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EXERCÍCIOS

DE
FIXAÇÃO
Antônio LaCarne

EXERCÍCIOS
DE
FIXAÇÃO

1. ed. – 2018
Maringá/PR
© (2018) Antônio Alves da Silva Teixeira

Produção editorial: A. R. Publisher Editora – www.editoraarpublisher.com.br


Capa: Gabriel Levy Melo Cavalcante e Natália G. Morais
Diagramação: Lívia Maria Costa Sousa
Revisão: Joice Nunes
Foto do autor: Filipe Sales
Posfácio: Adelaide Ivánova

É proibida a reprodução total e parcial desta obra, de qualquer


forma ou por qualquer meio eletrônico, mecânico, inclusive
por meio de processos xerográficos, incluindo ainda o uso da
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editor (Lei 9.610 de 19/02/1998). Todos os direitos desta edi-
ção reservados pela Editora.

T266e TEIXEIRA, Antônio Alves da Silva.


Exercícios de Fixação / Antônio LaCarne.
Maringá(pr): A. R. Publisher Editora, 2018.
80 p ; 21 cm.
ISBN: 978-85-69908-41-8

1. Literatura 2. Literatura Brasileira 3. Contos Brasileiros

CDD: B869.3
A página que no início era branca, agora está cruzada
de alto a baixo por minúsculos sinais negros, as letras,
as palavras, as vírgulas, os pontos de exclamação, e
é graças a eles que se diz que essa página é legível.

Jean Genet

A infância da palavra já vem com o


primitivismo das origens.

Manoel de Barros

Tudo que chamam de história é meu plano


de fuga da civilização de vocês.

Roberto Piva
SUMÁRIO
Cair demais, 9
Shangai não me espera, 19
Enquanto eu lia Balzac, 23
Arlete no vazio, 25
A aranha, 31
O homem de Higienópolis, 35
Os gatos, 37
Boneca come-come, 43
Encanadores não desentopem enganos, 45
Lápis de cor, 49
Dias de promoção, 53
A baleia, 55
Extraterrestres, 59
Ocultismo, 63
Estrabismo alucinante, 65
Crise de insônia, 69
Pênis gigantesco, 71

Posfácio, 75
Cair demais

C omo imaginar Jorginho, seus dentes, a clausura


do apartamento sem quadros e mesinha de cen-
tro, as próprias mãos que gesticulam para construir
o mundo? Homem bom? Sim. Sozinho? Eternamente.
Mergulhado no precipício existencial das dúvidas,
igual ao personagem italiano não especificado. Pro-
vavelmente Cabíria, sua preferida, em preto e branco,
melodramática, frustrada e desprezada pelo amor
dos homens. Ao fim do filme, até o final feliz parece
dúbio, quando riem da cara dela e os acontecimentos
se tornam menos drásticos e intoleráveis. Mas com
Jorginho a poética cinematográfica mudará de tom
sob a influência de becos e sarjetas abaixo da linha
do Equador que nos influenciam a esperar, concomi-
tantemente, pelo ar de qualquer graça.
A cidade que o engole no cinza de tempesta-
des imprevistas no céu, como quem se enfeita para

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EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO

chorar sem motivos. Os prédios mais altos do mundo


não choram. As grandes metrópoles são duras. O ar
quase irrespirável é a sobrevivência de muitos. Pou-
cos pedem clemência, porém outros querem tanto a
verdade.
Sábado, 7 da noite, dentro do banheiro: Jorgi-
nho se enxerga diante do próprio rosto moreno e não
compreende o fluxo – nem a febre das noitadas. É
que todos devem ter algum motivo para enfrentar a
madrugada com rostos resignados de lobos, ou vam-
piros esqueléticos, esquálidos por sangue. Mas ele
não enxerga o porquê das escolhas duvidosas estam-
padas nas fuças ao vestir um novo jeans, tomar um
táxi, sorrir enquanto seria menos exaustivo encarar
as paredes vazias de casa. Soaria mais interessante
reacender as luzes e reler um livro – os poemas de
Emily Brontë deveriam ser minunciosamente ana-
lisados –, pensa ele, segurando o ferro de passar
paralelo ao peito e suspenso num abismo doméstico.
Mas todos os olhos do mundo perceberiam que
Jorginho, aos 25, não é fiel escudeiro de si, porven-
tura alguém que interpreta (numa gargalhada estri-
dente) o que os poetas consideram uma morte lenta.
Ele revive mentalmente a solidão, a cama vazia,
o sexo pelo ralo, o garanhão que lhe proporcionou
afeto graças a uma nota de 100. Aquela cachoeira
de insensibilidade presente nos olhos de quem não
sabe que você tem nome ou se sobrevive de ilusões

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ANTÔNIO LACARNE

convencionadas. Ou que a sua paixão se afoga numa


piscina onde os nadadores dão piruetas e não se
importam.
Você sempre dança sozinho na noite.
É certo que Jorginho vivia a cruzar ruas movi-
mentadas, e não tinha a motivação estudada nos li-
vros de autoajuda. Sua vida se precipitara em enredo
impressionista: foco no personagem principal, ação
mínima, fluxo de consciência, uso de símbolos, epi-
fania. Katherine Mansfield se remexeria no túmulo,
hipoteticamente ao transformar a existência dele
numa narrativa de duas páginas repletas de signifi-
cância. Quem sabe, parente distante de Bertha You-
ng ou Miss Brill, ícones de sua literatura, porém os
tempos são outros; e toda grandiosidade de Jorginho
seria aplaudida por um seleto número de personas
sem nome ou tempo previsto na realidade. Ou como
o escritor morto na solidão da década de 90 (ou de
qualquer século) escreveu que “uma grande ausência
ardia em labaredas dentro dele”.
Mas o clima não esquenta na noite onde até os
cachorros são humanos.
É festa no apartamento de Angélica, todos
dançam. De praxe, Jorginho se recusa, por discrição
planejada, em não exagerar nos cumprimentos e nem
se dedicar aos abraços, descontroladamente. Aos
poucos ele não se torna animal arredio domesticado

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EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO

bruscamente, basta que outra rodada de vodca seja


servida e os móveis ao redor mudem de posição.
Os minutos correm em desespero. Mas o clima
só esfria, a bebida é uma espécie de bola de neve em
que ele, aos pouquinhos, vai desafiando o ritmo das
relações humanas e o limite de quando devemos ser
sinceros.
Não tão cheio de si, inclusive prestes a mudar
de assunto, ele esquece que jamais terá um pedaço
do mundo nos braços, nem sequer o de sua morada,
nem ao menos um pedaço de Augusto, tão lindo,
que acabara de chegar acompanhado (obviamente) e
aparentemente extasiado sob os abraços ad infinitum
que o circundam.
Nunca poderia ter o rosto caramelizado do
destino por perto, pois as regras impostas não eram
as suas. Jamais esconderia os meandros da sedução
no bolso, pois Augusto, como exemplo de um grande
equívoco, era o homem mais lindo da festa, nitida-
mente em todos os ângulos impostos pelo desejo.
Augusto, lambuzado de uma beleza irreversível,
exibia um prêmio humano como resultado de sua
conquista. Quem seria aquele desconhecido maravi-
lhosamente esculturado? O tal prêmio provocara em
Jorginho a inveja dos que não têm músculos, a inveja
dos que não são adoráveis gratuitamente, a inveja
dos que se enfeitam aos sábados e cruzam a floresta

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ANTÔNIO LACARNE

urbana carniceira rumo ao 13º andar do apartamento


de Angélica que, na verdade, é uma péssima anfitriã.
Por quanto tempo eu estive aqui e por quanto
tempo não terei o direito de ser eu mesmo, reflete,
desdenhando quem não se aproxima, fixando o olhar
nas coxas de Rodrigo, o tal acompanhante maravilha,
que não lhe retribui a grande oferta.
Jorginho prefere acreditar que a beleza daqueles
semideuses é uma dádiva insensata, plástica, intimi-
dadora. Em contrapartida, Jorginho é tão humano,
ele não se importa em fumar os restos de cigarros dos
cinzeiros. Ele não se importa ao cair. Mas o que torna
a vida tão difícil é cair demais. Augusto nunca teria
a experiência fatídica da queda. Augusto é alguém
que te faz nutrir uma repulsa velada, pois por culpa
indireta de pessoas iguais a ele e iguais a Rodrigo, a
realidade se transformou num matadouro onde nós
somos os bois mais magros e doentes do pasto.
Permanecer na festa é um ato desesperado de
reconquistar as horas perdidas, hipoteticamente.
Horas que não perduram, não enganam, que não são
como uma droga. Então Jorginho, quase cínico, se
mistura aos convidados que tanto conversam! Gente
freneticamente abundante de assunto. Seria tudo
tão interessante? Pessoas que escancaram os dentes
e vociferam e descrevem e tentam ser engraçadas
e mentem e não pedem bis, ou não tomam fôlego
para observar os coadjuvantes que só representam

