Confesso padre, pequei. Pequei em pensamentos e palavras, atos e
omissões. Desde o episódio com a minha noiva eu venho pecando, e foi algo gradativo. Estou num ponto que, se continuar, não terei volta. Tenho noção disso, padre. Mas não dá simplesmente pra fingir que nada aconteceu, e deixar pra lá. Eu sei que o certo seria eu perdoar, e deixar meu coração se recuperar com o tempo, mas não dá mais. O mundo é muito mal, padre, e eu sinto que tenho que fazer algo. Sei que eu deveria deixar Deus fazer o trabalho dele, e ter fé que tudo vai melhorar. Sei que um dia tudo vai realmente melhorar, e que a justiça de Deus é para depois dessa vida terrena. O planeta Terra já é um lugar dominado pelo diabo há muito tempo, e os costumes e crenças estão todos invertidos, mas ainda assim, meu coração clama. Meu peito entra em chamas, e a cada injustiça que eu vejo passar, lembro-me da minha noiva. A maneira como ela foi brutalmente estuprada e em seguida assassinada, enquanto preparava o meu jantar, me parte o coração, seu padre. Ela não merecia passar por isso, e nem eu. Sabe padre, é como se tivessem tirado do meu coração a vontade de viver, a vontade de seguir em frente, sabe. É um ferimento que pode até ser que pare de doer, mas sempre deixará uma cicatriz. Marca, sabe? Ainda que eu acredite que eu possa encontrar outra mulher, e ela cuidará do meu coração para preencher o vazio que ela deixou, mas o sentimento de injustiça e de brutalidade só dá espaço à sentimentos tempestuosos, como a vingança. Não vou mentir, padre: vim me confessar, pois estou com vontade de me vingar. Descobrir quem foi o filho da mãe que me fez isso, que tirou de mim o meu maior tesouro: que eu lutei tanto pra conquistar, e que eu tanto amava. Ah, seu padre, eu preciso sentir que fiz justiça. E é por isso que eu precisava me confessar, precisava compartilhar com alguém que sempre me guiou, e que sempre esteve ali quando eu precisei, principalmente de dois meses para cá, desde a morte da minha noiva. Hoje não te peço mais nenhuma dica, nem um exemplo de caminho para seguir, padre. Só vim para lhe avisar algo que acho que deveria saber, antes que me julgue por algo caso eu acabe me dando mal com isso. Vou fazer justiça com as próprias mãos, padre. Vou brigar, vou viver, vou pregar. Vou ensinar padre, educar o povo. Deus fará de mim um muro forte, e o mal não me derrubará. Obrigado por tudo padre, mas eu preciso ir. Ore por mim, pois com certeza eu vou precisar. PARTE I: A escolha Capítulo 1: Marilyn & Maggie
[Capítulo anterior ao Prólogo]
[Terça-Feira, 5 de maio de 1998 – Cemitério de Los Angeles]
Um buquê de flores, um óculos de sol e um coração repartido em uns duzentos pedaços. Uma mãe debruçada sobre um caixão, um padre que aguardava para começar o funeral, um noivo que, por apenas 2 dias de distância, não era viúvo. - “Por quê, meu Deus? Por quê?” – urrava a minha sogra, Diana, sobre o caixão. – “Era minha filha única, tão amada e dedicada! Como foi fazer isso comigo, Anna?”. Imagino como fica o coração de uma mãe que acaba de perder uma filha, deve ser aterrorizador. Na hora quer jogar a culpa em qualquer coisa: Deus, na filha, no lugar, na hora... Só para ter a quem atacar enquanto chora. Um pensamento confortável. Quanto ao coração de um noivo que perde a noiva, da maneira que eu perdi, só posso dizer que eu não encontrava forças pra me animar. Nem mesmo falar eu conseguia. Quando vinham me dar pêsames pela morte de Anna, eu simplesmente balançava a cabeça acima e abaixo, com o mesmo olhar frio e desacreditado que passava a fazer parte do rosto de alguém que uma vez teve um humor tão bom que até o funeral de sua noiva estava lotado de amigos e familiares. - “Eu estou aqui pro que der e vier, Tony. Você sabe disso.” – Me disse o meu melhor amigo Paulie, a quem eu conheço desde a minha infância. Atualmente morava no Texas, era latifundiário e criava gado. Foi a única pessoa que conseguiu tirar palavras da minha boca no momento do funeral, por uma simples questão de amor fraternal que construímos durante esse tempo todo. - “Eu vou precisar, meu irmão. Muito obrigado, eu contava mesmo com a sua ajuda.”