ao de um peru! – exclamei.
Encontravam-se também sinais de outra ave em
minha face. As pegadas de galinhas eram cada vez mais
profundas. Os olhos já não eram os mesmos! Não tinham
mais a mesma capacidade de observação. Eles continuavam
verdes, era verdade, mas sem o brilho das esmeraldas de
antes. Tentei esboçar um sorriso, mas os poucos dentes –
ainda os tinha –, amarelados e podres, fizeram-me mudar
de ideia. O tempo é implacável. Por um instante, senti-
me envergonhado da minha própria velhice. Como se eu
tivesse culpa de ter perdido a beleza jovial com o passar dos
anos.
Ao lavar o rosto, as remelas iam embora com a água
pelo ralo, mas a pele enrugada permanecia. A testa, que
dobrara de tamanho com a queda dos cabelos, era cheia de
sinais horizontais. Formavam-se verdadeiros ideogramas
japoneses com o arquear das sobrancelhas. Os cabelos,
perdidos na cabeça, renasciam com força dentro do nariz
e das orelhas. A barba era mantida para esconder parte das

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cicatrizes do tempo.
Na cozinha, tomei o habitual leite com café
acompanhado de um saboroso bolo de fubá. Eu amava
maçãs, mas quase não comia, pois não sentia tanta
segurança na força dos dentes. E imaginar que esses
mesmos dentes um dia já serviram para abrir garrafas de
cervejas nos botecos!...
Há muito a minha boca não saboreava uma loirinha
gelada e nem beijava uma morena quente. O organismo
debilitado não tinha força para suportá-las. Depois da
refeição matinal, retornei ao banheiro. Dessa vez, para
chacoalhar na boca um pouco d’água. Isso era suficiente
para a higiene bucal, porque os dentes já não necessitavam
de três escovações diárias.
Vesti uma camisa branca de algodão e uma calça
cinza de linho, passada em quina, como minha falecida
esposa Cacilda Bertoldo ensinara à Marcinha Helena.
Antes de sair, ajeitei o colarinho e disse a ela que retornaria
somente ao meio-dia para o almoço e que, ao chegar,
gostaria de comer farofa de jiló, cará e quiabo.
Ao me aproximar da Praça Frederico Galvão, eu já
avistava os velhos amigos velhos lendo o velho jornal, que
divulgava sempre as mesmas velhas e trágicas notícias.
– Estávamos te esperando para começar a dama –
disse Oberdan da Sanfona ao me ver chegar.

Balaio de Gato 33
– A sua orelha vai virar uma muxiba de tanto perder
hoje – provocou Joaquim Felizardo.
O tabuleiro do jogo era desenhado no próprio banco
e as peças improvisadas com tampinhas de refrigerante. As
daquele dia eram vermelhas da Coca-Cola e azuis da Pepsi.
Naquela manhã de domingo, perdi todas as partidas que
disputei. O fazendeiro Miltão Parobeiro fez a festa. Ganhou
de todos; nem o João Donana conseguiu vencê-lo.
No caminho de volta para casa, senti o sol mais
agressivo. Eu estava percorrendo sozinho o trajeto;
nenhuma árvore se atreveu a me acompanhar. A camisa
estava ensopada com a quantidade fora do normal de suor
que exalava do meu corpo. A cabeça doía, pois estava sem
proteção. Havia esquecido no criado-mudo do quarto o
chapéu de “lebre”, presente do meu querido neto de Goiânia.
O sol ganhava força a cada minuto morto. O ar
quente do asfalto penetrava com força em meus pulmões. O
peito ardia, o coração batia acelerado e eu já não conseguia
respirar. Tentava desabotoar os primeiros botões da camisa,
mas os dedos não os encontravam. Os raios solares já não
iluminavam os meus olhos e os meus passos não tinham
direção. Eu estava perdendo os sentidos e... de repente,
tudo escureceu de vez.
Acordei assustado! Mais suado do que antes
e deitado numa cama. O coração continuava fora de

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controle. Num movimento abrupto, ainda meio tonto, corri
em direção ao banheiro. Lá, enfiei a cabeça dentro da pia
e a posicionei debaixo d’água durante um minuto. Ao me
recompor, me vi refletido no espelho... Desta vez com os
olhos de esmeraldas. Sorri, aliviado, ostentando os meus
dentes brancos e fortes!
Antes do café da manhã, abri uma gelada para
rebater a ressaca.

Balaio de Gato 35
O Capital

Bruno Rosa Neiva Valadares preferia a


cor azul – pelo menos era o que dizia quando se via alvo
de alguma pilhéria por causa do sobrenome. Nada tinha
contra a cor “rosa”, mas gostava mesmo era do azul e
também do verde, porém não do verde das plantas.

36 Luiz Augusto Araujo


Inteligente e dedicado, o estudante frequentava
o curso errado. Estudava agronomia na Universidade
Federal de Uberlândia (UFU) para agradar ao pai, um
grande produtor de soja na região de Catalão, interior de
Goiás.
Em paralelo com as ciências da terra, no seu tempo
livre Bruno procurava sempre manter-se próximo aos
pensadores marxistas – com ressalvas acabava incluindo
Lênin. Mas era O Capital, de Marx, o seu livro de cabeceira.
O estudante dedicava mais tempo a essa obra do que ao
conteúdo do seu curso universitário.
Ele dividia um apartamento – denominado
República Pequizeiro, no Bairro Murilo Reis, em
Uberlândia (MG) – com seis amigos, também
universitários e oriundos do berço das duplas sertanejas.
Vinícius Daniel e André Roberto Jaú cursavam o quarto
período de medicina; Gabriel Balaio, o terceiro período
de jornalismo; Guilherme da velha Zilda, o primeiro ano
de odontologia; e Walter Luís Toura e Gustavo Araguari
estavam concluindo o curso de história.
Às vezes, os amigos passavam noites em
claro discutindo sobre a obra de alguns pensadores,
principalmente dos autores de esquerda. Bruno era
assíduo nas reuniões e trazia sempre na ponta da língua
um trecho de O Capital. Gabriel, mesmo considerando-

Balaio de Gato 37
se socialista, não conseguia esconder sua veia anarquista.
Quando ouvia acusações a Bakunin, arrumava sempre
uma desculpa para sair mais cedo dos debates.
Guilherme apoiava as posições dos amigos
historiadores, porém havia um ponto em que discordava
veementemente deles: a legenda política. Ele era petista,
enquanto Walter e Gustavo eram militantes do PC do
B. Guilherme, assim como o futuro médico André, não
suportava ouvir críticas ao Partido dos Trabalhadores,
principalmente as que insinuavam a desarticulação do
partido devido às alianças com a burguesia.
Vinícius – que já se considerava doutor – era o
capitalista e dava mais atenção às revistas Playboys do
que aos livros e autores que incendiavam as discussões
ideológicas na república. De família tradicional de
Ouvidor (GO), preocupava-se apenas em usar roupas de
grife, em frequentar estabelecimentos de alto padrão. Era
um defensor ferrenho da elite conservadora.
Apesar das discrepâncias sociais e ideológicas
dos moradores da República Pequizeiro, o ambiente
era harmônico e de efervescência cultural, onde todos
se respeitavam. O local também era ponto de encontro
e festas para outros estudantes, de diferentes turmas
universitárias, além dos sete amigos moradores da
república.

38 Luiz Augusto Araujo


Bruno respirava agronomia, mas o seu suspiro
era pelas ciências sociais. Os dois anos de sofrimento e
de conversas com os amigos não foram suficientes para
ajudá-lo a decidir sobre o próprio futuro.
Numa manhã, em 25 de abril, apesar de já
ter a resposta em seu coração, ele foi ao hospital da
universidade, pois queria ouvir de uma pessoa diplomada
em dar conselhos sobre a vida alheia. E assim o fez. Na
consulta, o psicólogo Ullisses Argentino não precisou de
divã nem de muitas palavras. Estava clara a insatisfação
do paciente em estudar agronomia; o melhor tratamento
não eram as plantas, mas, sim, os pensadores.
Quando reencontrou os amigos contou-lhes sobre
o diagnóstico. O remédio era aquele que todos já haviam
indicado, mesmo não sendo diplomados: a mudança de
curso universitário.
– O que eu faço para dizer ao meu pai que estou
decidido a abandonar o curso?
– Por enquanto, nada – sugeriu Walter.
– Como assim?
– Preste o vestibular em segredo. Se passar terá
a faca e o queijo nas mãos. Será mais fácil convencer o
“velho”.
Ao ouvir a sugestão, o estudante fixou os olhos no
teto da sala da república, decorado com algumas teias de

Balaio de Gato 39
aranhas; pensativo, voltou-se aos amigos, balançando a
cabeça como forma de corroboração.
Com a ajuda de todos eles, Bruno começou a
separar alguns antigos livros da época em que estudou no
Colégio do Raniere, em Catalão. Também pegou com os
amigos materiais emprestados de vários cursinhos pré-
vestibulares
Não demorou a data tão esperada. Ele estava
confiante, pois em biologia e química era afiado, por se
tratar de disciplinas da grade do curso de agronomia.
história, filosofia e sociologia sempre foram o seu forte.
Foi preciso apenas relembrar um pouco as disciplinas
de matemática e português. O inglês não era problema,
dominava bem o idioma.
Bruno fez as provas do vestibular de ciências sociais
com a certeza de sucesso. Durante dois dias reviveu o
tempo e a ansiedade de vestibulando. A euforia veio com
o gabarito em mãos e o seu nome divulgado nas rádios
e ostentado numa lista de aprovados, colada na parede
do Bloco B da universidade. A alegria era a mesma de
qualquer vestibulando; afinal, ele o era. Só foi diferente no
visual. Os colegas entenderam que era preciso que o amigo
comunicasse primeiro à família para depois submeterem-
no ao ritual tradicional de comemoração, o que incluiria a
raspagem do seu belo cabelo.

40 Luiz Augusto Araujo


Gabriel, filho de fazendeiro do município de
Goiandira e amigo do pai de Bruno, se ofereceu para
participar da conversa com o senhor José de Oliveira
Valadares, mas Bruno preferiu abrir mão das solicitudes
do colega de república. Pela primeira vez, o filho teria que
encarar o pai, sozinho. A mãe, que sempre intermediara
os diálogos, também seria dispensada. O rapaz embarcou
no ônibus às 10 horas, numa ensolarada manhã de sábado,
com o objetivo de almoçar em Catalão, na presença do
pai, e fazê-lo digerir a novidade. Ao aproximar-se de casa,
deu com a mãe no portão a esperá-lo. Ela o recebeu com
um longo abraço e um carinhoso beijo. As mães são todas
iguais: sempre esperam pelos filhos. Do pai, recebeu um
tapa nas costas acompanhado da exclamação de sempre:
– Como é que vai o nosso agrônomo?
– Pai, eu ainda não sou agrônomo e talvez nunca
seja – completou, aproveitando o momento para iniciar a
destruição do sonho alheio.
– Como assim, filho, talvez nunca o quê?
– O senhor sempre soube que não gosto desse
curso e o que eu quero mesmo é estudar ciências sociais.
– Geralda! Lá vem o moleque de novo com esse
papo de sociologia, filosofia e não sei mais o que “ia”... –
reclamou José à esposa.
– Pai, eu fiz vestibular sem ninguém saber e fui

Balaio de Gato 41
aprovado. Agora não é apenas papo; serei, sim, um
sociólogo.
– Se você não for estudar agronomia vai ficar sem
estudar. Pois se não for para ser um agrônomo eu não lhe
dou mais nenhum centavo!
– Mas, pai!...
– Não tem “mas”, não tem mais nem menos!
Aos prantos, Bruno dirigiu o olhar à mãe, como a
pedir por sua intercessão. Ela assim o fez; interferiu, pediu,
implorou e até chorou. Mas José de Oliveira Valadares era
daqueles homens de uma só palavra.
– Filho! – continuou o patriarca –, o seu futuro é
trabalhar na roça. Estou lhe dando a oportunidade de ser
um doutor da terra.
– Mas a minha vontade é ser sociólogo!
– Isso você não vai ser. Ou será um agrônomo ou
um simples trabalhador rural. Você decide!
A paixão pelas ciências sociais falava alto no
coração do jovem, mais alto ainda por Karl Marx; porém,
era quase inaudível perto da sonora vontade do pai.
Bruno não disse mais uma só palavra. O silêncio pode
dizer muitas coisas. Naquele momento, gritava palavras
de ofensas.
Meses depois, o estudante viu passar a data de se
matricular em ciências sociais, deixando escapar a chance

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de realizar o seu grande sonho. O jovem, que queria ser um
pensador, pensou, pensou e ficou apenas no pensamento.
Não colocou o seu plano em prática. Não conseguiu ser o
sujeito da própria história.
Quando a questão foi o capital, Bruno Rosa, que
gostava da cor azul e não do verde das plantas, até se
lembrou de Marx, mas preferiu o capital do pai.

