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A criança Judia na Antiguidade

Meir Bair-Ilan

Bar-Ilan University, Ramat Gan 52900 Israel

INTRODUÇÃO:
Apesar do conceito de crianças maltratadas ser relativamente novo, há suficiente
evidência de que o fenômeno está profundamente enraizado na história da
humanidade. No mundo moderno, a família judaica é apresentada, algumas vezes, como
uma maravilhosa família. Embora a violência familiar pareça não existir na História do
judaísmo, em termos de pesquisa é realmente uma incógnita.
O presente estudo explora esta área esquecida da história social do Judaísmo,
pesquisando na Bíblia e na literatura talmúdica (leis do Judaísmo). Estas fontes de
pesquisa nos mostram vários exemplos de crianças sujeitas a duras medidas
disciplinares, resultando em castigos físicos e até mesmo na morte.
Essas fontes mostram a natureza violenta do universo infantil na Antigüidade. Entre o
povo judaico, assim como entre outros povos, as crianças eram espancadas e até mesmo
mortas – uma prática que era aprovada e até encorajada pelas autoridades sociais da
época. De fato, as crianças eram maltratadas em todas as classes sociais, da criança mais
pobre até a criança mais rica.
Hoje em dia nós ouvimos falar bastante sobre abusos contra crianças e os jornais
diariamente noticiam tais tragédias. Embora este fenômeno existisse no mundo pré-
moderno, ele raramente recebia alguma atenção naquela época e certamente não era
objeto de preocupação. Quando bater em crianças era a norma, o abuso infantil não era
considerado um mal social. Evidentemente, a consideração do fenômeno da criança
espancada como problema é um corolário do tipo e do status da infância na sociedade
[1].
Enquanto uma questão histórica, sua validade depende da própria orientação
historiográfica de cada um: se o escritor/leitor de história estiver mais interessado no
mundo político ou no reino social. Pode-se argüir que as questões políticas são mais
atraentes e “quem lutou com quem?” pode ser uma pergunta mais interessante que “qual
criança apanhou ou por quê?”. De fato, a preferência de cada um na leitura de jornais –
começando com a primeira página ou com as páginas de dentro-poderia ser considerada
como uma analogia à questão em estudo.
(*) Tradução: Anna Maria Takahashi, psicóloga . Revisão: Dra. Maria Amélia
Azevedo/LACRI-IPUSP. Consultoria: Abrão Bernardo Zweiman – Diretor das
Faculdades Renascença. Especialista na área da Violência Doméstica contra Crianças e
Adolescentes pelo TELELACRI/IPUSP.

A problemática da criança espancada na Antigüidade – que evidentemente é parte da


história social – não passa de um reflexo da atitude dos adultos para com as crianças e
de seu conceito de infância em geral.
Embora o propósito deste estudo seja analisar a violência contra a criança judia, ele
deve ser colocado dentro de um contexto mais amplo de abuso contra crianças em geral.
Primeiramente deve ser observado que o estudo da infância – para não falar da violência
em família – é muito recente. Qualquer estudo da infância tem suas raízes em Ariès [2],
embora a compreensão de que as crianças foram exploradas ou maltratadas de alguma
forma pelos adultos durante várias gerações também tenha sido abordada explicitamente
por outros autores [3].
Que a violência contra criança difere de outras formas de violência, fica claro quando se
consideram suas raízes.
Enquanto o domínio de uma sociedade sobre outra é usualmente uma questão cultural,
o domínio de adultos sobre crianças é uma questão biológica: a fragilidade da criança e
sua dependência dos adultos. Além disso, sempre foi reconhecido o fato de que as
crianças precisam ser educadas e, até recentemente, isto significava o exercício de
qualquer atitude disciplinar que se julgasse ser necessária, incluindo o uso de chicotes,
varas ou qualquer coisa parecida . A violência contra crianças não é somente um
capítulo da história da Humanidade, mas também um segmento do estudo do
comportamento humano, um capítulo da história da violência em geral.
O que se tem dito sobre as crianças em geral também se aplica às crianças judias [4]. O
mito da família judaica ideal, no qual todo judeu busca ser o modelo perfeito de vida
familiar, é somente um mito; as atitudes dos adultos em relação às crianças não são de
acordo com que é desejado. Felizmente, acadêmicos judeus não esperaram por Ariès e
nem mesmo por Radbill para investigar este assunto. Já no início deste século estavam
conscientes de que judeus adultos tratavam violentamente as crianças [5].
Por razões históricas, as discussões a seguir serão apresentadas em ordem cronológica,
começando com os textos bíblicos e prosseguindo com a literatura pós-bíblica.