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EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO

um cenário à cena. A solidão que é tão escrota. O


tempo que ele imagina ter se esvaído ao vestir aquele
jeans, calçar os sapatos, imaginar a protuberância da
carne entre as pernas dos convidados mais bonitos,
ali, diante da recepção e da vida, ambas insensatas.
Pois é na confusão de ideias que as oportuni-
dades se transformam no medo de não tropeçar no
buraco, na vergonha do próprio corpo na praia. Por
qual razão, ele, ou eu, ou você que me lê, não decide
tomar as rédeas de si? Ou tornar a realidade do circo
que se tornou o mundo em um paraíso tragável onde
o nosso destino é a maior prioridade? Jorginho é ho-
mem derivado e observador in extremis. É alguém se
desequilibrando no leque de circunstâncias duvido-
sas, manchadas de suor e masturbação às 10 da noite.
Não fazer parte da roda sugere mais uma ir-
responsabilidade fatídica da qual ele se insere como
vítima. Estar ali, numa percepção corajosa ao se
aventurar em falso prazer, cercado por meros atores
principais, ainda é um peso de grandes toneladas nas
costas, nos olhos.
No sofá, mantendo-se distraído ao celular, ele
relembra que o tempo é uma grande esfera despen-
cando de uma montanha. O tempo é ouro e merda. O
tempo que é areia movediça ou a cinza do cigarro se
esvaindo ao vento forte que vem da varanda. Jorgi-
nho quer gritar por uma saída de emergência, desejar
cumplicidade vã que torne tal suplício em mero flash

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ANTÔNIO LACARNE

de esplendor. Diversão insincera e ao mesmo tempo


mirrada, como a honestidade daquele living.
Todas as pessoas interessantes da cidade não
estão perplexas, enquanto o sofá, que suporta o peso
de sua figura levemente entorpecida pelo álcool, é
um território limitado, pronto para refletir o morcego
em que ele se transformara, dividido em quatro peda-
ços desordenados. Quatro pedaços que se diminuem.
Ultrapassando o barulho ensurdecedor dos risos
e vozes, decide-se por fugir, lento como cobra, como
gato que se arrasta rumo à presa, discreto.
Não se despede de Angélica nem de ninguém.
No hall, o ar finalmente é respirável. Aguarda o
elevador, 13 andares de pura desolação e mármore.
Desiste de esperar, desce as escadas num ritmo veloz,
como quem desliza nas escadarias de um palácio ao
receber cartas de amor das mãos do carteiro.
Alguns andares abaixo, ele ouve um som es-
tridente vindo de cima, um estalido, um fogo de
artifício que não deu certo, ou imaginação, ou filme
na televisão, talvez. E gritos. Já não pensa em nada,
está aliviado, não darão por sua falta. Entenderão o
seu sumiço, afinal Jorginho, segundo eles, fortalece
a estranheza, a falta de sentido, o gosto amargo, o
pensamento obtuso.
Segue em silêncio no táxi, não dá a mínima ao
rádio ligado ou aos comentários do taxista a respeito
do calor, dos motoristas que não sinalizam, da vio-

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EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO

lência na cidade. Está mudo para si, de boca fechada


para o bem e para o mal. Sente-se fraco, a garganta
desolada, as mãos já não tremem, não há necessidade
de roer as unhas.
Jorginho é a ausência de som em seu aparta-
mento também mal decorado.
“Eu deveria ter sido mais forte” – conclui, com
o rosto voltado aos próprios pés.
“Eu deveria ter ido embora o quanto antes” –
conclui, com o rosto voltado aos próprios pés.
“Eu deveria ter me comunicado cegamente” –
conclui, com o rosto voltado aos próprios pés.
O celular toca. É Cristina, a amiga megera.
– Jorginho? Onde você está?
– Estou em casa. Fui embora antes de todo
mundo.
– Você sabe o que aconteceu? – pergunta ela,
alterada.
– Não, o que houve?
Nesse instante, ela chora desesperada e não
controlando a respiração, diz:
– Augusto se trancou no banheiro e deu um
tiro na cabeça.
Silêncio.
Antes que ele pudesse dizer alguma coisa, a
ligação cai.
Com o olhar fixo num ponto que ninguém
saberia identificar, ele se escora na parede atrás de

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ANTÔNIO LACARNE

si. O celular toca novamente, dessa vez é Angélica,


a anfitriã. Mas antes que eles dissessem qualquer
palavra, ela também volta o rosto aos próprios pés,
descalços e sujos de sangue.

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Shangai não me espera

O príncipe selvagem é um homem irremediavel-


mente cansado de si mesmo, clichê e atento ao
mundo ao seu redor: carros estacionados, porteiros
distraídos, políticos corruptos, texugos, amigos de-
lirantes e artistas. Mas o príncipe selvagem também
é artista, faz performances, devora purê de batatas
e queijo gorgonzola, não toma banho regularmente,
cita de cabeça Proust, Saussure, Schopenhauer e
aquela poeta de nome difícil.
A mulher que ele amou na adolescência hoje
se dedica com afinco ao marido obeso mórbido e aos
três filhos campeões nas olimpíadas de matemática.
Ele sempre quis ser campeão na vida (mas isso é se-
gredo), – como quem lê para si mesmo, entediado, e
vira a página do livro, sufocando os próprios medos,
as crises de identidade, os porquês mal respondidos.
O príncipe selvagem encara o mundo sob a
perspectiva da sorte, deixando de lado as escolhas

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EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO

erradas, o jogo do bicho, as barras – como se a vida


fosse uma determinação dos deuses. E ele acredita
em Deus, acredita em Nossas Senhoras, pois ao
frequentar a missa, suas preces são atendidas, cus-
te o que custar, graças ao carinho misericordioso
celestial. Antes de dormir, lânguido, sob o colchão
de molas pontiagudas, fecha os olhos e se imagina
modelo húngaro e dotado, musculoso, desejado,
marquinha de sunga.
Acredita que as pessoas enxergarão nele algum
resquício do que elas anseiam: beleza estampada em
nossas mais profundas taras, guardadas com carinho
em nossos arquivos pornográficos no computador.
Ele não se cansa, pedala freneticamente sua
bicicleta rumo ao emprego que lhe paga as dívidas.
Leva consigo o terror e a esperança de testemunhar
uma vida monótona tomando forma. A vida que se
baseia em golpes do destino, na horrível educação
das pessoas que não respondem ao seu bom dia.
Então ele corre veloz sem olhar para os dois lados ao
atravessar a avenida, e por milésimos de segundos,
enxerga o que existe por trás das estrelas.
Ou então:
Este relato não representa alguma coisa morta e
viva. Não representa algo zumbi. Um pedaço de você
que eu quero. Rasgar a boca com os meus botões.
Ultrapassar montanhas e armadilhas. Os ursi-
nhos de pelúcia anseiam o teu bem. Eles deitam e se

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ANTÔNIO LACARNE

despem sozinhos – corações mutilados –, almas de


algum nome sem voz. Eles querem que eu me torne
um hiato enquanto alço voo, requebro na zumba, ou
quando misturo Agatha Christie com Stephen King
e sou qualquer coisa.
Os deuses te ferem, mas não me decoram as
asas. O mar percorre os continentes. Quero que você
me leia enquanto mastiga um mamilo e joga uma dor
para escanteio. Sou livre enquanto posso. Shangai
não me espera. Os travesseiros são as minhas pedras.
Não estou triste com o fim da história que é este co-
meço. Desde já os olhos se infiltram, imploram por
penhascos infrutíferos, deixam as pernas de quem
espera sempre abertas. Durante a encruzilhada, da-
mos marcha à ré, calculamos a quantidade de dentes
e nos apaixonamos por pessoas improváveis.
Esse príncipe é homem nu na cachoeira, pedin-
te sem voz, monstro que hiberna no Vaticano. Dou
meu telefone ao primeiro que encontro. Ele não é
meu salvador, mas me encara com seus músculos,
desmente meus provérbios quando cito o Salmo 90
por proteção.
Vocês não compreendem uma única palavra.
O príncipe selvagem imita fôlego e respiração.
É mais um que sente inveja e se encanta demasia-
damente, arbitrariamente, inconvenientemente.
Repete as mesmas fábulas por não ser mais criança
no labirinto do desconhecimento. Uma vez disse que

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EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO

eu estaria sozinho para sempre, mas encontrei na


internet o meu amor no cume do mesmo penhasco
que descrevo. O meu amor é o meu verdadeiro prín-
cipe, resoluto, de nádegas murchas como confete
pós-carnaval pisado. Shangai ainda não me espera.
Retruco, finjo que não me importo quando ele se
satisfaz com outras companhias. Ele não sabe que
fomos importantes, e mesmo após aquela explosão
ao atravessar a avenida, ele continua a enxergar o
que existe por trás das estrelas.
Eu também quero enxergar.

22
Enquanto eu lia Balzac

E ra uma vez uma tarde de sábado enquanto eu lia


Balzac, e o mundo estava prestes a explodir, e eu
decidi não observar a cidade através da janela, pois
o mundo, a janela, Balzac, os meus problemas e as
ciladas da cidade permaneceriam ali, imutáveis, en-
quanto eu as descrevesse do meu jeito e não ousasse
– sequer – reverter o x da questão – e enfim sorrisse,
interpretando personagens ou situações vividas ao
pensar naquela troca de olhares que me impediu o so-
no e a leitura dos meus romances policiais favoritos.