Balaio de Gato 43
O jogador

O dia para Tião da Nina começava sempre às


14 horas, logo após se empanturrar na casa de dona Glória
Augusta, sua vizinha da casa da direita. Ela fora um anjo
que teve as asas cortadas, esquecida por Deus em Ouvidor,
cidade do interior goiano. A boa senhora tinha 65 anos e 10

44 Luiz Augusto Araujo


de viuvez. Não possuía filhos nem parentes vivos, por isso
depositava todo o seu amor no gatinho Miller e no vizinho
da casa da esquerda. O afeto ao moço começou a ser tecido
depois que ele lhe socorrera de uma queda.
Ele se chamava Sebastião da Costa Pacheco Ferraz.
Era conhecido como Tião da Nina pelo fato de ter tirado a
pureza da filha da Dona Filomena, merendeira do Colégio
Municipal Ivo Pereira. Valéria Carolina, conhecida como
Nina, tinha apenas quinze anos de idade quando o mancebo
lhe roubou a inocência. Depois disso, a jovem se mudou
com a mãe para a casa da sua tia Nenzinha do Edinho, no
Estado do Tocantins, e nunca mais deu notícias.
O rapaz não trabalhava nem estudava, vivia de
fazer bicos. Era viciado em cacheta. A responsável por
tê-lo lançado ao mundo foi Maria de Lourdes, com
a cumplicidade do falecido Carlos Aparecido Ferraz,
conhecido como Cidão. Ela perdera o marido há doze anos
e, há quatro, as rédeas da sua cria.
A viúva vivia a cozinhar nas casas dos grã-finos
em dias de festa. E, semanalmente, a fazer faxinas nas
residências dos mesmos. O vício do filho pelo carteado a
contrariava bastante e reduzia, paulatinamente, a chama de
seu amor maternal. O único compromisso que mantinha
era o de lavar, ainda, as roupas dele. O afeto e a comida
eram por conta de dona Glória Augusta.

Balaio de Gato 45
Tião da Nina tinha 24 anos; os mais recentes deles
vividos na mesa de cacheta do Floriano Ademir de Lima,
um senhor de 65 anos de idade e afamado por sua valentia.
Ele comandava os jogos havia mais de cinco anos naquele
recinto, que tinha um bar como fachada. Nunca jogava!
Dizia que tem certas coisas que o homem não deve misturar
– o jogo era uma delas.
­– Ou você é jogador ou é administrador – dizia.
Andava sempre com uma pequena bolsa de couro
de cor preta debaixo das axilas, que escondia um “três-
oitão”. Suas palavras sempre foram suficientes para não o
mostrar a ninguém.
Vários amantes do carteado frequentavam o seu
pequeno cassino. O Malazoia era um deles e, de tão presente,
ganhou a confiança do dono. Outro era o Marco Pedroso,
proprietário de uma grande loja de móveis e representante
da pequena elite da cidade. O empresário perdia quase
sempre! Há boatos de que, numa única noite, perdera mais
de R$ 20 mil. O caminhoneiro Serninho, cunhado do João
Luiz Carlos Borges, e o filho da Maria de Lourdes também
eram assíduos.
O percentual da casa era de 10% do montante de
cada rodada. Floriano garantia o prêmio ao ganhador e
emprestava dinheiro a quem necessitasse, mas com uma
condição: o prazo máximo de pagamento era de uma

46 Luiz Augusto Araujo


semana. Nem um dia a mais do que isso!
Nos últimos dias, todos reclamavam da ausência de
Tião da Nina. Havia quase um mês que não comparecia às
“reuniões”. O motivo? É que da última vez que amanheceu em
companhia das cartas ele perdera mais dinheiro do que havia
na carteira. Tal situação o obrigou a recorrer ao empréstimo
de R$ 1.000,00 no banco “Floriano Bolsa Preta Ltda” – quantia
esta que não fora liquidada no prazo contratual.
Numa tarde de domingo, o jovem retornou ao
estabelecimento:
– Bom dia! Tudo bem, Floriano?
– Tudo! Com você é que me parece que as coisas
não vão muito bem. Você tá sumido, o que aconteceu?
A ironia era uma das principais peculiaridades do
experiente administrador da casa
– É justamente o meu sumiço que me traz aqui hoje.
O motivo da ausência é que até o momento não consegui
levantar a grana para quitar a minha dívida.
– Mas, Tião! Você, mais do que ninguém, conhece
as regras. Tem fama de malandro na cidade e mesmo
assim lhe dei crédito. Mas você será homem para honrar o
compromisso comigo, não será?
– Claro que sim! Nunca passou pela minha cabeça
deixar de lhe pagar – balbuciou.
– Vamos fazer o seguinte: eu finjo que você não

Balaio de Gato 47
extrapolou o prazo do empréstimo, e amanhã à noite eu lhe
espero para acertarmos tudo – propôs Floriano, encerrando
a conversa.
O medo obstruiu na garganta de Tião da Nina a voz
para a aceitação do convite, por isso sua resposta veio com
o balançar da cabeça de cima para baixo.
A noite foi longa e o sono escasso. No outro dia,
o filho de Maria de Lourdes acordou às 9 horas. Aliás,
levantou-se da cama, pois não havia pregado os olhos. A
dívida lhe roubara o sono e a tranquilidade de sempre. Ao
se recompor foi direto à vizinha da casa da direita em busca
de uma solução:
– Tia! – era assim que ele se dirigia a ela – Estou
com um probleminha!
– Diga, meu filho!
O jovem relatou a situação em que se encontrava,
mas mentiu ao se referir à quantia da dívida com Floriano,
dizendo que era de R$ 700,00. Talvez quisesse poupar
a cardíaca de uma maior preocupação. A boa senhora
cravou-lhe um olhar afável e disse com voz rouca:
– Filho, não se preocupe! Você sabe que não tenho
todo o dinheiro, mas...
Ao ouvir essas palavras, um sorriso ameaçou brotar
na face de Tião, porém, ele foi hábil e o segurou. Conteve
também as palavras, pois era preciso, antes, garantir o

48 Luiz Augusto Araujo


dinheiro.
– Eu ainda não paguei minhas contas, mas elas
podem esperar. Vou ao quarto pegar o dinheiro.
O jovem estendeu a sua mão direita suja e suada
para receber R$ 500,00, e agradeceu:
– Obrigado, tia! Juro que vou lhe pagar até o fim do
mês.
Ela ouviu e balançou a cabeça, mas no fundo
sabia que a promessa não seria cumprida. Mesmo assim,
respondeu:
– Tudo bem! Eu espero até o final do mês.
Em seguida, o rapaz seguiu em direção à última
esperança, ao outro coração feminino que lhe restava. Ao
entrar em casa, deu com a mãe sentada no sofá da sala.
Respirou fundo e jogou rapidamente as palavras:
– Mãe! Estou precisando de um favor da senhora!
Estou devendo ao Floriano.
– Filho! Eu sabia que um dia isso iria acontecer! –
ela ficou espantada, pois conhecia a fama do credor.
– Qual é o valor?
– R$ 1.000,00. Dona Glória Augusta me emprestou
R$ 400,00.
Para a mãe, dissera o valor correto do débito, mas
mentiu em relação ao empréstimo adquirido com a vizinha.
– Eu juro que é a primeira e a última vez que eu lhe

Balaio de Gato 49
peço ajuda para quitar dívidas de jogo. Prometo também
que vou parar de jogar cacheta.
No momento da jura ele não cruzou os dedos. No
entanto, os malandros não precisam usar desse artifício
para fazer perjúrio. A mãe, no fundo de sua alma, sabia que
o primogênito não cumpriria a promessa, porém implorou:
– Tião! A Maraísa Lima me deve R$ 200,00 e a
Dolores Serafim, mulher do doutor Leonel Taffarel, R$
400,00. Diga a elas que mandei você pegar o dinheiro.
– Elas não vão acreditar em mim – disse Tião.
A mãe refletiu um pouco, o suficiente para lhe dar
razão. Todos na cidade conheciam a fama do filho. Elas
realmente não lhe dariam o dinheiro.
– Tudo bem! Irei eu mesma buscar após o almoço.
O relógio paraguaio marcava 13 horas. Depois de
muitos meses, o filho faria uma refeição em casa ao lado
da mãe. A genitora começou novamente a tecer a colcha
maternal, utilizando a linha do amor e o tecido do carinho.
O almoço ocorreu tranquilamente. Ele repetiu três vezes
o prato e ainda buliu na sobremesa: goiabada com queijo.
Depois de aguardar o quimo, ela foi se aprontar para visitar
as senhoras.
– Já vou buscar o dinheiro!
Quando já estava a caminho da salvação do filho,
este foi ter com a vizinha para lhe contar a nova:

50 Luiz Augusto Araujo


– Tia! Minha mãe voltou a me chamar de filho.
Naquele momento lágrimas rolaram no rosto de
ambos.
– Eu sabia que ela nunca deixou de te amar.
– Não esperava que essa dívida pudesse fazer isso –
disse Tião.
– Ela te arranjou o dinheiro que faltava?
– Sim! Arrumou também o meu coração. Hoje bate
aliviado!
O vizinho tascou um beijo no rosto enrugado da
boa senhora e foi para casa aguardar pela mãe.
Às 15h30, Maria de Lourdes retornou. Trazia no
rosto um sorriso e nas mãos o que saíra para buscar. O
filho, agora mais filho do que nunca, recebeu-a com um
beijo e ouviu essas palavras:
– Vamos mudar de vida! Daqui em diante, eu serei
uma verdadeira mãe. Peço que seja um filho digno, que
cumpra a sua promessa.
– Que promessa?
(Realmente os malandros têm memória fraca.)
– De nunca mais jogar cacheta! – bradou a mãe.
Reconhecendo o esforço dela, ele falou em tom de
sinceridade:
– Eu juro que vou tentar me livrar desse vício. E vou
conseguir; não por mim, mas pela senhora!

Balaio de Gato 51
O sol se pôs; e ele pôs no corpo uma camisa do
Juventus, clube de futebol amador da cidade – conhecido
como Time do Cemitério. Na despedida, afirmou que
caminharia pela última vez até a mesa de jogos do Floriano.
Lá chegando foi recepcionado pelos companheiros:
– Até que enfim apareceu o patinho! – disse Marco
Pedroso.
– Mas não para jogar! – respondeu Tião.
– Você não veio jogar? Essa é boa! – duvidou
Serninho.
– Se veio falar com o Floriano, ele não está. Se você
veio jogar, sente-se aí que vamos começar uma nova rodada
– disse o cantor Lesbão, no momento em que embaralhava
as cartas.
– Sente-se!... que hoje eu deixo você ganhar –
insistiu Malazoia.
O jovem não conseguia mais se segurar. A cacheta
falava mais alto que a sua consciência. Apesar da doação
de dignidade da mãe, Tião era um malandro na essência
e, por isso, não conseguiu cumprir a jura. Nas três
primeiras rodadas foi o ganhador. Na quarta, o dono do
estabelecimento chegou e, ao vê-lo, disse:
– Fico feliz pela visita, Tião. Já tenho que sair
novamente. Quando voltar a gente acerta!
Enquanto o dono se ausentava do local, Malazoia

52 Luiz Augusto Araujo


fazia o papel de administrador temporário da mesa,
anotando as rodadas e separando o percentual da casa.
Floriano retornou após duas horas para comandar o seu
posto. O filho de Maria de Lourdes ficou nervoso com
a presença dele e começou a contabilizar consecutivas
derrotas. O sol já pedia licença à lua para brilhar e o sono
levou embora os cavalheiros da mesa redonda, deixando
para trás apenas o jovem Tião da Nina e Floriano a calcular.
– Somando o que você já me devia mais o que
perdeu hoje, você tem que me pagar R$ 2.500,00.
Molhado de suor, o devedor dividia o olhar entre a
pequena bolsa de couro preta, que naquele momento estava
com o zíper aberto, e os olhos do credor.
– Desculpa, mas eu não tenho esse dinheiro! – disse
Tião.
– Eu não ouvi direito! Repete! – gritou Floriano,
mostrando o seu “três-oitão”.
– Eu juro que vou te pagar! Vendo o aparelho de
som, a TV e tudo o que eu puder, mas quito minha dívida
com você ainda hoje.
– Realmente de hoje não passa. Você vai me pagar,
mas não vai precisar vender nada não, nem vai precisar de
dinheiro. Vai me pagar é agora, seu malandro!
– Pelo amor de Deus, não me mate!
– Você vai me pagar de duas maneiras. A primeira

Balaio de Gato 53
é nunca mais botando os seus pés aqui dentro. A segunda
é... tire a roupa!
– Não! Isso não, por favor! Eu sou homem, não faça
isso comigo pelo amor de Deus! – implorou aos prantos.
– Tira o nome santo de Deus da sua boca suja! E tire
sua roupa agora!... ou prefere levar um tiro na cara?
– Eu faço tudo o que você quiser, mas isso não. Por
favor!
– Não é o que você está pensando! Eu quero é a
sua roupa. Ela será a segunda forma de pagamento da sua
dívida – explicou Floriano.
Sob a mira da arma, Tião da Nina despiu-se, ficando
totalmente nu, e suplicou mais uma vez:
– Pelo amor de Deus! Deixe-me ir agora!
– Agora não, só mais tarde!
– Por quê? – questionou Tião.
– Porque hoje é dia de feira e eu quero esperar mais
tempo para que a rua fique lotada de gente. Quero que
todos sejam testemunhas do homem que você é; do homem
que não honra nem as próprias calças. Quem sabe assim
você cria vergonha e deixa de ser vagabundo!
Depois de duas horas trancafiado, o jovem foi
jogado na rua por Floriano a pontapés e socos. As pessoas
não acreditavam no que viam. Durante um mês, este foi o
principal assunto da cidade.