A – Na Bíblia
A “lei do filho rebelde” (Deut. 21-18-21)(*) mostra o primeiro exemplo de pais batendo
em seus filhos:
“Se um homem tiver um filho indócil e contumaz, que não atende à voz de seu pai ou de
sua mãe, e mesmo que o castiguem não lhe dá ouvidos, ele será levado aos anciãos da
cidade... Então, todos os homens da cidade irão apedrejá-lo até levá-lo à morte”.
Infere-se que quando um caso é levado à Corte, o filho desobediente já foi admoestado
e batido pelos pais. A surra ocorre somente após os meios de persuasão verbais terem
falhado. Se os pais constatassem que a criança continuava fazendo coisas erradas,
apesar dos conselhos, eles poderiam apelar para a surra. Eles bateriam no filho para
ensiná-lo e, talvez, até salvá-lo da morte mais tarde, quando os envolvimentos em
crimes sérios seriam punidos com a morte. Assim, os pais apelariam para os juízes (os
mais velhos) somente em último caso. Estava implícita nesta lei bíblica a noção de que
bater numa criança era uma atitude natural e até mesmo uma necessidade, já que essa
punição seria para o próprio bem da criança (mesmo que a própria criança não
concordasse com isso) [6].
Esta noção, expressa na “lei do filho rebelde”, encontra sua aprovação no Livro da
Sabedoria, através de várias citações. Por exemplo, nós lemos nos Provérbios: “Corrige
teu filho enquanto ainda há esperança, mas não te enfureças até fazê-lo perecer”.
(19:18); “Quem poupa a vara, odeia seu filho; quem o ama, castiga-o na hora
precisa”(13:24); “Não afaste a disciplina de uma criança. Se você bate-lhe com uma
vara, ela não morrerá. Se você bate-lhe com uma vara, salvará sua vida do
Inferno”(23:13-14). Estes exemplos servem para mostrar que a premissa básica dos pais
e educadores citados na Bíblia é a de que é melhor bater numa criança do que tratá-la
brandamente; uma educação severa nos estágios iniciais de sua vida irá beneficiá-la no
futuro.
Em verdade, este conselho é confirmado também pelas palavras de Ben Sira (30:1-2):
“Aquele que ama seu filho castiga-lo-á freqüentemente a fim de que ele possa vir a ser
uma alegria para ele quando crescer. Quem desaponta seu filho estará beneficiando-o e
orgulhar-se-á dele entre os íntimos”. Obviamente, nada de novo aqui, mas tão somente
uma continuação da filosofia educacional da Bíblia..
O fato é que a noção de disciplina é um dos objetivos da educação, que é partilhada por
várias escolas educacionais desde os tempos antigos até os dias de hoje [7].
Obviamente, aqueles que batem em seus filhos foram convencidos de que é melhor
bater na criança enquanto ela é ainda pequena; de outra forma a criança continuará com
o seu mau comportamento até o ponto em que será temida e odiada pela sua família.
Resumindo, a “lei do filho rebelde” expressa esse princípio que se encontra no Livro
dos Provérbios e Ben Sira, que fazem parte da Literatura da Sabedoria, e [cujo
objetivo] é salvar os filhos de punições mais severas da sociedade (e até mesmo da
morte), melhorando as relações familiares futuras.
B – No Talmud(*) Não há registro de que tenha sido aplicada (Nota da revisora).

Obviamente, os testemunhos bíblicos servem como um apoio para entender o mundo


violento em que vivia a criança na era pós-bíblica. Entretanto, o Talmud apresenta
muito mais detalhes do que a Bíblia. Isto porque comparado à Bíblia (parcialmente
elitista, pelo menos no Livro dos Provérbios), o Talmud é muito mais popular e reflete a
vida diária das pessoas.
A literatura talmúdica dá vários exemplos de pais que batem em seus filhos com
propósitos educacionais. Às vezes, essas surras são tão severas que a criança sofre
lesões sérias, chegando até mesmo à morte.

