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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS


CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO

JORDANA CRISTINA GIL DE OLIVEIRA

O JULGAMENTO DE JESUS CRISTO À LUZ DO PROCESSO BRASILEIRO

VOLTA REDONDA - RJ
2019
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JORDANA CRISTINA GIL DE OLIVEIRA

O JULGAMENTO DE JESUS CRISTO À LUZ DO PROCESSO BRASILEIRO

Monografia Jurídica apresentada ao Curso de


Direito do Instituto de Ciências Humanas e
Sociais de Volta Redonda, pertencente à
Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial à obtenção do título de
Bacharel em Direito.

Orientadora:
Prof.a Dr.a Mariana Devezas Rodrigues Murias de Menezes

VOLTA REDONDA - RJ
2019

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JORDANA CRISTINA GIL DE OLIVEIRA

O JULGAMENTO DE JESUS CRISTO À LUZ DO PROCESSO BRASILEIRO

Monografia Jurídica apresentada ao Curso de


Direito do Instituto de Ciências Humanas e
Sociais de Volta Redonda, pertencente à
Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial à obtenção do título de
Bacharel em Direito.

Aprovada em XX de XXXXXXXX de 2019.

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________
Profª. Drª. Mariana Devezas Rodrigues Murias de Menezes – UFF/ICHS
Orientadora

_____________________________________________
Profª. Drª. Renata Braga Klevenhusen - UFF/ICHS

_____________________________________________
Prof. Dr. Matheus Vidal Gomes Monteiro - UFF/ICHS

VOLTA REDONDA - RJ
2019

4
Meu Jesus, minha
fonte de inspiração.

5
AGRADECIMENTOS

Ao meu Deus, por ter me presenteado e inspirado com esse tema incrível e
desafiador.
Aos meus pais, pelo incansável investimento em minha educação e felicidade, que
resultou em tudo que me tornei hoje.
À minha mãe, que desde 2010 assumiu com excelência o papel de pai e mãe, sendo
minha maior incentivadora e amor da minha vida.
À minha irmã, que sempre acreditou no meu potencial, dando o suporte necessário
para correr atrás dos meus sonhos.
Aos meus colegas de curso, em especial Caroline Meira, Roberta e Clóvis, que me
abraçaram durante esses anos de caminhada acadêmica.
À minha professora e amiga Mariana Devezas, que embarcou nesse desafio comigo
e foi incansável.
Ao meu pastor Carlos Coutinho, por ser um grande incentivador e meu líder
espiritual.
A todos que, de alguma forma, contribuíram em minha caminhada acadêmica.

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Pois todas as coisas vêm dele, existem
por meio dele e são para ele. A ele seja
toda a glória para sempre! Amém.
Romanos 11:36
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RESUMO

O presente trabalho tem como escopo a análise do julgamento de Jesus Cristo, um


judeu nascido em Belém, província romana da Judeia, que posteriormente, após ser
martirizado, se tornou o líder religioso do Cristianismo, religião amplamente
difundida entre os povos ocidentais e que vem ganhando força com o transpassar
dos anos. Tendo em vista tratar-se de um julgamento contido no livro sagrado dos
cristãos, a Bíblia, e esta, por sua vez, exercer forte influência no ocidente
precipuamente, pretendeu-se analisar as contradições e obscuridades contidas no
julgamento de Jesus de Nazaré à luz do Direito Hebraico vigente à época entre os
judeus, Direito Romano, fonte normativa do império romano, potência política no
período, e por fim, será realizada uma comparação jurídica destes com o Direito
Brasileiro, posto serem fontes de inspiração direta ou indireta de todo o Direito. A
pesquisa está estruturada em três capítulos. O primeiro trata das fontes normativas
que serão analisadas; o segundo discorre sobre os julgamentos do réu perante as
autoridades religiosas judaicas e, após, Pilatos e Herodes, autoridades políticas
romanas e, por fim, o terceiro e último tratará da comparação jurídica entre estas
fontes normativas e o Direito Brasileiro.

Palavras-chave: Julgamento de Jesus Cristo. Direito Romano. Direito Hebraico.


Direito Brasileiro.

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ABSTRACT

The purpose of this paper is to analyze the judgment of Jesus Christ, a Jew born in
Bethlehem, the Roman province of Judea, who later, after being martyred, became
the Christian religious leader, a widespread religion among Westerners that has been
gaining momentum. over the years. In order to deal with a judgment published in the
holy book of Christians in the Bible, and this in turn exerting a strong Western effect
not hastily, it intended to analyze how contradictions and obscurities contained in the
judgment of Jesus of Nazareth in the light Hebrew law prevailing at the time. among
Jews, Roman Law, normative source of the Roman Empire, political politics during
period, and finally, a legal evaluation will be performed considered with the Brazilian
Law, since it uses sources of direct or indirect inspiration of all the Law. A research is
structured in three chapters. The first deals with the normative sources that will be
analyzed; the second disc about defendant judgments considered as judicial religious
authorities and, after Pilate and Herod, Roman politics and, finally, the third and last
treaty of legal comparison between these normative sources and Brazilian Law.

Keywords: Judgment of Jesus Christ. Roman law. Hebrew law. Brazilian law.

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LISTA DE ABREVIATURAS

ART Artigo
CRFB Constituição da República Federativa do Brasil
CPC Código de Processo Civil
CPP Código de Processo Penal

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ......................................................................................................12
2. FONTES NORMATIVAS.......................................................................................15
2.1 O POVO JUDEU................................................................................................15
2.1.1 A defesa das Sagradas Escrituras como fonte original de pesquisa...... 16
2.1.2 A base jurídica dos hebreus........................................................................ 18
2.2 DIREITO ROMANO........................................................................................ 20
2.2.1 O suposto réu: Jesus Cristo....................................................................... 21
2.2.2 Síntese dos fatos.......................................................................................... 23
3. OS JULGAMENTOS............................................................................................ 26
3.1 O PRIMEIRO JULGAMENTO: O SINÉDRIO E AS LEIS HEBRAICAS.......... 26
3.1.1 O crime de blasfêmia .................................................................................. 28
3.1.2 A profanação do shabat .............................................................................. 29
3.2 O SEGUNDO JULGAMENTO: AS LEIS ROMANAS ................................... 31
3.2.1 Herodes Antipas, o tetrarca........................................................................ 34
3.2.2 Jesus novamente perante Pilatos.............................................................. 35
3.3 O TERCEIRO JULGAMENTO: “VOX POPULI, VOX DEI?” ........................ 35
4. DIREITO BRASILEIRO: UMA COMPARAÇÃO JURÍDICA......................... 36
4.1 AS IRREGULARIDADES NO DIREITO BRASILEIRO.................................. 36
4.1.1 Os sistemas processuais penais............................................................... 37
4.1.2 O uso indevido de algemas e a Dignidade da Pessoa Humana............. 38
4.1.3 O crime de tortura ....................................................................................... 39
4.1.4 O julgamento perante um juiz incompetente............................................ 42
4.1.5 A violação do princípio da imparcialidade do julgador........................... 43
4.1.6 A violação ao princípio da presunção de inocência ............................... 45
4.1.7 Violação ao direito de defesa do réu: ausência de defesa técnica.........46
4.1.8 Violação ao princípio da motivação das decisões judiciais.................. 48
4.1.9 O crime de falso testemunho.................................................................... 49
5. CONCLUSÃO .................................................................................................... 51
6. REFERÊNCIAS ................................................................................................. 53

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1. INTRODUÇÃO

O tema em estudo é notoriamente relevante para os estudantes e operadores


do Direito, docentes e juristas, posto que, inegavelmente, configura-se em um dos
julgamentos mais conhecidos e difundidos na história, com capital importância,
sobretudo, para os povos ocidentais.
Trata-se do julgamento de Jesus Cristo, um homem que habitou na terra há
mais de 2.000 anos atrás, e que foi condenado à crucificação, uma das penas mais
severas aplicadas pelo Império Romano, pelos crimes, no Direito Hebraico, de
profanação do Shabat, falso profetismo e blasfêmia. No Direito Romano, por intitular-
se rei dos judeus, incitar o povo a não pagar os impostos à César1, e ser
considerado um agitador.
Algumas razões levaram o cristianismo a exercer forte influência sobre a
cultura ocidental, a começar pela instituição deste, através do imperador
Constantino, como religião oficial de Roma, por volta do século IV d.C., com vistas a
unificar a vasta e multirracial população romana. Muito se deve também ao fato de
que líderes e seguidores de Jesus Cristo acreditavam de fato que este havia sido o
homem mais notável da história. Os fiéis, especialmente as mulheres, admiravam
suas lições persuasivas e os seus provérbios convincentes, embora nem sempre
fossem fáceis de seguir.
Além disso, o cristianismo defendia a caridade para com os pobres e os
doentes, enquanto as igrejas pagãs2 raramente lhes prestavam ajuda. O historiador
australiano Geoffrey Blainey salienta que, quando a varíola se alastrou, entre os
anos de 165 e 180, e a baixa imunidade às infecções provocou inúmeras mortes, os
cristãos foram valorizados pelo auxílio que prestaram. Por fim, soma-se a isso a
crença dos cristãos no retorno de Jesus à terra, onde ele já estaria presente em
espírito, e na vida após a morte.
Apesar de muito conhecido e propagado, o julgamento de Cristo não encontra
grande amparo na literatura brasileira, principalmente no que tange aos aspectos
jurídicos que envolvem o caso. Todo o tratamento dado ao tema é de cunho

1 César era o Imperador Romano, senhor absoluto da Palestina na época de Jesus. Os impostos dos
povos conquistados deveriam ser pagos à Roma.
2 Religiões que cultivavam o respeito pelas forças vivas e sagradas da Natureza nas mitologia greco-

romana e tradições politeístas europeias e norte-africanas pré-cristãs.


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religioso, visto que os autos desse processo encontram-se essencialmente na Bíblia
Sagrada, ou seja, nos evangelhos sinódicos, aqueles considerados divinamente
inspirados e presentes no Novo Testamento, sendo eles: Mateus, Marcos, Lucas e
João, e nos evangelhos apócrifos, que não foram considerados divinamente
inspirados pela igreja ortodoxa, e que, portanto, não integram as escrituras, mas que
da mesma forma constituem fonte de pesquisa sobre o assunto.
Mesmo diante das dificuldades de se encontrar informações precisas acerca
do inteiro teor deste processo, a principal e mais conhecida fonte sobre a temática, a
Bíblia Sagrada, que por sua vez é também fonte do Direito Hebraico quase em sua
totalidade, em conjunto com o Direito Romano que regia o Império à época, permite
inferir, através de uma análise jurídica, que todo o procedimento se conduziu eivado
de vícios, ilegalidades e irregularidades, que serão estudados neste trabalho.
A elaboração desta pesquisa de conclusão de curso apresentou-se, desde o
início, como imenso desafio, quer pelos riscos da escolha de uma temática
polêmica, por se falar, em um meio acadêmico, em preceitos religiosos refletidos na
legislação de um Estado laicizado, quer pela escassa bibliografia específica
disponível. Contudo, o anseio de se desvendar os institutos jurídicos e as leis
vigentes à época da condenação de Jesus Cristo, bem como sua influência na
legislação brasileira, seja por herança, seja por inspiração, impulsionou o presente
trabalho para o aceite de tal desafio.
A problemática, portanto, é examinar os principais aspectos sociais e jurídicos
que culminaram com condenação de Jesus, bem como analisar a existência de
ilegalidades no transcorrer do processo.
A metodologia aplicada será a pesquisa qualitativa, com caráter exploratório e
descritivo, desenvolvida com base em pesquisa bibliográfica e documental. Além
disso, analisar-se-á o ordenamento jurídico brasileiro, a história e fontes do Direito
Romano, hoje presente em grandes acervos enciclopédicos e artigos científicos.
Tendo em vista a grande diversidade de traduções existentes da Bíblia
Sagrada espalhadas pelo mundo, optou-se, como fonte primária de pesquisa, pela
utilização em todo o trabalho da versão protestante Almeida Revista e Corrigida,
Bíblia de Estudo Aplicação Pessoal, edição de 1995. Isto porque sua tradução se
perfaz na equivalência formal em linguagem erudita, ou seja, o tradutor procurou
reproduzir no texto traduzido os aspectos formais do texto da língua original, seu

13
vocabulário, sua estrutura e os aspectos estilísticos. Desta forma, foi mantida a
ordem dos termos nas frases e também sua categoria gramatical, como se
encontram nos textos hebraico e grego do Livro Sagrado.
Por tudo isso, pretende-se com a pesquisa contribuir para uma discussão
acerca de um caso amplamente difundido entre os povos ocidentais, que envolve
aspectos jurídicos e processuais pertinentes aos estudantes e operadores do Direito,
bem como analisar as possíveis influências e inspirações exercidas no Direito
Brasileiro, advindas do Direito Romano e Hebraico.