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Arlete no vazio

E m um devaneio espiritual amargo, Arlete havia


esquecido como escrever o próprio nome. Após
o almoço, dançou sozinha na sala de casa. Já não
tinha amantes, não tinha amigos, não tinha filhos
ou uma casa bem localizada. Amores pré-históricos
revividos mentalmente se transformaram em ilusões
no aconchego de seu quarto escuro.
Após o jantar, sozinha as usual, inventou para
o seu próprio eu cansado uma nova tentativa de so-
brevivência. Queria arder no inferno – se o inferno
fosse bom. Queria deitar-se com vários homens – se
todos eles lhe proporcionassem o prazer que ela vê
nas novelas e nos filmes.
O tempo havia passado sorrateiro demais. En-
tão, como única esperança ou alternativa, soluçou,
silenciosa igual a um espelho. O tempo, quem sabe,
havia se tornado translúcido, perdido em memória –

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EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO

ou, na pior das hipóteses –, livre de significado. Ela


refletia uma vida apagada ali mesmo.
Na sala, os bibelôs organizados, e nem sequer
um cachorro dócil como companhia.
Arlete, espelhada e sem cor, tremia por dentro
como uma geladeira defeituosa, bem próxima da
janela onde nenhum ser vivo transitava, descalça de
si mesma – por já ter usado saltos demais e pisado
de menos...
O mesmo tempo fez com que ela se viciasse
em viagens, principalmente as imaginárias, as idas
ao interior, as praias onde ela se cobria inteira com
uma canga desbotada, presente do marido morto ao
engasgar-se.
O rosto limpo, talvez imantado na glória de um
passado mal aproveitado. Mas o passado é dono de
alguma importância quando sofremos, e no presen-
te tudo é silêncio e poeira e velhice e remédios por
tomar e desejos por esquecer. Ou estes parágrafos
servem unicamente para que o tempo se diminua
em seu próprio círculo e assim a vida continue?
Eu não me importo. Eu também tenho um rosto. E
problemas.
Eu também tenho um sonho.
Arlete havia lembrado, tão repentinamente, o
quanto somos aterrorizados por um sorriso de sur-
presa no instante em que o mundo parou de girar,
mas que ninguém percebeu. Ninguém quis dar uma

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ANTÔNIO LACARNE

solução ao problema, e ninguém desejaria o lugar


daquela mulher, por um segundo enrugado, onde a
vida corriqueira e cheia de atribulações é um pé no
saco. Salva-se quem pode – e ensaia uma vida quem
ousa viver.
Os dias são os pés de galinha no rosto da mulher
que virou segredo de si mesma ao acordar, perplexa,
e por décadas alheias, continuamente descalça.
Talvez amanhã ela retribua a sensação de que-
rer sobreviver no inferno, de desejar homens nus e
polidos em sua cama arrumadíssima, ou no olhar
estampado no rosto que se assemelha a uma prisão
de ventre ocultada no espaço.
Arlete é uma mulher antiga que não aprendeu
a comunicar-se. Uma pessoa seca e ofendida, mas
ofendida sem revolta, sem culpar os deuses ou os
deslizes.
Seu olhar de animal confuso, diariamente se
mantém incompreensível. Seu olhar é inconstante
porque ela ainda está viva. Ela irradia o mistério,
e por se tratar de algo indecifrável, seus olhos e
seus medos são maravilhosos. Homens, mulheres,
crianças e idosos manteriam o desinteresse ao que
é alheio, pois não buscamos identificar, codificar,
compreender o outro – como formigas que não se
esforçam num único propósito.
Assim como ela, perdemos o fio da meada.

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EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO

A sua amabilidade é a de dona de uma planta já


morta no jarro, mas que por teimosia ela continuaria
a regar. E a vida não rega a mulher. A planta não so-
brevive. Os sonhos se estagnam. Era como se Arlete
e seu destino andassem na ponta dos pés com medo
de esbarrar em algo pontiagudo e humano.
Era a corda bamba da velhice.
Meu Deus, por onde andarão os deuses de mi-
sericórdia das mulheres ardorosamente vazias? Os
anjos que finalmente sucumbiram ao pecado e nos
ensinaram a perder, cair, transar por transar, não
se importar com as pessoas, caminhar desesperada-
mente em vão. Arlete segue em falsa nitidez e você
tem uma vida. Se ao menos houvesse um poodle para
distraí-la. Ou um homem vigoroso e peludo. Mas os
homens se perdem, lançam repetidamente a mesma
âncora – quem realmente entende? Ela se desmonta
inteira, enxergando nos outros o que é perda em
si. Organiza os talheres sobre a mesa. Mergulha no
mar, que é o espaço de sua casa, como uma enorme
cachalote. Ela é o maior dos cetáceos em corpo hu-
mano, inundada de sal, amargura e higiene íntima.
Então, em plena terça-feira, às seis da manhã,
falsamente surpreendida pelo desejo carnal e incon-
trolável de sempre, lembra-se das noites de amor
com o marido, que morreu há duas décadas. Intrigada
consigo mesma, surge com uma ideia ótima, mas que
é logo despedaçada em mil cristais decepcionantes

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ANTÔNIO LACARNE

quando ela se dá conta de que todas as bananas na


cozinha já estão murchas demais.
Murchas demais.

29
A aranha

A aranha enorme e obscura estava escondida de-


baixo da cama, enquanto os dois corpos se en-
trelaçavam sobre um colchão ortopédico – e ouvia-se
o ranger de dentes, e os gritos abafados que a união
entre pessoas que se desejam proporciona.
A cama era de madeira negra, antiga, talvez
resistente igual ao cinismo, igual ao frio da madru-
gada, igual ao desprezo ao telefone. Era uma cama
que não se desmontava, precisava ser carregada com
cuidado, assim como a aranha, assim como o que é
passível de perder a vida a qualquer momento.
A aranha permanecia imóvel, alheia, como se
possíveis presas ali no quarto não lhe chamassem a
atenção para a fome que se descortina ao que tam-
bém é vivo e invertebrado.
A aranha arfava discreta, impercebível aos
olhos distraídos de qualquer pessoa. Ela era impe-

31
EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO

netrável e grotesca, como se caminhasse lentamente


sobre o corpo de um bebê. Os ruídos e movimentos
bruscos da grade da cama provocavam nela movi-
mentos milimétricos. Era durante a noite que elas
caçavam, porém alguma coisa a impedia e a atiçava
gradativamente.
Mas sobre a cama havia um homem nu e uma
boneca inflável.
Sobre a cama havia um homem de sessenta
anos, grisalho, solteiro e com o colesterol nas alturas.
Ele enfiava a língua no orifício redondo, pintado de
vermelho: a boca daquela mulher de plástico.
No vai e vem do desejo, ele sussurrava e imagi-
nava uma mulher real pronta a satisfazê-lo, calada,
de olhos fechados, uma mulher estática como bone-
cas de porcelana – mas nunca como aquela boneca
desengonçada.
Era a compensação difícil para si mesmo, a tara
pós-moderna, o ritual secreto da solidão.
Então a aranha, talvez incomodada ou curiosa,
escalou lentamente o pé da cama até encontrar o
colchão, e ali se manteve intacta, em contraste com
o lençol branco demais.
O homem adormeceu após o gozo verossímil.
A caranguejeira se aproximou do homem – tal-
vez atraída por alguma fagulha de desejo?

32
ANTÔNIO LACARNE

O corpo do homem sem pelos seria o terreno


propício para que ela, sem ser percebida, atingisse o
seu objetivo. Um objetivo íntimo das aranhas.
E o objetivo da caranguejeira era posicionar-
se sobre rosto dele, que ao abrir os olhos – por um
milésimo de segundo –, estava prestes a gritar de
horror. Porém quem havia se horrorizado milésimos
de segundos antes foi a aranha, que lhe fisgou a pu-
pila antes mesmo que ela se dilatasse.
O homem arrancou a aranha do rosto, esma-
gando-a com as mãos, gritando de desespero. Os
pelos urticantes penetraram em suas narinas: ele
estava prestes a sufocar. O coração batia cada vez
mais rápido, a dor era insuportável.
O homem caiu de joelhos ao pé da cama, que
se desmontou, barulhenta, inesperadamente, igual
a um vulcão em erupção na ilha de Java. Vulcão em
formato de cone formado pelo magma extravasado.
O magma daquele homem seria o próprio co-
ração impedido de ultrapassar sua caixa torácica.
Mas ele não estava morto.
Sobre o rosto da boneca inflável, outra aranha,
uma bem menor, talvez faminta, talvez imitando o
comportamento da mãe – ou apenas horrorizada.