. - “Mas claro, poxa! Você esteve aí para mim em todos os momentos da minha vida, não vai ser agora que eu vou te abandonar.”. Era bom ouvir isso, assim que ele me abraçou, o padre McCartney pediu a minha permissão para começar o funeral, e pediu para que eu ficasse ao lado de Diana durante a cerimônia para controlá-la. Fiz como ele pediu. Diana era viúva, mãe solteira desde que Anna tinha 4 anos de idade. - “Estamos aqui hoje, reunidos em nome do nosso senhor Jesus Cristo, para realizar a cerimônia fúnebre em homenagem à esta jovem de apenas 26 anos, Anna Dawson...” E prosseguiu com a cerimônia. Eu segurava a mão de Diana com a minha, e no momento em que o caixão era enterrado, ela me pedia com todo o coração e a emoção possíveis: - “Você é tudo o que me sobrou dela! Eu quero que você seja feliz, não importa quem seja a mulher de sorte que irá ocupar o lugar da minha filha! Apesar disso, não me abandone, por favor, meu filho!”. Balancei a cabeça em sinal de sim, e lhe dei um abraço. Nenhum de nós dois agüentávamos ver aquela cena, mas uma despedida era necessária. Para encarar a realidade, para saber que ela não iria mais voltar. Assim que se acabou o funeral, o padre McCartney quis trocar uma palavrinha comigo. - “Meu filho, eu quero me disponibilizar para ajudar no que eu puder. Quero deixar tanto você como a Sra. Dawson à vontade, podem pedir-me ajuda no que quiserem, e quero começar te dando esse presente.”. O padre McCartney me entregou uma bíblia. - “Esse deve ser não só o guia da sua vida, mas o guia da vida de qualquer homem. Eu quero te mostrar o mesmo Deus que eu conheço: um Deus que ampara, um Deus que cura, um Deus que abençoa. Mais do que isso, um Deus que te ama a ponto de entregar o próprio filho à morte, por ti.”. Eu sempre fui católico, mas nunca praticante. Na realidade, acreditava por herança de família mesmo, nunca tinha tido provas que Deus realmente existisse e operasse em minha vida. Mas, no momento, me pareceu algo que eu pudesse aproveitar para ficar em paz. Foi um presente inesperado, recebido com muita alegria. - “Muito obrigado padre. Com certeza eu vou precisar disso”. Em uma pequena recepção, os participantes da cerimônia consolavam à senhora Dawson e eu consegui finalmente me sentar. Nesse momento, um sentimento começou a tomar conta de mim, de maneira que eu nunca havia sentido antes. Era um sentimento vingativo, que eu já havia sentido no momento em que entrei em casa e a vi naquele estado.
[Flashback explicativo #1]
Anna e eu morávamos juntos desde dezembro de 1997. Nosso
casamento estava marcado para a Quinta-Feira, dia 7 de maio de 1998. Namorávamos desde o dia 13 de julho de 1994. Eu a conheci no jogo Brasil contra Suécia, pela copa do mundo de futebol, no estádio de Pasadena (o ‘Rose Bowl’). Loira, vestindo verde e amarelo e vibrando como nunca, lá estava ela. Enquanto eu comprava meu dedão de espuma, ela abria espaço para passar, e sentou-se ao meu lado. Na hora eu achei estranho: uma mulher indo sozinha ao estádio? Tinha algo errado. Que nada: ela era fanática por futebol, e torceu a copa toda para o Brasil. Lembro que achei um absurdo quando ela me disse que torceu pelo Brasil contra os Estados Unidos, mas aos poucos fui entendendo a paixão dela pelo futebol. O fato é que ela estava nervosa, pois estava zero a zero durante a maior parte do jogo. Romário perdeu um gol incrível, e o Mazinho perdeu um rebote mais incrível ainda. Ela roia as unhas: uma mania que eu percebi durante o jogo todo. Quando faltavam 15 minutos para o término da partida, eu fiz uma aposta com ela: se o Romário marcasse um gol até o final do tempo regulamentar, ela teria que me dar um