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2. FONTES NORMATIVAS

Neste capítulo serão analisados aspectos normativos envolvendo as fontes do


Direito Hebraico e Romano, legislações vigentes à época do julgamento em estudo.
Versar-se-á, ainda, sobre as características dos judeus, povo do qual Jesus
pertencia, suas características e a síntese dos fatos que, posteriormente,
culminaram com a condenação do suposto réu.

2.1 O POVO JUDEU

Faz-se necessário, para melhor compreensão do tema, um breve histórico


acerca do povo judeu, posto que este possuía grande autoridade religiosa em Roma
à época de Jesus, detendo em sua mão não apenas a interpretação, como também
a aplicação do Direito Hebraico, sendo o maior responsável pelas acusações e
posterior condenação de Jesus, que também era judeu.
Os judeus são um povo de origem semita que vivia na Mesopotâmia entre os
rios Tigre e Eufrates (LAGES, 2017, p. 27). O domínio romano sobre Jerusalém
começou em 63 a. C., quando Pompeu Magno entrou na cidade com suas legiões
conquistadoras e sitiou o Templo, centro de comércio para toda Judeia, a principal
estação financeira e seu maior banco.
Um diferencial único na Antiguidade chama a atenção acerca desse povo:
eram monoteístas. Eles acreditavam em um só Deus, que por vontade própria havia
se revelado a um patriarca, Abraão e partir desse momento iniciou um
relacionamento entre ele e os que chamavam de Povo Escolhido3. Os únicos da face
da terra com um Deus, iniciando a história do monoteísmo que hoje é dominante no
mundo (LAGES, 2017, p. 27).
Nos tempos do suposto réu, Jesus Cristo, a autoridade máxima entre os
judeus era o Sinédrio, palavra derivada do grego sinedrion, que significa assembleia.
Também conhecido como o Grande Conselho dos Setenta, era o corpo religioso
supremo e o mais alto tribunal judiciário da nação judaica, composto por 70 pessoas,
divididas em representantes de três setores da sociedade: os membros das famílias
mais ricas, os saduceus (classe sacerdotal) e os fariseus (estudiosos da Torá). Estes
3Deus escolheu a nação de Israel para ser o povo através do qual Jesus Cristo iria nascer – o
Salvador do pecado e da morte.
15
últimos exerciam uma grande influência nas decisões do conselho, posto que eram
especialistas em lei judaica.
Com o domínio romano fez-se necessário um acordo entre o poder político e
o poder religioso centralizado no sinédrio, para que fosse mantida uma vigilância
sobre o culto judaico e, em particular, sobre o Sumo Sacerdote4, líder sacerdotal do
conselho. Esta figura possuía prestígio político e poder para decidir sobre todas as
questões religiosas, fazer cumprir a lei de Deus e até mesmo de efetuar prisões.
Para ter o controle sobre os judeus, os romanos tinham que controlar o
Templo, e, consequentemente, o Sumo Sacerdote. Assim, depois de tomar o
controle da Judeia, Roma tomou para si a responsabilidade de nomear e destituir o
ocupante deste cargo. À época do julgamento de Jesus, o Sumo Sacerdote era
Caifás.
A história desse povo pode ser acompanhada na Bíblia, mais especificamente
no Antigo Testamento, que reúne a Torá, os Profetas e os Escritos. O novo
testamento inclui a história e os ensinamentos de parte dos Hebreus que
acreditavam que Jesus era o Messias que o Antigo Testamento previa.

2.1.1 A defesa das sagradas escrituras como fonte original de pesquisa

Sendo a Bíblia Sagrada a principal fonte de pesquisa do presente trabalho,


posto que contém os autos do processo em análise, necessário se faz afirmar sua
confiabilidade como fonte original de pesquisa.
Um dos mais respeitados juristas da atualidade, juiz e presidente da Corte
Constitucional da Itália, Gustavo Zagrebelsky (2011, p. 40), reflete em sua obra “A
crucificação e a democracia”, sobre a autenticidade dos livros bíblicos:

[...] as Escrituras parecem-nos feitas não de fatos humanos historicamente


verificados nem de eventos divinos, mas de espíritos humanos consolidados
em dois mil anos de diálogo com as gerações que nelas se reconheceram.
Não há razão nenhuma para não reconhecer a esse espírito uma realidade
e uma verdade igual àquelas de qualquer outro. E não há, portanto, razão
para interrogar-se sobre a veracidade histórica dos eventos narrados, nem
sobre a filologia dos textos.

4 Nome dado ao mais alto posto religioso do antigo povo de Israel.


16
O Alcorão veio de Maomé. O livro dos Mórmons veio de Joseph Smith. Mas a
Bíblia é única, dentre os muitos livros sagrados do mundo. Foi escrita por 40 autores
diferentes, provenientes da Ásia, África e Europa, num espaço de 1600 anos.
Ao folhear as páginas deste livro, é possível perceber que seus escritores
transmitiram de forma unânime uma mensagem: o mesmo Deus que criou os céus e
a Terra, também providenciou uma maneira para que as pessoas o conhecessem
pessoalmente.
A palavra Bíblia, que significa livro, entrou para as línguas modernas por
intermédio do francês, passando primeiro pelo latim biblia, com origem no grego
biblos. Originariamente era o nome que se dava à casca de um papiro do século XI
a.C. Por volta do século II d.C, os cristãos usavam a palavra para designar seus
escritos sagrados (GEISLER, 1997, p. 06).
Este livro compõe-se de duas partes principais: o Antigo Testamento e o Novo
Testamento. O primeiro foi escrito pela comunidade judaica, e por ela preservado
um milênio ou mais antes da era de Jesus Cristo. Já o segundo, foi composto pelos
discípulos do Nazareno5 ao longo do século I d.C. (GEISLER, 1997, p. 06).
A palavra testamento, que seria melhor traduzida por “aliança”, é tradução de
palavras hebraicas e gregas que significam “pacto” ou “acordo” celebrado entre duas
partes. Logo, no caso da Bíblia, tem-se um contrato antigo, celebrado entre Deus e
seu povo, os judeus, e o pacto novo, celebrado entre Deus e os cristãos (GEISLER,
1997, p. 06).
Dentre tantas características desse livro, a mais importante não é sua forma e
estrutura, mas sim, o fato de ter sido inspirada por Deus. Defende-se que a Bíblia é
um livro com um autor divino, embora tenha sido escrita ao longo de 1.500 anos por
meio de quase quarenta escritores humanos (MACARTHUR, 2015, p. 24).
Ela se inicia com o relato da criação em Gênesis, escrito por Moisés em torno
de 1405 a.C., e se estende ao relato da eternidade futura em Apocalipse, escrito
pelo Apóstolo João, por volta de 95 d.C. Durante esse período, sustentam que Deus
progressivamente revelou a si mesmo os seus propósitos nas Escrituras inspiradas
(MACARTHUR, 2015, p. 24).

5O adjetivo Nazareno identifica Jesus Cristo por ser o nome da localidade onde este teria vivido com
sua família, antes de sua missão pública.
17
No entanto, um questionamento é relevante: como comprovar quais escritos
supostamente sagrados deveriam ser incluídos no cânone das Escrituras e quais
deveriam ser excluídos?
Segundo McArthur (2015, p. 24), ao longo dos séculos, três princípios foram
utilizados para validar os escritos provenientes da revelação e inspiração divinas.
Em primeiro lugar, o escrito tinha que ter um profeta ou apóstolo reconhecido como
autor; segundo, o escrito não podia discordar, nem contradizer, outra Escritura; por
fim, o escrito tinha que obter um consenso geral por parte da Igreja como um livro
inspirado. Portanto, quando vários concílios se reuniram durante a história da Igreja
para considerar o cânone, eles não votaram em favor da canonicidade de um livro.
Antes, reconheceram a posteriori, aquilo que Deus já havia escrito (MACARTHUR.
2015, p. 24).
No que tange ao Antigo Testamento, que, diga-se de passagem, contém as
leis do direito hebraico que serão analisadas adiante, até os dias de Cristo, toda sua
estrutura havia sido escrita e aceita pela comunidade judaica. O último livro,
Malaquias, havia sido concluído em torno de 430 a.C. Os livros apócrifos, que
perfazem um total de 14, foram anexados ao Antigo Testamento após Malaquias,
em torno de 200-150 a.C., na tradução grega do Antigo Testamento hebraico
chamada Septuaginta, e que aparece até os dias atuais em algumas traduções da
Bíblia (MACARTHUR. 2015, p. 25).
Já o Novo Testamento, acredita-se que seus 27 livros foram universalmente
aceitos por volta de 350-400 d.C. como inspirados por Deus (MACARTHUR. 2015, p.
25).

2.1.2 A base jurídica dos hebreus

A base jurídica do povo hebreu se perfazia quase em sua totalidade no


Pentateuco, ou torah, presente nos cinco primeiros livros da Bíblia Sagrada, quais
sejam: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Todavia, dentre estes
livros, os que expõem as leis que regiam o povo hebreu são Levítico e
Deuteronômio, muito embora se encontrar no livro de Êxodo a primeira aparição da
obra-prima do Direito Hebraico, usado até os dias atuais pela Igreja Apostólica

18
Romana, o Decálogo (Êxodo 20:1-17), ou seja, os dez mandamentos emanados por
Deus a Moisés, que segundo Norberto Bobbio (1992, p. 56-57), em sua obra “A era
dos Direitos” é o código moral por excelência do mundo cristão.
Em 586 a.C., após um cerco que durou mais de um ano, o rei da Babilônia,
Nabucodonosor, conquistou o reino dos hebreus, levando-os cativos para sua terra.
Esse cativeiro foi o estopim para a formação de um Direito Hebraico novo, oral,
posto que ao entrarem em contato com diversas culturas diferentes (notadamente
persas, gregos e romanos), os hebreus sentiram a necessidade de afirmar sua
cultura, ao mesmo tempo que procuravam adaptá-la dentro dos parâmetros das
influências que estavam recebendo (LAGES, 2017, p. 31).
A primeira codificação do direito oral foi chamada de Michná, que significa
repetição, e foi feita pelo último dos Tanaim, que eram os sábios, em 192 d.C. Essa
codificação se divide em seis partes, nas quais a primeira, a terceira e a quarta
constituem o corpo de Direito Civil (LAGES, 2017, p. 32).
Insta salientar que a lei oral atuava ao lado da escrita, qual seja, a lei
mosaica. Esta continuou a ser considerada infalível, prevalecendo em qualquer
conflito que se verificasse entre as duas. Para guardar a fidelidade à Legislação
Mosaica no uso da codificação nova, os séculos seguintes produziram discussões,
interpretações e aprofundamentos do texto da Michná, que deram origem às
Guemaras, que juntamente com a Michná e a própria Torá constituem o Talmud,
que significa estudo, sendo o verdadeiro corpo da Legislação Hebraica (LAGES,
2017, p. 32).
O Talmud nada mais é que um conjunto de regras e mandamentos
transmitidos oralmente, que foram transcritos em um documento, para que a lei não
se perdesse após a dispersão do povo judeu mundo afora. Atualmente, os preceitos
contidos neste documento são utilizados nas sinagogas como instrumento do
Rabino para orientar os fiéis em situações concretas.
Dentro desse contexto de normas, pode-se observar que a divisão das leis
hebraicas se perfaz da seguinte forma: leis acerca da violência, leis acerca da
propriedade, leis acerca dos crimes e leis civis e religiosas.