33
O homem de Higienópolis

E le (que não sou eu) percorria o centro da cidade


de madrugada em busca de rapazes que pudessem
satisfazer o seu desejo. Cada quarteirão era delimi-
tado: havia as esquinas das travestis e as esquinas
dos garotos de programa. Mas ele (que não sou eu)
dirigia seu carro lentamente, numa caçada, muitas
vezes andando em círculos, em busca do rapaz ideal.
Nem sempre ele (que não sou eu) explorava o prazer
da noite sozinho, tinha um casal de amigos como
cúmplices. Ao abordarem os rapazes, ele (que não
sou eu) tomava a iniciativa de perguntar o preço, o
tamanho e se poderiam exibir o que existia dentro
de suas cuecas. O casal de amigos permanecia em
silêncio, talvez controlando o desejo, observando
discretamente se alguém ao redor se aproximava,
pois a cidade era perigosa. Porém, ele (que não sou
eu) nunca se decidia por nenhum rapaz, apenas se

35
EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO

contentava em vê-los sem roupa por alguns segun-


dos, desesperados por dinheiro. Muitos recusavam
qualquer amostra grátis de suas qualidades especí-
ficas, pois exigiam algum pagamento prévio. Então
numa bela noite, ele (que não sou eu) abordou um
homem por volta dos trinta anos que dizia ser de
Higienópolis. A maneira como ele falava e a ênfase
na informação desnecessária porventura evidenciaria
isso, mas o interessante é que a voz daquele homem
era extremamente sexy. E ele (que não sou eu) con-
vidou o homem de Higienópolis para o banco de trás.
Quem dirigia o carro era o casal de amigos, um no
volante e outro no banco do passageiro. No banco de
trás o homem de Higienópolis tirou a camisa, baixou
a bermuda de nylon e se deixou ser manipulado ali
mesmo. Mas ele (que não sou eu), antes de atingir o
êxtase, lembrou que durante toda a sua vida havia
esperado por um grande amor, independentemente
de qualquer dote físico, e que aquilo era um exem-
plo gigantesco de hipocrisia íntima. O programa foi
encerrado ali mesmo, e o rapaz de Higienópolis saiu
alegre e satisfeito ao receber uma nota de vinte reais
de um otário (que não sou eu) por menos de três mi-
nutos de trabalho.

36
Os gatos

B urroughs escreveu sobre gatos. Bukowski escre-


veu sobre gatos. E quem sou eu para escrever
sobre gatos? Borges disse que os gatos aceitaram o
amor desta mão receosa. Hemingway afirmou que
um gato tem honestidade emocional absoluta. Poe era
amante de gatos, ele e sua esposa (que na verdade era
também sua prima) tinham uma chamada Catterina.
Eu gostaria de poder escrever algo tão misterioso quanto
um gato – pensou Poe, distraído, olhando para o céu.
Mas a narrativa aos pedaços sobre o mistério
felino continua:
Os gatos enxergam o mundo com os olhos mais
sinceros e bonitos do mundo.
Eles não sentem ciúmes de nós, nós é que sen-
timos ciúmes deles. Eles nos abraçam, nos beijam
e nos amam discretamente. Por um milésimo de
segundo, sentimos e somos mortificados pelo seu

37
EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO

amor. Gatos repelem nossas infâmias, nos ensinam


a ser quem deveríamos ser, e nos julgam se erramos
na primeira tentativa.
Eles querem dormir em nossas camas, exigem
comida e água como deuses que devem ser aten-
didos num piscar de olhos. Em outras dimensões,
eles foram seres sensitivos e carregam consigo até
hoje certo ar de imponência mágica que deve ser
reverenciada.
Os gatos também são bichinhos de pelúcia com
vida. Suas patas são plumas sobre nossas barrigas,
mas quando sentem raiva, mostram os dentes e as
plumas se transformam em garras que deixam mar-
cas e rasgam a carne. Eles balançam o rabo quando
estão felizes e impacientes. Eles nos ignoram várias
vezes por dia. Eles têm a certeza de que nós os ama-
mos ou que deveríamos amá-los em altas proporções
que só os gatos entendem.
Quando eu era criança, minha avó tinha um
gato preto. Quando eu era criança, tive uma gatinha
branca chamada Cindy. Ela era muito magra e ado-
rava subir em árvores. Eu também era muito magro
e usava óculos de lentes grossíssimas. Mas um dia
Cindy desapareceu e eu passei a usar óculos com
lentes mais finas. Comecei a me interessar e sofrer
por outras coisas. Deixei de ser criança, e Cindy, já
desaparecida, continuou a subir em árvores, longe
de mim e de seu próprio mundo.

38
ANTÔNIO LACARNE

Os gatos são criativos e observadores natos.


Na verdade, nós é que somos bobos e distraídos.
Desperdiçamos nossa atenção gratuitamente. Eles é
que são os donos de nós, nos ensinam a arte de reis e
rainhas. Pulam de grandes alturas, não fazem drama
e surpreendem quando menos se espera. Silencio-
samente, os gatos querem domar nossos impulsos
e arbitrariedades.
No fim do dia, eles sabem que a vida é um ci-
clo – cedo ou tarde os problemas são resolvidos e o
amor há de estar presente. O amor que se perde num
labirinto de regras, esquinas, costumes.
Os gatos.
Quando eu era criança, imaginava ser Jesus
Cristo. Eu me sentia especial. Mas aí o tempo passou
e me transformei em outra coisa. Por desilusão fatídi-
ca da realidade, me vi longe da imagem de Cristo. Eu
possuía um rosto só meu e do qual ninguém jamais
deveria se apropriar. Mas nos meus sonhos roubei o
misticismo do olhar felino. É um olhar que me aprova
secretamente. Eu só me sinto aceito quando os meus
olhos cruzam com os olhos de um gato por mais de
dez segundos. Eis o nosso momento.
Os gatos são destemidos na ignorância que é
forçar compreensão onde as sensações precisam ser
vastas. 1 +1 não significa nada na mente dos gatos. 1
+1 somos nós em busca do amor incessante, amor que
desespera, que desestrutura nosso mármore vazio,

39
EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO

repleto de rachaduras. 1+1 é o clichê que os gatos


ignoram e o clichê que os autores babacas insistem
em perpetuar.
Amar os gatos não é clichê, mas escrever sobre
gatos é o cúmulo do clichê. Ao escrever sobre gatos,
eu decodifico uma imitação fajuta de Clarice Lispec-
tor quando ela escreveu o sublime O ovo e a galinha.
Ou quando ela escreveu uma crônica sobre Brasília.
Ninguém consegue se aproximar dela. Mas ela se
aproximou profundamente de poucos e raros de nós.
Gatos deitam sobre carros estacionados como
se ali fossem tronos. Tudo é alvo do olhar de águia
que eles lançam como flechas certeiras. Meu gato
não me ama tanto quanto eu o amo, assim como os
amores despedaçados passados, ou os resquícios dos
amores despedaçados passados.
Nós somos as maçãs, os olhos dos gatos são as
flechas. Tenho um gato que já caiu duas vezes do
quarto andar. Na segunda queda ele ficou doente,
mas logo se recuperou. Senti a culpa dos pais dis-
traídos, e desde então fico atento – não quero ter a
culpa nas mãos. Eu o abraço e observamos as pessoas
caminhando, os ciclistas, os pássaros, a chuva que
cai. Quando eu o eternizo com os meus beijos, sinto
enorme alegria e os problemas tomam uma pro-
porção mais leve. Não consigo abraçá-lo sem antes
enchê-lo de apertos e afagos. Às vezes, ele gosta,

40
ANTÔNIO LACARNE

noutras, ele se sente sufocado, e sai correndo, pois


assim como nós, eles veneram a liberdade.
Acredito que virginianos amam os gatos com
maior exagero. Amar os gatos é amar o universo,
é querer bem ao próximo, é abrir possibilidades de
amor aos cachorros, peixes, passarinhos, tartarugas,
coelhos, galinhas, bois, vacas – e até aos outros seres
humanos.
Não consigo imaginar o mundo sem gatos. O
que seria de mim sem o gato? Ou da eterna descon-
fiança do que vem após a morte? Perdi um amigo
que amava gatos. Sinto muita falta dele. Era alguém
especial, tímido, cheio de senso de humor, mas dono
de uma realidade trágica. Ele era enigmático como
os gatos, um irmão que eu abraçava e que ouvia pa-
cientemente as minhas neuroses.
O que seria da civilização egípcia sem os gatos
que eles tanto veneravam? Dizem que os egípcios
costumavam raspar as próprias sobrancelhas quando
seus gatos de estimação morriam, um sinal de luto.
As crianças gostam dos gatos e os gatos gostam
das crianças, mas é um gostar discreto, nem todo
mundo percebe. Os gatos precisam do homem, o
homem precisa dos gatos. Acredito que os deuses do
universo possuem ou já possuíram um gato. Os gatos
são felizes quando dormem sobre os nossos livros.
Se o livro é de capa dura, melhor ainda. Eles também
amam dormir sobre nossos sapatos e chinelos. Eles

41
EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO

sentem o nosso cheiro e isso é uma forma de man-


terem contato conosco, por mais que não notemos.
Mas eu me pergunto se no mundo há os que
odeiam os gatos, assim como existem pessoas que
nos atormentam a vida. Elas estão por todos os la-
dos e em todas as esquinas, infestando tudo como
baratas. Quando elas dormem, sofrem. Ninguém
consegue ser feliz no planeta irradiando ódio. Ódio
é o mais puro inferno.
Eu poderia falar por horas sobre os gatos e o
meu amor por eles, mas não tenho tempo. A rotina
exige de mim hora marcada. Em outra encarnação
eu gostaria de ter nascido gato. Um gato amarelo
e bem gordo. Um gato feliz numa realidade sem
antipatia e segregação. Ser um gato é mostrar os
dentes e miar com todas as forças contra a sordidez
do mundo. Portanto, o gato também é você, o gato
também sou eu. Lambemos nossas próprias patas e
esperamos, sonolentos, o dia de amanhã. Lambemos
nossas próprias feridas, mas diferentemente deles,
não somos sinceros.
Não somos sinceros.