beijo. Não fui nada bobo, já que ele estava jogando muito bem naquela copa, mas mesmo assim ela topou. Não deu outra: aos 80 minutos, com seus 1 metro e 65 centímetros de altura, subiu mais que todos os zagueiros da Suécia e fez o gol de cabeça. Na vibração, ela ganhou o gol, e eu ganhei o beijo. A partir dali pudemos nos conhecer, namorarmos e até noivarmos. Porém, no dia 3 de maio de 1998, ela voltou para casa das compras com a mãe. Estava tão ocupada com as coisas do casamento, que estava com a cabeça nas nuvens. Havia acabado de finalizar os toques para a decoração da nossa festa, e falar com o nosso organizador na agência. Retornou para nosso apartamento e começou a preparar o nosso jantar. Era domingo, e o nosso bairro era tranqüilo. O que ela não sabia, é que alguns vândalos haviam a seguido desde a casa do organizador, que ficava em um bairro afastado da cidade. Ela deixou a porta semi-aberta para quando eu chegasse, pois nossa porta trancava sozinha se fechada, e eu estava sem as chaves. Da cozinha, ela não saberia se poderia me ouvir pedindo a chave. Para resumir a história: os vândalos invadiram a minha casa, estupraram a minha mulher e a espancaram tanto, mas tanto, que ela morreu de traumatismo no hospital, um dia após o ocorrido. Acertaram-lhe facadas e a mal-trataram tanto que, quando eu cheguei em casa e a vi desacordada, não a reconheci. Gritei por ajuda aos vizinhos, e liguei para o hospital. Com o perdão das expressões, deixando-me levar pelo sentimento: eu queria matar aqueles filhos da puta que foderam com a minha vida. A sua mãe não parava de chorar. Ver Diana Dawson, uma senhora conhecida na cidade por ser advogada e vereadora, aos prantos e sem vontade de continuar seguindo em frente foi, no mínimo, assustador. Assim, dia 4 de maio, por volta das oito horas da noite, Anna faleceu.
[Fim do Flashback explicativo #1]
Eu queria pegar aqueles caras. Eu queria encher os responsáveis de pancada, fazer a família deles sentir o que eu senti. Eu queria justiça, nada mais do que isso. Pode soar um tanto medieval, um tanto “Olho por olho, dente por dente”. E era isso mesmo. O que eu queria mesmo era encontrar um por um: não sei se teria coragem de matar alguém, mas que eu iria fazê-los sofrer, com certeza. Foi alimentando esse tipo de sentimento que permaneci por algumas horas, sentado, pensando no que fazer. Foi quando Paulie se aproximou novamente de mim. - “Ei, por que é que você não passa uns meses lá em casa? Seria bom para nós dois, para colocarmos o papo em dia e um tomar conta do outro... Que tal? Venha para o Texas!”. - “E virar caipira como você virou?” – respondi, puxando o primeiro esboço de sorriso que eu pude dar em dois dias. – “Ótimo, tudo bem. Pode ser que me faça bem mesmo. Vamos lá.”. Logo após acabar a recepção, arrumei uma mala cheia de coisas e entreguei a chave de casa para o padre McCartney, pedindo para que ele tomasse conta das coisas por lá. Ele topou, e me lembrou de aproveitar o seu presente. Coloquei a bíblia junto das minhas coisas, e fui com Paulie até o aeroporto. Pegamos o avião, e decolamos. Chegávamos ao Texas no dia 6 de maio, por volta das duas horas da tarde. - “É isso meu amigo, essa é a minha terra: Garland, Texas!”. Chegamos à sua casa. Pela primeira vez, ele me apresentava todas as suas terras. Suas conquistas, seu suor. Era solteiro, não tinha construído família, e ganhou seu primeiro pedaço de terra como herança de seu avô. Mostrou-me sua casa quase completa, menos um cômodo que ficava ao lado do seu quarto, que me prometeu mostrar na tarde seguinte. Jantamos um belo porco assado, e fomos dormir. Paulie tinha realmente uma vida mansa. Uma casa enorme, três empregadas, muitos automóveis e posses. Ao acordar, a empregada pediu que eu me vestisse e tomasse o meu café da manhã e me deu o recado de que Paulie me encontraria na cozinha. Tirei o pijama e me vesti, e resolvi descer até a cozinha, perto das 9 horas da manhã. Paulie estava me esperando na ponta de uma mesa farta, repleta de pães, café, chás, leite, roscas doces e salgadas, e pedaços de bolo. - “Pedi que caprichassem no café para você, mano. Você vai precisar de muita energia pro que faremos hoje.” Achei ótimo, e comi até ficar satisfeito. Agradeci mil vezes à Paulie e ainda mais às empregadas. Ao final do café, Paulie me chamou para andar a cavalo. Gostei da idéia, e fomos a pé até o estábulo, que ficava atrás da casa de Paulie. - “Você costuma montar, Paulie?”