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DOUTRINA "

o NOSSO CONSELHO DE ESTADO

TEMÍSTOCLES B. CAVALCÂNTI
Procurador da República no Distrito
Federal

SUMÁRIO: Origem e evolução. Conselho de Procuradores. Ex-


tinção e criação. Funções políticas e administrativas. Con-
trôle jurisdicional dos atos administrativos. Conclusão.

* Qualquer estudo sôbre o Conselho de Estado sugere algu-


mas considerações gerais sôbre a origem dessa instituição, o seu pa-
pel na vida política e administrativa dos países que o adotaram e a
influência que exerceu o Conselho de Estado da França na estrutura
constitucional e administrativa de outros povos.
A instituição tem, assim, não só relêvo interno no direito pró-
prio de cada país, mas também no direito comparado.
O centenário do Conselho de Estado da França tem, entretanto,
para os bra~ileiros, um interêsse muito particular porque tivemos,
em tempos, sob a monarquia caída em 1889, um Conselho de Estado,
ou melhor, diversos Conselhos de Estado, cada um representando a
orientação política de uma época, de um momento da nossa vida po-
lítica. Enaltecida por uns, combatida por outros, a instituição teve
sempre alto relêvo em nossa estrutura política e trouxe para a nossa
história administrativa um farto manancial de doutrina.
Seria temerário dizer para os franceses o que é o Conselho de
Estado na França e os serviços muito grandes que presta à admi-
nistração, mas não será desarrazoado dizer o que nós pensamos do
Conselho de Estado e quais as lições que temos tirado dos seus tra-
balhos e de sua atividade.
Em nosso país, o Conselho de Estado foi sempre um ponto de
discórdia entre conservadores e liberais - os primeiros, para for-
talecer o poder moderador, defendiam a sua criação, enquanto que
os segundos o consideravam obstáculo ao desenvolvimento político,
núcleo de reação, instituição retrógrada, uma espécie de oligarquia
que rodeava o Imperador. Daí as suas flutuações e a precariedade
do seu prestígio durante todo o império.
* Contribuição solicitada pelo Conselho de Estado da França para comemorar o
I 5 O. o aniversário da sua criação. em I 95 O.
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Criado em 1822 pelo príncipe regente, com o nome de Conselho


dos Procuradores das Províncias, foi extinto pela Constituinte de
1823 e no mesmo ano restabelecido com a denominação de Conselho
de Estado, e mantido pela Constituição do Império de 1824 em seu
artigo 137.
A reação liberal vencedora em 1834, com o ato adicional à Cons-
tituição, suprimiu o Conselho de Estado, mas foi restabelecido por
proposta do Imperador em 1841, depois de aprovada a lei de inter-
pretação que revogava em suas bases o ato adicional.
Flutuou, assim, entre as duas tendências - desapareceu com os
liberais e descentralizadores, voltou com os conservadores e com o
fortalecimento do poder central. Os conservadores viam na sua exis-
tência a própria essência do poder moderador base do regime cons-
titucional do Império.
"A supressão do Conselho de Estado - dizia um político li-
beral, Teófilo Otoni, em um de seus ataques àquela instituição -
era também um grande triunfo da idéia liberal, pois que anulava em
sua essência o poder moderador, causa de tantas apreensões duran-
te o primeiro reinado".
Por outro lado, o Visconde de Uruguai, grande político comler-
vador e autor de um dos nossos melhores ensáios de Direito Admi-
nistrativo e mais antigo, atribuía o fracasso do Conselho aos ele-
mentos que o integravam.
O precursor do Conselho de Estado no Brasil foi o Conselho dos
Procuradores Gerais das Províncias. Foi êle criado pelo Príncipe
Regente Pedro I, pelo decreto de 16 de fevereiro de 1822, movido
por uma necessidade justificável de se rodear de uma corporação de
homens que o auxiliasse com a sua experiência e conselhos na obra
difícil da administração.
O Conselho dos Procuradores era nomeado pelos eleitores das
paróquias e tinha como atribuições:
1.0 - Aconselhar o Príncipe tôdas as vêzes que fôsse solicitado
em todos os negócios mais importantes e difíceis;
2.° - Examinar os grandes projetos de reformas que se deve-
riam realizar na administração geral ou particular do Estado;
3.° - Propor ao Príncipe as medidas que julgasse urgentes e
vantajosas à administração;
4.° - Zelar pelas utilidades de suas Províncias.
A Assembléia Constituinte, pela lei de 20 de outubro de 1823,
extinguiu êsse Conselho, e não admitiu procuradores do povo que não
fôssem os seus deputados e conselheiros do Imperador outros que não
os seus Ministros.
A dissolução da Constituinte impôs novamente ao Regente a
criação de um Conselho que o assistisse na administração e cuidasse
com êle das coisas públicas. O decreto de 13 de novembro de 1823,
criou um Conselho de Estado composto de dez membros, incluídos
os Ministros, seus membros natos, que tinham como atribuição ainda
a elaboração da Constituição.

