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Para onde vamos? Para onde queremos ir?

Luis Radford
Universidade Laurentiana, Canadá

Como não é possível separar a política da educação, o ato político é pedagógico e o


pedagógico é político (Freire, 2000, p.58).

A educação oferecida pela escola contemporânea é organizada de acordo com


objectivos específicos. Esses objetivos justificam os conteúdos disciplinares que os
alunos devem aprender na escola e orientam as práticas pedagógicas dos
professores. Embora os documentos oficiais possam explicitar alguns aspectos
desses objetivos, em geral, eles expressam apenas parcialmente suas justificativas.
Por outras palavras, as justificações são, em grande parte, tomadas como garantidas.
O caso da educação matemática é talvez o melhor exemplo. Porque é que a educação
matemática é necessária nas escolas? É um dado adquirido que a aprendizagem da
matemática é boa, útil e necessária. E se perguntássemos "necessária para quê?", a
resposta seria muito provavelmente que a aprendizagem da matemática é necessária
para que os alunos possam entrar no mercado de trabalho no final da sua
escolaridade.
Por detrás desta justificação existe uma estratégia discursiva que consiste em
naturalizar, através dos seus próprios enunciados, a necessidade de ensinar
matemática. Evidentemente, esta estratégia discursiva não é arbitrária nem gratuita.
Responde a uma visão política da educação e é uma visão em que a sociedade
contemporânea é definida em termos económicos. Evidentemente, qualquer
sociedade desde as civilizações antigas, passando pela Idade Média e pelo
Renascimento, até aos dias de hoje, é necessário que haja uma economia para
funcionar. No tempo de Platão e Aristóteles, por exemplo, a economia de Atenas
baseava-se principalmente na produção agrícola, à qual se juntava a atividade
arquitetónica, comercial e bancária (Bresson, 2016). O processo social central era, no
entanto, a participação política e militar na vida da polis.
Em contrapartida, o que caracteriza a sociedade ocidental contemporânea é o papel
fundamental desempenhado pela dimensão económica na sua organização. Podemos
exprimir esta ideia de outra forma, salientando que as sociedades sempre foram
moldadas através de uma dialética entre os seus vários processos: político, estético,
jurídico, religioso, cultural e económico; a sociedade ocidental contemporânea
caracteriza-se pelo facto de se organizar através da economia (Radford, 2021). O
centro de gravidade dos processos que constituem esta sociedade situa-se no
económico, operando continuamente à sombra de uma lógica de individualismo
(Lipovetsky, 1989), que o filósofo canadiano Charles Taylor (2003) designa como uma
das doenças ou males da modernidade.
No entanto, a economia da sociedade contemporânea não é uma economia qualquer.
É a economia de mercado livre, que se baseia na liberdade do indivíduo e na
concorrência entre produtores (empresários, comerciantes, etc.), que trabalham dia e
noite para influenciar o consumidor através de redes digitais cada vez mais
sofisticadas. Esta sociedade contemporânea, que divide os seres humanos em
comerciantes e consumidores, tem um nome: sociedade neoliberal.
O neoliberalismo não é apenas uma conceção económica. Como defendem Dardot e
Laval, trata-se de algo mais, muito mais. Trata-se, nada mais, nada menos, do que a
forma como vivemos, sentimos e pensamos. O que está em causa é nada menos do
que a forma da nossa existência, ou seja, a forma como somos pressionados a
comportarmo-nos, a relacionarmo-nos com os outros e conosco próprios. (Dardot e
Laval, 2020, p. 26)
O neoliberalismo é uma filosofia em que os indivíduos e o respeito pela sua liberdade
são vistos como a pedra angular da sociedade. Esta liberdade consiste na capacidade
do indivíduo de tomar as suas próprias decisões no quadro de um mercado
competitivo. A materialização desta liberdade conduz a uma dupla afirmação: a do
indivíduo livre e a da sociedade consumista.

Um corolário da primazia da economia na sociedade é o seu impacto no conhecimento