1 – O pai que bate e o professor que disciplina


Em t. B. Qam 9:11 (ed. Lieberman p.44) está escrito:
“O pai que bate no seu filho ou o professor que disciplina o seu aluno: qualquer um que
tenha batido e machucado – será absolvido. Entretanto, se a criança for machucada sem
razão – eles serão considerados culpados”.
Em outras palavras, a Corte deve decidir o que é considerado como uma punição
razoável. Dentro desses parâmetros, bater nas crianças não é só permitido como também
é uma ocorrência muito provável para elas. Já os pais ou o professor que exercem a
tarefa de disciplinar não sofrem conseqüências legais. Além disso, a ligação entre pais e
professor, conforme manifestado na regra acima, sugere que o direito do professor de
bater na criança deriva da autoridade do pai. Quando um pai entrega seu filho para o
professor, ele espera que este exerça sua autoridade exatamente como ele o faria. Isto dá
ao professor o direito de usar atitudes severas de punição.

(*) O Talmud é uma coletânea de leis e interpretações da Torá

2 – O professor-escriba que bate


Em t. B. Qam. 9:31 (ed. Lieberman p.49) está escrito:
“Se ele bate com as costas de sua mão, com papel, com uma pinax, com couro não
tratado, com um tommus(*) em seu poder – ele pagará 400 zuzei(**), não pela dor
causada mas pela humilhação infligida, etc”.
Os vários itens mencionados neste texto sugerem que esta regra era parte da vida diária.
O indivíduo mencionado é o escriba, que na Antigüidade funcionava como professor,
não apenas ensinando, mas também disciplinando. Neste caso, ele ensina em casa, não
na escola, e exibe sua raiva atingindo a criança com o que tiver em mãos: papel(***),
pinax, pele(****), tommus [8] ou com qualquer outro equipamento de escrita. Os sábios
condenam o uso desses objetos, em vez da correia ou algo semelhante, com base na
argumentação de que tais medidas disciplinares não convencionais humilham a criança
em vez de ensinar-lhe uma lição. Isto se coaduna com as modernas teorias que
consideram a humilhação uma forma de violar a boa educação, já que é
psicologicamente danosa e contraproducente.
3 – O professor-escriba: quem bate
Em t. Sukk, 2:6 (ed. Lieberman p. 263) está escrito:
“Um exemplo de um escriba que entra na escola e diz: tragam-me uma correia! Quem
fica preocupado? É aquele que sempre apanha”.
Isto é, antes que o professor-escriba entre na sala de aula mune-se de uma correia para
bater nas crianças por seu mau comportamento, presente ou passado [9].
4 – O professor-escriba que mata
Em Sifre-Zuta, em Num 35:21 (ed. Horovitz p. 333) está escrito:
Considerando estar escrito “o atacante será levado à morte” – é (verdade) que todos os
que batem são levados à morte? Que dizer do jovem que ataca alguém, ou de um idiota
que golpeia outrem, ou do professor-escriba, ou de quem ensina menininhos ou de quem
bate segundo as normas da Corte, ou de quem bate por estar “fora de si”: deveriam eles
ser punidos? Está escrito (Exod 21:14) “Quando um homem trama contra um outro”, (o
que significa): exceto quando não é intencional, exceto quando é jovem, etc.
(*) colar de contas
(**) moeda da época
(***) papiro
(****) pele de carneiro seca e tratada

Os termos deste halakhah(*) sugerem que os sábios conheciam casos verídicos de


professores de criancinhas ou de professores de escribas aprendizes (meninos
adolescentes) que bateram tão cruelmente em seus discípulos que estes morreram. Deve
ter havido casos similares quando um pai batera em seu filho fora de si
(presumivelmente para educá-lo) acabando por levá-lo à morte. Todos esses assassinos
não são puníveis pela morte, em conseqüência de sua conduta abusiva. Deve-se
observar que um famoso rabino (Rav, R. Radda, que viveu na Babilônia, no 3o século)
ensinou que quando um professor desejar bater em uma criança deverá fazê-lo com a
correia de seu sapato para suavizar a surra [10].
5 – Um pai que mata, não intencionalmente
Em m. Mak. (**) 2:3 os sábios ensinaram: “um pai pode ir para o exílio por causa de
seu filho e um filho pode ir para o exílio por causa de seu pai”.
Por outras palavras: com base na lei bíblica (Num 35:9-34; Deut 19:1-13) a Mishná
(***) estatui, que se um pai matou seu filho não intencionalmente, ele deveria ir para o
exílio (****). Presumivelmente, esta Mishná objetiva rejeitar a idéia de que o pai não
deveria ser punido, seja porque não haveria ninguém para vingar o sangue da criança ou
porque o bater teria sido motivado por amor e interesse pela prole.
6 – O pai assassino – uma tragédia familiar
Em b. Hul, 94 aparece esta história: “Certa vez, em tempos de escassez, um homem
convidou três pessoas a visitá-lo em casa. Ele só tinha três ovos a oferecer-lhes. Quando
o filho do anfitrião entrou, um dos convidados tomou sua porção e deu-lha; o segundo
convidado fez o mesmo, assim como o terceiro. Quando o pai da criança chegou e viu-a
com um ovo na boca e os outros dois nas mãos, [tomado de raiva] ele atirou-a ao chão,
provocando-lhe a morte. A mãe da criança vendo isto, subiu ao telhado e atirou-se ao
solo, morrendo também. O pai então subiu também ao telhado e jogou-se de lá, vindo a
falecer” [11].