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A primeira Constituição do Império manteve a mesma organi-
zação dada pela lei de 1823, fixando a sua competência e atribuições
nos arts. 137 e seguintes:
"Art. 137 - Haverá um Conselho de Estado composto de con-
selheiros vitalícios nomeados pelo Imperador.
Art. 138 - O seu número não excederá de dez.
Art. 139 - Não são compreendidos neste número os Ministros
de Estado nem êstes serão reputados conselheiros sem especial no-
meação do Imperador para êsse cargo.

Art. 142 - Os conselheiros serão ouvidos em todos os negócios


graves e medidas gerais da pública administração, principalmente
sôbre a declaração de guerra, ajustes de paz, negociações com as
nações estrangeiras, assim como em tôdas as ocasiões em que o Im-
perador se proponha exercer qualquer das atribuições próprias do
poder moderador indicadas no art. 101, à exceção da sexta".
Por aí se vê como era restrita a função administrativa do Con-
selho. As suas atribuições eram mais de caráter político. Bem
longe dos Conselhos de Estado como o da França, onde múltiplas
sempre foram as atribuições contenciosas administrativas.
A sua própria composição lhe tirava qualquer possibilidade de
eficiência. 1
A reação liberal tinha como ponto capital do seu programa a
extinção do Conselho de Estado. Estava isto logicamente dentro de
suas finalidades. E assim o Ato Adicional, em seu artigo 32, não
podendo suprimir o poder moderador, devido em grande parte à re-
sistência do Senado, suprimiu o Conselho de Estado:
"Fica suprimido o Conselho de Estado, de que trata o título
5.° ·capítulo 7.° da Constituição".
Não cessou, porém, aí a luta em tôrno do Conselho. O debate
doutrinário continuou até que em 1841 o Imperador, em sua fala
de 13 de maio, por ocasião da abertura das Câmaras, chamava a
atenção delas para a necessidade da criação do Conselho de Estado.
Neste mesmo ano, foi o projeto apresentado e teve andamento.
O debate foi longo e a discussão versou principalmente sôbre a sua
composição, a constitucionalidade do restabelecimento do Conselho
diante do Ato Adicional, a perpetuidade do exercício de seus mem-
bros, e a sua amovibilidade.
Alves Branco, Bernardo de Vasconcelos, Paula Souza, distin-
guiram-se particularmente nos memoráveis debates. Veio por fim a
lei de 23 de novembro de 1841 regulamentada em 5 de fevereiro de
1942. Por essa lei, o Conselho de Estado tinha doze membros ordiná-
rios, além dos Ministros de Estado. As suas sessões seriam conjuntas
ou em seções, as primeiras presididas pelo Imperador e as últimas
pelos Ministros a que pertencessem os objetos das consultas.

Pimenta Bueno, Direito Público Brasileiro, p. 286; Uruguai, op. Clt., p. 238;
Sousa Bandeira, Evocações e outros escritos, p. 134.
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o regulamento de 1842 dividiu o Conselho em quatro seções:


1. a) Negócios do Império; 2. a ) Negócios da Justiça e dos estrangeiros;
3. a ) Negócios da Fazenda; 4. a ) Negócios da Guerra e da Marinha. 2
Quanto à vitaliciedade, prevaleceu um critério intermediário. A lei
de 1841 admitia em princípio a perpetuidade, podendo, no entant~
o Imperador dispensar o Conselheiro de Estado por tempo indeter.
minado do exercício de suas funções.
Os Conselheiros de Estado eram ainda responsáveis pelos conse-
lhos dados ao Imperador que fôssem contrários à Constituição e aos
interêsses do Estado, devendo responder por êsses crimes perante o
Senado.
O que mais interessa é o estudo da competência do Conselho, mor-
mente na órbita administrativa.
A competência do Conselho do Estado foi fixada no art. 7.° da
lei de 1841 e no respectivo regulamento.
As suas atribuições eram políticas e administrativas. Como diz
Uruguai :3
"O Conselho de Estado auxiliava o poder executivo no exercício
de tôdas as outras atribuições políticas e em tôdas as administrativas.
Digo em tôdas as outras atribuições políticas, porque algumas se
prendem por tal modo com o administrativo, que não é possível ins-
tituir uma separação completa e minuciosa".
Por isso, sugeria Uruguai a divisão das atribuições entre um Con-
selho Privado e um Conselho de Estado, aquêle para as questões po-
líticas e êste para as administrativas.
Desdobrando as atribuições conferidas pela lei e pelo regulamen-
to de 1842 ao Conselho de Estado, assim divide Uruguai as suas
funções:
La) Do Poder Moderador.
2. a) Do Poder Executivo, político ou governamental.
3. a) Do poder administrativo gracioso.
4. a ) Do poder administrativo contencioso.
I - Junto ao Poder Moderador - Era talvez esta a função maIS
delicada do Conselho. O exercício do Poder Moderador ficava em

2 Art. 7° da Lei de 23 de novembro de 1842 - "Incumbe ao Conselho de


Estado consultar em todos os negócios em que o Imperador houver por bem ouvi-lo. para
resolvê-los; e principalmente:
I. o - em tôdas as ocasiões em que o Imperador se propuser exercer qualquer das
atribuições do Poder Moderador indicadas no art. 101 da Constituição.
2. o - sôbre declaração de guerra, ajustes de paz e negociações com as naçÕt!s es-
trangeiras.
3. o - sôbre questões de prêsas e indenizações.
4. 0 - sôbre conflitos de jurisdição entre as autoridades administrativas e entre
estas e as judiciárias.
5. o - sôbre abusos das autoridades eclesiásticas.
6.° - sôbre decretos, regulamentos e instruções para a boa execução das I~;s. e sôbre
propostas que o Poder Executivo tenha de apresentar à Assembléia Ger~1.
3 Op. cit., vol. L p. 280.
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grande parte apoiado sôbre a responsabilidade do Conselho em assun-


to da mais alta relevância política para a Coroa.
A convocação das Assembléias Gerais, a aprovação ou suspensão
das resoluções das Assembléias Provinciais, a suspensão dos magis-
trados, a concessão da anistia, a escolha dos senadores, eram assuntos
sôbre os quais sempre poderia ser ouvido o Conselho de Estado, cuja
opinião era ou não acatada mas que nem por isso influía menos na
política geral do país.
11 - O poder político ou governamental compreendia importan-
tes matérias como a declaração de guerra, os ajustes de paz, as re-
lações e negociações com as nações estrangeiras ou com o poder es-
piritual.
111 - Com relação à jurisdição administrativa graciosa, que
Pimenta Bueno chama de quase contenciosa. E' êste talvez o ponto
mais interessante sob o aspecto que se relaciona com o direito admi-
nistrativo.
Neste terreno verifica-se a intervenção do Conselho de Estado
como função consultiva mas sôbre matéria acentuadamente adminis-
trativa.
Diz Pimenta Bueno: 4
"Há alguns assuntos administrativos que participam do caráter
contencioso sem que, todavia, possa êste predominar sempre, já por-
que não se dá propriamente litígio, já porque alguma vez é necessário
conservar à administração uma certa liberdade ou latitude de ação a
respeito, como indispensável aos interêsses públicos. Neste caso es-
tão as questões de guerra, os conflitos de atribuições, as questões de
competência entre autoridades administrativas e os recursos por abu-
sos das autoridades eclesiásticas".
A intervenção do Conselho de Estado é, sempre facultativa, ca-
bendo ao Imperador a iniciativa da consulta.
IV - Nos negócios contenciosos. Finalmente, relativamente a
êsses assuntos ainda prevê a lei a intervenção do Conselho de Estado
com o caráter meramente consultivo e facultativo.
Verifica-se, no entanto, a sua audiência:
a) nos conflitos entre a jurisdição administrativa e a judiciária;
b) nos recursos interpostos das resoluções dos Presidentes das
Províncias em matéria contenciosa ou das decisões dos Mi-
nistros de Estado;
c) nos embargos opostos às resoluções imperiais.
Os artigos 24 e seguintes do Regulamento de 5 de fevereiro de
1842, estabelecem a forma de processo e os casos em que se verifica
o recurso e a intervenção do Conselho de Estado. I)