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2.2 O DIREITO ROMANO

O Direito Romano é cultuado até os dias atuais como uma das mais belas
organizações sociais existentes no mundo. Os judeus influenciaram os povos
ocidentais com a religião, os gregos com as artes, e os romanos com as leis e o
modelo de perfeição jurídica (RIBEIRO, 2017, p. 85).
Nas palavras de Von Iehring (1968, p. 254):

A importância do Direito Romano para o mundo atual não consiste só em ter


sido, por um momento, a fonte ou origem do direito: esse valor foi só
passageiro. Sua autoridade reside na profunda revolução interna, na
transformação completa que causou em todo nosso pensamento jurídico, e
em ter chegado a ser, como o Cristianismo, um elemento da Civilização
Moderna.

O Direito criado pelos romanos possibilitou que diversos países hoje sejam
intitulados Estados de Direito.
O conceito moderno de Estado de Direito está intrinsecamente relacionado ao
significado de Constitucionalismo, que por sua vez denota poder limitado,
supremacia da lei e respeito aos direitos fundamentais. Sua trajetória longa e
acidentada tem como marco inicial simbólico a experiência de Atenas, nos séculos V
e VI a.C., seguida pela República de Roma. Com a formação do Império Romano,
às vésperas do início da era cristã, o constitucionalismo desapareceu do mundo
ocidental por mais de mil anos (BARROSO, 2017, p. 284).
Para eles, a definição de Direito passava por seus mandamentos, que são:
“viver honestamente, não lesar ninguém e dar a cada um o que é seu” (iuris
praecepta sunt haec: honete vivere, alternum non ladere, suum cuique tribuere)
(LAGES, 2017, p. 83).
É possível identificar três períodos ou fases de evolução do Direito Romano:
Período Arcaico (ou Pré-Clássico), Período Clássico e o Período Pós-Clássico.
Através da datação trazida pela literatura, conclui-se que o Direito vigente à época
de Jesus Cristo se encontra no Período Pós-Clássico, que vai do século III até o
século VI d.C. (LAGES, 2017, p. 85).
Nesse período, o Direito Romano não sofreu grandes inovações, porém,
sentiu-se a necessidade de fixar definitivamente regras por meio de uma codificação
20
que, a princípio, era muito mal vista pelos romanos. Algumas tentativas foram
realizadas, entretanto, apenas após a queda do Império no Ocidente, Justiniano,
Imperador do Oriente, conseguiu empreender tal feito (LAGES, 2017, p. 86).
A Codificação Justiniana, chamada de Corpus Iuris Civilis é composto por
quatro obras: o Codex, que reúne a coleção completa das Constituições Imperiais; o
Digesto, que é a seleção das obras dos Jurisconsultos; as Institutas, que perfazem
um manual de Direito para os estudantes; e as Novelas, que são a publicação das
leis do próprio Justiniano. Além disso, é considerada conclusiva, marcando presença
em praticamente todos os códigos modernos (LAGES, 2017, p. 86).

2.2.1 O suposto réu: Jesus Cristo

Tendo em vista que o objetivo do presente trabalho é investigar eventuais


irregularidades e ilegalidades ocorridas no julgamento de Jesus Cristo, necessário
se faz uma análise mais detalhada dos personagens envolvidos no caso, bem como
a síntese dos fatos que levaram à sentença condenatória do acusado. Isto posto,
passa-se ao exame do suposto réu.
Nascido em Bélem (Mateus 2:1), na província romana da Judeia, nos últimos
anos do reinado de Herodes, O Grande, quando o Império Romano dominava a
Palestina, Jesus Cristo ou Jesus de Nazaré, como também era conhecido, era filho
do carpinteiro José e de Maria.
Jesus não deixou nenhum registro de próprio punho. O principal testemunho
de sua existência se encontra na Bíblia Sagrada, especificamente na coletânea de
textos conhecida pelo nome grego Evangelion, que significa “boa mensagem”,
localizados no novo testamento do livro da fé cristã: Mateus, Marcos, Lucas e João.
Esses evangelhos foram escritos em épocas distintas para públicos distintos, sendo
que Mateus foi escrito para os judeus entre 60 – 65 d.C., Marcos para os romanos
entre 55 – 65 d.C., Lucas para os gregos por volta de 60 d.C, e João para os
cristãos entre 85 – 90 d.C..
Segundo o evangelho de Lucas (Lucas 3:23), Jesus Cristo iniciou suas
atividades aos 30 anos de idade, ganhando, desta forma, visibilidade aos olhos das
autoridades romanas e judaicas, devido aos supostos milagres que realizava no
meio do povo e a forma revolucionária com que ensinava e confrontava as leis.

21
Tal postura acabou por despertar a fúria dos dirigentes judaicos, como os
fariseus e os saduceus, homens admirados pelo povo por sua aparente devoção e
conhecidos por sua tamanha obsessão a cada minúcia das leis de Deus; e dos
romanos, posto que haviam rumores de que ele estava proclamando-se rei dos
judeus, desafiando, por consequência, a autoridade de César.
Segundo John Stott (1991, p. 40), pastor e teólogo anglicano britânico,

Para ambos os grupos, Jesus parecia ser um pensador e pregador


revolucionário, e alguns o consideravam também como ativista
revolucionário. Ele perturbou o status quo tão profundamente que decidiram
acabar com ele. De fato, entraram em uma aliança maligna a fim de fazê-lo.
No tribunal apresentou-se uma acusação contra ele, blasfêmia. No tribunal
romano a acusação era política, sedição. Mas quer seu delito tenha sido
visto como primariamente contra Deus, quer contra César, o resultado foi o
mesmo. Percebiam-no como uma ameaça à lei e à ordem, a qual não
podiam tolerar.

Como citado por Stott, no ordenamento jurídico hebreu os dirigentes judaicos


estavam desejosos por enquadrar o nazareno no crime de blasfêmia, falso
profetismo e profanação do Shabat. Já na seara do Direito Romano, o crime de
sedição se balizava nos argumentos de que Jesus incitava o povo ao não
pagamento de impostos a César e de se autodeclarar rei dos Judeus, o que era uma
ameaça para o Império.
No livro de Lucas, capítulo 23, versículos 1 e 2, é narrado o momento em que
Pôncio Pilatos, então governador de Roma, recebe a denúncia oral contra Jesus: “E,
levantando-se toda a multidão deles, o levaram a Pilatos. E começaram a acusá-lo,
dizendo: Havemos achado este pervertendo a nossa nação, proibindo dar tributo a
César e dizendo que ele mesmo é Cristo, o rei6”.
A partir desse cenário, a corrida contra o tempo para julgar, condenar e matar
o potencial réu, a fim de se manter a segurança política do império e das
autoridades religiosas da época, começou a se desenvolver. Entretanto, desde o
recebimento da denúncia, até a sentença final, inúmeras irregularidades processuais
ocorreram, tanto na esfera do direito hebraico, quanto na do Direito Romano, e é
sobre isso que será pautado os tópicos a seguir.

6 Versículo bíblico com tradução de equivalência formal. Traduz-se palavra por palavra, mantendo
fidelidade ao texto original.
22
2.2.2 Síntese dos fatos

O Evangelho de Lucas, em seu capítulo 19, narra o momento que em Jesus


entrou em Jerusalém montado em uma jumenta, sendo recepcionado por uma
multidão de judeus com ramos de oliveiras nas mãos, que diziam: “Bendito o Rei
que vem em nome do Senhor! Paz no céu e glória nas alturas!” (Lucas 19:38). Tal
fato despertou a ira dos sacerdotes do Sinédrio e poderosos da região.
No entanto, essa não foi sua primeira visita à cidade. De acordo com o
Evangelho de Lucas capítulo 2, versículos 41 ao 52, tal evento aconteceu quando
Jesus tinha apenas 12 anos. Desaparecendo da vista de seus pais, foi encontrado
posteriormente no templo entre os mestres, que, maravilhados, ouviam as suas
sublimes reflexões, repletas de sabedoria.
A partir desse momento, inicia-se o ministério de Jesus, pregando o
evangelho, curando em dia proibido e expulsando cambistas do templo. Este último
ato é narrado nos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas, e talvez tenha sido o
estopim do maior assassinato judicial da história mundial:

E entrou Jesus no templo de Deus, e expulsou todos os que vendiam e


compravam no templo, e derribou as mesas dos cambistas e as cadeiras
dos que vendiam pombas. E disse-lhes: Está escrito: a minha casa será
chamada casa de oração. Mas vós tendes convertido em covil de ladrões. E
foram ter com ele ao templo cegos e coxos, e curou-os. Vendo, então, os
principais dos sacerdotes e os escribas as maravilhas que fazia e os
meninos clamando no templo: Hosana ao Filho de Davi, indignaram-se.
(Mateus 21:12-15)

Os acontecimentos que sucederam a esse episódio deflagraram as


conspirações e buscas em face do acusado. As escrituras apontam para a
repercussão popular positiva que teria causado a chamada ressureição de Lázaro,
irmão de Marta e Maria, como o ponto de partida para a deliberação da condenação
de Jesus. Nesta ocasião, o Nazareno declarou que a doença que acometia Lázaro
não era rumo à morte, mas à glória de Deus, a fim de que o Filho de Deus fosse
glorificado (João 11:1-46). Após quatro dias morto ou cataléptico, Lázaro se levanta

23
ao comando de Jesus, causando admiração, mas também uma temível repulsa por
parte das autoridades religiosas.
Segundo Mateus, capítulo 26, dois dias antes da Páscoa, os príncipes dos
sacerdotes, os escribas e os anciãos do povo, reuniram-se na sala do sumo
sacerdote, Caifás, consultando-se mutuamente para prenderem Jesus com dolo e o
matarem, com uma única condição: não ocorrer tal fato na festa da Páscoa, para
que não houvesse alvoroço entre o povo (Mateus 26:1-5).
Historicamente, a Páscoa (pessach) foi observada pela primeira vez no Egito,
quando as famílias de Israel foram isentadas da morte dos primogênitos, mediante o
sacrifício do cordeiro pascal (Êxodo 12:1-13). Segundo Samuel J. Schultz (1995, p.
69), “o propósito declarado da observância pascal era o de relembrar anualmente,
aos israelitas, qual fora a miraculosa intervenção divina em favor deles”. Por tal
razão havia grande temor dos líderes religiosos em prender Jesus nessa época do
ano tão tradicional entre os judeus.
Jesus foi preso à noite, sem que ao menos fosse apontado a ele o ilícito que
teria cometido. Ainda que não fosse indispensável para a ocorrência da prisão que
alguém o delatasse, posto que este não se escondeu nem tentou fugir, podendo ser,
portanto, localizado a qualquer tempo, Judas Iscariotes teria se vendido por trinta
moedas de prata e traído seu mestre com um beijo, como um sinal ao comandante
romano de quem era o Cristo.
Segundo Cláudio Umpierre Carlan, historiador e especialista do Museu
Histórico Nacional, no Império Romano, do qual a Judéia fazia parte, as moedas de
prata eram comuns no comércio de elite, como na troca de terras, por exemplo. Com
as trinta moedas que Judas ganhou, daria para comprar uma pequena fazenda.
Após essa traição, o tesoureiro do colégio apostólico acabou consumido pela
dor do arrependimento, a ponto de cometer suicídio por enforcamento (Mateus
27:5), comprometendo-se ainda mais com a lei. Em complemento às ocorrências de
tal episódio, o discípulo Pedro, no livro de Atos dos Apóstolos, capítulo 1, versículo
18, narra que Judas precipitou-se, “rebentou pelo meio e todas as suas entranhas se
derramaram”. Logo, presume-se que, ao se enforcar ao lado de um penhasco, a
corda que o atava rompeu-se, vindo este a se despedaçar no despenhadeiro.
No momento em que é encontrado para ser preso, Jesus estava
acompanhado de Pedro, João e Tiago, em um local de Jerusalém chamado

24
Getsêmani (Mateus 26:36-56), que nada mais é que um jardim ou horto no início do
Monte das Oliveiras no vale de Cédron, na parte oriental da cidade (João 18). Após
o beijo delator de Judas Iscariotes, o Nazareno foi conduzido para seu primeiro
julgamento junto ao Sinédrio, que à época era chefiado por Caifás, o sumo
sacerdote.
João, no capítulo 18 das Sagradas Escrituras, traz a informação de que na
noite da fatídica prisão, havia também uma coorte, que seria um destacamento
militar romano formado por seiscentos soldados. Portanto, o réu foi preso por um
destacamento militar romano e outro oriundo do templo de Jerusalém, reforçando
que romanos e judeus representavam nesse momento o poder político e religioso
central, respectivamente, naquela região.
Assim, após a efetivação da prisão, Jesus foi levado ainda à noite para as
autoridades religiosas judaicas, a fim de enfrentar o primeiro julgamento. Apenas no
dia seguinte, pela manhã, é que a causa seria submetida ao representante de César
na Judeia daqueles tempos, Pôncio Pilatos.
Segundo Marco Aurélio Bezerra de Mello (2018, p. 364), no livro “Os Grandes
Julgamentos da História”, já é possível salientar nesse ponto que, tanto sob as leis
romanas como pelas judaicas, a prisão de Jesus se revestiu de flagrante ilegalidade.
Isto porque a lei romana exigia prévia ata formal de acusação como primeiro ato a
justificar a prisão de uma pessoa, mas tal documento não existiu, reforçando que os
militares romanos ali se encontravam apenas como um favor do Estado dominante
(Roma) ao Estado dominado (Judeia). A lei judaica, por sua vez, não permitia que
nenhum processo fosse iniciado á noite. Entretanto, à noite se deu a prisão de
Jesus, inquirição e seu julgamento.