. - “Só por hobby... Quem realmente monta por aqui é a minha vizinha. O estábulo é dela também.”. - “Só por curiosidade, quantos cavalos você tem, Paulie?”. - “Aqui em casa só estão nove... O restante está competindo ou se tratando em veterinários. No total, são 14.”. Ao chegarmos no estábulo, os cavalos estavam todos juntos em uma área cercada, comendo e trotando. Ao encostar na cerca, um cavalo branco se aproximou de mim, tombando a cabeça para que eu passasse a mão. - “Este cavalo tem nome, Paulie?”. - “Tem sim... Scadufax.”. Eu havia me esquecido da paixão de Paulie pela história de “O Senhor dos Anéis”. Quando éramos crianças ele começou a ler, e se apaixonou pela história. Lembro até hoje quando ele ganhou uma cacatua e lhe deu o nome de Gandalf. Scadufax, por sua vez, era o nome do cavalo de Gandalf, que na aparência era descrito exatamente como o cavalo de Paulie. - “Ainda com essa paixão, Paulie?”. - “Não é minha culpa se você tem preguiça demais para terminar de ler qualquer coisa.” – brincou. O fato era que Scadufax parecia realmente gostar de mim, e me deixou morrendo de vontade de andar à cavalo. Não em qualquer cavalo, mas no Scadufax. - “Me dá uma chance, amigão?” – disse à Scadufax, passando a mão em sua cabeça tombada. - “O que está fazendo com o meu garanhão mais querido?” – me interrompeu uma voz feminina. – “Scadufax!” – e assoviou, mas o cavalo nem se moveu. Ela rapidamente chegou perto de onde eu e Paulie estávamos. - “Tony, esta é Marilyn. Ela é a vizinha sobre quem eu te falei, ela compete e cuida dos cavalos, isso os faz serem metade dela também. Marilyn, esse é Tony, o meu melhor amigo de todos os tempos. Ele veio de Los Angeles.”. Pode parecer muito cedo, pois minha noiva tinha acabado de morrer, mas era inegável: era uma mulher muito atraente, devo dizer. Loira, com um corpo muito bonito, usando uma camisa xadrez vermelha e branca, com um cinto e uma calça jeans, botas e o toque especial: um chapéu bege. Atraente, mas decidida, veio correndo para cima de mim. - “O que você fez com Scadufax?”. – surpresa, Marilyn me acusou. - “A propósito, o prazer é todo meu. Nada, eu só dei um pouco de atenção à ele”. - “O motivo pelo qual ela diz isso, Tony, é que Scadufax é extremamente agressivo com estranhos... Eu mesmo demorei mais de um ano até que ele se acostumasse comigo, e ele foi direto em sua direção para te agradar.”. – revelou-me Paulie. - “Exatamente. Desculpe-me a falta de educação, o prazer é meu também. Eu só fiquei surpresa pelo comportamento de Scadufax. Sabe, até hoje ninguém nunca pode montá-lo, por essa atitude agressiva que ele tem”. – completou uma muito mais dócil e carinhosa Marilyn. – “Quer tentar a chance?”. - “Pode ser...”. – Respondi com receio, mas sem medo. - “Você pode acompanhá-lo, Marilyn? Eu preciso voltar à minha casa, leve-o para uma volta pelas terras e depois para almoçar, pode ser?”. – pediu Paulie. - “Posso sim... Mas vamos ver se esse playboy de cidade grande tem o que é preciso para montar como nós, Texanos.”. – aceitou a proposta em tom de brincadeira. Ela preparou o Scadufax para que eu pudesse montá-lo, e me deu equipamentos de segurança como cotoveleiras e joelheiras, além de um par de botas. Chegada a hora, ela me instruiu para que eu pudesse subir. Com uma pequena ajuda dela, consegui ficar em cima do Scadufax. Era uma sensação maravilhosa, e Scadufax não parecia estar nem um pouco nervoso. Marilyn me instruiu para ir conversando com o cavalo, para acalmá-lo. Falando e fazendo carinho, dando atenção. Marilyn montou em uma égua chamada Olívia, completamente preta. Algo como o Trovão do Zorro, por assim dizer. - “Guie o cavalo, tome as rédeas e vamos!”