42
Boneca come-come

F oi ao mercadinho e diante de si estava o Composto


1080, um raticida altamente tóxico e, segundo
havia lido no jornal, sem antídoto existente. Não
havia antídoto ou salvação no mercado para aquele
veneno. Só havia ele ali parado no mercadinho diante
da prateleira com o Composto 1080, ideal para matar
ratos e pessoas. De olhos fixos no veneno, ele pen-
sou estar ali por mero impulso, não era assassino,
e sim homem de bom coração, funcionário público
concursado, alto, inteligente, dono de juízo. Pen-
sariam e falariam atrocidades, caso descobrissem
os segredos mais grotescos de seu coração que, no
mercadinho, se escondia dentro de uma caverna
úmida, cheia de morcegos. Fariam dele mulher na
cadeia caso fosse preso por envenenar alguém? O
chamariam de Priscila com os joelhos e as palmas das
mãos sobre o chão imundo, enquanto seria enrabado
pelos outros presos, também assassinos e hipócritas?
Piscou os olhos três vezes, suspirou, pôs as mãos na

43
EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO

cintura, suspirou outra vez. O mercadinho era bem


iluminado e podíamos, caso fôssemos observadores
natos, perceber o encanto dos olhos fixos no rótulo
do Composto 1080, como se ele fosse uma menina no
corpo de um menino a desejar uma boneca come-co-
me na vitrine. Mas era apenas uma boneca e bonecas
não possuídas não matam pessoas. Aí ele estendeu
a mão e tocou na embalagem contendo a substância
destrutiva e de venda ilegal. O desejo de matar outra
pessoa. Mas de repente a boneca deu uma gargalhada
e disse: vem brincar comigo?

44
Encanadores não
desentopem enganos

A qui perto se debruçava em mentiras – aquele


desvio de máscaras, mão fechada sobre o már-
more ou vidro; o rosto atenuado em revolta, rugas
precoces e uma careta de babaca. Descobri que ele
mantinha uma ferida aberta e um coração gelado.
Quem era ele? Amorzinho pleno? Paixão adoles-
cente? Galã improvisado aos quarenta graus? Só
você e eu sabemos que o buraco nos engole através
de outro buraco que também nos engole. O eco do
tempo perdido deixou um bilhete, pois o amor nele
era o de um homem sem hipóteses funcionais. Relía-
mos o livro em busca de referências. Tarde demais,
disse ele, afastando a cadeira ao virar-se de costas.
Aquela bela bunda que lhe pertencia. A bunda que
deveria pertencer ao meu corpo. Choramos vivos
demais, complexados demais quando lhe mordi o
pescoço. Deixei a marca da minha dor, a marca da

45
EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO

minha vingança ao me apaixonar no escuro – sem


braço forte que me segure, sem dedos entrelaçados,
sem cumplicidade que me disperse da multidão. Não
chorei por dentro, pois o horóscopo foi meu aliado.
A lua, o sol, a perspicácia das sereias. Tudo isso me
tornou doutorando na aritmética defeituosa do amor
sob o terceiro sexo. Dezenas de chances perdidas.
Einstein não encontrou solução e enterrou a cabeça
no travesseiro.
Houve um deslizamento de terra às margens
da BR-040 da minha existência estupefata. Chovi
por três dias e as construções sobre mim desabaram.
Conversei comigo mesmo como se eu me conhecesse.
Vi um filme naturalista onde uma professora plena
e arguta lutava contra o universo escroto através de
seus próprios meios, sem um centavo no bolso, aban-
donando o carro sem gasolina no meio da estrada.
Os caminhões e carretas que me formam bateram
de frente, as minhas rodovias ficaram fechadas por
mais de seis horas. Não houve reforma da minha
previdência. Entre tantos depoimentos de lavagens
de dinheiro que se resumem em emoções danificadas,
três milhões de possibilidades não foram o grande
alvo de qualquer investigação, apenas esta. Esta, meu
amor.
Sobre você eu não escrevo porque quero escre-
ver sobre ele. Relato transparente, porém emocional
– isso é possível? Começou assim, éramos amigos,

46
ANTÔNIO LACARNE

desfizemos a amizade, dissemos barbaridades aos


inimigos, queríamos estar próximos no final. Não
marcamos encontro, vivemos nossas vidas. Aí con-
fessamos uma espécie de amor mútuo, pois me en-
torpeci de raiva quando telefonei para ele seis vezes
seguidas e ele não atendeu. Dei um basta, eu estava
no supermercado e tive que me contentar em carre-
gar as sacolas sozinho. No dia seguinte perguntou
se eu estava mais calmo. Eu estava mais calmo, por
isso pedi desculpas, planejei um jantar em algum
lugar descolado para depois nos debruçarmos as-
sistindo O exorcista sob as cobertas. A noite era fria.
Nos lambuzamos na paixão. E durante a madrugada
nos abraçamos como se fôssemos as pessoas mais
amorosas e destemidas do mundo.

47
Lápis de cor

A os sete anos Guto sofria calado. Os outros me-


ninos zombavam dele. Na escola chamavam-no
de menina, diziam que ele era mulherzinha. Todos
os dias, durante o recreio, era a mesma coisa: Guto
calado, sentado, sem amigos. As meninas o ignora-
vam, elas comentavam que ele era filho de empregada
na casa de um rico dono de loja de móveis, e que só
estudava naquela escola por caridade. As professoras
fingiam não notar a zombaria contra Guto, que bai-
xava a cabeça, envergonhado, morrendo de vontade
de chorar.
Na hora da janta a mãe percebia o filho triste,
sem fome. Intimamente ela sabia a razão de tanto
silêncio, mas o cansaço dos dias, a falta de dinheiro
e os outros filhos lhe tomavam o tempo. Ele já era
grandinho, e por isso precisava ser forte, como ela,
diante da pobreza e do olhar injusto das pessoas no
mundo.

49
EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO

Durante a organização da festa junina na esco-


la, Guto não suportou a chacota dos meninos, que
aos berros diziam que ele não era homem, e que por
isso não podia ter uma menina como par na dança.
Guto passara a odiar festas juninas desde então, sem
entender tanta grosseria das crianças que deveriam
ser suas amigas.
De pé, diante da sala e da professora omissa,
se debruçou em lágrimas. Soluçava, esfregando os
olhos. Telefonaram para a mãe, explicaram o ocor-
rido. No ônibus de volta para casa quem chorou
(disfarçadamente) foi ela, farta, humilhada pelo so-
frimento do filho e o desprezo constante do marido.
Em casa a mãe fez um jantar delicioso. Frango
ao molho era a comida preferida do filho. Enquanto
ele comia, ela o observava, já consolada pela beleza,
inteligência e graciosidade daquele menino que era o
seu maior orgulho. Guto comeu e se lambuzou com
as asinhas de frango.
Antes de dormir, pela primeira vez na vida, a
mãe resolvera contar uma história. Ele ouvia atento,
de olhos arregalados, feliz pela atenção extra que ela
estava lhe dando. Dormiu feliz e sonhou com pai, que
o carregava nos braços, dando-lhe beijos enquanto
corriam num parque de diversões igualzinho ao que
ele vira num filme.
Mas enquanto isso o pai roncava e não se im-
portava.

50
ANTÔNIO LACARNE

Na manhã seguinte, na escola, foi o mesmo


tormento. Miguel, o garoto mais grosseiro da turma,
insistia na zombaria, perguntando por qual motivo
Guto não tinha jeito de homem. Os outros meninos
riam.
Guto, então, calmamente, tirou da mochila o
seu lápis de cor de ponta mais afiada, e numa destreza
inexplicável, cravou o lápis na testa de Miguel, que
até hoje leva consigo a cicatriz no corpo e a homo-
fobia enraizada no espírito – por culpa, talvez, da
influência preconceituosa dos pais, da realidade, do
mundo, da vida.

51
Dias de promoção

O s maracujás, os limões, as maçãs, as tangerinas,


os abacaxis e o leite estavam em promoção no
supermercado às terças-feiras. Enquanto eu separava
algumas sacolas – que estavam rasgadas e faziam
com que as cebolas caíssem no chão –, pensei em voz
alta: “onde estão os pepinos?”.
Então um menino – acompanhado de dois jo-
vens rapazes – olhou para mim, como se o tempo
tivesse parado, como se ao fazer a pergunta em alto e
bom som, eu o tivesse fisgado de seu próprio mundo,
repentinamente.
Foi um olhar de surpresa, talvez de reprovação,
ou, quem sabe, um desconforto velado e incom-
preensível.
Em menos de um segundo, eu me percebi e per-
cebi o menino enquanto segurava mais uma sacola
rasgada.