54 Luiz Augusto Araujo


...
Peço desculpas, mas não citarei o penoso trajeto
de Tião da Nina ao ir embora. Pouparei as páginas e a sua
paciência, caro(a) leitor(a). Se quiser saber os detalhes e da
sensação de um homem pelado fora de casa, sugiro que leia
Fernando Sabino.
Assim que chegou à Rua Irapuã Costa Júnior, Tião
preferiu se adentrar na residência da sua vizinha da casa
da direita, onde relatou o fato. Desta vez fora minucioso,
verídico, não omitindo nenhuma informação à bondosa
dona Glória Augusta. Ela se derramou em lágrimas e
quase se derramou em derrame também. Com uma toalha
emprestada, ele partiu em direção aos braços da outra
mulher da sua vida. Encontrou-os acomodados nos braços
da poltrona de cor verde, localizada no canto direito da
sala. Ao ver o filho, a mãe disse:
– Eu já sei de tudo! Em cidade pequena as notícias
correm rápidas demais.
– Mãe, eu... – Ao vê-la, ele não teve voz para
transformar o pensamento em fala.
– Filho, eu te peço pela última vez: não jogue mais,
pelo amor de Deus!
– Eu juro pela alma do meu pai, que Deus o tenha,
que nunca mais jogo cacheta na minha vida, nem de
brincadeira!

Balaio de Gato 55
O filho do falecido Cidão estava acostumado a fazer
promessas; porém, era a primeira vez que pronunciara
o nome do pai em seus juramentos. Pela primeira vez,
também, cumpriria a palavra. Como prometido, o jovem
não mais jogou cacheta.
Passou a jogar somente sinuca. Não aposta mais di-
nheiro, somente garrafas de cerveja. Tião da Nina trocou o bar
de fachada do Floriano pelo boteco de verdade do Pintassilgo,
onde passa o dia inteiro. E a maioria das noites também.

56 Luiz Augusto Araujo


Estragos no coração


Os acidentes provocam traumas. Um
pequeno incidente pode provocar grandes estragos. A ida
ao cinema Lumière arrebentou com o carro do professor
de Literatura, Marcelo Vassil Rodrigues. Numa sexta-feira,
véspera de Natal, quando ele terminava de estacionar,

Balaio de Gato 57
ganhou uma cacetada na traseira de seu Celtinha. A
responsável pela barbeiragem foi a gaúcha Milena Alves.
Após a colisão e a constatação de que ninguém havia
se ferido, eles combinaram de não envolver a segurança
do centro comercial e nem a polícia no caso, uma vez que
a habilitação da jovem ainda era provisória (se dessem o
prosseguimento legal após o ocorrido, Milena poderia
perder a carteira de motorista). No acordo, o professor
ficou de conferir o valor do reparo de seu veículo e entrar
em contato com a moça logo em seguida. Ele não chegou a
fazer o orçamento, mas ligou:
– Oi! Aqui é o Marcelo, do acidente de ontem,
lembra?
– Sim, tudo bem! Já fez o orçamento?
– Na verdade, não. Olhei bem o carro e constatei que
o estrago foi muito pequeno e, por isso, acho que devemos
deixar isso pra lá – mentiu, porque o estrago foi feio!
– Se você prefere assim, tudo bem! Eu agradeço.
– Eu liguei também para convidá-la para, sei lá, nos
encontrarmos nessa semana. Ah! Desde que não seja no
estacionamento do shopping, é claro!... Brincadeirinha...
– A gente marca depois. Nesta semana não vai dar
porque tenho prova. Eu tenho o seu telefone e depois te
ligo! Pode ser?
– Claro, ficarei aguardando.

58 Luiz Augusto Araujo


Marcelo aguardou a ligação por duas semanas, o
que não aconteceu. Há certas coisas que até os inexperientes
devem saber – uma delas é que o homem nunca deve
transferir à mulher a responsabilidade de ligar ou marcar
um encontro. Mas ele sabia das coisas. O tempo foi apenas
uma estratégia.
Duas semanas depois, o professor a procurou com
o pretexto de que havia ganhado dois ingressos da peça
“Beijo no Asfalto” de Nelson Rodrigues, autor cotado na
lista do vestibular daquele ano. Foi uma tacada de mestre!
Ela não resistiu ao convite. Após o espetáculo, foram ao
Bar do Catete, ao lado do Posto do Miranda. Ah! O boteco,
lugar onde os poetas se declaram para a vida; onde, naquela
noite, Marcelo se declarou à estudante.
Com 33 anos de idade, ele não era do tipo atlético e
exibia uma “barriguinha de chope” – o que dizia ser o seu
travesseiro erótico. Suas poesias bastavam para a estudante.
Descendente de alemães, a moça tinha apenas 18 anos, era
alta, ostentava uma boca carnuda, o nariz arrebitado e um
corpo igualzinho ao da Gisele Bündchen. Ah! Os olhos
eram azuis e brilhavam todas as vezes que o sortudo do
namorado se aproximava. Quem diria que a inexperiência
ao volante lhe custaria uma paixão arrebatadora.
Milena vivia repetindo que o amava. Mas mesmo
assim, vez ou outra, ele duvidava das suas palavras. Quando

Balaio de Gato 59
ela lhe perguntava se a amava, ele respondia que sim. Um
sim seco, desacompanhado de comentários e sem o brilho
nos olhos. Como os da borboleta do mestre Machado, eles
eram pretos. Os olhos do professor não brilhavam, mas o
coração quase saía pela boca quando estava perto da amada.
O ciúme excessivo dele desgastava a relação, e a
preocupação de Milena com a proximidade do vestibular
foi, aos poucos, acalmando a paixão pelo namorado; ela já
se dedicava mais aos livros do que a ele. E raras eram as
vezes em que o questionava sobre o seu amor. Ele é que
passou a lhe perguntar sempre se ela o amava. A namorada
continuava a dizer que sim, mas aos poucos os olhos azuis
foram perdendo o brilho nas respostas. Perderam de vez
com o resultado da prova da Unicamp. Eles foram brilhar
em Campinas, São Paulo, longe de Goiânia, afastados do
namorado.
No início, a mudança para outro estado não
acarretou o fim do namoro; apenas o abalou. Porém, os
conselhos das amigas de república e o contato com novos
amigos e com os cadáveres da universidade fizeram com
que a estudante de medicina se esquecesse rapidamente
do corpo vivo e distante do namorado. Ele insistiu no
relacionamento, tentou ser ainda mais romântico, fez novas
poesias e mandou até telegrama. Não adiantou. A jovem
estava decidida. Ao contrário dos homens, as mulheres

60 Luiz Augusto Araujo


sabem decidir.
O término do romance provocou o fim das poesias
do professor de Literatura e lhe deu uma gastrite nervosa.
O último “não” da amada Marcelo ouviu pessoalmente,
quando fez a ela uma visita surpresa na Unicamp. Chegaram
a almoçar juntos... Ele não conseguiu digerir a resposta
final e definitiva dela. A gastrite também não o ajudou.
Milena se despediu e não quis ficar para a sobremesa,
mas deu um beijo doce, borrado imediatamente pelas
lágrimas que molhavam o rosto do agora e definitivo ex-
namorado. O que restou a ele foi uma xícara de café amargo,
já quase frio, sobre a mesa do restaurante, e a constatação
de que não mais adiantava insistir na relação. Estava tudo
acabado.
Na volta frustrada de Marcelo a Goiânia, os prantos
que caíam dos seus olhos embaçaram o para-brisa do carro,
obstruindo totalmente a sua visão. Ele ficou sem rumo na
vida, sem rumo na pista. Marcelo, que perdera seu grande
amor, perdeu também a direção do veículo, colidindo-o de
frente com um caminhão.
Os acidentes provocam traumas. Os do coração são
os piores.

Balaio de Gato 61
A nova máquina
do sexo

Adolfo não era tão pegador assim. Tudo bem


que tinha fama de ser galanteador, mas ele próprio sabia que
não possuía todo esse poder que o afamava. Sabia também
que não havia vitimado nem a metade dos nomes femininos
que circulavam na boca dos amigos e admiradores. Ficava

62 Luiz Augusto Araujo


quieto, não se gabava de tê-los conquistado nem desmentia.
Omitia-se e deixava a sua imagem de garanhão se alastrar
na cidade e região.
Filho da doutora Divina Soares, cardiologista do
Hospital Helena Maria de Araújo, Adolfo se tornara uma
referência para toda uma geração de adolescentes. Ele
era tudo de bom, segundo o mulherio. Boa pinta, sarado,
possuía carro – isso fazia (ou ainda faz) uma diferença em
cidade pequena – e, ainda por cima, era filho de médica.
Como se não bastasse, o jovem ostentava um par de olhos
verdes que lhe serviam de ímãs para atrair o sexo feminino.
Lá no início dos anos 1990, ainda adolescente,
mudou-se com a mãe, a irmã e o cachorro Astor para o
interior de Goiás. Os moleques sentiam raiva dele. Alguns
garotos chegaram a lhe dar cascudos e chutes na bunda
durante o recreio na escola. Porém, desde cedo, o forasteiro
soube lidar com os invejosos. Conquistava-os oferecendo
tardes inteiras de videogame e sucrilhos – novidade para
aqueles que, só de vez em quando, tomavam um iogurte.

Quando cresceu, criou raízes na cidade e se
tornou garanhão, ficou mais fácil contornar os ciúmes
da rapaziada. Adolfo era carioca, morou no Rio até
os 10 anos de idade – tempo suficiente para nutrir a
“malandragem” no sangue. Bobo que não era, tratou logo
de fazer amizade com os “barras-pesadas”. Conseguira a

Balaio de Gato 63
confiança deles apresentando-os nas rodinhas de mulheres
como seus grandes amigos. De vez em quando, até carro
emprestava.
Fontenele, o filho do poeta Gerson Santos, era um
deles. Como trabalhava numa cervejaria, a bebida sempre
foi por sua conta, o que lhe dava ainda mais moral com o
filho da doutora e, de vez em quando, lhe rendia também
alguns olhares femininos. Depois que começou a trabalhar
numa loja de roupas, ele ficou mais ajeitado e passou a
contabilizar nomes femininos. Porém nada comparável ao
amigo Adolfo.
Poucos anos depois, a cidade era da prole da doutora
Divina Soares. Sua filha cresceu, virou mulher. A mais
bonita e cobiçada de Ouvidor e região. O irmão morria
de ciúmes. Depois que a irmã explodiu em formosura, ele
se viu alvo dos inimigos e até mesmo dos amigos. Sabia
que todos os rapazes queriam vingar-lhe pelas bocas não
beijadas, pelos corpos não descobertos e pelas cartas de
amor nunca recebidas. Até então, tudo e todas eram para
Adolfo.
Mas o tempo passou e Deus deu aos outros rapazes
o mais belo corpo, a mais bela das mulheres. Tão linda que,
da mesma belezura, ninguém havia provado na cidade.
Uma mulher de quem Adolfo não roubaria o coração nem
a pureza. Dele, a jovem tinha somente os olhos verdes e o

64 Luiz Augusto Araujo


sobrenome. Nunca se deram. A jovem aturava-o por morar
sob o mesmo teto e tomar bênção da mesma pessoa antes
de dormir.

O irmão sempre se fez de durão e fingia ser
indiferente, mas no fundo... No fundo sempre há, basta
procurar! No fundo, o primogênito nutria um carinho
muito grande por ela e um ciúme ainda maior. E quando
a jovem se fez mulher ele não conseguia mais se controlar.
O zelo pela irmã era tanto que o fizera abandonar a vida
de garanhão. No fundo... No fundo sempre há, basta
procurar! No fundo, Adolfo sabia que um dia sua irmã iria
se apaixonar e correria o risco de sofrer por um homem
que poderia fazer com ela o que ele sempre aprontou com
as jovens da região.
Vigiá-la passou a ser a sua principal atividade. O
rapaz, que tinha o ofício de conquistador, transformou-se
num defensor ferrenho da virgindade antes do casamento,
tornando-se mais implacável do que o pastor da Igreja de
Deus, João Jovita Cornélius.
Com medo do “fogo amigo”, Adolfo tomou a
decisão de não receber os seus colegas em casa. Isolou-se.
Transformou-se numa sombra da irmã. Às vezes, vigiando
de longe, mas sempre com o olhar atento. “Ele está ficando
doido” – pensavam alguns. Em cidade pequena, dificilmente
as pessoas falam mal de quem tem ou aparenta ter dinheiro.