4 Direito público brasileiro. p. 294.


5 Ver Pimenta Bueno. op. cit .. ps. 204 e segs.
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Sob o ponto de vista administrativo, duvidosa foi a eficiência do


Conselho de Estado na Monarquia. O contencioso administrativo, ou
melhor, a jurisdição administrativa, pràticamente não tinha existên-
cia, faltando-lhe os elementos indispensáveis ao funcionamento nor-
mal e obrigatório dos órgãos jurisdicionais inerentes àquele sistema.
Prestou, no entanto, o Conselho de Estado grandes benefícios
ao regime. Di-lo muito bem, citando fatos, o nosso Sousa Bandeira. 1I
A lei de 1842 extinguiu-se com o regime, não obstante as tenta-
tivas de reforma, entre as quais deve ser citada a do Marquês de
São Vicente, em 1867. 7
Mas o nosso Conselho de Estado da Monarquia sofreu duas in-
fluências preponderantes - a que vinha de nossa tradição política
e formação jurídica, ligadas a Portugal e a que encontrou no modêlo
francês e na legislação dêsse país um elemento essencial à construção
do nosso sistema. Em ambas, de origens muito antigas, pois que o
de Portugal remontava ao século XIV, a influência do poder Real e
o caráter consultivo e de Conselho, imprimiram a feição originária do
nosso Conselho de Estado. Somente no correr do século XIX defi-
niu-se a sua ação jurisdicional, com que multip'licou-se a competência
daquele órgão. Também aqui os dois modelos se assemelhavam - o
francês e o português - e dificilmente seria possível descobrir qual
a fonte mais preponderante na organização e no funcionamento do
nosso Conselho de Estado.
A leitura das suas decisões, entretanto, mostra bem a influência
marcante do direito administrativo francês, pelo menos em algumas
questões sôbre que versavam os pareceres e decisões daquele órgão.
Em matéria processual, no regime dos contratos e concessões, nas
questões puramente teóricas e doutrinárias os autores franceses são
frequentemente citados, enquanto que nas questões territoriais e de
domínio, bem como nas fianças, e em certas peculiaridades de insti-
tuições que não encontram similar no direito estrangeiro, o velho
direito português, as nossas leis civis e administrativas ainda em
formação constituem o apoio máximo das decisões e pareceres do
Conselho.
Não seria, entretanto, demasiado dizer que, em relação ao Con-
selho de Estado, em si, na sua estrutura, na sua função política e
administrativa, preponderou a influência do modêlo francês, através
de autores familiares aos nossos juristas de então, especialmente
Cormenin, Macarel, Regnault em sua história do Conselho de Es-
tado, Dalloz, Vivien, etc.
Na elaboração da lei de 1842, houve sempre a preocupação de
evitar o modêlo francês, ou pelo menos, afirmou-se muito reiterada-
mente êste propósito. O autor do projeto, Ministro do Império e Se-
nador Bernardo Pereira de Vasconcelos, por exemplo, insistia na
originalidade do nosso Conselho de Estado, como órgão consultivo,