25
3. OS JULGAMENTOS

Como demonstrado no capítulo anterior, o suposto réu, Jesus Cristo, foi


submetido a mais de um julgamento, precisamente três: perante as autoridades
religiosas judaicas, perante Pilatos e Herodes que era as autoridades romanas da
época, e o julgamento popular. Diante disso, passa-se adiante à análise destes.

3.1 O PRIMEIRO JULGAMENTO: O SINÉDRIO E AS LEIS HEBRAICAS

Na sequência dos fatos, após ser capturado no Getsemâni, Jesus é levado


por volta das duas horas da manhã para a residência de Anás. Este já havia sido
sumo sacerdote, que representava o topo da hierarquia da religião judaica. No ano
em que Jesus foi julgado, o sumo sacerdote era seu genro, Caifás. Logo, conclui-se
que Anás não estava legitimado para conduzir aquele julgamento, o que acabou por
gerar sua incompetência absoluta para julgar o caso do suposto réu.
O desrespeito à instrumentalidade das formas no processo em análise não é
observado apenas na instauração de um processo judicial à noite e a portas
fechadas. Pelo contrário. A lei mosaica presente no livro das Sagradas Escrituras
denominado Deuteronômio, em seu capítulo 19, versículo 15, prediz que “uma só
testemunha contra alguém não se levantará por qualquer iniquidade, ou por
qualquer pecado, seja qual for o pecado que cometeu; pela boca de duas
testemunhas, ou pela boca de três testemunhas, se estabelecerá o fato”.
Esse era um princípio fundamental que dominava o processo hebreu:
somente com a palavra de duas ou três testemunhas o caso seria julgado. Dentre
outras garantias, a legislação mosaica, que já protegia contra o falso testemunho,
firmou também os seguintes princípios: não haver prisão preventiva, não ser o
acusado submetido a interrogações ocultas, pois, segundo os rabinos, ninguém
poderia ser condenado somente na sua confissão; ninguém poderia ser condenado
pelo depoimento de uma única testemunha, nem por conjecturas (ALMEIDA
JÚNIOR, 1959, p. 21).

26
No caso de Jesus, não houve qualquer depoimento capaz de dar azo à
acusação contra ele e posterior instauração de um processo. Logo, certo de que o
julgamento do Nazareno perante o Sinédrio era regido pelas leis do direito hebraico,
e que, diante de tal ordenamento, para haver a instauração de um processo criminal
contra alguém era necessário denúncia advinda de duas ou três testemunhas, Jesus
foi indiciado de forma inteiramente ilegal e abusiva.
Segundo Marco Aurélio Bezerra de Mello (2018, p. 366), o papel prévio das
testemunhas era tão proeminente, que a elas se conferia o atributo de iniciar a
execução da pena de morte, como se pode verificar no livro de Deuteronômio,
capítulo 17, versículos 6 e 7: “Por boca de duas testemunhas, ou três testemunhas,
será morto o que houver de morrer; por boca de uma só testemunha não morrerá.
As mãos das testemunhas serão primeiro contra ele, para matá-lo; e depois as mãos
de todo o povo; assim tirarás o mal do meio de ti”.
Sem a prévia manifestação testemunhal para formalizar a acusação, bem
como a ausência de um tribunal público à luz do dia em vez de à noite, Anás
encaminha Jesus amarrado ao seu genro, Caifás, que era o então Sumo Sacerdote
do Conselho e que já vinha conspirando contra o suposto réu (Mateus 26).
Na tentativa de conferir legalidade ao ato, testemunhas foram convocadas a
fim de depor contra Jesus. No entanto, seus depoimentos em muito se diferiam uns
dos outros, o que levou os religiosos a recorrerem à fama de Jesus, no que tange à
sua sinceridade e fidelidade com a verdade, questionando-o se ele era realmente o
Cristo, o Filho de Deus, o Messias prometido, obtendo uma resposta positiva do
Nazareno.
É exatamente nesse momento que Caifás rasga sua túnica e acusa Jesus de
blasfêmia, conforme se pode ver no livro de Mateus 26, versículo 62 ao 68: “Então o
sumo sacerdote levantou-se e disse a Jesus: "Você não vai responder à acusação
que estes lhe fazem? "Mas Jesus permaneceu em silêncio. O sumo sacerdote lhe
disse: "Exijo que você jure pelo Deus vivo: se você é o Cristo, o Filho de Deus, diga-
nos". "Tu mesmo o disseste", respondeu Jesus. "Mas eu digo a todos vós: chegará o
dia em que vereis o Filho do homem assentado à direita do Poderoso e vindo sobre
as nuvens do céu". Foi quando o sumo sacerdote rasgou as próprias vestes e disse:
"Blasfemou! Por que precisamos de mais testemunhas? Vocês acabaram de ouvir a
blasfêmia. Que acham?” "É réu de morte!”, responderam eles”.

27
O princípio nemo tenetur se detegere refere-se ao direito possuído por todo
acusado de não cooperar com a persecução penal contra ele instaurada, abstendo-
se de fornecer meios de prova que possam contribuir para a sua incriminação. Tal
princípio é originário do Ius Commune europeu e encontra seu equivalente no
Sistema Jurídico da Common Law, através do privilege against self-incrimination.
Trata-se de uma conquista da defesa técnica, pois restou consagrado, tanto na
Inglaterra quanto nos Estados Unidos da América após o esforço incansável dos
advogados, que repudiavam a prática arbitrária do juramento ex officio bem como a
presunção de que o silêncio do acusado produzia prova de sua culpabilidade
(FIGUEIREDO, 2016).
No Direito Romano, precisamente durante a monarquia, vigorou a cognitio
(conhecimento espontâneo), em que se bastava a notícia de um crime para que o
juiz investigasse e após julgasse. Dispensava-se a acusação e não havia
oportunidade para a declaração do acusado. Tinha o magistrado plenos poderes na
pesquisa da verdade dos fatos (ALMEIDA JÚNIOR, 1973, p. 74). Nos últimos
séculos da República, este procedimento começou a parecer insuficiente. Devido à
escassez de garantias, principalmente para as mulheres e para os não cidadãos, e
não depender de provocação, transformou-se em uma perigosa arma política nas
mãos dos magistrados (MANZINI, 1951, p. 5).

3.1.1 O crime de blasfêmia

Na antiga tradição hebraica, o crime de blasfêmia, conforme prediz o Livro de


Levítico, capítulo 24, a partir do versículo 10, deveria ser punido com a pena capital
de apedrejamento, desde que, reforça-se, houvesse a confirmação do delito pela
coleta de prova testemunhal: “E aquele que blasfemar o nome do Senhor
certamente morrerá; toda a congregação certamente o apedrejará; assim o
estrangeiro como o natural, blasfemando o nome do Senhor, será morto”.
Segundo Bezerra de Mello (2018, p. 369), a blasfêmia é ato segundo o qual
uma pessoa ultraja a divindade ou a religião, trazendo também a conotação de
possível usurpação da verdadeira autoridade e poder que pertencem ao Criador.

28
Enquadrar Jesus Cristo no tipo penal blasfêmia condenava-o previamente à
pena de morte segundo a lei religiosa judaica. Logo, ao ser apresentado às
autoridades romanas para ser julgado à luz do Direito Romano vigente à época, o
acusado já traria consigo uma condenação pré-determinada por autoridades
religiosas respeitadas pelo Império Romano.

3.1.2 A profanação do sábado

Malgrado ter sido condenado por blasfêmia, Jesus, segundo as autoridades


religiosas da época, teria cometido o crime de profanação do sábado em duas
situações, conforme os relatos evangélicos.
A primeira, ao curar um enfermo no tanque de Betesda, também conhecido
como Casa de Misericórdia, presente no evangelho de João, capítulo 5, versículos
17 e 18:

Então os líderes judeus começaram a perseguir Jesus por não respeitar as


regras do sábado. Jesus, porém, disse: “Meu Pai sempre trabalha, e eu
também”. Assim, os líderes judeus se empenharam ainda mais em
encontrar um modo de matá-lo, pois ele não apenas violava o sábado, mas
afirmava que Deus era seu Pai e, portanto, se igualava a Deus.

Na segunda situação, os discípulos do Jesus começaram a arrancar espigas


para comer. Provocado pelos fariseus que acompanharam o fato, este responde que
o Filho do Homem é Senhor do sábado, ou seja, o sábado foi feito por causa do
homem, e não o homem por causa do sábado. O episódio é narrado no Evangelho
de Mateus, capítulo 12, versículos 2 ao 8:

Por aquele tempo, Jesus estava caminhando pelos campos de cereal, num
sábado. Seus discípulos, sentindo fome, começaram a colher espigas e
comê-las. Alguns fariseus os viram e protestaram: “Veja, seus discípulos
desobedecem à lei colhendo cereal no sábado!”. Jesus respondeu: “Vocês
não leram nas Escrituras o que fez Davi quando ele e seus companheiros
tiveram fome? Ele entrou na casa de Deus e, com seus companheiros,
comeram os pães sagrados que só os sacerdotes tinham permissão de
comer. E vocês não leram na lei de Moisés que os sacerdotes de serviço no
templo podem trabalhar no sábado? Eu lhes digo: há alguém aqui maior que
o templo! Vocês não teriam condenado meus discípulos inocentes se
29
soubessem o significado das Escrituras: ‘Quero que demonstrem
misericórdia, e não que ofereçam sacrifícios’. Pois o Filho do Homem é
senhor até mesmo do sábado.

Nesse prospecto, Jesus teria realmente violado a lei judaica, presente no livro
de Êxodo, capítulo 31, versículos 14 ao 16, na qual o Profeta Moisés ordena:

Portanto, guardareis o sábado, porque santo é para vós; aquele que o


profanar certamente morrerá; porque qualquer que nele fizer alguma obra,
aquela alma será extirpada do meio do seu povo. Seis dias se fará obra,
porém o sétimo dia é o sábado do descanso, santo ao Senhor; qualquer que
no dia do sábado fizer obra, certamente morrerá. Guardarão, pois, o sábado
os filhos de Israel, celebrando o sábado nas suas gerações por concerto
perpétuo.