. Não consegui pegar o controle de primeira, e Marilyn se divertia com as minhas dificuldades. Morria de rir com as minhas falhas, e quando Scadufax não me respondia, gargalhava com a minha total falta de coordenação. Mas era visível o seu orgulho por estar vendo o Scadufax ser montado. Quando eu consegui tomar o controle, fomos caminhando lentamente pelas terras de Paulie. - “Eu vou te levar até o lago e depois voltaremos, ta? Dá mais de uma hora o percurso todo, e dá pra ver bastante coisa...”. - “Tudo bem...”. - “Enfim, o que te trouxe ao Texas? Foram os cavalos, o churrasco ou as texanas?”. – Marilyn me perguntou em tom de brincadeira. - “Paulie me convidou para passar um tempo aqui até que eu me sentisse melhor...”. - “Melhor em relação à que, se me permite a pergunta?”. - “Minha noiva faleceu na segunda, ele pegou o primeiro vôo para me visitar e me confortar...”. - “Nossa, eu não fazia idéia! Me desculpe as brincadeiras, meus pêsames...”. – tentava esconder a vergonha com o chapéu e virando o rosto. - “Não tem problema, fique tranqüila. Você não tinha como saber, mesmo.”. - “E como você está agora?”. - “A vontade de chorar já passou. Agora eu estou um tanto quanto confuso...”. - “Você veio ao lugar certo! Nada é mais terapêutico e emocionante do que uma volta em um cavalo!”. - “Assim espero...”. Continuamos assim, passando por muitos ambientes agradáveis e arborizados, chegando até o lago. - “Esse lago é chamado de ‘Repouso dos cardumes’. É uma das paisagens mais bonitas que temos por aqui... Olha, vamos amarrar nossos cavalos ali naquele tronco e fazer uma pausa para um lanche.”. Ajudou-me e amarramos Olívia e Scadufax em uma cerca. Enquanto ela abria a sua mochila e retirava uma toalha xadrez, uma garrafa de vinho e alguns sanduíches. - “Hahaha, um piquenique? Não faço um há mais ou menos quinze anos... E da última vez, era suco, e não vinho!” - “Bem vindo de volta à sua infância, Tony. Aqui em Garland nós procuramos dar valor à essas pequenas coisas... Sabe, as coisas são mais independentes por aqui. Cada um faz o que ama, sem se preocupar com o que os outros vão pensar.”. Fazia sentido... Enquanto tomávamos vinho e comíamos os sanduíches, observávamos os bichos no lago. Era maravilhoso: patos nadavam, peixes saltavam para fora d’água de vez em quando e os animais campestres ficavam ao redor da margem. Realmente, a paisagem mais bonita que vi no Texas. Porém, com tudo isso, eu não conseguia relaxar. Nada tirava da minha cabeça as lembranças de Anna, que estavam me consumindo. Marilyn ousou: - “Me desculpe tocar nesse assunto denovo, mesmo. Mas você me parece frio demais às vezes. Como foi que sua esposa faleceu?”. - “Ela foi estuprada e assassinada por bandidos que invadiram a minha casa.”. - “Nossa... Eu suspeitei que fosse algo do tipo, novamente desejo pêsames... Você parece muito novo pra perder a noiva. Me desculpe entrar na intimidade assim, mas quantos anos você tem?”. - “25.”. - “Nossa... é uma pena mesmo. Novo como é, já perdendo alguém que amava...”. - “É. Por algum motivo não tenho problemas de falar do assunto, é até melhor colocar pra fora. De certa forma, obrigado por perguntar.”. - “De nada: se precisar que eu te incomode novamente é só pedir.” – sorriu, e me fez sorrir. - “Hahaha... Sabe, já que você ousou, é a minha vez: e você, qual é a sua idade?”. - “Não é pergunta que se faça para uma dama!” – novamente mostrava um sorriso. - “Quando eu estiver na presença de uma dama é só falar!” Marilyn respondeu com dois socos brincalhões no meu braço esquerdo, e nós dois rimos. - “Está bom, vai... Tenho 25 também.”