6 Evocações e outros escritos, p. 146.


7 Ver Joaquim Nabuco. Um estadista do Império, edição 1936, vaI. 11. ps. 6 e 316.
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função que na França só muito excepcionalmente exerceu em perío-
dos muito transitórios, como na Restauração.
No Brasil, foi, entretanto, esta a sua competência maior, desde
a sua organização, lembrando mais talvez o Conselho Privado da
Coroa Inglêsa. Mas o certo é que na organização do Conselho de Es-
tado no Brasil houve sempre a preocupação de examinar o modêlo
francês; era natural que assim tivesse sido, porque da legislação fran-
cesa sempre nos aproximamos muito em matéria administrativa, por
ser mais acessível aos nossos conhecimentos.
A reação contra uma cópia muito liberal de qualquer modêlo es-
trangeiro era também natural, embora o sucesso dessa reação fôsse
muito duvidoso. Além do mais, a idéia do Conselho de Estado, estava
no Brasil, ligada a do poder moderador, inspirada na concepção de
Benj amin Constant. Foi por isso mesmo, em tôrno do Imperador
que a idéia cresceu e construiu-se o Conselho de Estado pelo menos
em sua forma mais primitiva. .
Não há, entretanto, como negar-se a influência francesa no desen-
volvimento do Conselho como órgão administrativo e principalmente
jurisdicional. Foi com a atenção voltada para o Conselho de Estado
na França que nos enveredamos por um caminho perigoso e de di-
fícil execução, qual o da ampliação da competência do Conselho de
Estado, à matéria contenciosa administrativa, convertendo-se timida-
mente, por falta de preparo prévio, em uma espécie de tribunal admi-
nistrativo.
Desvirtuava-se com isto o objetivo político de sua criação, lan-
çando-se numa aventura cujo sucessor só seria possível por uma atua-
ção ousada e decidida. Neste setor jurisdicional, a tentativa resultou
em fracasso.
O mesmo, entretanto, não ocorreu nos demais setores, especial-
mente no exercício da função normativa e regulamentar, bem como
no estudo dos nossos grandes problemas administrativos. Aí foi o
seu trabalho da maior importância, e nêle se encontra a base do nosso
direito administrativo. Sem o Conselho de Estado muito pouco nos
teria legado o Império.
Tal como na França discutiu-se muito a legitimidade do Conse-
lho de Estado, como poder criado pela lei, sem a origem constitucio-
nal. Na prática êle se interpunha entre os poderes, não só no exer-
cício da função jurisdicional, reduzindo de alguma forma a compe-
tência própria e específica do poder judiciário, mas também na ação
política dos Ministros e do Parlamento.
Como admitiu-se o sistema, quando a organização dos poderes e
o seu funcionamento dependiam da estrutura constitucional?
Dizia-se também que o Conselho de Estado limitava até o direito
reconhecido ao Imperador de consultar quem entendesse, ficando pe-
lo órgão criado limitado o número dos seus Conselheiros. Objetavam
outros que tendo a Constituição abolido o Conselho de Estado, não
seria lícito restabelecer o mesmo; quando muito seria tolerável criar
outro.
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As objeções não tinham razão de ser. O único obstáculo apre-


ciável à sua criação era o de natureza constitucional, mas apenas no
que dizia respeito ao funcionamento dos poderes constitucionais, ina-
tingível por outros órgãos criados pela lei ordinária.
Outro motivo de oposição era a vitaliciedade do Conselho, que
criava uma oligarquia, sempre consultada, sempre a aconselhar o
monarca, sempre as mesmas figuras, somente substituíveis pela mor-
te de um, escolhidos por vontade única do Imperador.
Mas a vitaliciedade no caso era um proteção contra o arbítrio
do Imperador, uma garantia da liberdade do voto e da opinião dos
Conselheiros. Um Conselho a mercê da vontade do Imperador não
teria o prestígio e a independência necessários para manifestar em
qualquer assunto, mesmo de natureza política, a sua opinião.
Houve, entretanto, sempre duas preocupações no Brasil, como em
Portugal, na organização e no funcionamento do Conselho de Estado:
1 - manter o Conselho de Estado na dependência do poder executivo,
considerando-o órgão auxiliar da administração ativa; 2 - respeitar
o princípio da separação dos poderes, pela independência da admi-
nistração em face ao judiciário e dêste perante o poder executivo.
Não obstante esta preocupação, o contencioso administrativo não to-
mou o desenvolvimento que seria de esperar.
Em matéria consultiva também desapareceu o Conselho de Es-
tado com a República. Compreende-se bem esta orientação, se con-
siderarmos a tradição real dos Conselhos de Estado, a sua função
protetora do Soberano, o que levou um político brasileiro a chamar
o Conselho de Estado de para-raio do Imperador. Era natural, por
isso, que a República pelo menos em seus primeiros anos o supri-
misse.
Tentativas, entretanto, foram feitas com os projetos Arnolfo
Azevedo e Afrânio de Melo Franco, para revivê-Io, ajustado à for-
ma republicana de Govêrno. Não lograram êxito mas os Conselhos
técnicos e consultivos apareceram sob formas novas, bem conheci-
das no direito administrativo moderno, principalmente no setor eco-
nômico.
A Constituição atual prevê mesmo a criação de um Conselho
econômico com caráter antes de tudo consultivo.
Com o advento da República, suprimiu-se entre nós o contencioso
administrativo; adotamos um regime judiciarista que exclui a duali-
dade do sistema jurisdicional. Uma justiça só, somente os tribunais
judiciários que integram a justiça ordinária decidem as controvér-
sias. Uma única exceção tivemos, mas já foi em parte abolida. em
relação às causas federais, não pelo critério ratione materiae, da
natureza jurídica da controvérsia, mas pela presença no processo do
poder federal - ratione personae.
Qualquer decisão administrativa, mesmo as proferidas pelas
instâncias administrativas estão sujeitas ao contrôle da legalidade.
Se, por um lado, amplia-se a competência da jurisdição comum, in-
cluindo sob o seu contrôle todos os atos administrativos, por outro
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restringe-se a sua competência na profundidade e na medida dêsse