Balaio de Gato 65
Mesmo assim, os comentários maldosos já começavam a
surgir.
Desculpe-me, leitor(a)! Até agora não informei
o nome da filha da doutora Divina Soares. Seu nome era
Larissa, dona de um par de olhos verdes, herdados do pai,
que foi morto por uma bala perdida no Rio de Janeiro.
Na Cidade Maravilhosa as pessoas continuam a morrer
vítimas de balas perdidas, que encontram, na maioria das
vezes, alvos inocentes. O pai foi surpreendido por um
artefato oriundo de uma pistola automática. Não descrevo
as características do calibre por não entender de armas
e também para não me alongar nessa triste passagem da
família Soares.
A moça ostentava seios fartos, boca carnuda, alta
estatura e um corpo que ninguém podia explicar... pelo
menos por enquanto. O seu primeiro beijo aconteceu na
casa da amiga Sheilinha, filha do Zé da Loja, quando o primo
dela a visitou durante as férias de julho. Felipe Nanuque
morava em Brasília (DF) e se viu obrigado a voltar mais
cedo para a capital, quando o irmão de Larissa descobriu o
namorico e lhe encomendou uma surra. Além de machucar
bastante o candango, a coça serviu de aviso aos possíveis
interessados na filha da doutora Divina Soares.
Depois desse episódio o ciúme de Adolfo tornou-
se doentio e incontrolável. A mãe, como todas as mães,

66 Luiz Augusto Araujo


demorou a perceber o comportamento inadequado do
filho. Como médica, indicou uma especialista, a psiquiatra
Linus Salim, que, meses depois, recomendou a internação
ao rapaz.
Por um período de três meses o jovem ficou
internado numa clínica. Poucas pessoas diziam que ele
estava louco. Ser rico tem suas vantagens. Até as doenças
ficam menos graves e ganham nomes mais requintados.
Para grande parte da população da cidade, o filho da
doutora Divina Soares apenas sofria de cansaço mental e
passava uma temporada de repouso num spa de saúde.
Se fosse pobre, seria louco e estaria internado num
hospício. Um morador da zona rural do município de Três
Ranchos (GO), Sr. Geraldinho da Cutia, pai de Maura,
esposa do Malaquias, dizia que o problema do rapaz era a
falta de serviço. Para o velho agricultor, todos os que não
apresentavam calos na palma da mão eram preguiçosos ou
malandros.
Depois de dois meses, Adolfo já estava bem melhor,
porém ainda continuava na clínica. Ele sempre perguntava
pela irmã, que não o visitava.
O irmão não sabia, mas seria titio. Larissa fora
iludida, engravidada e abandonada por Fontenele, filho
do poeta Gerson Santos. O rapaz comprou carro, ficou
sarado à custa de anabolizantes e tomou para si o posto de

Balaio de Gato 67
garanhão da cidade. Ele se transformou na nova máquina
do sexo. Alguns até dizem que o jovem já superou o período
hegemônico do filho da doutora Divina Soares.
Fontenele pega todas e sem remorsos. Ele não tem
irmã para se preocupar nem para ficar louco de ciúmes.

68 Luiz Augusto Araujo


O primeiro
computador

Nunca tive a pretensão de me tornar um


escritor. Confesso que não tenho muita fé nos jovens
escritores, pois ainda lhes falta a vivência para respirar grandes
histórias. Na época, eu, com menos da metade da metade de
um século, considerava-me imaturo e inexperiente em colher

Balaio de Gato 69
elementos do cotidiano e ingredientes da imaginação para
fazer o preparo de uma grande obra – ou até mesmo de um
simples aperitivo. Sabia que alguns grandes autores deixaram
maravilhas e faleceram ainda garotos. Mesmo assim, sempre
dei mais valor aos cabelos grisalhos e aos óculos “fundo de
garrafa” dos experientes escritores.
Apesar da pouca idade e da imaturidade, atrevia-
me a rabiscar algumas palavras que emendariam narrativas
e dariam fôlego a alguns personagens. Transcrevia, de vez
em quando, observações, delírios e bobagens. Dizem que o
papel aceita tudo; no meu caso, era eu quem já não o aceitava
mais.
A falta de um computador para armazenar minha
incipiente obra literária desanimava-me a estendê-la. Acho
que eu era muito preguiçoso. Não sabia explicar aquela
sensação: tinha muita vontade de escrever, mas, ao olhar
para o papel e imaginar o trabalho que me daria passar todos
os manuscritos para o computador (que compraria algum
dia), inibia-me imediatamente. Também nunca gostei da
minha letra; nem a maioria dos professores, que sempre me
recomendaram caderno de caligrafia.
O fato de saber que grandes autores da atualidade
não abriam mão da máquina de escrever não amenizava
a minha obsessão em realizar o meu sonho de consumo.
O computador era líder no ranking dos meus desejos. Na

70 Luiz Augusto Araujo


verdade, pensava comigo, os escritores fiéis ao barulho da
máquina de datilografia não estavam se negando a coisa
alguma, pois haviam abandonado a caneta. Eu ainda não
tinha tido nem essa oportunidade.
Quando ingressei na faculdade e vi aquele mar de
computadores no laboratório de informática, os temas para
novas histórias vinham “surfando” em minha mente. Eu
sabia que poderia ir, às tardes, para aquele local e viajar todos
os dias na tela do micro. E o mais importante: tinha certeza
de que os textos sairiam comigo arquivados em disquetes
(nessa época não existiam os pen drives) e que um dia os
salvaria no disco rígido do PC, que também tinha certeza de
que possuiria algum dia.
O meu ingresso na universidade garantiu o
aproveitamento de parte das minhas ideias e devolveu-me
o ânimo de escrever. O primeiro e tão sonhado computador
veio um ano após a minha formatura. A transferência de
cada arquivo (bobagens que, algumas vezes, atrevia-me a
chamar de obra literária) dos disquetes para a máquina era
como se fosse um orgasmo. O prazer era intenso!
Para minha desforra, comprei de cara um notebook
de última geração. Com ele, sentia-me muito mais um
executivo de uma grande empresa do que um escritor.
Mas tudo bem: como disse no início, não tenho muita
fé nos jovens escritores.

Balaio de Gato 71
O enigma da revista

Certo dia, brincando no quarto dos pais,


Marcinho Limonada e o irmão João Paulo encontraram
uma revista entre as grades e o colchão da cama do casal. O
material era diferente de tudo o que eles, com os seus seis
e sete anos de idade, respectivamente, haviam manuseado.

72 Luiz Augusto Araujo


Naquele dia, eles eram os donos da casa. O pai, Euclides
Genoveva, cumpria seus afazeres de vereador e a mãe havia
saído para buscar um vestido que encomendara à irmã, a
costureira Maria do Rosário, conhecida como Maria do
Baixinho. A roupa seria o traje de gala na noite, quando ela
acompanharia o marido ao jantar na casa do prefeito, João
Marcelo César Carneiro.
Brincando naquele ambiente de prazer, brigas e
decisões, os garotos se depararam com uma publicação.
Sem dizer uma só palavra, folhearam-na da primeira
à última página, quase que sem piscar os olhos. Até que
Marcinho quebrou o silêncio:
– Que isso?
– Num sei! Não tô entendendo essa historinha.
– Por que eles tão sem roupas?
– Também não sei!
– Guarda isso onde tava, pois a mamãe tá quase
chegando. Se pegar a gente mexendo no quarto ela vai nos
bater.
– Não! Vamos levá-la pra escola amanhã.
– A mamãe?
– Não! A revistinha!
– Cê tá doido! Se ela ficar sabendo?
– Não vai saber. Eu vou levar pra alguém explicar a
historinha pra gente.

Balaio de Gato 73
– Por que a gente não pergunta pra ela ou o papai?
– Se perguntar vão saber que a gente brincou aqui
no quarto deles.
– É verdade!
João Paulo guardou a revista na mochila escolar.
Dez minutos depois, a mãe chegou e foi direto ao quarto.
Com o vestido no corpo, pediu a opinião deles:
– Como é que a mamãe ficou? Tô bonita?
– Tá! Mas a tia esqueceu de costurar esse lado da
perna?
– Ah, é assim mesmo! É o modelo do vestido.
Venham cá! A mamãe quer falar uma coisinha para vocês,
sentem-se aqui. Eu e o papai vamos jantar na casa do
prefeito e vocês terão que dormir na casa da titia.
– A gente não vai pra escola amanhã? – perguntou
João Paulo com um sorriso maroto.
– Lógico que vão!
– Eu não quero ir – reclamou Marcinho.
– Por quê?
– O Douglas bate na gente.
– Não tem que querer coisa nenhuma. Vão sim! –
encerrou a dona da casa.
Emburrado e fazendo bico, o caçula reclamou:
– Cê vai ver... A primeira coisa que o Douglas vai
fazer quando a mamãe for embora será bater na gente.

74 Luiz Augusto Araujo


– Acho que não.
– Por quê?
– Por causa da revista. Se a gente não apanhar,
podemos mostrar a ele.
Três batidas na porta interromperam o diálogo. Era
o pai a interrogá-los:
– A mamãe falou que vocês não querem dormir na
casa da tia Maria. Isso é verdade?
– Mas agora a gente quer.
A ressalva do irmão, fazendo-o lembrar da posse da
publicação, o fez mudar de ideia em relação ao pernoite fora
de casa. O primo poderia ser uma peça importante para
desvendar aquele mistério. Eles arrumaram os materiais
escolares, a mãe arrumou os uniformes e pijamas, e o pai
pegou a chave do carro.
Lá chegando, os meninos foram recepcionados por
Douglas, que gesticulava, disfarçadamente, movimentos
de cascudos na palma da mão. Marcinho ainda teve um
impulso de voltar ao colo do pai, mas a curiosidade em
decifrar o enigma da revista era maior.
Na despedida, o pai os beijou. A mãe, como não
queria borrar o batom, apenas os abraçou cuidadosamente
para não amassar o vestido. Maria do Baixinho colocou
as mãos na cabeça dos sobrinhos, como quem diz: “Estão
seguros comigo!”. E seu filho perguntou aos primos ao pé

Balaio de Gato 75
do ouvido:
– Tão com saudades dos cascudos?
– Temos uma coisa pra você, Douglas. Vamos lá no
quarto!
Chegando lá, disseram que mostrariam caso ele
prometesse não bater neles. A curiosidade o fez desarmar o
punho, que já estava pronto para desferir os cascudos:
– O que é que vocês têm?
– Uma revista! – respondeu Marcinho.
– Da Branca de Neve ou do Chapeuzinho Vermelho?
– perguntou com deboche.
– É uma que mostra fotos de pessoas peladas –
matou João Paulo a curiosidade do primo. Aliás, aguçou-a
ainda mais.
Douglas jurou ser bonzinho com eles caso
compartilhassem a publicação. Aliviados, os filhos do
vereador depositaram nele toda a esperança da resolução
do enigma. Embora fosse mais velho, o filho da Maria do
Baixinho nunca tinha visto coisa parecida. Juntos, eles
vistoriaram minuciosamente as páginas da revista. Por um
instante, entreolharam-se com contemplação e espanto,
voltando-se rapidamente para as fotos. Douglas foi o
primeiro a quebrar o silêncio com a exclamação:
– Então existe mesmo!
– O quê? Cê sabe por que estão pelados? – indagou

76 Luiz Augusto Araujo


João Paulo.
– Não sei não! Uma vez ouvi os meninos da 4ª série
comentando sobre um gibi mais ou menos assim. Mas não
entendi direito o que diziam.
– Então amanhã vamos mostrar a eles – sugeriu
Marcinho.
– Não vão querer falar.
– E se a gente pagar um lanche?
– Aí, sim, eles falam!
Aquela foi a melhor noite que os três passaram
juntos, principalmente para os filhos do vereador, que não
receberam os dolorosos cascudos de sempre. A ansiedade
deles para que a noite acabasse era a mesma do Sol.
No dia seguinte, a dona da casa nem precisou
acordá-los. Quando chegou ao quarto deparou-se com
todos de pé e com os uniformes no corpo. Encabulada,
perguntou:
– O que deu em vocês? Acordaram com as galinhas?
Ela ficou surpresa, pois, para despertar o filho e
os sobrinhos, quando estes pernoitavam em sua casa, era
preciso sacolejá-los por uns dez minutos. Outro fato que
a surpreendeu foi ver que os garotos apenas beliscaram o
café da manhã. A aflição deles por desvendar o mistério da
revista era maior do que o apetite habitual.
De todas as estranhezas (eu citei apenas algumas