53
EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO

Sim, o tempo havia parado para nós dois, mas


eu ainda estava preso, confuso, intimamente assus-
tado com a surpresa daquele garoto. Surpresa que eu
acolhi e que me frustrou em algum ponto da minha
existência naquele supermercado lotado.
Continuei com as compras.
Os refrigerantes também estavam em promoção.
E as bandejas de ovos.
A vida em si poderia estar em promoção.
Mas eu estava incomodado: homem conversa
consigo mesmo em voz alta sobre a dificuldade de en-
contrar pepinos em dias de promoção.
Imaginei o porquê daquele olhar em silêncio.

54
A baleia

E ra segunda, quarta ou quinta. O dia certo não


importa. E aquele homem perambulava no cal-
çadão como qualquer homem presente no mundo,
perdido no mundo. Não havia quem o notasse, e se
porventura alguém o houvesse notado, esse alguém
guardaria segredo para si mesmo, após esquecer a
imagem daquele homem tão comum aos outros ho-
mens. Foi então que ele, sozinho, perdido, anônimo...
Foi então que ele cruzou o calçadão em direção à
praia, à aglomeração de pessoas que rodeavam um
enorme bicho na areia. O homem, pela primeira vez
na vida, viu uma baleia gigantesca morta.
Ao redor da baleia, o amontoado de gente. Ho-
mens e mulheres correndo com baldes d’água numa
tentativa absurda de salvar o animal. Adolescentes
fotografavam-se com a baleia estática ao fundo. Ho-
mens e mulheres rindo, alguns em tom de zombaria.

55
EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO

Este era o mundo naquele exato instante. O homem


já não sabia ao certo se a baleia estava realmente
morta, pois aquilo também arfava.
Inexplicavelmente, o homem sentiu medo
de estar vivo, pois morrer seria a pior das coisas.
Ao morrer, alguém ali próximo daria gargalhadas,
enxergaria sua morte como mero acontecimento,
um pássaro voando, uma rua movimentada. Seria
uma nesga de sentimento jamais íntimo e cúmplice.
Estar morto ou vivo não alteraria o significado da
realidade. Provavelmente, um pedaço de recordação
invisível e incômoda. Uma recordação em língua
árabe, isto é, incompreensível. E aquilo era novo no
sentimento e na cabeça do homem.
Ele era sozinho no mundo, sem mulher ou
filhos. E ver a baleia quase morta trouxe-lhe recor-
dações que não são recordações, pois ele, até aquele
momento, não havia se dado ao prazer de refletir
sobre a vida.
Se a baleia estivesse realmente viva, ela en-
xergaria o homem? O homem teria um átomo de
certeza maior sobre o mistério da morte caso a ba-
leia não agonizasse na frente das pessoas? Henrique
era o seu nome. Nome de criança calada, nua num
terreiro cercado de palmeiras, o chão vermelho. Ele
fora criado por duas tias que não casaram. A mãe o
abandonara e o pai havia viajado para alguma capital
do país em busca de trabalho. Mas ele nunca voltara.

56
ANTÔNIO LACARNE

O pai nunca enviara um tostão ao filho, que crescera


calado e obediente, até se deparar com uma baleia
encalhada na praia.
Mas não, a baleia não é a criatura mais chocan-
te na cabeça de Henrique. Ela é um pedaço imenso
de carne com dois olhos molhados que se destroem
quando se cruzam com olhos humanos. Ou na ver-
dade, aqueles dois seres vivos compartilharam a
cegueira de não desvendarem qual fatalidade haviam
dividido em plena segunda, quarta ou quinta. Na
liberdade de pensamento, não é injusto dizer que a
baleia não queria ser homem, e o homem não queria
ser baleia.
Sem nenhuma palavra na boca, o homem arre-
galou os olhos, quase que em choque, igual aos que
lentamente mostram os dentes em surpresa. A areia
entrava nos seus sapatos durante aquela aproxima-
ção e afastamento simultâneos. Uma baleia como nos
documentários. Uma baleia de espécie desconhecida.
Os carros do outro lado da avenida buzinavam, con-
tribuindo para o engarrafamento daquele horário.
Henrique estava sendo alguém parado, meio
bobo. Ele era uma mistura de surpresa, abnegação
e abismo. O barulho cada vez mais constante dos
baldes d’água sobre a baleia. O corpo grosso e preto.
Um mistério grosso e preto.
Henrique – em sua lentidão abobalhada – to-
mara para si a certeza de que o animal já estaria mor-

57
EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO

to, mesmo se arfasse ou expelisse aquele jato de água


das baleias. Seu pai não voltara, seu pai morrera. E
Henrique pairava sobre o calçadão, que pairava sobre
a certeza de que o pai, tão idiota, havia desperdiçado
o amor ao próprio filho – como se expelisse gratui-
tamente aquele jato de água das baleias.
Então ele seguiu em frente, percebendo-se
falsamente distraído. Um passo após o outro sem
direção. Quase em linha reta, olhava para trás, a
baleia cercada por gente, o som ao fundo dos baldes
d’água, as pessoas amontoadas, as gargalhadas.
Por sorte do destino e por um milagre dos
deuses, a baleia sobrevivera – foi a informação que
os jornais noticiaram. E o homem também – ambos
com os olhos molhados.

58
Extraterrestres

S ó os extraterrestres são sinceros. Os dias pasmos,


as tardes ensolaradas ou a noite de domingo do
homem sozinho em casa, enquanto chove. Você
poderia estar morto, mas aqui jaz, inteirinho, vivo,
segurando um sorvete diante de uma loja de sho-
pping, aguardando demasiadamente aquele amor,
aquelas costelas, aquela cintura fina e o peitoral
do desejo. Relembra, ao esquivar-se mudo e perce-
ber a multidão nas mesas, as filas de adolescentes
junk food. Eles sorriem impacientes, fortinhos e de
sobrancelhas milimetricamente arqueadas. Mas o
resquício de sabor da casquinha de baunilha se es-
vai no paladar que se derrama numa saliva espessa,
transparente e intransponível – como deve ser o
amor de outro homem, também emaranhado numa
suposta aglomeração cotidiana. Ele não é notado,
e segue seu destino. Dá três passos sonolentos em

59
EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO

direção ao banheiro, caminhando sobre os azulejos


frios e sujos. O animal de estimação que o observa,
ou que apenas exibe aquele olhar pidão dos animais
que nunca verbalizam, mas que insistem na fome
por algo sem nome, sem tradução, ou simplesmente
medo, medo, medo indecifrável.
Só os extraterrestres são sinceros. Por quase
meia hora ele o espera. Não há sinal da presença que
seria o sol de seu planeta escuro. Pequeno príncipe,
numa comparação abobalhada. Meia hora de agonia,
cada pessoa ao redor como presa observada. A mulher
que se aproxima e pergunta que horas são. As escadas
rolantes aglomeradas. A casquinha de sorvete seria o
vestígio dele, o vestígio de quem esteve ali, vestígio
de suas impressões digitais, esperando alguém que
nunca chega – pois dizem que quem espera sempre
alcança. Os quadriláteros daquele shopping imenso.
Mas ele não consegue alcançar o dono de seu desejo,
a ligação não se completa, o celular desligado, o que
o príncipe deve estar fazendo enquanto estou aqui, de
mãos tensas sobre as pernas, o olhar descaracteriza-
do, tão preocupado com a décima oitava chance dada
ao brilho de finalmente amar alguém usando uma
jaqueta sobre uma motocicleta. Quase vinte minutos
depois, resolvera impregnar-se em outros segundos
de esperança. Já é certo que o tempo (a ilusão) se
transformara em final fatídico. Ele não aparecerá de
surpresa ou cheio de desculpas esfarrapadas. Ele não

60
ANTÔNIO LACARNE

reinventará o desejo de compensar o atraso com um


abraço extra, um sorriso extra, um pau duro extra.
Decide ir embora. De cabeça baixa, relembra em vão a
matéria da revista sobre “os alimentos com alto teor
calórico, mas com valores reduzidos de nutrientes”.
O pensamento sobre a fome o espanta. Mas aí aperta-
se o botão do elevador rumo ao subsolo, paga-se o
estacionamento, abre-se a porta do carro, engata-se
a marcha à ré, e ele esquece de ligar os faróis de si,
os faróis que nem sempre iluminam as estradas, pois
as coisas se escurecem sem explicação. Esperar por
alguém que não vem é também colher uma planta
morta, ou se alimentar de alimentos calóricos e
deficientes de nutrientes. As pessoas se perdem, se
anulam, cheias de algum tropeço alheio no meio de
tantas armadilhas no caminho, caminho, caminho
inalcançável.
Só os extraterrestres são sinceros. No sinal de
trânsito em frente ao shopping, o menino quase nu,
esfarrapado, olho pedinte, feridas nos pés. O menino
perambula entre os automóveis estendendo a mão
em busca de alguma moeda. O homem dentro do car-
ro vê o menino e não olha em seus olhos – que espera
que alguma janela enfim se abra. O sinal de trânsito
de repente verde, os carros seguem, o menino retorna
à calçada, e de cócoras desaparece no retrovisor dos
carros de todos os homens e mulheres daquela rua e
do mundo. O menino também espera por alguém? É

61
EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO

possível que ele, tão jovem, já não deseje algo além


de uns trocados, assim como o homem espera uma
coisa extraordinária além da presença, do corpo,
de uma palavra. No asfalto os insistentes buracos,
os solavancos sobre os buracos, o rosto estático do
homem ao ultrapassar os buracos, os faróis desliga-
dos, os pneus do carro resistentes e impenetráveis
sobre os buracos, o olhar fixo do homem, o olhar fixo
do menino, o olhar fixo das pessoas no shopping, o
olhar fixo dos adolescentes diante de um suculento
hambúrguer, o olhar daquela mulher que atravessa a
avenida e enxerga como ninguém aquele carro rumo
à parede na maior velocidade, velocidade, velocidade
incontrolável.