No entanto, no livro de Números, capítulo 15, versículo 35, observa-se um


episódio em que um homem é pego pelo povo de Israel apanhando lenha no deserto
no dia de sábado. Ele é levado à Arão e Moisés e recebe a seguinte pena: “Disse,
pois, o Senhor a Moisés: Certamente morrerá o tal homem; toda a congregação com
pedras o apedrejará fora do arraial. Então, toda a congregação o tirou para fora do
arraial, e com pedras o apedrejaram, e morreu, como o Senhor ordenara a Moisés”.
Observa-se no caso acima que um homem, assim como Jesus, também
cometeu o crime de profanação do Shabat ao ser flagrado apanhando lenha no
deserto no sábado, dia sagrado para os judeus. No entanto, a pena a ele aplicada foi
a pena de morte por apedrejamento, e não a pena de morte por crucificação, como
queriam cominar a Jesus. Logo, por uma questão de simetria, posto que o
ordenamento vigente em ambos os episódios era o mesmo, a pena a ser aplicada
deveria ser morte por apedrejamento.
Tais incidentes despertaram ainda mais o furor do movimento farisaico que
objetivava aniquilar Jesus, onde, segundo eles, transgredia o velho regime fundado
no temor e respeito incondicional às leis, para tentar implantar um reinado de
suposta sabedoria e amor ao próximo.
Neste interim, observa-se que o julgamento do suposto réu perante o Sinédrio
e as leis hebraicas se deu sem a menor observância do procedimento legal
determinado pela Torá. As autoridades religiosas presentes no interrogatório se

30
deixaram seduzir pelos argumentos do Sumo Sacerdote Caifás e negligenciaram
importante comando normativo contido na Bíblia Sagrada, no livro de Deuteronômio,
capítulo 16, versículo 19, que dispõe: “Não torcerás o juízo, não farás acepção de
pessoas, nem receberás peitas; porquanto a peita cega os olhos dos sábios e
perverte as palavras dos justos”. Vê-se nesse texto uma norma que adverte o leitor
contra o suborno e a injustiça.

3.2 O SEGUNDO JULGAMENTO: AS LEIS ROMANAS

Após ser julgado e condenado à pena de morte perante as autoridades


judaicas religiosas da época, à luz do Direito Hebraico, Jesus é levado ao jugo
romano. No entanto, um questionamento é levantado: poderia a pena imposta pelos
judeus do Conselho ser executada de imediato, sem a prévia oitiva e julgamento
pelas autoridades romanas?
Episódio como esse é narrado nas Sagradas Escrituras, conhecido como o
caso da mulher adúltera (João 8), que, ao ser pega em um ato de adultério, é
condenada à pena de apedrejamento pelos líderes religiosos. A passagem mostra
que a pena seria executada imediatamente, ou seja, sem prévio julgamento por
parte do Império Romano, sendo evitada apenas porque Jesus Cristo interviu na
situação, questionando a legitimidade de tal ato.
Sendo assim, porque a pena imposta ao acusado deveria ser corroborada
pelo Império Romano antes de ser executada? Bezerra de Mello (2018, p. 371)
salienta que executar um judeu no momento em que se comemorava a Páscoa
judaica não era oportuno nem conveniente, principalmente porque se tratava de um
homem que havia conquistado a simpatia e até mesmo a devoção do povo.
Desta forma, na manhã do dia seguinte a sua prisão, o suposto réu foi levado
à presença de Pôncio Pilatos para ser julgado (Mateus 27:11). Entretanto, as
acusações religiosas formalizadas pelo Sinédrio contra Jesus não tinham validade
perante a autoridade romana. A proclamação da origem divina e a conquista
exacerbada da simpatia do povo foram decisivas perante os líderes religiosos, mas
de nada valiam perante o procurador Pôncio Pilatos, visto que ele pedia elementos

31
que pudesse entender, que tivessem, sobretudo, um significado criminal fora da
cerca do templo.
De acordo com a narrativa de João nos evangelhos, Pilatos começou o
processo questionando qual era a acusação levantada contra Jesus, para então
poder avalia-la. Desta forma, perguntou aos homens do Sinédrio: “Que acusação
trazeis contra este homem?” (João 18:29). A resposta foi reticente, mas agressiva:
“Se este não fosse malfeitor, não o teríamos entregue a ti.” (João 18:30), uma
resposta que se mostrou claramente insuficiente para um normal procedimento da
ação perante o Direito Romano e o governador.
No evangelho apócrifo de Nicodemos (capítulo 4, versículo 3), é possível
perceber de maneira clara esta questão: “O governador mandou sair todos os judeus
do pretório e chamou Jesus perguntando-lhe: ‘O que farei de você?’. Jesus
respondeu: ‘Aquilo que te foi destinado’. E Pilatos perguntou: ‘E o que me foi
destinado?’ Jesus respondeu-lhe: ‘Moisés e os profetas prenunciaram a minha morte
e ressureição’. Os judeus, que estavam espiando furtivamente e tinham ouvido tudo,
disseram a Pilatos: ‘O que mais precisas ouvir, além desta blasfêmia?’. Então Pilatos
disse aos Judeus: ‘Se estas palavras são uma blasfêmia, conduzam-no à vossa
sinagoga, e julguem-no segundo a vossa Lei’”.
No diálogo entre Pilatos e o Sinédrio relatado no Evangelho de João, capítulo
18, versículo 31, o governador se pronuncia da seguinte forma: “julguem-no segundo
a vossa Lei”. Com isso, resta evidenciado que este não queria se envolver em uma
disputa que só dizia respeito ao povo hebreu. No entanto, os judeus lhe respondem:
“Não nos é lícito matar ninguém”.
Logo, subentende-se que já havia uma condenação definida por parte dos
hebreus, qual seja, a pena de morte, mas que não era abarcada pela delegação de
poder concedida pelas autoridades romanas aos Sinédrios das diversas cidades,
que se encontravam sob a autoridade última do Grande Sinédrio de Jerusalém. Ou
seja, a execução das condenações de penas capitais não era competência das
autoridades religiosas, então, as acusações contra o réu deveriam possuir fatos
relevantes para acionar o Direito Penal Romano.
Para Pilatos, as reivindicações hebraicas não passavam de uma “cegueira
fanática”, cujas raízes teológicas eram incompreensíveis a ele, e, portanto,
procurava não se envolver.

32
Gustavo Zagrebelsky, constitucionalista italiano, em seu livro “A crucificação e
a democracia”, relata (2011, p. 85):
Aos membros do Sinédrio era necessário o envolvimento de Pilatos, seja
porque eles não tinham o poder de mandar Jesus à morte, seja porque para
eles o aval da autoridade romana fosse essencial por motivos de política
interna por causa do temor de uma rebelião em ocasião da Páscoa. A
aliança com a força romana era indispensável em ambos os casos.
Portanto, para este fim, era necessário uma acusação diferente, que
deslocasse o assunto do plano teológico para um plano político, relevante
para os romanos. Assim, Jesus foi acusado de ter instigado o povo à revolta
incitando-o a não pagar tributos a Cesar, e de ter-se, ele mesmo,
proclamado rei: era um crimen laesae majestati.

A partir de então, a denúncia é modificada e o réu passa a ser acusado dos


crimes que negligenciavam o Direito Romano à época, quais sejam: sedição, ou
conspiração contra o imperador, e crimen laesae majestatis.
Quando acusado de incitar o povo a não pagar impostos a César, referia- se a
um crime contra a segurança do Estado, porém, vê-se que isso não possui
fundamentação verídica, pois na passagem bíblica em Marcos 12:13-17, onde relata
o pronunciamento de Jesus sobre o pagamento de Impostos a César, Jesus em
nenhum momento disse para não pagarem os seus impostos, ao contrário,
reconheceu na moeda a face do Imperador e orienta que se desse ao imperador o
que lhe era devido, ao dizer "dai pois a César o que é de César, e a Deus o que é de
Deus", como descreve Marcos 12:17.
A imagem que se encontrava na moeda era a de Tibério Claudio Nero César,
imperador romano na época em que se deu a execução do Mestre. Dele era a
autoria da lei que previa a crucificação de quem ousasse se rebelar ou mesmo
colocar em dúvida a autoridade de César.
Outro crime do qual Jesus foi acusado foi o de declarar-se rei, ao afirmar ser
o rei dos judeus, porém, caso provada tal acusação, deveria incidir sobre a lei
judaica, como blasfêmia, uma vez que ele se declarava ser rei dos judeus e não de
Roma, ou seja, Jesus não se declarou rei, perante o império de Cesar ou político, e
sim religioso.
Além disso, Jesus também fora acusado por sedição, que consistia em
provocar certa desordem perante o povo, ato de rebelião, como nos é relatado no
evangelho de Lucas (23:5) onde escreve: "mas eles insistiam cada vez mais,

33
dizendo: Alvoroça o povo ensinando por toda a Judeia, começando desde a Galileia
até aqui", porém também em relação a esse crime nada foi provado.

3.2.1 Herodes antipas, o tetrarca

Ao ouvir a referência aos atos de Jesus na Galileia, Pilatos entendeu haver


um conflito de competência derivado da ratione loci, em razão do lugar. Diante disso,
remeteu Jesus à Jurisdição que competia ao tetrarca Herodes Antipas, que se
encontrava em Jerusalém para a comemoração da Páscoa (Lucas 23:6-7).
A Galileia era governada por Herodes, o Grande, que, embora reinasse em
uma província dominada por Roma, dispunha de liberdade e autoridade delegadas
pelo imperador romano Augusto e mantidas, ainda que em menor escala, por Tibério
Cláudio Nero César. Tibério, por sua vez, nomeara Pilatos como governador da
Judeia. Pelo exposto, em ordem crescente, Herodes Antipas, Pôncio Pilatos e
Tibério eram as maiores autoridades temporais daquele local no período da
crucificação de Jesus Cristo de Nazaré (MELLO. 2018, p. 372).
Segundo Roberto Victor Pereira Ribeiro (2017, p. 104), era um expediente
comum para homens políticos à época encaminharem acusados do Forum
Aprehensionis para o Forum Originis, ou de domicílio. Logo, sendo Jesus galileu,
tomou tal decisão.
De acordo com a Bíblia, Herodes em muito se alegrou ao conhecer o
Nazareno, pois já tinha ouvido falar a seu respeito e esperava a um tempo vê-lo
realizar algum milagre (Lucas 23:8)
Diante do tetrarca, o acusado foi interpelado por inúmeras perguntas,
enquanto os mestres da lei permaneciam ali disparando acusações com ele. Porém,
Jesus nada respondeu. Ao ver isso, Herodes zomba e tenta ridicularizar o suposto
réu, colocando-lhe uma vestimenta, em alusão ao fato dele se intitular rei dos judeus
(Lucas 23:8-11).

34
3.2.2 Jesus novamente perante Pilatos

Sem sucesso perante Herodes, o suposto réu é novamente remetido a


Pilatos, que o submete a rápido interrogatório. Não encontrando nele crime algum
digno de morte a ser julgado, o governador romano, valendo-se do fato de que
Herodes devolvera o acusado, impõe a ele flagelos físicos com o intento de saciar o
anseio das autoridades judaicas e do povo por ela provocado.
Tal episódio é narrado no livro de Lucas, capítulo 23, versículos 14 ao 16:
“Disse-lhes: Haveis-me apresentado este homem como pervertedor do povo; e eis
que, examinando-o na vossa presença, nenhuma culpa, das de que o acusais, acho
neste homem. Nem mesmo Herodes, porque a ele vos remeti, e eis que não tem
feito coisa alguma digna de morte. Castigá-lo-ei, pois, e soltá-lo-ei”.
Pressionado pelo clamor popular, Pilatos entrega Jesus à crucificação,
afirmando antes, porém, ser inocente do derramamento de sangue daquele justo,
lavando as mãos e entrando para a história como o magistrado que, ciente do não
enquadramento do réu em delito algum, cede ante o medo de ter abalado os seus
interesses, por não respeitar a religião do povo dominado. Também temia um
alvoroço social, que poderia chegar até Roma, colocando em jogo sua competência
como administrador da província de Jerusalém.