Balaio de Gato 77
daquela manhã), uma em especial chamou sua atenção e a
deixou muito feliz: o entendimento do filho com os primos.
Ela fingia não ver, mas sempre soube que eles não se davam
bem.
Já dentro do Colégio Antônio Ferreira Goulart, eles
combinaram de se encontrar na hora do recreio, próximo
ao bebedouro, local onde falariam com os dois meninos da
4ª série. Antes da consulta, desembolsaram R$ 10,00 cada
um (o dinheiro do lanche) pela informação. A resposta veio
seca e direta:
– Estão fazendo sexo!
– O que é isso? – perguntou Marcinho.
– Vocês são muito figuras! Os jovens e adultos fazem
isso porque dá prazer e para ter filhos – responderam,
quase que simultaneamente, os contratados para resolver o
enigma da revista.
– Como assim? – questionou João Paulo.
O filho da costureira Maria do Baixinho até o
momento somente ouvia as explicações. Não havia feito
nenhuma pergunta, pois queria mostrar aos garotos da 4ª
série que ele tinha mais conhecimento do assunto do que
os seus primos.
– Seus pais fizeram isso para vocês nascerem –
exemplificou o garoto de óculos e piercing nas sobrancelhas.
– Mamãe diz que a cegonha é que traz a gente pra

78 Luiz Augusto Araujo


esse mundo – disse Marcinho.
Os meninos da 4ª série acharam graça. Douglas riu
também, talvez para comprovar que ele já sabia do teor da
revista, e emendou:
– Eu tentei explicar pra eles, mas não acreditaram
em mim – disse com sorriso no rosto.
– Mentira, Douglas! Você também não sabia! –
respondeu, ingenuamente, João Paulo.
Douglas arregalou os olhos e seu sorriso foi
embora... e se transformou em gargalhada no rosto do
garoto de óculos e piercing na sobrancelha.
O sinal soou anunciando o término do intervalo
do recreio. O filho da costureira Maria do Baixinho se
despediu dos garotos da 4ª série e ficou a sós com os primos,
informando-lhes que a revista passaria a lhe pertencer e
que não adiantaria qualquer tipo de contestação.
Sobre a resposta de João Paulo desmentindo-o e
promovendo aquele momento constrangedor, Douglas
até pensou em questioná-lo. Porém achou mais didático
lhe desferir um cascudo. E, para não parecer injusto e não
perder o costume, deu igual golpe em Marcinho.

Balaio de Gato 79
Um minutinho,
por favor!


– Alô! Gostaria de falar com o Dr. Gilvanci
Lopes.
– Um minutinho, por favor! Só um minutinho!
É a expressão mais inverídica que já ouvi. É sempre
assim: as pessoas pedem um minutinho e nos deixam um

80 Luiz Augusto Araujo


tempão esperando.
– Senhor!... O Dr. Gilvanci Lopes não se encontra;
só um minutinho que irei verificar se o Dr. Rolbério Borgué
poderá atendê-lo.
No Brasil é assim: basta cursar direito ou medicina
para ganhar tal titulação. Tem até engenheiro que faz
questão de ser chamado de doutor. Dia desses, até eu recebi
esse tratamento. Ao estacionar meu automóvel numa rua
do centro da cidade, um garoto veio ao meu encontro e
perguntou: “Quer que eu vigie o seu carro, doutor?”. Mesmo
contra a minha vontade, permiti e lhe agradeci com uma
nota de R$ 10,00.
A telefonista não me chamou de doutor e nem me
deu a atenção necessária. Eu estava com muita pressa e ela
já havia me feito esperar uns dez minutos. Apesar de estar
um pouco nervoso, aguardava em silêncio. Não iria me
descontrolar, pois raramente perco as estribeiras.
Há ocasiões em que o silêncio é a melhor atitude
de um homem educado. Até o momento, era. A moça não
me tratou mal, porém eu não suportava mais ouvi-la dizer:
“Um minutinho, por favor!”. Expressão falsa, mecânica e
desnecessária! A telefonista rezava um vocabulário moldado
pelos treinamentos de telemarketing.
– Senhor!... O Dr. Rolbério Borgué vai estar lhe
atendendo daqui a um minutinho!

Balaio de Gato 81
– Quanto gerundismo! Pensei comigo: de minutinho
em minutinho a galinha enche o papo. Aliás, o homem
enche o saco! O meu já estava estourando. De minutinho em
minutinho... eu já aguardava quase meia hora ao telefone.
– Alô! O senhor ainda está na linha?
– Não! Se eu ficar na linha o trem passa por cima de
mim. Fui apenas consertar o relógio porque ele não marca
os minutinhos corretamente – pensei em dizer. Todavia
a minha polidez reteve as palavras, que permaneceram
mudas e soltas no pensamento.
– Senhor!... Pintou um probleminha e o Dr. Rolbério
Borgué teve que sair neste instante – continuou a telefonista.
“Pintou”, “probleminha”... Provavelmente, o curso
de Secretariado ela não fez e talvez nem o de telemarketing.
– Isso quer dizer que não serei atendido? – questionei.
– No momento, não! Mas em alguns minutinhos ele
deverá estar de volta. Se o senhor quiser ligar daqui a alguns
minutinhos....
Respirei fundo e mordi o lábio inferior para não
dizer um palavrão, e perguntei:
– Qual é o seu nome?
– Telefonista Zélia Lopes, senhor.
– Tudo bem, Zélia! Ligarei depois, então. Muitíssimo
obrigado!
Uma das minhas finezas é chamar a pessoa pelo

82 Luiz Augusto Araujo


nome e não pela função ou cargo que exerce. Mesmo com
a educação exemplar, por mais que eu tenha me esforçado
não consegui esconder a minha indignação e, por isso,
soltei:
– Zélia Lopes!... Eu tive que esperar quase uma hora
ao telefone para você me dizer agora que não serei atendido?
Sei que, provavelmente, ela não teve culpa, mas eu
não poderia deixar de manifestar o meu desapontamento
naquele momento.
– Senhor! Eu não posso fazer nada! Caso o senhor
queira ligar mais tarde ou deixar algum recado... Aguarde
só um minutinho, por favor, que já anoto o seu contato para
que o senhor Gilvanci Lopes ou Rolbério Borgué possa lhe
retornar.
– Desculpe-me! Não precisa, eu só queria dizer
que...
– Senhor, só um minutinho, por favor! Estou com
outra ligação na linha. Daqui a um minutinho voltarei a
falar com o senhor. Aguarde só mais um minutinho, por
favor!
Desliguei o telefone. Não esperei nem mais um
minutinho nem um minutão!

Balaio de Gato 83
Autopapo 226


– Olá, Mercedes! Como está a Evasion, ou
melhor, a sua Voyage pela Europa? Ah, ontem você viu o
Eclipse solar?
– Oi, Atos! A viagem está Optima! Não vi não, quase
vi por aqui foi um Syclone, mas ainda bem que foi apenas

84 Luiz Augusto Araujo


um vento forte, Amigo. O meu Paseo está maravilhoso.
Assisti ao Grande Prêmio de F1 em Monza; conheci o Siena
de Paris e tive uma bela Vision do Rio Elba, que nasce na
República Tcheca e corre por toda a Alemanha. São lindos,
mas não chegam nem perto da beleza do nosso Amazonas.
– Qual foi o país que você mais gostou?
– Itália, é Clarus, especialmente as cidades de
Verona e a renascentista Ferrara. Lá aprendi a jogar Golf
e Polo.
– Quem te ensinou? Um Mini Hombre? Pode me
dizer, sem Rodeo!
– Um Celta lindo, Magnum, Grandis e Ford que
Captur o meu coração. Um verdadeiro Cavalier, que
conheci numa balada em Ibiza, na Espanha. Se bem que
ele tá mais para grego das Ilhas de Creta, pois parece um
deus Apolo.
– Quando foi para os Estados Unidos você conheceu
o super Patriot Nick, em Malibu, durante um Cooper.
Uma semana depois, ficou com Jimny, o Renegade. Em
poucos dias na Europa, você já arrumou outro amor? Você
tá Celere, Agile e Rapide demais. Já bateu o seu Record!
– Calibra a sua língua de Cobra, por favor! Kicks
tem com isso! Morris de ciúmes de mim desse jeito?
– Cruze-credo! Claro que não! Não precisa ficar
Feroza! Diga-me o nome deste novo Ghost.

Balaio de Gato 85
– O nome dele é Edge. Que hombre Gallardo!
Vivio suspirando por ele.
– Não é que eu esteja duvidando, Sable. Mas o seu
Kaiser não deve ser este Suprassumo todo que você tá
dizendo.
– Você não tá entendendo, o cara é o Master.
Primeiro achei que era uma Mirage, mas depois percebi
que era real. Uma joia Suprema, um Diamant, um Symbol
sexual, o mais lindo de toda a Gallaxie. Veja a foto que te
mandei no zap que você vai concordar comigo.
– Gordini esse Toro, né?
– Só pelo seu Prisma!
– Não adianta Defender!
– Aplause pra você! Que ciúme bobo é esse? Fica
Smart senão eu conto para a sua Matrix e divulgo o seu
Montez de casos para toda a Impreza.
– Que conVersa é essa? Eu e a Samara terminamos
ontem.
– Ela Discovery suas amantes? Foi a Niva, Laika,
Dodge ou Ignis, a sósia da Rita Cadillac? Essa era Topic!
– Essa era a Agnis, uma verdadeira Zafira.
– Qual foi o Lancer, então? Quero saber de tudo na
Integra.
– Uma crise de ciúmes por causa da Millenia, uma
colega de trabalho.

86 Luiz Augusto Araujo


– QQ isso! Fala de mim, mas você que é Veloster.
Você não tem vergonha na Face, não?
– Você sabe que não tem nada a ver.
– As recentes crises de ciúmes dela já eram um
Prelude para o fim do seu relacionamento.
– Ela é uma Chery lady! Mas...
– Mas é chata demais! Eu já Previa que isso ia acabar
acontecendo porque ela Exige demais de você, te Protege
de tudo e de todos.
– Realmente é Maxima possessiva.
– Eu sabia que o casal “Tom Cruiser e Dani Suzuki”
não tinha futuro. Levante a mão para o céu e agradeça.
Quer saber? Foi Vantage pra você o fim dessa relação.
– Estou processando na minha memória RAM. A
ficha ainda não caiu. Mas... bola pra frente!
– Essa decisão é só por conta de crises de ciúmes?
Será que não tem nada a ver com o JAC, o ex dela?
– Não! Sem chances! Ele saiu do armário e namora
o Onix Gurgel, um cara fortão, todo FIT.
– Soul a última a saber das coisas! Aquele Amarok,
um Virtus devorador de mulheres, então é....
– É! Ah!... Lembra do Kyron Lincoln, aquele que
estudava com a gente no terceiro ano, que bancava o
machão e tinha cara de Brabus? Também saiu do armário.
– Estou Besta!

Balaio de Gato 87
– Só não foi notícia no Journey inglês Daily Mail,
mas por aqui todos ficaram sabendo.
– Tudo bem! Vamos voltar a falar de sua Odyssey
por aí, desse seu Cronos pela Europa. Você estava dizendo
do deus grego Samurai, lutador de Boxer, o dono de uma
beleza Infiniti e tantos outros adjetivos. Ele te ensinou o
que mesmo? Qual Sportage?
– A jogar Golf e Polo.
– Acho que matei a Charade, pois, de Accord com
os meus conhecimentos, para se jogar Polo é preciso March
e saber Galloper. Você aprendeu? E quando você jogou
Golf ele conseguiu marcar o Gol, quero dizer, conseguiu
acertar o buraco de primeira?
– Que Idea é essa? Nem adianta insinuar, não rolou
nada! Pelo menos por enquanto... (risos). Mudando de
assunto, me conte sobre esse Tempra D20 dias que estou
fora do nosso Brasil Continental, um país de pouco mais
de 500 anos, tão jovem comparado aos daqui do velho
continente.
– A política continua daquele jeito!
– Além da corrupção dos políticos em Brasília,
alguma coisa Mondeo na City? Ah!... Minha irmã Santana
e o namorado dela, o Avallone Montero, estão lhe
mandando um abraço!
– Um abração pra eles também! Minha Tiida Vera

88 Luiz Augusto Araujo


Cruz também lhe manda beijos. Semana que vem ela se
mudará para São Paulo, vai morar em Interlagos. Ah!
Tenho algumas novidades. Accent aí! Primera você Sentra
porque não vai acreditar!
– O quê? Conte-me tudo, meu Dakota Candango!
– Minha vida teve uma mudança de C180 graus.
Ando frequentando algumas Fiesta!
– Quais?
– Aquelas Hilux de Classe A, em que só Transit
Diplomata, Marajó e gente Fluence. O papo deles é casa de
Camper, Veraneio, pesca no Pantanal, Stratus bancários
das Ilhas Cayman, compras em Nova Yorque, casinos de
Las Vegas e Punto del Este.
– Nossa! E você leva a galera Deville, a Caravan de
amigos do Suburban?
– Já levei o Spyder, o Cielo e o Dart, mas na maioria
das vezes vou sozinho e com muito Stilo. Faço o Tipo
Galant, uso Blazer e vou com muita Classic. Você precisa
ver o Trajet! Pareço um Le Baron.
– Qual é o seu papo com essa gente? Videogame?
Mario Bros, Street Fighter, Sonic?...
– Não! Conversamos sobre viagens, política, artes,
quadros de Picasso, Leonardo da Vinci, Portinari, óperas,
Sonata... e por aí vai.
– O que mais você está aprontando?