62
Ocultismo

I maginei por algum tempo uma história que envol-


via ocultismo no meio de uma mata, onde pessoas
foram encontradas mortas. Ao redor delas, vestígios
do que poderia ser um ritual satânico. Telefonei para
um amigo com essa ideia na cabeça. Fiz um breve
resumo dos acontecimentos, e ele me disse que não
soaria tão interessante, pois os meus personagens
principais seriam pai e filho. Segundo ele, as pessoas
iriam se sensibilizar se os personagens fossem mãe e
filha, soaria mais dramático. No enredo, mãe e filha
acordariam depois de uma noite de tempestade, e
perceberiam a cidade vazia, destruída por desliza-
mentos de terra, pessoas desesperadas. Mãe e filha
fugiriam pela floresta em busca de ajuda, já que a
entrada principal da cidade estaria interditada pelos
desmoronamentos. Na floresta, encontrariam um
homem desconhecido, talvez um criminoso adepto

63
EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO

de rituais “do outro mundo” que, tentando ser pres-


tativo, na verdade tentaria assassiná-las como parte
do ritual. Em Deuteronômio 18: 10-13 há um trecho
que revela: “Não se deve encontrar em seu meio
alguém... que use de adivinhação, ou que pratique
magia, ou que procure presságios, ou um feiticeiro,
ou alguém que prenda outros com encantamento, ou
que consulte em invocar espíritos, ou um adivinho,
ou alguém que consulte os mortos”. E enquanto
nossas ideias divergiam, resolvi mudar de assunto,
pois eu estava mais preocupado em pedir conselhos
amorosos do que me debruçar numa ficção pouco
coesa diante da solteirice alarmante presente na
minha vida até então.

64
Estrabismo alucinante

J eans colado no corpo. A boca constantemente aber-


ta. Meu vício quase eterno – aqueles músculos –,
chocolates e o desejo na veia insaciável, como uma
sede por refrigerante.
– Você quer mais? – perguntou, com o olhar
fixo em algum ponto entre os meus olhos e a minha
testa, dono de um leve estrabismo alucinante.
Eu não quero que a noite acabe.
Preciso muito desse precipício secreto: quarto
de motel, frio do ar condicionado, nojo da banheira
e das baratas que nos observavam, escondidas.
O espelho em formato de coração no teto.
Lembrei-me da infância após esquecer a infân-
cia, mas os meus buracos arfavam, o som ao redor era
o eco de nossas vozes. Mas eu plantaria bananeira
ali mesmo, escorregando nos centímetros daquela
estrutura: deus grego, militar uniformizado, moto-
queiro radical, pedreiro suado, padre nu sob a batina.

65
EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO

O espelho em formato de coração no teto.


Adolescência que me forçou a fugir – fui embora
de casa, meus pais seguraram a onda e a tristeza.
Enviavam cartas que eu não respondia.
Entre ele e eu houve a despedida harmoniosa.
Forcei todas as barras possíveis. Não pediu o número
do meu celular. Certamente esqueceu meu nome,
mas jamais esqueceria o nome fictício que inventou
para si.
Mergulhado no segredo, sua mulher não des-
confiaria, os filhos cresceriam fortes, homens, re-
solutos. Eu seria a torpe aventura, o amor em um
milhão de espelhos em formato de coração no teto.
Amor?
Procurei o restaurante mais próximo: faminto
por carne, purê de batatas e mais refrigerante. En-
tre uma garfada e outra, relembrei sua voz, o tom,
a estridência, o silêncio que deveria ter dado lugar
aos gemidos também refletidos naquele espelho em
formato de coração no teto.
Mas não quis sobremesa, pois eu era a mosca
no mel.
Eu era.
Forcei todas as barras possíveis.
Eu comia e imaginava quem sofreria por mim,
e se eu daria a devida importância, pois o coração é
rasteiro, asfalto às duas da tarde, um emaranhado
de roupas por lavar.

66
ANTÔNIO LACARNE

Em casa, tomei um banho demorado, vesti-


me com o desdém de quem não se revolta com as
próprias inconsistências. No dia seguinte eu leria
um livro, ensaboaria o meu cachorro, escolheria um
sorvete de frutas, andaria distraído, responderia ao
bom dia das pessoas, forçaria simpatia aos amigos,
quitaria a fatura do cartão de crédito, cruzaria a ci-
dade, adormeceria, economizaria os meus sonhos.
– Você quer mais? – ele disse.
Acordei sobressaltado. Lá fora chovia. O inver-
no, enfim, havia dado o ar da graça. Em fevereiro eu
estaria pronto, mês do meu aniversário. Vinte e oito
primaveras. Vinte e oito cactos sob as axilas.
Eu não queria dormir ou esquecer.
Mas acordei no dia seguinte.
Eu queria que ele me amasse pra caralho e que
após o jantar com a mulher e os filhos também pen-
sasse em mim ao fechar os olhos.
Forcei todas as barras possíveis.
Ele acordaria e só haveria uma lua triste lá fora.

67
Crise de insônia

N o dia da prisão de Afonso e da morte do meu


grande amigo, eu me perguntei – trancado em
algum cômodo da casa – se o destino e suas pedras
quebram constantemente o vidro de que somos feitos.
Mas eu estava diante da cozinha, de pés des-
calços, e o meu gato miava com olhos gigantescos,
sempre atentos – com suas vidraças possivelmente
intactas. Nos dois meses seguintes eu ainda pensava
na morte do amigo e em Afonso atrás das grades. Eu
pensava em algum ponto de interrogação submerso,
mas só conseguia enxergar a pia, a torneira, os pratos
a serem guardados. Eu queria algum acontecimento
sem urgência, algo de que eu pudesse tomar conta,
sem insônia. Eu, possivelmente dono de uma fazenda
e seus cabritos, porém algo existia dentro do meu
rosto sem solução; por isso falei ao telefone, e me
percebi confuso – a formular frases desconexas na
cabeça, entre uma pausa e outra, entre um nada e
outro nada.

69
EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO

Algum detalhe sobre o dinheiro que eu esperava


ao fim do mês – e com ele nas mãos, ausência e a
presença de outra necessidade infinita. Uma distra-
ção na ida ao shopping; na volta, subir as escadas,
os olhos nos degraus – enfim outra sede, outra per-
gunta, vontade partida sem luz no fim do túnel. Ou
a pizza a ser entregue em vinte minutos, enquanto
eu observo os talheres, sem fome, o prato vazio ao
lado – os olhos fixos na brancura dentro da brancura
do prato. Mas o gato ainda me perseguia e miava com
seus olhos gigantescos.
Pois este era o meio: dia após dia, o sentimento
do amigo morto que não me traria pistas. As vidra-
ças que são construídas e partidas, como não querer
amar após quase morrer de amor. Afonso ainda atrás
das grades.
Eu queria que a morte não fosse repentina ou
anunciada. Queria que ao fechar as portas algo fosse
observado por lentes de microscópio dentro de si,
amansado dentro de si, beijado dentro de si. Que
a vida não fosse uma manifestação de organismos,
frases, orgasmos, noites e fotografias perfeitas.
Queria que o morto e Afonso só irradiassem
“cego esplendor” de obstinados e maníacos, morte
e vida em um só corpo, como nos filmes de algum
diretor que desconheço.