(*) legislação religiosa judaica


(**) Volume do Talmud
(***) Comentarios sobre o Pentateuco
(****) O exílio significa em realidade asilo em um de seis lugares (3 em Canãa e 3 do
outro lado do Rio Jordão) a fim de escapar ao vingador de sangue: parente ou preposto
que deveria vingar o morto.

Neste caso, as duras condições de vida levaram à tragédia... O pai queria ensinar boas
maneiras a seu filho (ele não deveria subtrair a comida dos hóspedes!) mas, ao
discipliná-lo, este morre. A história continua com o suicídio da mãe, seguido do do pai,
de modo que a família inteira se acaba em pouco tempo: traumatizado pela dor (e talvez
por sentimentos de culpa) o pai considerou impossível sobreviver à morte do filho e da
esposa pondo, então, fim à própria vida [12].
7 – Um pai que é patologicamente violento
No contexto da discussão do censo do Rei Davi de Israel e suas dolorosas
conseqüências, o Midrash põe em questão porque todo o povo de Israel deveria sofrer
pelos pecados de um único indivíduo. Explicando o verso que comunica a intenção do
anjo de destruir Jerusalém (Samuel II 24:16), o sábio traça a seguinte analogia: “Com
quem se parece Davi naquela hora? Com alguém que bate em seu filho sem que este
saiba as razões da punição” [13].
Presumivelmente, o sábio conhecia tal caso na vida real e inferiu que sua audiência
estava também familiarizada com esses casos de pais batendo nos filhos “sem qualquer
motivo justo”. A respeito desse “bater patológico” pode-se argumentar, segundo um
(provérbio árabe), que o pai podia bater no filho porque mesmo que ele não tivesse uma
boa razão para isso, certamente a criança saberia o porquê. É evidente que a sociedade
que trata os problemas educacionais com violência promove a idéia de que violência é
um modo educacional legítimo. É preciso banir esses impulsos obscuros (dark
impulses) no sistema educacional contemporâneo.
8 – O rei que bate em seus filhos
O Tratado Semahot 8:11 oferece o seguinte exemplo: “Rabino Akiba conta que um rei
tinha quatro filhos. Um deles apanha e fica quieto; o outro apanha e desafia; o terceiro
apanha e suplica enquanto o último diz a seu pai: “castiga-me”!” [14].
Evidentemente, o sábio e sua audiência sabiam bem que não apenas o povo mas
também a família real batia em seus filhos. Por outras palavras, o exemplo revela uma
verdade oculta: o próprio rei bate em seus filhos (logo esta prática não era privilégio dos
pobres).
9 – O rei que mata seu filho
Em Gen Rabbá 28:6 (ed Theodore-Albeck, p 265) aparece este caso:

[Do homem que age como animal (Gen 6:7)]; Rabino Yudah afirma: [é como] um rei
que entregou seu filho a um pedagogo e este levou-o ao mau caminho. O rei ficou
zangado com seu filho e matou-o . Disse o rei: “quem levou meu filho pro mau caminho
foi esta pessoa e agora meu filho morreu, enquanto ele vive”. Este é um “homem que
age como um animal”.
Em resumo, as ações de Deus, tal como narradas no Gênesis, são explicadas através de
um exemplo extraído da vida diária: o rei cujo ódio levou-o a matar seu filho (ou por
suas próprias mãos ou através de uma ordem da Corte Judicial). Como este exemplo é
uma espécie de analogia, parece certo que a audiência estava familiarizada com tais
situações.
10 – Uma rainha que bate em seu filho
Explicando o verso “Palavras de Lemuel, rei de Massá, que tinha sido castigado por sua
mãe” (Prov 31:1), Midrash Tanhumá (Exodus 1) diz o seguinte:
“Esta é a virtuosa Bat-Shevá que castigou Salomão, seu filho como está escrito em “As
palavras de Lemuel, rei de Massá, que foi ensinado (literalmente castigado) por sua
mãe” (Provérbios 31:1). Rabino Yossi ben Hananyá disse: quem é Massá, castigado por
sua mãe? Ele ensina que Bat-Sheva encostou (Salomão) em seu pilar e bateu nele com
uma vara, castigando-o . O que ela estava dizendo a ele?” [15].
Evidentemente, na família real não apenas o rei bate em seus filhos, mas também a
rainha, como é vividamente descrito pelo sábio. Assim, as crianças da família real
estavam sujeitas às mesmas punições que aquelas do povo, podendo pois, como estas,
vir a falecer em conseqüência.
C – ANÁLISE SOCIAL:
No conceito antigo de punição, a punição física significava a chicotada, amputação
física de algum membro e até mesmo a morte. Para o próprio pecador, assim como para
outros pecadores potenciais, a dor física envolvida nestas punições demonstrava de
modo inequívoco as conseqüências de má conduta. Como numa sociedade patriarcal, o
“pai de família” era também o “senhor da família” (pátria potestas), a percepção da
punição como uma ferramenta educacional deu licença para todo homem bater em seu
próprio filho, supostamente para o bem dele. Assim, a estrutura social, junto com a
percepção do crime e da punição, estabeleceram o bater em crianças como norma social.

As pesquisas mostram que o bater em crianças (por parte de seus responsáveis) estava
presente em todas as camadas sociais. Toda criança, desde o filho de uma família real,
até a criança mais pobre, estava sujeita a esse tratamento cruel. Quando a criança ia
para a escola, ela também podia apanhar lá, pois o professor recebia dos pais a
autorização para tal punição.
Este fenômeno psico-social pode ser melhor entendido quando comparado com o
comportamento aceito no moderno mundo ocidental. Na sociedade moderna, a punição
física é proibida por lei, eliminando assim uma das principais “razões” para disciplinar
as crianças em casa, batendo nelas. Além disso, os professores são proibidos de bater
em seus alunos indisciplinados. Assim, o conceito moderno de educação de crianças
proíbe qualquer forma de punição física, seja qual for o pretexto, mesmo que a lei
compreenda tais casos como sendo uma “prática pedagógica”.
No Talmud está escrito: “se eles machucarem injustamente, eles serão considerados
culpados”. Isto sugere que nem todos os casos de surra em crianças são justificáveis,
razoáveis e até mesmo desejáveis. Assim, a autoridade dos pais de baterem em seus
filhos estava dentro de certos limites.
Estudos modernos normalmente separam o bater nas crianças de outras formas de abuso
contra crianças, tais como: abuso sexual, exploração do trabalho infantil, prostituição
infantil, etc. [16]. De fato, apesar da necessidade de considerar o fenômeno - crianças
espancadas - dentro de um conceito mais amplo, esta distinção parece ser válida
também na sociedade judaica da Antigüidade. Significativamente, as fontes judaicas
antigas não trazem registros de violência [não disciplinar] contra crianças [17], em
contraposição a relatos europeus populares, correspondentes a tempos posteriores [18].
Talvez esta ausência possa ser considerada um indício da freqüência relativamente
baixa da violência “não disciplinar” dirigida a crianças no mundo judeu.
CONCLUSÃO:
Na Antiguidade, bater em crianças fazia parte da vida diária, sendo esse comportamento
aceito em toda parte, tanto entre judeus quanto entre não-judeus. Crianças pequenas era
objeto de violentos tratamentos por parte de seus pais, supostamente com fins
educacionais. Esta violência estava intrinsecamente relacionada às condições sociais do
povo judeu para o qual a violência estava presente em todos os setores da vida, sem
contudo haver meios de atenuar esse sofrimento.
As fontes antigas que apontam para a prevalência desse fenômeno são fundamentadas
por fontes judaicas medievais [19]. Todas as fontes evidenciam que nos tempos antigos
a criança judia, como qualquer outra, apanhava de seus pais e mestres. Esse fato não
deverá ser ignorado quando se avaliar a questão da infância judaica na Antiguidade.