3.3 O TERCEIRO JULGAMENTO: “VOX POPULI, VOX DEI”?

Diante da ausência de um consenso, Pilatos e o Sinédrio não se renderam a


uma decisão unilateral de encerramento do caso de Jesus. Então, voltaram-se para
a multidão, a fim de se evitar um conflito que poderia ser destrutivo para a
autoridade do procurador romano e do conselho de líderes religiosos.
Percebe-se que duas autoridades de fundamentos completamente opostos, o
Sinédrio ancorado no dogma e Pilatos no oportunismo do poder, transferiram a
competência para prolatar a sentença de um julgamento histórico a uma terceira
instância: uma instância popular. Aparentemente, pareceria que ambos se
encontravam em colisão, se tivessem se entregado deliberadamente à democracia,
uma coincidentia oppositorum.
35
No entanto, conforme escreve Zagrebelsky (2011, p. 107), não se tratou de
um recurso a uma autoridade superior, pois a multidão deu apenas a sua força, que
era instrumentalizada tanto pelo Sinédrio quanto por Pilatos. A suposta democracia
pode ser entendida simplesmente como um meio: para o procurador romano, de
manter a ordem e o poder; para os religiosos, de convencer Pilatos a condenar
Jesus e confirmar a própria autoridade sobre a Nação de Israel.

36
4. DIREITO BRASILEIRO: UMA COMPARAÇÃO JURÍDICA

É inegável a influência do Direito Hebraico para toda a civilização ocidental.


Os mandamentos contidos na Torah servem como base de valores e princípios
morais contidos nas codificações de diversos países. O Direito Romano, por sua
vez, oferece o ciclo jurídico completo, constituindo até hoje a maior fonte originária
de inúmeros institutos jurídicos. Roma é tida como a síntese da sociedade antiga,
representando um elo entre o mundo antigo e o mundo moderno. (BITENCOURT.
2002, p. 283).
Posto isto, revela-se de grande valia a análise das irregularidades e
ilegalidades contidas em todo o processo que resultou na condenação de Jesus,
através de uma comparação entre os Direitos envolvidos à época e o Direito
Brasileiro, visto que este, assim como outros ordenamentos espalhados pelo mundo,
sofreu forte influência e carrega consigo a herança de muitos institutos
desenvolvidos por eles, principalmente pelo Direito Romano.
Assim, neste terceiro e último capítulo, passa-se à análise do processo sob a
égide do Direito Brasileiro.

4.1 AS IRREGULARIDADES NO ORDENAMENTO BRASILEIRO

Segundo Aury Lopes Jr (2016, p. 44), o fundamento legitimante da existência


do processo penal democrático é a sua instrumentalidade constitucional, ou seja, o
processo enquanto instrumento a serviço da máxima eficácia de um sistema de
garantias mínimas. Isto porque todo poder tende a ser autoritário e necessita de
controle. Logo, as garantias processuais constitucionais são “verdadeiros escudos
protetores contra o (ab)uso do poder estatal (LOPES JUNIOR. 2016, p. 44).
Paralelamente a isso, o fundamento da legitimidade da jurisdição e da
independência do Poder Judiciário está no reconhecimento de sua função de
garantidor dos direitos fundamentais inseridos ou resultantes da Constituição. Neste
interim, a função do juiz é atuar como garantidor dos direitos do acusado no
processo penal.

37
No processo de julgamento de Jesus Cristo, que resultou em sua condenação
à pena de morte, inúmeras irregularidades foram cometidas. Muito se deve ao fato
de que a estrita observância ao devido processo legal não foi obedecida, nem no
que tange ao rito hebraico, tampouco no que tange ao rito do processo penal
romano, o que culminou em uma fácil identificação de desvios e abusos de poder.
O respeito ao devido processo legal não se trata unicamente de garantir as
“regras do jogo”, mas também um respeito real e profundo aos valores em questão e
a vida do ser humano que está sendo julgado.

4.1.1 Os sistemas processuais penais

As irregularidades e a ausência de um devido processo legal no caso de


Jesus ecoam até os dias atuais, mesmo após tantos anos. Isso porque em Roma se
encontra o berço do Direito, e, em nível de Brasil, a influência é ainda mais forte.
No que tange aos sistemas processuais penais existentes, observa-se que
três se destacam: o inquisitório, acusatório e o misto.
O sistema inquisitório é um modelo histórico. Conforme dispõe Aury Lopes Jr.
(2016, p. 33), suas principais características são: iniciativa probatória nas mãos do
juiz; ausência de separação das funções de acusar e julgar; violação do princípio ne
procedar iudex ex officio, pois o juiz pode atuar de ofício; juiz parcial; inexistência de
contraditório pleno; e, por fim, desigualdade de armas e oportunidades.
É da essência desse sistema a aglutinação de funções na mão do juiz e
atribuição de poderes instrutórios ao julgador, senhor soberano do processo.
Portanto, não há uma estrutura dialética e tampouco contraditória. Não existe
imparcialidade, pois uma mesma pessoa busca a prova e decide a partir da prova
por ela mesma produzida (LOPES JUNIOR. 2016, p. 34).
No caso do suposto réu, observa-se que, tanto no julgamento perante o
sinédrio, quanto no julgamento perante as autoridades romanas, o juiz concentrava
em si mesmo as funções de acusador e julgador. No tocante ao direito hebraico,
Anás e Caifás figuraram como juízes visivelmente parciais, insuflando a opinião dos
membros do Conselho Superior em desfavor da parte, produzindo provas contra o

38
acusado, acusando-o e julgando-o mutuamente, conforme toda a estrutura
denominada hoje de sistema inquisitório.
O sistema acusatório, por sua vez, se perfaz em características como: a clara
distinção entre as atividades de acusar e julgar; a iniciativa probatória deve ser das
partes; mantém-se o juiz como um terceiro imparcial, alheio a labor de investigação
e passivo no que se refere à coleta da prova; tratamento igualitário das partes; plena
publicidade de todo procedimento; contraditório e possibilidade de resistência,
dentre outras (LOPES JUNIOR. 2016, p. 34).
O chamado sistema misto nasce com uma divisão do processo em duas
fases: fase pré-processual e fase processual, sendo a primeira de caráter inquisitório
e a segunda acusatória. É a definição geralmente feita do sistema brasileiro, pois
entende-se que o inquérito policial é inquisitório e a fase processual acusatória, com
a presença do Ministério Público na figura de acusador (LOPES JUNIOR. 2016, p.
34).
Ante o exposto, nota-se que o julgamento do Mestre Nazareno em nada
observou o sistema processual misto. Não houve a figura de um juiz imparcial,
terceiro e equidistante das partes, a iniciativa probatória de interessado distinto da
pessoa do juízo, a plena publicidade de todo o procedimento em andamento, e
principalmente, a ausência total e absoluta de um amplo contraditório e igualdade de
oportunidades para as partes interessadas.
Pelo contrário. Conforme apontam os Evangelhos, o suposto réu, Jesus, foi
preso à noite, amarrado e levado à casa de Anás, um juiz incompetente, com sua
imparcialidade minada por questões de caráter pessoal, e interrogado sem a
assistência de uma defesa técnica.

4.1.2 O uso indevido de algemas e a dignidade da pessoa humana

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, prescreve em seu


artigo 5º, inciso LXI, que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por
ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos
de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei”.
Os evangelhos relatam que Jesus se encontrava no Monte das Oliveiras, no
vale de Cedrón, com seus discípulos, orando próximo a uma gruta afastada (João

39
18), quando foi encontrado, amarrado e preso por um destacamento militar romano
composto por seiscentos homens. Observa-se que este não cometia crime algum
que pudesse configurar flagrante delito e justificar sua prisão e o uso de cordas em
suas mãos.
No Brasil, tem-se a orientação da Súmula Vinculante nº 11, que expressa o
seguinte comando:

Súmula Vinculante 11 - Só é lícito o uso de algemas em casos de


resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física
própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a
excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil
e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato
processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do
Estado.

Jesus, pela análise das Escrituras Sagradas, ao ser encontrado, não


apresentou resistência ou tentou se evadir do local, tampouco apresentou perigo à
integridade física dele e/ou de terceiros. Logo, percebe-se que houve uma grave
violação à direito fundamental do acusado e sua dignidade humana.

4.1.3 O crime de tortura

A Bíblia Sagrada narra diversos episódios em que Jesus de Nazaré é


agredido, torturado e humilhado perante as autoridades responsáveis por seu
interrogatório e julgamento. Um desses episódios pode ser encontrado no evangelho
de João, capítulo 18, versículo 22, quando Jesus está diante de Anás: “E, tendo dito
isto, um dos servidores que ali estavam, deu uma bofetada em Jesus, dizendo:
Assim respondes ao sumo sacerdote?”.
Em um outro momento, agora perante Pilatos, o Evangelho de João, capítulo
19, versículos 1 a 3, relata que Jesus foi esbofeteado e açoitado, além de ser
humilhado pelos soldados romanos, ao lhe colocarem uma coroa feita de espinhos e
um manto vermelho, fazendo alusão à acusação imputada a ele, qual seja, rei dos
judeus: “Pilatos, pois, tomou então a Jesus, e o açoitou. E os soldados, tecendo uma

40
coroa de espinhos, lhe puseram sobre a cabeça, e lhe vestiram roupa de púrpura. E
diziam: Salve, Rei dos Judeus. E davam-lhe bofetadas”.
O Evangelho de Mateus, capítulo 26, versículos 67 e 68, também relata:
Então alguns lhe cuspiram no rosto e lhe deram murros. Outros lhe davam tapas e
diziam: "Profetize-nos, Cristo. Quem foi que lhe bateu? "
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu art.1º,
inciso III, traz a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da
República, um direito fundamental. Quando o texto maior proclama a dignidade da
pessoa humana, está consagrando um imperativo de justiça social, um valor
constitucional supremo.
Por isso, o primado consubstancia o espaço da integridade moral do ser
humano, independentemente de credo, raça cor, origem ou status social. Seu
acatamento representa o êxito contra a intolerância, o preconceito, a exclusão
social, a ignorância e a opressão (BULOS. 2014, p. 515).
A dignidade humana reflete, portanto, um conjunto de valores civilizatórios
incorporados ao patrimônio do homem. Seu conteúdo jurídico interliga-se às
liberdades públicas, em sentido amplo, abarcando aspectos individuais, coletivos,
políticos e sociais do direito à vida, dentre outros tantos (BULOS. 2014, p. 515).
O Ex-Ministro Joaquim Barbosa, relator no julgamento do HC 84.409,
asseverou acerca da dignidade da pessoa humana e da proibição de ofensas e
humilhações:

Denúncias genéricas, que não descrevem os fatos na sua devida


conformação, não se coadunam com os postulados básicos do Estado de
Direito. Mais! Quando se fazem imputações vagas está a se violar, também,
o princípio da dignidade da pessoa humana, que, entre nós, tem base
positiva no art. 1º, III, da Constituição. Como se sabe, na sua acepção
originária, este princípio proíbe a utilização ou transformação do homem em
objeto dos processos e ações estatais. O Estado está vinculado ao dever de
respeito e proteção do indivíduo contra a exposição a ofensas e
humilhações. (STF, HC 84.409, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ de
01/02/2005).

No que tange à prática de tortura, a CRFB/88 dispõe em seu artigo 5º, inciso
III, que “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou
degradante. Segundo Uadi Lammego Bulos (2014, p. 565), torturar é constranger

41
alguém, mediante a prática da violência, da grave ameaça, causando-lhe dor, pavor,
sofrimento físico ou mental.
No ordenamento jurídico brasileiro, discorre Rogério Greco (2017, p. 633-
634), sete anos após a edição da Lei nº 8.072/90, foi editada a Lei nº 9.455, de 7 de
abril de 1997, definindo o crime de tortura e trazendo outras providências. Nos
incisos I e II do art. 1º da referida lei, o legislador descreveu os fatos que se
configuravam em tortura, cominando-lhes uma pena de reclusão de dois a oito anos.
Criou o delito de tortura qualificada (§ 3º) quando da tortura resultar lesão corporal
de natureza grave (reclusão de quatro a dez anos) ou morte (reclusão de oito a
dezesseis anos). Atendendo ao disposto no art. 5º, XLIII, da Constituição Federal, o
§ 6º da aludida lei dispõe que o crime de tortura é inafiançável e insuscetível de
graça ou anistia.
Foucault (1987, p. 21) referindo-se ao incalculável sofrimento psíquico
resultante da inflição da Tortura, menciona:

Os suplícios saem do campo da percepção quase cotidiana e entram no da


consciência abstrata: é a era da sobriedade punitiva, quando não é mais
para o corpo que se dirige a punição, mas para a alma, devendo atuar
profundamente sobre o coração, o intelecto, a vontade, as disposições.
Assim, a premissa básica dos tempos modernos é: que o castigo fira mais a
alma que o corpo.

