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O Conceito de Genero em Scott Butler e P
O Conceito de Genero em Scott Butler e P
OUT/2016
RESUMO:
Atualmente os estudos de gênero desfrutam de considerável reconhecimento acadêmico, social e
político. Inegavelmente, a categoria gênero surgiu no bojo do debate sobre a História das
Mulheres ao longo das décadas de 1960/70 e passou a ser usada como uma possibilidade de
teorização sobre a diferença sexual oferecendo uma alternativa às explicações que pautavam no
biológico as diferenças sociais e sexuais existentes. Em vista disso, este texto objetiva
apresentar algumas aproximações e distanciamentos nas concepções de gênero propostas por
Joan Scott, Judith Butler e Beatriz/Paul Preciado, focalizando, principalmente, a desconstrução
do binarismo gênero/sexo, natureza/cultura e evidenciar a contribuição dessa categoria para o
ofício do historiador.
ABSTRACT:
Nowadays gender‟s studies enjoy considerable academic recognition, social and
political. Undeniably, the gender category emerged in the midst of the debate on the
History of Women over the decades of 1960/70 and went on to be used as a possibility
of theorizing about sexual difference by offering an alternative to explanations which
marked social differences in the biological and existing sex. In view of this, this paper
aims to present some similarities and differences in gender proposed designs by Joan
Scott, Judith Butler and Beatriz/Paul Preciado, mainly focusing on the deconstruction of
the binary gender/sex, nature/culture and highlight the contribution of this category to
the historian occupation.
Keywords: Genre, historiography, speech.
eventos diversos, tem articulado o conceito e/ou categoria gênero a uma diversa e
significativa série de temas e discussões teórico-metodológicas como: Gênero e
Identidades; Gênero e Escravidão; Gênero e Racismo; Gênero e Feminismos; Gênero e
Família; Gênero e Saúde; Gênero e Sexualidade; Gênero e Masculinidades; Gênero, 154
que é o uso instrumental da teoria, uma prática de corte e cola de trechos de obras de
diversos autores/as como um simples argumento de autoridade. Assim, penso que não
basta dizer que trabalho com a noção do autor A, B ou C sem refletir o porquê ou como
cheguei àquela concepção de gênero e não outra. Pois, como nos diz Foucault (1979, p. 156
Não sei se concordo que seja um problema, no sentido negativo do termo, mas,
talvez, um “problema de gênero”, como diria Butler, um problema que desorganiza
mass também abre novos caminhos e possibilidades analíticas.
do saber proposto pelo filósofo do cuidado. É pensar, por exemplo, no efeito Foucault
na historiografia como aponta Margaret Rago (1995) e Albuquerque Júnior (2004) e
também na acolhida de Foucault pelo movimento feminista (RAGO, 2014).
De modo geral, elas são consideradas pós-estruturalistas, que, segundo Miriam 158
Pilar Grossi, esta corrente de pensamento entende que “o gênero se constitui pela
linguagem, por aquilo que muitas autoras definem [como] discurso” (2004, p.5). Para
Scott, “o discurso é um instrumento de orientação do mundo”, logo, ela entende que a
“linguagem não designa somente as palavras, mas os sistemas de significação - as
ordens simbólicas - que antecedem o domínio da palavra propriamente dita, da leitura e
da escrita” (Scott, 1990, p.11). Aqui é evidente a influência de Foucault que entende o
discurso “como uma série de segmentos descontínuos, cuja função tática não é uniforme
nem estável, [...] mas, ao contrário, como uma multiplicidade de elementos discursivos
que podem entrar em estratégias diferentes” (FOUCAULT, 1988, p.111). Scott
reconhece que a linguagem não é tudo, pois, “sem o sentido não há experiência; sem
processo de significação não há sentido” (SCOTT, 1990, p.11). Em seu texto A
invisibilidade da experiência, Scott sublinha que a experiência não deve servir como
uma evidência para ilustrar a diferença (de sexo, gênero ou sexualidade), pois
não são indivíduos que têm experiências, mas sim os sujeitos que são
constituídos pela experiência. Experiência nesta definição torna-se, então, não
a origem de nossa explanação, não a evidencia legitimadora (porque vista ou
sentida) que fundamenta o que é conhecido, mas sim o que procuramos
explicar, sobre o que o conhecimento é apresentado (SCOTT, 1998, p.304).
Margaret Rago, em diálogo com Scott, corrobora essa ideia ao dizer que:
a experiência, portanto, deixa de ser vista como autenticidade do vivido,
como evidencia em si mesma, assim como o discurso deixa de ser
considerado como mera abstração conceitual, reflexo da realidade, a partir da
oposição binária que hierarquiza teoria e prática, pensamento e ação (RAGO,
2013, p.31)
Assim ela termina dizendo que “a dualidade do sexo num domínio pré-discursivo é
uma das maneiras pelas quais a estabilidade interna e a estrutura binária do sexo são
eficazmente asseguradas” (2013, p.25). Por isso, e de acordo com Butler, é possível
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nomear o corpo acontece no interior da lógica que supõe o sexo como um “dado”
anterior à cultura e lhe atribui um caráter imutável, a-histórico e binário” (2008, p.15).