contrôle, reduzida à apreciação da legalidade dos atos e da sua con-
formidade com a lei.
Elimina-se a jurisdição administrativa própria, mas também
para alterar a natureza do contrôle adstrito à função própria aos
órgãos judiciais. E êste é um dos aspectos peculiares ao sistema -
a instância judicial não se envolve no mérito do ato, mesmo quando
de natureza administrativa, nas razões de conveniência, de oportu-
nidade, de interêsse, mas apenas da sua conformidade com a Consti-
tuição e a lei.
Neste particular, a instância administrativa se esgota nos pró-
prios órgãos administrativos, sujeitos ao poder judiciário apenas no
que diz com a legalidade do ato ou decisão.
O recurso por excesso de poder, o abuso do poder, são expres-
sões de compreensão restrita porque não envolvem, na sua aprecia-
ção judicial, os motivos, as razões, que determinaram o ato, mas uni-
camente a competência da autoridade, a conformidade do seu ato
com os preceitos legais aplicáveis à espécie.
Há uma diferença de técnica no julgamento dos atos adminis-
trativos pelos tribunais especializados, que os franceses conhecem.
como todos aquêles que têm um regime contencioso administrativo. No
Brasil esta diferença de técnica só se encontra na justiça do traba-
lho, autônoma, ou em certa forma, na justiça eleitoral, também in-
dependente.
Na órbita administrativa, porém, essa distinção não existe, por-
que mesmo os tribunais administrativos, ou melhor, os órgãos cole-
tivos a que estão afetas as questões administrativas, têm os seus atos
sujeitos ao contrôle judicial, como qualquer autoridade administrativa.
~ste sistema tem provocado certas reações tendentes à criação
de certas jurisdições administrativas especializadas. Principalmente
nos Estados Unidos desenvolveu-se esta tendência pela criação de
commissions relacionadas não só com a exploração dos serviços públi-
cos, (public utilities) mas também com o comércio interestadual e in-
ternacional (lnterstate Commerce Commission).
Na Inglaterra também verificou-se a mesma tendência (W. A.
Robson - Justice and Administrative Law).
No Brasil, porém, tôdas as instâncias e "tribunais" administrati-
vos estão sujeitos ao contrôle judicial e com uma intensidade talvez
excessiva.
Nos Estados Unidos, por exemplo, em matéria de tarifas do ser-
ciço público, de idem soberanamente as "Commissions" sem recurso
judicial. Mas êste será cabível tôda vez que essas tarifas forem con-
sideradas confiscatórias, isto é, forem tão baixas que levem a em-
prêsa à falência, ou tão altas que sejam inacessíveis ao usuário.
Não será o princípio da estrita legalidade que orientará o juiz
mas um elemento quase imponderável cujo nome é a cláusula "due
process", através da qual todos os direitos e liberdades não expres-
sas encontram a sua proteção. Somente a sensibilidade de um juiz
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anglo-saxônico educado na aplicação da common law e do costume,


poderia manej ar instrumento tão sutil.
Tenho sustentado, mas devo confessar, sem grande sucesso pe-
rante os tribunais, que a parte técnica das decisões proferidas pelos
tribunais administrativos especializados, é inacessível ao exame ju-
dicial. Por exemplo: as condições técnicas de um abalroamento de
navios para efeito da responsabilidade, o resultado de uma perícia
sôbre produtos minerais realizada por uma instância de tarifas adua,
neiras. etc.
Os tribunais brasileiros, entretanto, têm considerado tais deci~
sões administrativas como sujeitas à apreciação, como prova, como
elementos de informação, sem reconhecer a natureza decisória dêsses
atos.
Tôdas essas dificuldades teriam sido sobrepujadas com a cria-
ção de tribunais administrativos ou, pelo menos, com o reconheci-
mento do valor de certas decisões administrativas como res judicata,
pelo menos no que se refere ao merecimento dessas decisões na sua
parte técnica e especializada.

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