70
Pênis gigantesco

F eliz e orgulhoso de si mesmo, mas era dono de um


pênis gigantesco, não era dono de quase nada, ou
vivia dizendo para si que o destino já estava escrito;
porém inaugurando alguma ideia que em contradição
lhe pertencia, isso sim lhe pertencia, uma opinião
vaga e preguiçosa, pois deixava o tempo lhe envelhe-
cer o rosto com as rugas da verdadeira amnésia. Em
segundos, esquecia-se do próprio pensamento sem
nunca pedir ajuda. Mas pedir ajuda exigia explicação
para que o entendessem. Desistia mais uma vez.
Despia-se na frente dos outros na rua, diziam
que a qualquer momento alguém daria um jeito nele,
olhem só, tamanho despudor na frente de crianças e
mocinhas. A vizinhança o acolhia morrendo de pena.
Não sabiam da história dele. Não queriam saber da
história dele, pois é sempre mais difícil compreender
as injustiças traçadas na vida de alguém, aquela vidi-
nha dele perdida, nu na frente das pessoas. Davam-

71
EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO

lhe um prato de comida, que ele devorava de cócoras


e em silêncio. Era um anjo que lhe tocava o ombro e o
acalmava; dizem que um anjo nos poupa de má-sorte
quando esquecemos de algo e precisamos verificar
pela terceira vez se a porta está trancada, se não es-
quecemos a geladeira aberta. O anjo lhe sussurrava
que faltava pouco, muito pouco, pouco para que ele
finalmente vivesse numa terra de muitos, dono de
um pênis gigantesco e não imaginário.
Seu pênis era longo e volumoso. Sua nudez
atraía a atenção de muitos, que logo em seguida se
esqueciam da curiosidade para sentir piedade dele,
que ainda sim era um homem bonito e alto. Um longo
pênis grosso e carnudo pendurado no corpo magro,
porém atlético e liso. Aquele pênis eternamente mole
e protuberante, mesmo adormecido. O membro que
tomara para si a maneira das pessoas observarem do
que ele também era feito, de sua sanidade também
perdida entre as pernas. Ele que até então não tinha
nome, apenas um enorme pênis e a loucura de não
falar coisa com coisa, agir coisa com coisa, pensar
coisa com coisa.
Os garotos riam dele, chamavam-no de trom-
ba de elefante, e ele sorria com os poucos dentes,
dava gargalhadas pronunciando alguma frase que
ninguém entendia. Louco e nu, morto de fome,
deitado de bruços no chão da praça onde as pessoas
caminhavam ao fim da tarde enquanto ele dormia.

72
ANTÔNIO LACARNE

O mistério que não o resgatava daquela loucura e da


incomunicabilidade das pessoas que lhe estendiam
uma gota de piedade, mas nunca lhe estendiam a
mão – apenas comentavam o despudor, o tamanho
do despudor, o tamanho daquele pau flácido.
Então a polícia foi chamada e o resgataram dali,
pois ele não pertencia, ele não sabia pertencer, era
louco, nu e com poucos dentes. Levaram-no embo-
ra e o obrigaram a vestir um calção sujo, achado ali
mesmo, e que porventura era também mais um ob-
jeto para o qual ele não daria a mínima importância.
A mulher que havia denunciado a nudez des-
pudorada do homem aos órgãos competentes, não
esquecera que ela também era sozinha no mundo.
O julgamento de sua própria voz ao telefone era um
passo para trás, ela que já estava tão acostumada a
perder-se, como quem não se importa em ser a úl-
tima escolhida. Era uma mulher que após tomar um
longo banho, enxugava os cabelos tentando burlar o
pensamento arbitrário, acreditando falsamente que
já precisava comprar nova tintura para as mechas
grisalhas. O impulso que ela teve em denunciar o
homem é talvez o mesmo que a mantém escondida
sob a piedade dos vizinhos, piedade que não existe,
pois não sabem ao certo o quanto ela sofre quando
fecha as luzes de casa e também se certifica três ve-
zes seguidas se já trancou a porta ou se esqueceu a
geladeira aberta.

73
Posfácio

A ntônio, meu amigo,


que bença ter lido teu livro justamente esses
dias. É difícil enumerar quantas porradas a gente
levou: os machos brasileiros abusando da mulher
russa durante a Copa; o silêncio dos colegas poetas
diante da poeta mulher que acusou um deles de
estupro durante um evento no Rio de Janeiro (e a
já-cansativa defesa do direito inalienável do homem
de “dar sua versão dos fatos”, que se seguiu); os
ataques cínico-homofóbicos, públicos, feitos pelo
ex-curador do Prêmio Jabuti contra dois profissionais
homossexuais.
É tanta frente para combater que a gente fica
cansada. Parar para ler teus “Exercícios de fixação” –
não salvou minha vida, mas salvou alguns minutos,
como disse Matilde, no seu quote talvez mais famoso.

75
EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO

Li teu livro nesses dias que tanto nos têm lem-


brado quão grande é o tamanho male privilege. Tão
chocante quanto ver a quantidade de gente disposta
a minimizar qualquer crime cometido por um homem
contra uma mulher, uma gay, uma trans, foi ficar sa-
bendo, aos poucos, que as pessoas envolvidas nesses
crimes, e seus pares, que as protegem, geralmente
são bastante parecidas. No caso dos brasileiros na
Rússia, e no caso do evento no Rio, e no caso do
Jabuti: homens cisgênero, brancos, hétero, com
alta escolaridade, membros de uma classe média
violenta e grosseira, homens que ocupam espaços de
poder que os protegem – espaços esses que eles só
conseguem ocupar, muitas das vezes, não pelas suas
capacidades, mas exatamente por essas credenciais
identitárias.
Diante da exposição das identidades de agres-
sores, nunca falta gente para dizer que “o menino”
não sabia o que estava fazendo, que não vale a pena
estragar a vida “do menino” por causa disso; que o
Brasil tem problemas maiores agora e affff-que-saco
lá vêm as feministas reclamar DE NOVO. Como as re-
petitivas fôssemos nós, vítimas diárias do machismo,
e não ozomi, que são machistas todo dia. Me poupe.
Desculpa te mandar um email em que na ver-
dade devia comentar teu livro, e acabou virando esse
desabafo, mas sei que do lado daí terei tua escuta. Sei
que tu sabe como eu me sinto, e teu livro confirma

76
ANTÔNIO LACARNE

isso: mulher ht e viado compartilham o amor pela


rola e os sofrimentos que dela advêm, hahaha.
Aí alguém poderia dizer: Adelaide, o sofrimento
não vem da rola, vem do dono da rola. E eu, meio cí-
nica, responderia que na verdade vem do capitalismo.
Mas pra isso não consigo não pensar que vem, um
pouco, sim, da rola, do falo, do falocentrismo.
Mas enfim. Ler, por exemplo, o conto da criança
viada, reagindo contra a homofobia na escola, nos
dias que se seguiram depois que o ex-curador do
Prêmio Jabuti fez aquela insinuação que misturava
ironia, com homofobia, com desonestidade intelec-
tual e política –, foi como uma revanche particular.
Que bom que teu livro, portanto, está entre nós,
para tirar a gente do marasmo falocêntrico da poesia
e do romance de boteco brasileiros. Para trazer uma
perspectiva que, ainda que urbana, não tem o eterno
contexto geográfico do Rio ou de São Paulo (ninguém
aguenta mais). Como é bom ler sobre Arlete (que final
maravilhoso!), sobre Jorginho, sobre esses “eus” e
“eles” e “elas”, os sem-nome dos contos, e as vidas
deles, tão absurdas de tão corriqueiras.
Enquanto lia teu livro, não sei por quais cami-
nhos, dei também de cara com o “The wages of whi-
teness: race and the making of the american working
class”, de David Roediger. Nele, Roediger explica
(entre outras miliquinhentas coisas, ainda não li
tudo) como a linguagem foi uma das formas usadas

77
EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO

para diferenciar os brancos pobres dos pretos po-


bres, no século 19. Ele descreve como, dentro de um
contexto em que todos e todas eram paupérrimos,
“ser branco” conferia uma forma de compensação da
pobreza (ou seja, um “wage”). Lembrei muito disso
enquanto comparava as narrativas de “Lápis de cor”
e “Pênis gigantesco”. Fiquei me perguntando se não
existe alguma coisa como “wages of maleness”. Não
achei ainda nenhum artigo sobre o assunto, sequer
sei se isso é um termo que existe na sociologia. Mas,
considerando que homens brancos nunca são hold
accountable pelos seus atos, deve ser mesmo uma
vantagem ter uma bilola.
Falo de “Pênis gigantesco” porque em ambos
o protagonista é uma pessoa muito pobre. Em um, a
pobreza do protagonista é meio que ignorada, ou ao
menos fica em segundo plano, pela credencial que
sua bilola enorme lhe dá. No conto, ele é conhecido
não como o morador de rua do bairro, mas como o
homem com o pênis gigante. Ele ganha respeito, ele
se safa da situação, por ter, como o título do conto
anuncia, um pauzão. No outro conto, a pobreza do
protagonista torna-se ainda mais visível, e é motivo
de ainda mais escárnio, pela “ausência” de uma bilola
(afinal a masculinidade tóxica vê um homem gay
como um homem desprovido de pau). Se considera-
mos, como Bell Hooks propõe, que o mundo confun-
de liberdade com virilidade (vindo, dessa confusão,

78
ANTÔNIO LACARNE

a falta de liberdade das mulheres), o mendigo, ainda


que pobre, recebe sua carta de alforria, simbólica, na
medida em que prova que é viril (ao menos organica-
mente). Tá fazendo sentido? Precisamos conversar
mais sobre isso. Ok, agora encerro. Beijo!

Adelaide Ivánova

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