Portanto, o ato de interpelar já é uma ação política e não apenas verbal, de
atribuir um lugar para aquele indivíduo. É marcar, definir o sujeito pela sua sexualidade, 161
Deste modo, Preciado vai defender que a noção de “tecnologia do sexo” permite
compreender que o sexo e a sexualidade não são efeitos de um sistema repressivo, pelo
contrário, “as técnicas disciplinadoras da sexualidade [são] estruturas reprodutoras,
assim como técnicas de desejo e de saber que geram diferentes posições de sujeito de
saber-prazer” (PRECIADO, 2014, p.156). Por consequência, ela crítica a distinção
sexo/gênero e propõe compreendê-los como tecnologias, “como dispositivos inscritos
em um sistema tecnológico complexo” (PRECIADO, 2014, p.23). Inspirada em Donna
Haraway (2009), a autora defende que a noção de “Natureza Humana” nada mais é do
que “um efeito de negociação permanente entre humano e animal, corpo e máquina,
mas também entre órgão e plástico” (PRECIADO, 2014, p.23). Deste modo, ela sugere
que o sexo
não é um lugar biológico preciso nem uma pulsão natural. [Mas] é uma
tecnologia de dominação heterossocial que reduz o corpo a zonas erógenas
em função de uma distribuição assimétrica de poder entre os gêneros,
(feminino/masculino), fazendo coincidir certos afectos com determinados
órgãos, certas sensações com determinadas reações anatômicas. [Assim] a
natureza humana é um efeito da tecnologia social que reproduz nos corpos,
nos espaços e nos discursos a equação natureza=heterossexualidade
(PRECIADO, 2014, p.25).
Outro ponto que merece destaque é a sua concepção de gênero. Em Preciado ele não é
simplesmente performativo (isto é, um efeito das práticas culturais
linguístico-discursivas) como desejaria Judith Butler. O gênero é, antes de
tudo, prostético, ou seja, não se dá senão na materialidade dos corpos. É
puramente construído e ao mesmo tempo inteiramente orgânico. Foge das
falsas dicotomias metafísicas entre o corpo e a alma, a forma e a matéria
(2014, p.29).
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Scott - de que a base biológica continua sendo estruturante das construções de gênero
possíveis-, e levando a cabo reflexões que ficaram conhecidas como Estudos Queer,
elas apontam a associação limitada feita entre gênero e biologia, cujo efeito principal é a
negação da feminilidade às mulheres transexuais, travestis e também aos homens. Pois
como enfatiza Butler
quando o status construído do gênero é teorizado como radicalmente
independente do sexo, o próprio gênero se torna um artifício flutuante, com a
consequência de que homem e masculino podem, com igual facilidade,
significar tanto um corpo feminino como um masculino, e mulher e feminino,
tanto um corpo masculino como um feminino (2013, p. 24-25).
Por isso, ela entende que “localizar o mecanismo mediante o qual o sexo
transforma-se em gênero é pretender estabelecer, não só o caráter de construção do
gênero” (BUTLER, 2013, p.67), como também o seu caráter não natural, mas histórico
e performativo. Outra questão a se pensar é que, possivelmente, a percepção de Scott
quanto ao sistema sexo/gênero seja um dos efeitos da sua transposição do campo da
história social para a história cultural, como aponta o artigo de Carla Pinsky, Estudos de
Gênero e História Social (2009).
Diante do que foi apresentado cabe agora pontuar em que medida essa reflexão
sobre a categoria gênero pode ser profícua ao ofício do historiador. Primeiramente, não
é possível circunscrever o termo gênero apenas como sinônimo de uma história das
mulheres, das sexualidades, das homossexaulidades, enfim, das chamadas dissidências
de gênero. Considero adequado que todos/as os/as que se filiam ao campo da História (e
nas ciências humanas em geral) percebam, e reconheçam, que os estudos de gênero são
muito mais do que estudos localizados e à parte da considerada “grande história”, pelo
contrário, o gênero nos oferece um rico e vasto arcabouço teórico e metodológico para
pensarmos as relações sociais dos indivíduos baseados, não só na diferença sexual entre
homens e mulheres, como também questionar a assimetria na esfera social (como a
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de “reais””. Isso quer dizer que, ao produzirmos uma interpretação sobre um dado
acontecimento já estamos atribuindo e produzindo um determinado sentido. Assim
sendo, entendo que o gênero, como categoria de análise, não está desconectado de
outras categorias sociais como classe e raça. Como sublinha a antropóloga Fátima 166
Cecchetto (2004, p.57), gênero como categoria de análise não “compreende a simples
dicotomia masculino e feminino; antes, o gênero cruza-se com uma rede de elementos
vinculados às estruturas de classe, poder e etnicidade, que estruturam as relações
sociais”, e são essas conexões que devemos identificar e analisar em nossos objetos.
Por conseguinte, entendo que esses marcadores sociais da diferença estão no
mesmo plano, pois são constituintes da experiência do sujeito, todavia, dependendo das
redes de sociabilidade e dos espaços que o indivíduo atua e/ou circula, um desses
elementos pode se sobressair mais do que outro, no entanto, não se trata de substituir
uma categoria por outra, o desafio é trabalharmos na perspectiva interseccional
(CRENSHAW, 2012) articulando os diferentes conceitos nas nossas pesquisas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade,
Porto Alegre, 16(2): p. 5-22, jul/dez.1990.
1
Segundo O sociólogo Richard Miskolci (2012) e a psicóloga Jaqueline Gomes de Jesus (2015), a
heteronormatividade é a ordem sexual vigente, fundada no modelo heterossexual, familiar e reprodutivo,
entendida como característica de todo ser humano “normal”. Desse modo, qualquer pessoa que não se
adeque a esse padrão é considerada “anormal”, o que justificaria sua marginalização.
2
PEDRO, Joana Maria. Michelle Perrot: a grande mestra da História das Mulheres. Estudos 171
Feministas, Florianópolis, v. 11, n. 2, p. 509-512, Dec. 2003.
Segundo Miskolci, o Queer pode ser definido como “o estudo daqueles conhecimentos e daquelas
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