Balaio de Gato 89
– Minha Santa Fé valeu! Consegui me ingressar nas
Forças Armadas; agora sou um Kadett. Tive que cortar o
cabelo e aproveitei para dar um Up no visual. Ah, outra
coisa... as farras já são coisas do Passat.
– S10, que bom! Fico feliz por você. Estou até
imaginando Escort de cabelo seu, mas, Ka entre nós, as
farras acabaram mesmo? Nem quando você tinha namoro
sério você sossegava.
– Sim, acabaram mesmo!
– Espero que você não tenha ficado tão bitolado
a ponto de não sair mais pra balada e abandonar de vez
a nossa galera. É nisso que dá ficar envolvido só com os
bacanas!
– Não! Não parei com tudo também não!
– Tá certo! Conte-me uma coisa: essa carreira
militar é séria mesmo?
– É sim! O meu Focus é ser Uno Astra principal
da Força Aérea Brasileira. Ninguém vai ser Pálio pra mim!
Meu brilho oFuscará a todos.
– Nossa, que Neon! Tudo está uma Bonanza? A
Marea está pra tanto peixe assim?
– Eu tô brincando! Não precisa ficar Brava.
– Você é que parece Bravo, Tico!
– Não estou, mas posso ficar se você me chamar
novamente por apelido.

90 Luiz Augusto Araujo


– Desculpe-me! (risos)
– Quando você vem Bora para o Brasil?
– Logus! O Brasil é meu Omega. É só o prazo de
arrumar um probleminha que tive no Passport. Acredito
que no Carnival já esteja por aí. Que saudades da fazenda
do meu avô no Tocantins, do cheiro do mato, da Sierra, do
ambiente Agrale, Rural!
– E as praias?
– Ah! Rio de Janeiro!... Ipanema, Copacabana...
Aquele Panorama, a Laguna, aquele maravilhoso hotel
com vista para o mar. Nós vamos juntos pegar a Strada
num fim de semana para irmos ao Rio, não vamos?
– Claro que sim! Vou conTiggo!
– Acho que vou ficar no Rio pelo menos 147 dias
seguidos, apesar da minha vontade de estar aí de 207 a 307
dias por ano. Quero também visitar uma velha amiga em
São João Del Rey. Vamos Mobilizar todo mundo aí pra
irmos juntos. Tô com muitas saudades de você e de toda a
galera.
– Do Logan também? Ele pode ser Acura para a
ausência do Edge, quando você vier embora.
– Só de lembrar faz um Spin na minha cabeça. Para!
Isso é Nitroglicerina! Essa Fusion não rola mais! Agora
estou Compass, só tenho olhos para o meu europeu. (risos)
– Sei... Acredito no seu Argomento! Você disse a

Balaio de Gato 91
mesma coisa daquele americano, Sprinter Outlander, que
veio de Silverado.
– Ele era de Montana! Mas agora é diferente!
– Sei... Ah! Quando você chegar aqui não quero sair
do seu lado. C 10, sabia?
– Você que é maravilhoso! Vou ter que sair agora e
depois volto a ligar Parati!
– F1000 beijos!
– Doublo de beijos para você!
– Deus te Lumina!
– A você também. Tchau!

92 Luiz Augusto Araujo


O comprimido
branco

Adriano Bizinoto, filho de Dona Luciana do


Zezinho, não tinha mais aquela insuportável dor de cabeça.
Sentia apenas uma leve dorzinha. Dava até para balançar a
cabeça sem ficar tonto. O jovem, conhecido pelo apelido de
Capirracho, sentia também um gosto estranho no paladar.

Balaio de Gato 93
Naquela manhã, por duas vezes, ele pediu licença
ao professor Weverton Guimarães para ir ao bebedouro. A
cada gole d’água a sensação áspera na língua ia sumindo,
mas o amargo permanecia. A sensação era de que parte
do comprimido tinha se esfarelado e alguma substância se
impregnado em sua boca.
O amargo continuava também em sua mente, pois
já não conseguia mais prestar atenção na aula. Ele negava-
se a descobrir as soluções da matemática. A grande questão
do momento era decifrar aquele gosto horrível penetrado
em seu paladar.
O comprimido era branco e do tamanho de um
botão de camisa. “Seria um produto falsificado?” – indagou
a si mesmo em pensamento. A suspeita foi descartada
porque não se tratava de um medicamento em cápsula,
tipo mais suscetível à fraude. Se essa hipótese, inicialmente,
estava fora de cogitação, veio à sua mente a possibilidade
de o remédio estar vencido. Só tinha um jeito de descobrir:
saber qual era o nome desse medicamento.
O professor incumbiu o aluno Dyheizon (ou
Dieizu, como os familiares e amigos soletravam) de buscar
o remédio na secretaria do colégio. A dor de cabeça de
Capirracho era tão intensa que o impedia de se levantar da
carteira. Quando Dyheizon chegou com o medicamento, o
filho de Dona Luciana do Zezinho o ingeriu imediatamente,

94 Luiz Augusto Araujo


sem verificar o nome ou a procedência do mesmo. Sabia
somente que o comprimido era branco.
Ao ser questionado sobre o nome do medicamento,
Dieizu (nome assim também grafado na maioria das vezes
por familiares e amigos) disse não se lembrar... pensava que
era Novalgina. “Não pode ser!” – pensou Capirracho, pois o
amargo que estava sentindo era diferente. Então perguntou
pela cartela ou caixa do remédio. Um pouco nervoso, o
colega respondeu que os tinha jogado no lixo do banheiro.
A dúvida e a curiosidade se juntaram na cabeça
do filho de Dona Luciana do Zezinho. A dor tinha que
ser controlada, pois ele precisaria exercitar o cérebro
para decifrar o mistério do comprimido branco. O jovem
aproveitou para se ausentar da sala no intervalo entre uma
aula e outra – antes da chegada da professora Elisabete
Gonçalves, que além de dar aulas no Colégio Estadual Lara
do Caefa, trabalhava também como caixa numa cooperativa
de crédito do Sicoob.
O aspirante a Sherlock Holmes foi até o local de
descarte da caixa do medicamento informado pelo colega e
não encontrou nenhuma pista. Chegou a verificar com uma
funcionária, dona Maria Hilda Sobrinho, mãe do Cabelinho
e do Bonezinho, meninos mais fominhas por futebol do
colégio. Ela, que vivia em pé de guerra com a dona Ana
Rosilda, outra funcionária da limpeza, deu a primeira pista:

Balaio de Gato 95
– Sou eu que limpo lá. Ninguém mais! E eu só
recolho o lixo dos banheiros masculino e feminino quando
está terminando a última aula do dia. Ainda não fui lá.
– “O Dieizu mentiu!” – exclamou Capirracho em
pensamento, sem transformá-lo em palavras para não
estender a conversa com a boa senhora, que era boa de
prosa.
O colega que havia dado a falsa informação era um
pouco problemático. De família rica, o jovem tinha um
corpo esquálido e era um pouco corcunda. Usava óculos e
não se dava muito bem com as mulheres, embora ostentasse
belos carros e roupas de grife. Os cabelos longos escondiam
as grandes entradas na testa, que anunciavam uma provável
calvície adulta. Não sei por que os ricos, que compram a
maioria das soluções, ainda assim, se envolvem em tantos
problemas.
O próximo passo das averiguações de Capirracho
foi certificar-se na pequena farmácia do colégio, sobretudo
verificar com detalhes e atenção aqueles lotes recomendados
ao combate à dor de cabeça. A responsável pela secretaria, a
senhora Leolina Maria Abadia, mostrou-lhe todo o estoque
e fez uma revelação surpreendente, presenteando-o com a
segunda pista:
– Ninguém buscou nada aqui! Posso garantir a
você que nenhum remédio foi retirado, hoje, aqui da nossa

96 Luiz Augusto Araujo


farmacinha.
Essa afirmação fez mudar os rumos das
investigações. Durante o intervalo do recreio, o aspirante
a Sherlock Holmes passou a seguir o colega para ver se
encontrava novas pistas sobre a origem do comprimido
branco. De longe, viu Dyheizon se divertindo com os amigos
Tony Ibica, Carol Brunnete, Nando Ganso, Leandro Jean
James, Chicones, Paulo de Divinópolis, Leo da Academia,
Marco Aurélio Neto e Renatão Araguaína. Pressentiu que
estivessem falando a seu respeito. Todavia, quando se
aproximou, eles encerraram a conversa. Em silêncio, todos
ouviram o sinal, anunciando o retorno à sala de aula.
O filho de Dona Luciana do Zezinho percebeu que
as pontas dos dedos do suspeito estavam sujas de um pó
branco. “Será que o cara tá mexendo com drogas na escola?”
–pensou. Embora as evidências pudessem incriminar o
colega, sua intuição de detetive revelava que, desse crime, o
garoto rico e problemático, de corpo esquálido e um pouco
corcunda, era inocente.
Já dentro da sala de aula, Capirracho lhe perguntou
sobre a conversa com os amigos envolvendo o seu nome.
Arqueando as sobrancelhas e com cara de espanto,
Dyheizon disse que não haviam comentado nada a
respeito dele. Ao término da aula, o filho de Dona Luciana
do Zezinho permaneceu na sala, pois precisava de mais

Balaio de Gato 97
indícios para as suas investigações. E o aspirante a Sherlock
Holmes descobriu uma nova pista: as digitais na carteira
onde o suspeito havia se sentado.
Com igual observação de um técnico da Polícia
Científica, o estudante examinou o material e constatou
que o pó branco na carteira tinha o mesmo amargo de sua
língua após a ingestão do comprimido.
Ao finalizar a perícia no local, já a caminho do portão
da escola, Adriano Bizinoto, que era conhecido pelo apelido
de Capirracho, se deparou com a última e decisiva pista,
que o ajudaria a desvendar de uma vez por todas o caso. Ele
encontrou uma ponta de giz mal esculpida no formato de um
botão de camisa, no corredor próximo ao banheiro masculino,
desvendando, assim, a origem do comprimido branco.

98 Luiz Augusto Araujo


Palavras para
Karinne

No início do nosso namoro eu a chamava


de Karina apenas para vê-la brava. Irritada, ela dizia que
Karina era nome de xampu e explicava que o seu nome era
Karinne e, ainda por cima, com dois enes. O n a mais na
grafia não sabia aclarar. Eu pensava comigo: “Deve ter sido

Balaio de Gato 99
um erro de digitação do funcionário do cartório no qual ela
fora registrada, ou um simples capricho dos seus pais no
intuito de dar um tom estrangeiro ao seu nome”. 
O fenômeno da globalização deu mais força à
introdução de termos estrangeiros em nosso vocabulário.
Eu procuro não abusar desse estrangeirismo e prova disso
foi como grafei a palavra xampu no início do primeiro
parágrafo.
Quando começamos a nos relacionar, eu queria
apenas curtir o momento e fingia não sentir algo mais forte
por ela. Assim começou o nosso namoro: ela doando e eu
recebendo. Eu tinha pouco a oferecer, mas era o bastante
para ela. Hoje, acho que o meu tudo apenas a completa.
No início, para ter certeza do nosso amor, estivemos
separados por algumas vezes. O último pedido de tempo
para termos a certeza do sentimento foi suspenso,
rapidinho, pela certeza de que não há certezas na vida a
não ser a certeza de que, muitas das vezes, temos medo de
fazer a coisa certa.
Amadurecemos a nossa relação, a paixão se
cristalizou em amor, veio o casamento e, anos depois,
fomos presenteados por Deus com duas princesas: a Maria
Gabriela e a Ana Beatriz. Nossa união não é perfeita, temos
altos e baixos, como acontece com todos os casais. Mas
quando estamos num mesmo propósito, na mesma direção,

100 Luiz Augusto Araujo


com respeito e amor, fica mais fácil superar as dificuldades
do casamento.
Karinne é alguns milímetros mais alta do que eu,
talvez por isso raramente usa salto alto. Ela também nunca
se comporta “de salto alto”. Uma grande mulher em todos
os sentidos. Ela avalia parte dos meus textos, dá sugestões
e até pitacos. Algumas vezes, ela demora muito a dar o
retorno. Como sou uma pessoa calma, consigo esperar por
suas análises. Karinne lê também os meus olhos e, às vezes,
consegue até decifrar os meus pensamentos.
Desde o nosso namoro, ela sempre me pediu para
lhe dedicar algum registro. Karinne queria se ver em algum
dos meus contos, crônicas ou poemas. Embora eu tenha me
formado jornalista e tido o sustento, até o momento, com a
construção de textos, sempre tive dificuldades em construí-
los para ela.
Mesmo com o passar dos anos, a minha amada nunca
se esquecia de me pedir escritos; chegava até a me sugerir
temas. Eu até pensei em colocá-la como personagem de uma
das minhas histórias, porém tinha receio de que a ficção
se tornasse realidade, pois, na minha incipiente literatura,
quase sempre arquiteto finais irônicos ou traumáticos. E,
também, sentia receio de acrescentar-lhe características
inidôneas ou cair no ridículo de, simplesmente, transcrever
a sua personalidade.