privilegiado nas escolas e nas relações humanas que são fomentadas entre os
indivíduos. Os conhecimentos que interessam à sociedade neoliberal são aqueles que
contribuem para o bom funcionamento da economia de mercado livre. Quanto às
relações sociais, estas são consideradas em termos das possibilidades que oferecem
para melhorar as capacidades económicas.
Se voltarmos agora à escola e ao que nela se ensina, é inteiramente lógico e coerente
que a justificação para o ensino da matemática seja colocada (implícita ou
explicitamente) em termos do benefício que o aluno adquirirá para entrar com sucesso
no mercado de trabalho, que é o da economia de mercado livre (Baldino e Cabral,
1998, 2011). O aluno é reduzido a capital humano, uma engrenagem na roda da
produção de capital, cujo funcionamento é concebido em termos de competências. O
aluno é visto através do prisma da performatividade e a escola como uma fábrica de
produção de subjectividades, cuja essência reside no económico. Assim, numa aula
da escola primária francesa, durante uma conversa filosófica sobre a infelicidade, uma
das crianças, Léna, diz: -às vezes somos infelizes porque não temos dinheiro, não
podemos comprar nada‖ (Roiné et al. 2015, p. 61).
O impressionante entrincheiramento que o capitalismo avançado alcançou atualmente
nas sociedades ocidentais foi possível, em grande parte, graças a uma reconfiguração
da escola. De facto, a escola sofreu uma grande mudança na sua orientação e
funcionamento. A escola humanista de outrora foi apagada de um só golpe. Através
de uma transposição brutal do campo económico para o campo educativo, a escola
viu-se subitamente confrontada com uma imposição de critérios de excelência de
competitividade empresarial, resultando numa escola que funciona como se fosse
uma empresa (Laval, 2004; Lenoir, 2020). Uma parte fundamental deste projeto de
reorientação da escola foi a criação de novos currículos de formação e uma
redefinição da formação de professores. E, obviamente, tudo isto não poderia deixar
de incluir uma maior atenção ao ensino da matemática e das ciências, uma vez que
estas são as disciplinas-chave no processo de globalização que requer e exige a

capitalismo avançado. É por isso que as grandes avaliações internacionais, como o


Programme for International Student Assessment (PISA) ou o Trends in International
Mathematics and Science Study (TIMSS), que fornecem directrizes para a qualidade
da educação oferecida pelos governos, não se debruçam sobre a arte, a poesia ou a
história. O que lhes interessa é saber até que ponto os sistemas educativos estão a
cumprir a sua missão de produzir subjectividades entendidas como empresários ou
consumidores inteligentes.
Esta situação histórica em que nos encontramos desencadeou uma série de reflexões
sobre o currículo, o ensino e a aprendizagem da matemática e a formação de
professores. Estas reflexões têm conduzido a um questionamento crítico do currículo,
da sua natureza, do seu funcionamento e da sua orientação para além de um
entendimento prescritivo do que ensinar (Brent, 2015; Kanu, 2006; Moreira e da Silva,
2009;ß Popkewitz, 2004). Têm também levado a questionamentos sobre pedagogias
e abordagens didáticas para o ensino e a aprendizagem da matemática, para além
dos modelos bancários denunciados por Paulo Freire e dos modelos individualistas
defendidos pelo construtivismo (Radford, 2021). Estas novas reflexões têm-se
centrado também na procura de novos entendimentos sobre o papel do professor,
para além da visão tecno-instrumentalista a que tradicionalmente tem sido confinado
(Aoki, 2005; Giroux, 1997; Vargas e Radford, 2023). Como diz Freire, a educação não
pode mais consistir em -treinar‖ o outro (2000, p. 52). Todas estas reflexões críticas,
que surgiram como resultado do assalto à escola que o neoliberalismo perpetua todos
os dias, são reagrupadas sob a tentativa de construir uma nova concepção de
finalidade educativa. No âmbito desta nova concepção, o objetivo é imaginar a
transformação da sociedade atual numa sociedade de seres humanos solidários que
encontram a sua realização pessoal na sua participação num trabalho comum e na
definição interminável e sempre discutível do que pode ser uma vida boa, justa e digna
(D'Ambrosio, 2006; Mendes, 2009; Radford, 2021).
São precisamente estes três temas (currículo, ensino-aprendizagem e formação de
professores) que estruturam os artigos deste livro, -Ações extensionistas como
espaço de formação docente: teoria e prática pedagógica‖, oferecida por Maria José
Costa dos Santos, Wendel Melo Andrade e Glessiane Coeli Freitas Batista Prata.
Na primeira parte, os leitores encontrarão discussões sobre currículo e avaliação, com
reflexões sobre as políticas externas, os conteúdos das avaliações em contextos
específicos e com ênfase na matemática.
Na segunda parte, o foco recai sobre os processos de ensino e aprendizagem,
trazendo à tona os esforços de articulação da sequência federativa e da teoria da
objetivação, bem como questões de organização da sala de aula, o papel do jogo no
ensino da matemática e questões sobre a notação semiótica de Leibniz na
aprendizagem do cálculo.
A terceira parte centra-se na problemática da formação de professores, com um
interesse marcado na sua compreensão em cursos de extensão.
Não há dúvida de que o livro cobre três das grandes questões actuais e que os leitores
encontrarão nele material valioso para continuarem as suas reflexões críticas no
sentido de melhorarem a sua prática pedagógica no âmbito de um projeto de
emancipação e transformação da escola. A questão que se nos coloca já não é para
onde vamos, mas para onde queremos ir juntos?

REFERENCIAS
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https://doi.org/10.34024/olhares.2023.v11.14453

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