NOTAS:
[1] Karras M. and J. Wiesehvfer, Kindheit und Jugend in der Antike, Eine
Bibliographie, Bonn: Habelt, 1981; Valerie French, “Children in Antiquity”, Haws,
Joseph M. and N. Ray Hiner (eds.), Children in Historical and Comparative Perspective:
An International Handbook and Research Guide, New York: Greenwood, 1991, pp. 13-
29.
[2] P. Ariès, Centuries of Childhood: A Social History of Family Life (translated by R.
Baldick), New-York: Alfred A. Knopf, 1962.
[3] L. deMause, “The Evolution of Childhood”, Lloyd deMause (ed), The History of
Childhood, New York: The Psychohistory Press, 1974, pp. 1-73; Samuel X. Radbill,
“Children in a World of Violence: A History of Child Abuse”, Ray E. Helfer and Ruth
S. Kempe (eds.), The Battered Child, Chicago and London: The University of Chicago
Press, 1987, pp. 3-22.
[4] M. Bar-Ilan, “Childhood and its status in Biblical and Talmudic Societies”, Bet-
Mikra, 40/140 (1995), pp. 19-32 (Hebrew).
[5] Elizabeth Bellefontaine, “Deuteronomy 21:18-21: Reviewing the Case of the
Rebellious Son”, Journal for the Study of the Old Testament, 13 (1979), pp. 13-31; Don
C. Benjamin, Deuteronomy and City Life, Lanham – New York – London: University
Press of America, 1983, pp. 211-221.
[6] Patrick W. Skehan and Alexander A. Di Leilla, The Wisdom of ben Sira, A New
Translation with Notes (The Anchor Bible), New York: Doubleday, 1987, p. 373.
[7] John J. Pilch, “Beat His Ribs While He is Young” (Sir 30:12): A Window on the
Mediterranean World, Biblical Theology Bulletin, 23 (1993), pp. 101-113; A . Lemaire,
“The Sage in School and Temple”, John G. Gammie and Leo G. Perdue (eds.), The
Sage in Israel and The Ancient Near East, Winona Lake: Eisenbrauns 1990, pp. 165-
181 (esp. 175).
[8] S. Lieberman, Hellenism in Jewish Palestine, New York: The Jewish Theological
Seminary of America, 1962, p. 206 n. 30.
[9] M. Aberbach, Jewish Education in the days of the Mishná and Talmud, Jerusalem:
Mass, 1983, pp. 236 ff. (Hebrew), for more cases like the one mentioned.
[10] b. B. Bat. 21a.
[11] I. Epstein (ed.), The Babylonian Talmud – Seder Kodashim, Hullin, London: The
Soncino Press, 1948, II, pp. 528-529.
[12] E. Durkheim, Suicide: A Study in Sociology, trans. J. A. Spaulding & G. Simpson,
London: Routledge & Paul, 1952.
[13] Midrash Samuel (ed. S. Buber), Krakow 1893, p. 138 (Hebrew); Yalqut Shimoni
on 2 Samuel, remez 165, p. 744 (Hebrew).
[14] D. Zlotnick, The Tractate “Mourning” (Semahot), New Haven and London: Yale
University Press, 1966, p. 61.
[15] b. Sanh. 70b; Num Rabba 10; Midrash on Proverbs (ed. Buber), ch. 31.
[16] Keith R. Bradley, Discovering the Roman Family: Studies in Roman Social
History, New York – Oxford: Oxford University Press, 1991.
[17] A única história excepcional aparece em 2 Kgs 2:23-25, onde crianças que fizeram
escárnio de um velho profeta foram castigadas, sendo condenadas a serem comidas por
ursos. Alguns estudiosos modernos consideram esta história como um “conto de fadas
da vovó”.
[18] Dina Stern, Violence in a Charming World – a study in the violent character of the
feminine legend for children, Ramat-Gan: Bar-Ilan University Press, 1986 (Hebrew). O
subtítulo sugere que estas lendas foram contadas por mulheres para crianças. Ainda,
lendas sobre violência (inclusive violência contra crianças) poderiam ter sido dirigidas
aos homens, ou como contadores de estórias ou como ouvintes. Veja exemplos: N.
Postman, The Disappearance of Childhood, New York: Dell, 1982; Z. Shavit, “The
Concept of Childhood and Children`s Tales”, Jerusalem Studies in Jewish Folklore,
(1983), pp. 93-124 (Hebrew).
[19] I. Oron, “Corporal Punishment in Children`s Education”, Or HaMizrah, 24 (1975),
pp. 116-123 (Hebrew)

1/12/2006 16:10:07
ejesus.com.br

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