Cesare Beccaria (1995, p. 31) condena a prática da tortura nos interrogatórios


e julgamentos, e salienta o seguinte:

É uma barbárie consagrada pelo uso na maioria dos governos aplicar a


tortura a um acusado enquanto se faz o processo, quer para arrancar dele a
confissão do crime, quer para esclarecer as contradições em que caiu, quer
para descobrir os cúmplices ou outros crimes de que não é acusado, mas
do qual poderia ser culpado, quer, enfim porque sofistas incompreensíveis
pretenderam que a tortura purgava a infâmia.

A lei mosaica, especificamente no livro de Êxodo, capítulo 21, versículo 20,


protege os escravos de arbitrariedades e ações violentas: "Se alguém ferir seu
escravo ou escrava com um pedaço de pau, e como resultado o escravo morrer,
será punido”.

42
No Novo Testamento, o açoite aparece como uma prática mais comum aos
acusados de delitos. O apóstolo Paulo, escritor de grande parte dos livros do Novo
Testamento, chega a apelar à sua cidadania romana para livrar-se da tortura ao ser
preso em Roma: “E, quando o estavam atando com correias, disse Paulo ao
centurião que ali estava: É-vos lícito açoitar um romano, sem ser condenado? E,
ouvindo isto, o centurião foi, e anunciou ao tribuno, dizendo: Vê o que vais fazer,
porque este homem é romano. E, vindo o tribuno, disse-lhe: Dize-me, és tu romano?
E ele disse: Sim. E respondeu o tribuno: Eu com grande soma de dinheiro alcancei
este direito de cidadão. Paulo disse: Mas eu o sou de nascimento. E logo dele se
apartaram os que o haviam de examinar; e até o tribuno teve temor, quando soube
que era romano, visto que o tinha ligado” (Atos dos Apóstolos 22:25-29).
No caso em análise, o suposto réu, Jesus Cristo, foi submetido a tratamento
desumano e degradante ao ser esbofeteado e violentado pelos soldados romanos;
foi humilhado, quando lhe cuspiram no rosto e lhe coroaram com uma coroa de
espinhos, expondo-o à situação de caráter vexatório e depreciativo.

4.1.4 O julgamento perante um juiz incompetente

Após o acusado ser preso, foi imediatamente levado - frise-se, amarrado - até
a casa de Anás, membro do Conselho Superior do Sinédrio. Ocorre que, o Sumo
Sacerdote daquele ano era Caifás, genro de Anás. Logo, Caifás era a autoridade
religiosa judaica competente à época para julgar o caso de Jesus, e não Anás,
configurando vício de competência.
O art. 5º, inciso LIII, da CRFB/88 dispõe que “ninguém será processado nem
sentenciado senão pela autoridade competente”. Destaque-se, ainda, análise feita
pelo Supremo Tribunal Federal sobre o alcance do dispositivo em questão:

O postulado do juiz natural representa garantia constitucional indisponível,


assegurada a qualquer réu, em sede de persecução penal, mesmo quando
instaurada perante a Justiça Militar da União. (...). O postulado do juiz
natural, em sua projeção político-jurídica, reveste-se de dupla função
instrumental, pois, enquanto garantia indisponível, tem, por titular, qualquer
pessoa exposta, em juízo criminal, à ação persecutória do Estado, e,
enquanto limitação insuperável, representa fator de restrição que incide
sobre os órgãos do poder estatal incumbidos de promover, judicialmente, a
repressão criminal (HC 81.963, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 28/10/2004).
43
A competência impõe severos limites ao poder jurisdicional e, por sua vez,
está estreitamente disciplinada por regras que, em última análise, asseguram a
própria qualidade e legitimidade da jurisdição. Ao final de tudo, está a garantia de ter
um juiz natural, imparcial e cuja competência está claramente definida por lei
anterior ao fato criminoso (LOPES JÚNIOR, p. 193).
O nascimento da garantia do juiz natural dá-se no momento da prática do
delito, e não no início do processo. Não se podem manipular os critérios de
competência e tampouco definir posteriormente ao fato qual será o juiz da causa.
Elementar que essa definição posterior afetaria, também, a garantia da
imparcialidade do julgador.

4.1.5 A violação ao princípio da imparcialidade do julgador

Apesar da competência para julgar o Nazareno perante o direito hebraico ser


de Caifás, Sumo Sacerdote do Sinédrio à época, este se mostrava complemente
imparcial diante dos acontecimentos, conforme corroboram os escritos evangélicos.
No livro de Mateus, capítulo 26, versículos 3 e 4, observa-se um episódio
onde, logo após Jesus realizar um milagre, que gerou uma enorme repercussão no
meio do povo judeu, qual seja, a ressureição de seu amigo Lázaro, irmão de Marta e
Maria, os principais sacerdotes e líderes do povo se reuniram na casa de Caifás e
começaram a tramar uma forma de prender Jesus em segredo e matá-lo.
No livro de João, capítulo 11, versículos 47 ao 53, é observado o mesmo
episódio, no entanto, contada sob a perspectiva de João, que diferente de Mateus
que escrevia para os judeus, escrevia para os cristãos. Nessa passagem, os
principais sacerdotes questionavam-se mutuamente o que fariam para deter Jesus.
Os líderes judeus sabiam que, se não o detivessem, os romanos poderiam
discipliná-los, posto que Roma deu liberdade parcial aos judeus, com a condição de
serem discretos e obedientes.
Os milagres do mestre galileu frequentemente causavam grande admiração e
alvoroço entre o povo. Com isso, as autoridades religiosas temiam que o desagrado
aos romanos trouxesse sofrimento adicional a Israel.
Diante do exposto, é notória a imparcialidade de Caifás e de todo Conselho
Sacerdotal para julgar o caso do acusado.

44
Aury Lopes Jr. (2016, p. 49) assevera que o juiz deve manter-se afastado da
atividade probatória, para ter o alheamento necessário para valorar essa prova. A
figura do juiz-espectador em oposição à figura inquisitória do juiz-atos é o preço a
ser pago para termos um sistema acusatório. É uma questão de respeito às esferas
de exercício de poder.
O caráter de imparcialidade é inseparável dos órgãos que exercem a
jurisdição. O juiz deve se colocar entre as partes e acima delas. A incapacidade do
juiz, que se origina da suspeita de sua parcialidade, afeta profundamente a relação
processual. Justamente para assegurar sua imparcialidade, a Constituição lhe
estipula garantias (art. 95, CRFB/88), prescrevem-lhe vedações (art. 95, CRFB/88) e
proíbem juízos e tribunais de exceção (art. 5º, XXXVII, CRFB/88).
Os tribunais de exceção, instituídos para contingências particulares,
contrapõe-se ao juiz natural, pré-constituído pela Constituição e por lei. Segundo
Ada Pelegrini (2015, p. 76), o princípio do juiz natural apresenta um duplo
significado: primeiro consagra a norma de que só é juiz o órgão investido de
jurisdição, afastando-se, dessa forma, a possibilidade de o legislador julgar impondo
sanções penais sem processo prévio; segundo, impede a criação de tribunais ad hoc
e de exceção para julgamentos de causas civis e penais.
Nesta seara, observa-se que o princípio do juiz natural é uma garantia que se
desdobra em três conceitos: a) só são órgãos jurisdicionais os instituídos pela
Constituição; b) ninguém pode ser julgado por órgão constituído após a ocorrência
do fato; c) entre os juízes pré-constituídos, vigora uma ordem imperativa de
competências que exclui qualquer alternativa deferida à discricionariedade de quem
quer que seja (PELEGRINI. 2015, p. 76).
A imparcialidade do juiz é uma garantia de justiça para as partes. Por isso,
têm elas o direito de exigir um juiz imparcial, e o Estado, que assumiu a
responsabilidade do exercício da função jurisdicional, tem o correspondente dever
de agir com imparcialidade na solução das causas que lhe são submetidas. Logo, o
processo pode representar um instrumento não apenas técnico, mas ético, para a
solução dos conflitos interindividuais com justiça.

45
4.1.6 A violação ao princípio da presunção de inocência

No Direito Brasileiro, a presunção de inocência está expressamente


consagrada no art. 5º, LVII, da Constituição, sendo o princípio reitor do processo
penal. A complexidade do conceito desse instituto faz com que dito princípio atue em
diferentes dimensões no processo penal. Contudo, a essência da presunção de
inocência pode ser sintetizada na seguinte expressão: dever de tratamento.
Segundo Aury Lopes Jr. (2016, p. 273-274), esse dever de tratamento atua
em duas dimensões, interna e externa ao processo. Dentro do processo, a
presunção de inocência implica um dever de tratamento por parte do juiz e do
acusador, que deverão efetivamente tratar o réu como inocente, não usando das
medidas cautelares e, principalmente, não olvidando que a partir dela se atribua a
carga da prova integralmente ao acusador (em decorrência do dever de tratar o réu
como inocente, logo, a presunção deve ser derrubada pelo acusador). Na dimensão
externa ao processo, a presunção de inocência impõe limites à publicidade abusiva
e à estigmatização do acusado (diante do dever de tratá-lo como inocente).
A partir do momento em que o imputado é presumidamente inocente, não lhe
incumbe provar absolutamente nada. Existe uma presunção que deve ser destruída
pelo acusador, sem que o réu (e muito menos o juiz) tenha qualquer dever de
contribuir nessa desconstrução (direito de silêncio – nemo tenetur se detegere).
Ferrajoli (2000, p. 610) esclarece que a acusação tem a carga de descobrir
hipóteses e provas, e a defesa tem o direito (não dever) de contradizer com contra
hipóteses e contraprovas. O juiz, que deve ter por hábito profissional a
imparcialidade e a dúvida, tem a tarefa de analisar todas as hipóteses, aceitando a
acusatória somente se estiver provada e, não a aceitando, se desmentida ou, ainda
que não desmentida, não restar suficientemente provada.
No caso de Jesus, devido ao insucesso perante Herodes, este é remetido
novamente a Pilatos, que o submete a um rápido interrogatório. Entretanto, narram
as Escrituras que o governador romano não encontrou nele crime algum digno de
morte a ser julgado, porém, mesmo assim, o expõe a flagelos físicos perante todo o
povo e das autoridades judaicas.

46
Tal episódio é narrado no livro de Lucas, capítulo 23, versículos 14 ao 16:
“Disse-lhes: Haveis-me apresentado este homem como pervertedor do povo; e eis
que, examinando-o na vossa presença, nenhuma culpa, das de que o acusais, acho
neste homem. Nem mesmo Herodes, porque a ele vos remeti, e eis que não tem
feito coisa alguma digna de morte. Castigá-lo-ei, pois, e soltá-lo-ei”.
Ao lado da presunção de inocência, como critério pragmático de solução da
incerteza (dúvida) judicial, o princípio do in dubio pro reo corrobora a atribuição da
carga probatória ao acusador e reforça a regra de julgamento (não condenar o réu
sem que sua culpabilidade tenha sido suficientemente demonstrada). A única
certeza exigida pelo processo penal refere-se à prova da autoria e da materialidade,
necessárias para que se prolate uma sentença condenatória. Do contrário, em não
sendo alcançado esse grau de convencimento, a absolvição é imperativa.
Isso porque, ao estar a inocência assistida pelo postulado de sua presunção,
até prova em contrário, essa prova contrária deve aportá-la quem nega sua
existência, ao formular a acusação. Trata-se de estrita observância ao nulla
accusatio sine probatione.
Portanto, percebe-se clara violação ao direito que possuía Jesus de ser
considerado inocente, até que se provasse o contrário, e, no caso de dúvida latente,
ser absolvido. Pilatos tinha dúvidas. Pilatos não tinha provas suficientes para
sustentar a sua decisão, mas mesmo assim, não considerou o réu inocente das
acusações que estavam sendo imputadas a ele. Pelo contrário, o expôs à situação
vexatória.