Balaio de Gato 101


Deixei para dedicar um texto a Karinne somente
em seus 40 anos de vida, comemorados em março de
2019, aproximadamente duas décadas depois de prontos
a maioria dos textos deste livro. Como já referi, sou uma
pessoa calma; eu sei esperar.  Aguardei por quase 20 anos
para publicar o Balaio de Gato. Acho que a demora foi
positiva, pois assim tive tempo de relê-lo, alterar nomes
de personagens e estruturar melhor alguns textos, além de
inserir novos contos. Por falar em esperar, espero que você,
caro(a) leitor(a), esteja apreciando a leitura deste livro.
Eu esperei para homenagear minha esposa quando
ela comemorou os seus 40 anos de vida. Treze deles vividos
comigo sob o mesmo teto e lendo a maioria dos meus
textos, com exceção deste “Palavras para Karinne”, ao qual
ela somente terá acesso quando o livro estiver publicado.
É verdade que não a levei ao meu mundo fictício.
Entretanto a coloquei na melhor das histórias: a minha.
Uma história ainda incompleta, que passou a ser escrita a
quatro mãos com amor, respeito e cumplicidade.
Somos personagens do mundo real. O nosso
romance não se tornará  best-seller  nem roteiro de filme,
mas, com certeza, já está inscrito para sempre nas páginas
do nosso destino.
 

102 Luiz Augusto Araujo


Clube Catuaba


Henrique Cairo, o filho da costureira
Darcy e o primo Xandrinho reuniam-se todas as quartas-
feiras atrás dos tanques abandonados de piche, no fundo
de um centro comunitário. Naquele local funcionava o
Clube Catuaba, instituição restrita aos três amigos, que se

Balaio de Gato 103


autointitulavam “Os três mosqueteiros”.
A sede era ao ar livre e tinha como mobília quatro
caixas velhas de madeira, três utilizadas como poltronas
e uma na vertical, servindo de tribuna. Antes, elas eram
usadas para armazenar verduras e legumes no Verdurão
da Marinalva do Idalízio, ao lado do Boteco do Ronegol. A
boa senhora fez a doação aos garotos a pedido da jornalista
Virna Laura Terreziê Moreira, mãe de Xandrinho.
O clube dividia a tranquilidade do bairro Humberto
Garcez, distante do Centro, com o Campinho da Nova, nome
do mais recente estádio de várzea da cidade, construído
pelos Fatintas – turma mais fominha por futebol da região
e mais briguenta também.
As reuniões no Catuaba tinham vários temas e
objetivos, às vezes banais e até excêntricos! Muitas vezes,
o local era palco de discussões acaloradas que, por pouco,
não ultrapassavam o limite dos debates. Henrique Cairo era
o atual presidente. Em sua gestão, diversos projetos foram
apresentados, o maior deles propunha a construção de um
parque de diversões.
 – Se os Fatintas constroem campos de futebol, por
que não podemos fazer o nosso parque? – discursou, na
tribuna, com gestos e postura de presidente que era.
A ideia, acatada pelos sócios, foi barrada pela
jornalista Virna Moreira, que constatou, numa auditoria

104 Luiz Augusto Araujo


maternal, que eles não dispunham de verbas suficientes
para a conclusão das obras. Os recursos do clube eram
provenientes de 20% da mesada de cada um de seus
membros.
Henrique Cairo contava com 11 anos de idade; o
primo, 9, e o filho da costureira Darcy, que aparentava uns
7, tinha na verdade 10 anos.
Depois do veto, os membros discutiram, em duas
sessões extraordinárias, as alternativas para a viabilização do
empreendimento. Também abordaram sobre a ingerência
familiar no clube, sobretudo a interferência das mães. No
fim da reunião, o filho da costureira Darcy, depois de um
movimento abrupto, levantou-se de sua poltrona e correu
em direção à tribuna. Raspou a goela e chamou a atenção
dos demais presentes:
 – Senhores! Eu tive uma ideia, uma grande ideia!
O presidente e o primo se entreolharam e, curiosos,
voltaram-se ao orador.
 – Faremos, sim, o nosso parque! Não grandioso e
moderno como queríamos, mas o faremos com certeza!
  – Você propõe fazermos o quê? – questionou
Henrique Cairo.
 – Concluiremos o projeto, trazendo-o para a nossa
realidade orçamentária. Iremos aproveitar o Campinho da
Nova e os tambores de piche.

Balaio de Gato 105


  – Como? – perguntaram ao mesmo tempo os
demais mosqueteiros.
  – Nas traves horizontais dos gols amarraremos
cordas; em suas pontas, pneus, que serão os nossos balanços.
  Xandrinho pulou e o aplaudiu de pé, gritando:
bravo!
Também pudera!... O filho da costureira Darcy fez
um discurso eloquente e emocionante.
 – E não é só isso! – continuou ele – Podemos usar
o meio do campo para soltar pipas e também como pista
de corrida. Ah!... e os tambores de piche, que até então
serviram somente para sombrear nossas cabeças, poderão
ser transformados em montanha-russa.
  – Como assim? E os carrinhos? – indagou o
presidente do Catuaba.
  – Serão os nossos próprios pés, equipados com
patins e motorizados com a nossa imaginação – encerrou,
brilhantemente, o seu discurso.
As obras do parque foram aprovadas e iniciadas no
dia seguinte. No entanto, o maior e mais audacioso projeto
do Clube Catuaba foi interrompido mais uma vez. Dessa
vez o embargo não veio da “vara familiar”, mas, sim, pela lei
das ruas, ditada pelos Fatintas – a turma mais fominha por
futebol da cidade, e briguenta também.

106 Luiz Augusto Araujo


Carteira de
motorista
 

Para Sérgio do Maurinho, amigo de Thiago


Fernando, um homem sem automóvel é igual a cachorro.
Se bem que alguns cães vivem em melhores condições do
que muita gente nos dias de hoje. No fundo, no fundo há,
basta procurar... No fundo, o jovem queria dizer que a vida

Balaio de Gato 107


amorosa de um rapaz solteiro era muito difícil sem um
carro.
Os automóveis sempre mexeram com o imaginário
masculino. Na adolescência, o meio de transporte é tido
como um instrumento para facilitar as conquistas amorosas.
Na fase adulta, é sinônimo de sucesso profissional e, na
velhice, é pura necessidade mesmo.
Contudo para usá-lo e usufruir de suas benesses
não basta somente tê-lo, pois é preciso saber guiá-lo e,
principalmente, possuir permissão para isso. Aos 26 anos
de idade, Thiago Fernando tinha recém conquistado o
diploma de Engenharia Civil, mas ainda lhe faltava outro
importante certificado: a Carteira Nacional de Habilitação
(CNH).
O primeiro passo do processo para consegui-la era
passar no exame psicotécnico. Apesar de estar tranquilo no
teste, o jovem sentia um pouco de medo. Na verdade, era
receio das possíveis brincadeiras e comentários dos amigos
sobre a sua sanidade mental, caso fosse reprovado – o que
não aconteceu, para o seu alívio.
O passo seguinte era ser aprovado no exame teórico.
As aulas de legislação de trânsito foram ministradas por
Iranoel Souza, instrutor e proprietário da  Autoescola
Bom Jesus, localizada na Avenida Afonso Pena, no Bairro
Brasil, em Uberlândia (MG). A julgar pelas roupas, ele era

108 Luiz Augusto Araujo


de religião evangélica. Andava sempre impecável: calça
de linho, cinto combinando com os sapatos muito bem
engraxados, camisa de algodão sempre com o primeiro dos
botões abotoado, sufocando o pescoço.
Seus gestos eram descompassados e a sua voz, rouca.
Faltava-lhe vocabulário e sobravam erros de português. Mas
uma coisa fazia muito bem: sabia transmitir o conteúdo
como ninguém. Ele deixava comendo poeira qualquer
doutor em legislação de trânsito.
Infelizmente, Iranoel não ministrava aulas de
direção. Essas eram dadas pelo instrutor Celso Mário de
Saulo, que não tinha a eficiência de Iranoel, mas pelo menos
era paciente.
Após algumas semanas, a prova prática de direção
para a obtenção da CNH foi agendada. Seria no início de
dezembro de 2001. Thiago Fernando preferiu adiá-la, pois
começaria, imediatamente, a trabalhar em Goiânia (GO).
Depois optou por transferir o processo para a cidade com
o maior número de mulheres bonitas por metro quadrado
do Brasil.
Ao se mudar para a capital de Goiás, o jovem
engenheiro levou consigo a documentação do processo
de habilitação, iniciado no Detran-MG. Em todos os
estados brasileiros há uma unidade do Detran, que é o
órgão responsável por realizar os exames que determinam

Balaio de Gato 109


se o candidato está ou não habilitado a conduzir veículos
automotores terrestres em território nacional. Cabe ao
Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) expedir a
Carteira Nacional de Habilitação (CNH).
A primeira autoescola goiana procurada por Thiago
Fernando não se interessou pela papelada. O atendente da
segunda lhe disse que a documentação estava incompleta. O
dono da terceira empresa procurada informou não constar
no “sistema” que o jovem fizera o exame psicotécnico. Por
fim, a estagiária da quarta autoescola consultada afirmava
que estava faltando ao jovem fazer a avaliação teórica do
processo.
No outro dia, ao chegar no trabalho, Thiago
Fernando foi recepcionado pela arquiteta Kalyne Rodrigues,
que lhe recomendou a cidade de Aparecida de Goiânia
como solução. Para reforçar a indicação, ela lhe contou que
havia sido reprovada no exame final do Detran oito vezes
em Goiânia e que, ao realizar a prova na cidade vizinha,
fora aprovada de primeira. A história dela foi suficiente
para convencê-lo.
Na manhã seguinte, o jovem já estava no município
à procura de um Centro de Formação de Condutores –
como passaram a ser denominadas as autoescolas após
a entrada em vigor do Novo Código de Trânsito –, onde
ouviu os mesmos absurdos de antes. Todas as autoescolas

110 Luiz Augusto Araujo


ou Centros de Formação de Condutores queriam lhe
arrancar mais dinheiro. Cabeça dura que era, ele colocou o
último pingo de esperança nas mãos do pai, que morava em
Araguari (MG), e sempre “batia na mesma tecla”:
– Eu já falei pra você, Thiago! Traga isso aqui para
Araguari. Além de continuar no Detran de Minas Gerais,
é pertinho de Uberlândia, onde você começou o processo.
Se precisar ir lá buscar algum documento eu vou pra você
e resolvo.
– Será que é uma boa ideia?
– Claro que é! Você não me escuta, tô te falando isso
há um tempão. Aqui o pessoal das autoescolas dá um jeito!
  Os profissionais de Centros de Formação de
Condutores da cidade deram um jeito; um jeito de tapear o
pobre do pai do jovem engenheiro, convencendo-o de que
seu filho teria que realmente gastar mais dinheiro com as
taxas pagas dos exames já realizados.
Quando Thiago Fernando já estava quase se
entregando... quando os cálculos do tempo perdido o
convenceram de que, devido à sua insistência, já tinha
desembolsado o dobro do que as empresas do segmento
queriam lhe usurpar, ele teve mais um suspiro de esperança.
Talvez o último golpe de resistência! Decidiu procurar
pessoalmente o presidente do Detran-GO e narrar toda a
sua luta na tentativa de transferir o seu processo da CNH

Balaio de Gato 111


de Minas Gerais para o Estado de Goiás.
A resolução foi sugerida por Priscila Araujo, da
assessoria de comunicação da presidência do órgão, que
ouvia a conversa de longe, tomando um cafezinho. Ela se
ofereceu para ficar com a documentação; procuraria uma
empresa, filiada ao sindicato, para concluir aquele processo.
– Você tem preferência por algum Centro de
Formação de Condutores? – perguntou.
Àquela altura dos acontecimentos a indagação
soava muito mais como ironia.
– Sim, um competente e honesto – disse o jovem
engenheiro, que conseguiu ser ainda mais irônico.
  Por ironia do destino, a assessora conseguiu
encontrar uma autoescola, ou melhor, um Centro de
Formação de Condutores que soube conduzir a transferência
da documentação para Goiânia sem extorquir um centavo
de Thiago Fernando, para o seu alívio e alegria.
A  sua prova prática de direção foi marcada,
coincidentemente, para o mesmo dia e horário do exame
teórico da sua colega de trabalho, Helena Negri. Ela se
saiu bem; ele não. Thiago Fernando não chegou a fazer a
avaliação. Inacreditavelmente, seu  nome não constava na
lista de candidatos daquele dia.
A alegria com o Centro de Formação de Condutores
durou pouco e se desfez quando o jovem engenheiro

112 Luiz Augusto Araujo


chegou ao local da prova e não pôde fazê-la. Perdeu a
“viagem” e quase perdeu também a cabeça quando ligou
no  estabelecimento para reclamar do ocorrido. Pouparei
você, caro(a) leitor(a), do vocabulário chulo utilizado e,
por isso, não divulgarei o conteúdo do diálogo proferido
na ligação. Como autor da história, eu até poderia revelar
o nome da empresa porque a conheço muito bem, todavia
prefiro não a expor. Apenas digo que o nome é o mesmo de
uma capital sul-americana; a organização também.
Mais uma vez, a incompetência dos profissionais
que atuavam no segmento de formação de condutores
havia dado a Thiago Fernando um novo motivo para odiá-
los ainda mais.
No dia seguinte,  ele  recebeu a notícia de que
a sua amiga havia sido aprovada no teste teórico. Por
coincidência, a prova prática de direção deles, a última
etapa para obtenção da CNH, aconteceria na mesma
semana. A da Helena Negri, numa quinta-feira e a dele no
dia seguinte. “Já pensou se ela, que nem sabe dirigir direito,
passar no exame e você ser reprovado?” – indagou, com
tom de ironia, o colega também engenheiro e músico,
Guilhermino Bicalho.
Thiago Fernando achou graça. O que ele não gostou
foi de ver a profecia do amigo se confirmar.
Com a notícia da sua reprovação ele quase desistiu.

Balaio de Gato 113


Parou, pensou e se lembrou do amigo, filho do Maurinho.
Isso foi suficiente para estimulá-lo a continuar sua luta para
obter a tão sonhada CNH. Um mês depois, ele travou a
sua batalha final e chegou ao trabalho com a boa notícia.
Finalmente poderia bater no peito e dizer que estava
habilitado para conduzir um automóvel. Só tinha um
detalhe: ele não o possuía, ainda.
Sua carta de motorista, conquistada com muita
persistência, não lhe garantiria a alforria do transporte
coletivo, o famoso busão. A liberdade somente foi
conquistada um ano depois, quando comprou o seu
primeiro automóvel – um Corsa Chevrolet, usado, branco,
ano 2000. Ao dirigir o carro pela primeira vez ele recordou
o que dizia o amigo Sérgio do Maurinho.
Foi somente a partir desse momento, aos 27 anos
de idade, que Thiago Fernando passou a viver uma vida
melhor que a de um cachorro.

114 Luiz Augusto Araujo


O passageiro da
poltrona 34

Era perto das 12 horas. Augusto Yuri se


despedia da família. Da mãe, ganhou beijos e lágrimas no
ombro durante um longo e caloroso abraço. O adeus do pai
e dos irmãos foi apenas monossilábico. O tapa nas costas do
amigo Stênio, do Chevette vermelho, como sinal de partida,

Balaio de Gato 115


finalizou a cerimônia. O estudante repetia esse ritual todas
as segundas-feiras, dia em que retornava a Uberlândia, em
Minas Gerais, onde cursava jornalismo.
Na bagagem, além dos sonhos, levava uma porção
de feijão cozido, bifes temperados, meio quilo de tomate,
duas cenouras já raladas e um bolo de fubá. Em outro
compartimento da mala, Augusto acomodava as roupas,
lençóis, toalhas e um novo perfume que havia comprado
com desconto na Loja do Naka, onde a sua tia Marina Nilde
de Olivânia trabalhava.
Já saindo em direção à rodoviária de Catalão ele
deu um último abraço em sua mãe, que derramou nova
quantidade de lágrimas. As mães são todas iguais, sempre
choram pela cria. O pai ofereceu ajuda com a mala. O filho
dispensou, dizendo que ela não estava tão pesada assim.
Mentiu! Preferiu carregar a bagagem para evitar mais peso
na consciência, pois sabia que sua estadia em outra cidade
já era bastante pesada ao pai e a toda a família.
  Ao chegar à estação rodoviária, Augusto dirigiu-
se ao guichê da Expresso Araguari. Como de costume,
pediu ao funcionário que emitisse o bilhete da poltrona
33. O número não tinha nenhuma relação com algum
tipo de superstição. A explicação do estudante, quando
perguntado sobre o motivo da preferência, era de que o sol
não alcançava o assento naquele horário.

116 Luiz Augusto Araujo


Outro detalhe em suas viagens era o fato de que
raramente tinha a companhia de belas mulheres na
poltrona ao lado. Deus nunca atendia as suas orações de
embarque. Daquela vez ele foi só. Não ganhou a presença
de uma linda garota ao lado, como sempre sonhou, mas
em compensação teria mais espaço para esticar os ossos e
dormir durante o itinerário.
 Como diz o dito popular: “felicidade de pobre dura
pouco”. A de Augusto terminou na saída do município
goiano com o ingresso de um homem que se acomodou
na poltrona de número 34. Assim que o ônibus retomou
a aceleração, o cobrador levantou-se para conferir os
bilhetes. O estudante de jornalismo se adiantou enquanto o
passageiro ao seu lado, que mal entrara no veículo, já dormia
profundamente e seria incomodado pelo funcionário da
Expresso Araguari.
– O senhor já tem passagem? – presumiu o cobrador
com o bloco nas mãos se prontificando para vender o
bilhete.
– Senhor! – chamou mais uma vez. E mais uma vez
em vão.
O “homem dos autógrafos” o deixou para depois
e foi rubricar outros bilhetes. Ao retornar, o empregado
do expresso interestadual fitou o estudante, como quem
perguntasse o que fazer naquela situação. Augusto apenas

Balaio de Gato 117


arqueou as sobrancelhas e levantou os ombros. Não tinha o
direito nem o dever de se intrometer.
As pessoas se divertiam com a situação. Alguns
até desistiram da soneca para acompanhar a cena entre
o passageiro da poltrona 34 e o cobrador, que, irritado,
aumentou o tom de voz:
– Senhor, senhor, acorda, acoooorda!
– Ele morreu, ele morreu! – uma voz veio do fundo
do ônibus acompanhada de gargalhadas.
O cobrador ousou até bisbilhotar o bolso da camisa do
passageiro na esperança de encontrar o papel tão requisitado.
Não encontrou. Não encontrou também o bom senso, pois
começou a gritar e a sacudir o dorminhoco, que roncava feito
uma vitrola velha. Com o insucesso, o funcionário retornou
à cabine do motorista e não voltou mais. Talvez tenha ficado
com vergonha dos demais passageiros ou simplesmente
decidido verificar o bilhete quando o passageiro acordasse.
Na estação rodoviária da cidade de Araguari, o
motorista parou no boxe 12 e lá ficaria por 15 minutos
até retomar a viagem para Uberlândia. Com exceção de
Augusto e do passageiro da poltrona 34, todos desceram
do veículo. Alguns porque era o destino final; outros para
comer alguma coisa ou ir ao banheiro. O estudante de
jornalismo lia uma revista, quando foi interrompido:
– Por favor, que horas são? – perguntou o

118 Luiz Augusto Araujo


dorminhoco.
– Uma hora. Ah!... O cobrador te chamou por várias
vezes.
– Eu sei! Até mais!... Tchau!
O passageiro da poltrona 34 se despediu de
Augusto. Antes de se levantar, retirou da mochila os óculos
escuros e um boné da Coca-Cola. Desceu sem ser notado
pelos demais ocupantes do veículo, que, naquele momento,
estavam na lanchonete da estação. Dez minutos depois, o
veículo prosseguiu a viagem até o seu destino final.
As pessoas notaram e comentaram a ausência do
dorminhoco da poltrona 34, menos o cobrador, que pegou
no sono e só acordou durante o desembarque de todos os
passageiros do ônibus, na estação rodoviária de Uberlândia.

Balaio de Gato 119


Pingos de chuva

Chovia naquela manhã de 31 de dezembro


de 2002. Os pingos de chuva são um dos melhores estímulos
para a reflexão. Sentado na poltrona marrom, localizada no
canto esquerdo da sala, José Fernando de Sebbá pensava em
Suzana. Ela, porém, com certeza já não mais pensava nele.
Desconsidere essa introdução, prezado(a) leitor(a).

120 Luiz Augusto Araujo


Quando escrevi que a moça não se recordava mais do
namorado foi um ato de desespero e solidão de minha parte,
como autor, e uma forma transgressora de interferência na
história. Não tenho esse direito! Também seria injusto afirmar
tal coisa ou até mesmo indagar. É claro que Suzana pensava
no rapaz! Talvez não com a mesma intenção e intensidade
que ele nela, mas pensar, pensava. De que maneira ela lhe
dedicava lembranças e momentos reflexivos? Isso o jovem
advogado já não sabia mais.
Naquela manhã de véspera de Ano Novo, a chuva
que batia na janela da sala distraía José Fernando de Sebbá
e alimentava as suas reminiscências. Ele observava a água
escorrer na vidraça e, a cada instante, ansiava por chegar o
dia de buscar a amada no aeroporto. Suzana estava em outro
país. Havia nove meses morava na nação dos primos ricos,
onde fora fazer um intercâmbio de um semestre e, por lá,
estava três meses a mais do planejado. O namorado nunca
perguntou o porquê de sua demora. Quando se falavam ao
telefone, ela dizia somente das belezas locais, dos hábitos e
costumes daquele povo. E ele apenas ouvia.
Prezado(a) leitor(a)!... Não pretendo interferir
novamente nessa história, mas acredito que o que realmente
a tenha encantado foram as descobertas. A maior delas não
estava, propriamente, na nova terra, mas, sim, no terreno
do seu coração. Creio que ela descobriu que poderia viver

Balaio de Gato 121


tranquilamente sem os beijos do namorado, e, ainda por
cima, ser mais feliz sem eles. Assim como eu, o personagem
principal dessa história pressentiu isso. José Fernando de
Sebbá mentalizou esse cenário no exato momento em que
deixou alguns pingos da chuva que caía bater na palma de sua
mão direita, esticada entre uma pequena abertura da janela.
Os pingos da chuva são um dos mais eficientes
estímulos para a reflexão. Eram tantos naquela manhã de
terça-feira, que já estavam embaçando a porta de vidro da
sacada do apartamento. Por outro lado, eles ajudavam a
clarear as ideias do advogado, que já começava a enxergar, no
desenho imaginário que se formava na vidraça pelos pingos
da chuva, um futuro sem os beijos da amada.
Ao ir ao banheiro enxugar as mãos na toalha de rosto,
o jovem, que sempre aparentou ser forte e determinado,
encontrou no reflexo do espelho, no último dia do ano
de 2002, uma pessoa frágil, insegura e com pensamentos
negativos. O seu pensamento estava cristalizando a imagem
de que a namorada Suzana não mais voltaria ao Brasil. E,
caso voltasse algum dia, não seria motivada por seus beijos.
“Três meses a mais do planejado longe de mim
seria uma forma de terminar o namoro?” – indagava José
Fernando de Sebbá a si próprio. Todavia, não encontrava
coragem suficiente para externar esse questionamento à
amada; talvez por medo de ouvir a resposta. A verdade nem

122 Luiz Augusto Araujo


sempre é a melhor opção. Às vezes viver na dúvida é melhor
do que morrer na certeza.
À meia-noite, quando a chuva se recolheu nas
nuvens, José Fernando de Sebbá estourou o espumante ao
lado do professor de matemática Luciano Xuxa, com quem
dividia um apartamento no Residencial Dr. Alberto Walace
de Coronato, localizado na Avenida Segunda Radial do Setor
Pedro Ludovico, em Goiânia (GO). O amigo também passou
a virada do ano sozinho, pois nesse dia sua namorada cumpria
escala de trabalho em um call center de uma operadora de
cartões de crédito.
Ansioso, o namorado de Suzana ficou ao lado do
telefone, aguardando pela ligação da amada. Ele não passaria
o réveillon ao seu lado, mas seria o primeiro a falar com ela,
no primeiro minuto de 2003, horário do Brasil. O aparelho
não soou!... No dia seguinte, também não...
Durante uma semana, o advogado esperou pela
ligação. Ele chegou até a solicitar a visita de um técnico da
companhia telefônica para verificar o funcionamento do
aparelho. O problema não era o telefone. Ele pensou em ligar
para Suzana, mas os pingos da chuva que voltou a cair, no dia
8 de janeiro de 2003, o distraíram... e José Fernando de Sebbá
acabou não realizando a ligação. Ele se ligou e não mais ligou.
Os pingos de chuva são um dos melhores estímulos
para a reflexão.

Balaio de Gato 123


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. A obra aborda a temática da
comunicação interpessoal nas diversas
áreas da vida das pessoas e destaca a
importância do aprimoramento dessa habilidade. O livro,
prefaciado pelo renomado escritor Reinaldo Polito, é repleto
de exemplos práticos e escrito numa linguagem leve e objetiva.

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CAPA

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