4.1.7 Violação ao direito de defesa do réu: a ausência de defesa técnica

O suposto réu, ao ser amarrado e levado para a casa de Anás, sogro do


sumo sacerdote à época, Caifás, às duas horas da manhã, não teve conhecimento
sequer do crime que estava sendo imputado a ele, tampouco pode contar com a
presença de um advogado para agir em sua defesa.
O direito de defesa, na esfera do processo penal brasileiro, se subdivide em
duas classificações: defesa técnica e defesa pessoal. A defesa pessoal ou

47
autodefesa é a possibilidade de o sujeito passivo resistir pessoalmente à pretensão
acusatória, seja através de atuações positivas ou negativas.
A autodefesa positiva deve ser compreendida como direito disponível do
sujeito passivo de praticar atos, declarar, participar de acareações,
reconhecimentos, submeter-se a exames periciais, dentre outras posturas. A defesa
pessoal negativa estrutura-se a partir de uma recusa, um não fazer. É o direito de o
imputado não fazer prova contra si mesmo, podendo recusar-se a praticar todo e
qualquer ato probatório que entenda prejudicial à sua defesa (LOPES JUNIOR.
2016, p. 281).
A defesa técnica, por sua vez, supõe a assistência de uma pessoa com
conhecimentos teóricos do Direito, um profissional, que será tratado como advogado
de defesa, defensor ou simplesmente advogado.
Segundo Aury Lopes Jr. (2016, p. 72), a justificação da defesa técnica decorre
de uma esigenza di equilibrio funzionale entre defesa e acusação e também de uma
acertada presunção de hipossuficiência do sujeito passivo, de que ele não tem
conhecimentos necessários e suficientes para resistir à pretensão estatal, em
igualdade de condições técnicas com o acusador. Essa hipossuficiência leva o
imputado a uma situação de inferioridade ante o poder da autoridade estatal.
Portanto, a defesa técnica é considerada indisponível, pois, além de ser uma
garantia do sujeito passivo, existe um interesse coletivo na correta apuração do fato.
Trata-se, ainda, de verdadeira condição de paridade de armas, imprescindível para a
concreta atuação do contraditório. Inclusive, fortalece a própria imparcialidade do
juiz, pois, quanto mais atuante e eficiente forem ambas as partes, mais alheio ficará
o julgador.
A necessidade da defesa técnica está expressamente consagrada no art. 261
do CPP, onde se pode ler que nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido,
será processado ou julgado sem defensor. Já a Magna Carta de 1988 preceitua, em
seu art. 133, que o advogado é indispensável à administração da justiça.
Logo, resta claro que mais um direito fundamental do acusado foi violado.
Apesar do Nazareno ter feito uso de sua defesa pessoal, intrínseca à sua pessoa, ou
seja, manteve-se em silêncio em diversos momentos dos interrogatórios, não
fazendo, desta forma, prova contra si mesmo, em nenhum momento foi dado a ele a
oportunidade de constituir um advogado ou defensor, conhecedor das leis, para que

48
o equilíbrio processual do contraditório fosse estabelecido, configurando uma
situação de extrema hipossuficiência e inferioridade do suposto réu frente à
autoridade coatora.

4.1.8 Violação ao princípio da motivação das decisões judiciais

Por diversas vezes, durante o julgamento de Jesus sob as leis romanas


vigentes à época, Pilatos manifestou sua decisão no sentido de que o réu era
inocente, visto que não encontrava nele crime algum: “Tomai-o vós, e crucificai-o;
porque eu nenhum crime acho nele” (João 19:6). No entanto, ao exarar a sentença
final, sua motivação foi completamente oposta. Atendendo ao clamor popular e à
pressões religiosas e políticas, condenou o Nazareno à morte.
A motivação das decisões judiciais é uma garantia expressamente prevista no
art. 93, IX, da Constituição e é fundamental para a avaliação do raciocínio
desenvolvido na valoração da prova.

Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal,


disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes
princípios:
[...]
IX - todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e
fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei
limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus
advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do
direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse
público à informação;

Logo, a motivação das decisões judiciais convém para o controle da eficácia


do contraditório, e para demonstrar que existe prova suficiente para derrubar a
presunção de inocência. Só a fundamentação permite avaliar se a racionalidade da
decisão predominou sobre o poder, principalmente se foram observadas as regras
do devido processo legal.
Aury Lopes Jr (2016, p. 76) corrobora, afirmando que se trata de uma garantia
fundamental e cuja eficácia e observância legitimam o poder contido no ato
decisório. Isso porque, no sistema constitucional-democrático, o poder não está
autolegitimado, não se basta por si próprio. Sua legitimação se dá pela estrita
49
observância das regras do devido processo penal, entre elas o dever (garantia) da
fundamentação dos atos decisórios.
Portanto, conclui-se que a decisão final de Pilatos acerca de um caso
completamente controverso, com testemunhas falsas, sem provas concretas e
pressionado pela opinião pública, foi extremamente arbitrário e imotivado, violando
uma garantia fundamental do acusado, o princípio da legalidade, da publicidade,
bem como a dignidade da pessoa humana.

4.1.9 O crime de falso testemunho

O processo penal é um instrumento de retrospecção, de reconstrução


aproximativa de um determinado fato histórico. Como ritual, está destinado a instruir
o julgador, a proporcionar o conhecimento do juiz por meio da reconstrução histórica
de um fato. Nesse contexto, as provas são os meios através dos quais se fará essa
reconstrução do fato passado (crime).
Aury Lopes Jr. (2016, p. 345) salienta que, com as restrições técnicas que a
polícia judiciária brasileira – em regra – tem, a prova testemunhal acaba por ser o
principal meio de prova do processo criminal no Brasil. Em que pese a imensa
fragilidade e pouca credibilidade que tem, a prova testemunhal culmina por ser a
base da imensa maioria das sentenças condenatórias ou absolutórias proferidas.
Por isso, tal instrumento probatório deve ser tratado com a máxima seriedade.
Tanto é assim, que o Direito Penal brasileiro, em seu art. 342, tipificou o crime
de falso testemunho ou falsa perícia, com pena de 2 a 4 anos e multa. Segundo o
Conselho Nacional de Justiça, tal crime se configura no ato de mentir ou deixar de
falar a verdade em juízo, em processo administrativo, inquérito policial ou em juízo
arbitral. A realização de qualquer atividade prevista no referido artigo configura a
consumação do crime, mesmo que o ato não produza consequências.
A punição aumenta, de um sexto a um terço, no caso de o crime ter sido
praticado mediante suborno ou com o fim de obter prova destinada a produzir efeito
em processo penal, ou em processo civil em que for parte entidade da administração
pública direta ou indireta. No caso de a pessoa se retratar ou declarar a verdade, o

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crime deixa de existir. A retratação, no entanto, deve ocorrer antes de a sentença
ser prolatada.
No caso em análise, as próprias autoridades judaicas, que atuavam como
acusadores e julgadores do suposto réu no âmbito do direito judeu, tentaram de
inúmeras maneiras arrolar testemunhas falsas, para que fosse possível enquadrar o
suposto réu em um crime onde a pena cominada fosse a de morte, posto que o
direito judeu prescreve no livro da Torah, Deuteronômio, capítulo 19, versículo 15,
que “uma só testemunha contra alguém não se levantará por qualquer iniquidade, ou
por qualquer pecado, seja qual for o pecado que cometeu; pela boca de duas
testemunhas, ou pela boca de três testemunhas, se estabelecerá o fato”.
Portanto, percebe-se que tamanha aberração também ocorreu no julgamento
em análise.

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5. CONCLUSÃO

Por todo o exposto, chega-se à conclusão do presente trabalho com a clareza


da hipótese levantada ao início, qual seja, de fato o julgamento de Jesus Cristo foi
maculado por vícios e irregularidades que ferem princípios inerentes à pessoa
humana, tanto perante o Direito Romano quanto o Direito Hebraico, e por fim, diante
do Direito Brasileiro, ao se realizar uma comparação jurídica, que era a proposta
inicial da presente pesquisa.
Jesus Cristo, também conhecido como Jesus de Nazaré, era judeu, nascido
em Belém, província romana da Judeia, e começou a ganhar a visibilidade das
autoridades religiosas da época quando contava com 30 anos de idade, tendo em
vista o modo sábio com o qual ensinava nas sinagogas e a autoridade com a qual
pregava as leis de Deus para os hebreus.
O fato de por vezes desafiar o extremo rigor das Leis de Moisés, considerada
sagrada e digna de obediência pelos judeus, seu povo, o levou a ser acusado de
crimes perante as duas maiores potencias jurídicas da época: o império romano e as
autoridades religiosas judaicas, consubstanciadas no Sinédrio, conselho de
sacerdotes que julgavam as questões relacionadas ao Direito Hebraico.
Profanação do sábado, falso profetismo e blasfêmia foram os crimes
imputados a Jesus na lei dos hebreus. Crimen laesae majestati e sedição foram os
crimes enquadrados perante o Direito Romano. No entanto, como visto, nenhum
destes restou conclusivo para a cominação de uma pena capital de morte na cruz, a
mais severa e humilhante vigente no império romano à época. Isto porque todo o
processo se desenvolveu e foi concluído em menos de cinco dias, sem a presença
de garantias mínimas para o réu.
A começar por um interrogatório noturno, proibido pelo Direito Hebraico, todo
o restante do processo se desenvolveu de maneira igualmente irregular. O uso da
força para conduzir o acusado, a presença de testemunhas falsas para depor contra
este, um juiz incompetente e imparcial para julgar o caso e a cominação de uma
pena diversa da prevista em lei, qual seja, pelo crime de blasfêmia e profanação do
sábado a pena cominada deveria ser de apedrejamento, e não morte na cruz. Tudo
isso leva a evidenciar os erros cometidos.

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Além disso, inicialmente não fora evidenciado crimes cometidos por Jesus
perante o império romano. Entretanto, aos membros do Sinédrio era necessário o
envolvimento de Pilatos, autoridade romana, porque eles não tinham o poder de
mandar o acusado à morte, e também porque para eles o aval dos romanos era
essencial por motivos de política interna devido ao temor de uma rebelião. A aliança
com a força romana era indispensável em ambos os casos. Logo, para este fim, era
necessária uma acusação diferente, que deslocasse o assunto do plano teológico
para um plano político, relevante para os romanos.
Vê-se, portanto, que perante o Direito Romano uma brecha na Lei fora
plantada para atender aos interesses das autoridades políticas e religiosas
dominantes à época, em vista de um retorno do equilíbrio político-religioso que havia
sido perdido com a revolução proposta por Jesus de Nazaré.
Desta forma, tendo em vista a grande influência exercida pela Bíblia Sagrada
na cultura dos povos ocidentais, e do Direito Romano na origem de todo o Direito,
principalmente do Direito Civil, uma análise comparativa entre estes e o Direito
brasileiro foi realizada, podendo-se concluir que inúmeros institutos foram violados,
princípios constitucionais ignorados e crimes durante o julgamento foram cometidos.
Conforme exposto, o réu fora submetido ao crime de tortura durante seu
interrogatório, algemado sem apresentar risco, resistência ou tentativa de fuga, nada
que justificasse o uso do instrumento, seu direito de defesa fora cerceado pela
ausência de uma defesa técnica, presença de testemunhas falsas e o julgamento do
caso por um juiz imparcial e incompetente. Por fim, a transferência da tomada de
decisão do julgador para o povo, mesmo sem a presença de um fato típico, ilícito e
culpável, culminou com a condenação de um homem inocente.
Portanto, conclui-se o presente trabalho com resultados satisfatórios diante
das hipóteses levantadas e colocadas como ponto de partida para o início da
pesquisa. Um julgamento difundido durante anos, contido em um livro sagrado tão
presente na história dos povos ocidentais, mas que se consagrou eivado de
contradições e obscuridades à luz do Direito Romano e Hebreu, que por sua vez
foram fonte de inspiração para o Direito Brasileiro, direta ou indiretamente.

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6. REFERÊNCIAS

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