. - “Nossa!” - “Nossa o quê?”. - “Nada... Você parece ser mais nova.”. - “Não é porque você tem essa cara de acabado que eu também teria que ter, não é?” Demos risada, e continuamos o nosso piquenique. Ao terminarmos, montamos novamente em nossos cavalos e retornamos ao estábulo. Marilyn estava orgulhosa de Scadufax, e eu orgulhoso de ter conseguido montar. - “Faz uma coisa para mim: Não vá embora sem se despedir, por favor?”. – pediu Marilyn. - “Mas é claro que não vou. Qualquer pessoa que seja boa o suficiente para fazer um piquenique para mim merece no mínimo um tchau!”. Com isso fui até a casa do Paulie. Já era a hora do almoço, e Paulie estava assando um carneiro. Para uma coisa ele nunca teve empregados: churrasco. Uma de suas paixões é fazer um bom e saboroso churrasco, algo que ele nunca abriria mão. - “O que achou?”. – Me perguntou. - “Linda e simpática.”. – Respondi. - “Eu quis dizer do passeio, e não da Marilyn.”. – respondeu-me, rindo. – “Da Marilyn todo mundo pensa isso mesmo.”. O que eu quis dizer com linda e simpática? Eu sentia como se estivesse traindo Anna, poucos dias após a sua morte. Só acalmei meu coração quando me lembrei das palavras da Sra. Dawson, dizendo que desejava que eu fosse feliz. Uma hora ou outra, eu teria que colocar a bola pra frente. Sei que não estava preparado agora, pois meu coração estava confuso demais... Mas não era para eu me sentir traindo ninguém. Depois de um ótimo almoço, Paulie finalmente me chamou para o quarto misterioso. - “Conheça o meu maior hobby.”. Ele abriu a porta, e se revelou uma sala repleta de armas. Pistolas de todos os tipos, algumas espingardas e apetrechos de um verdadeiro arsenal. - “Saiba o verdadeiro motivo pelo qual eu te chamei para o Texas. Eu sei que você pensa todos os dias em pegar o filho da mãe que fez aquela barbaridade com a Anna. Eu sei também que você não teria nunca a coragem de utilizar uma arma letalmente, meu amigo.” – em choque, eu não pude responder nada. Portanto, Paulie continuou – “Mas, me desculpe: aquilo não aconteceria aqui no Texas. Aqui é legalizado que as pessoas andem armadas, e não existem vândalos do tipo que invadem casas como se estivessem entrando em qualquer banheiro público. Isso é porque os bandidos daqui têm medo de chumbo. A criminalidade daqui é muito menor do que a de Los Angeles, graças à posse de arma.”. - “Você já matou alguém?” – perguntei, e notei que ele recarregava uma pistola manual, com cartuchos de tambor. - “Nunca precisei, mas sempre estive armado. E hoje quero lhe dar isso.” Ele lustrou a pistola manual, que era dourada e prateada. - “Esta é a Maggie. Se preferir, Magnum .357. Uma pistola manual com uma precisão tremenda, e que faz um estrago danado. Vamos, experimente.” Havia dentro do arsenal uma “pista de tiro”, com um alvo móvel no fundo. Paulie colocou fones de ouvido em minha cabeça, e fez um sinal. Eu nunca fui a favor de armas, e só as usei no treinamento do exército para a guerra do golfo, para a qual graças a Deus não fui chamado. Mas algo me fez ir adiante, apontei ao alvo, e me concentrei. Disparei uma vez, acertei o centro. Disparei novamente, acertei o centro novamente. Disparei, e disparei, e disparei. E o meu pensamento queria que aquele alvo fosse o maldito que violou o meu coração, arrancou o meu ser do meu corpo e enterrou-o junto à Anna. Quando vi, havia acabado o tambor, e nenhum tiro havia sido dado fora do alvo. - “Tony... Isso é um dom, parceiro... Suponho que irá aceitar o presente, não é mesmo?”. Eu balancei a cabeça em sinal de sim. Não sabia onde estava com a cabeça, mas algo me dizia que a Maggie seria muito útil, e que ela seria a oportunidade perfeita para fazer a justiça que precisava ser feita. Com isso na mente, guardei a minha arma e subi. Paulie me deu um vidro repleto de munição para a Maggie, e um kit para fazer a própria munição da Magnum .357. Fui ao aeroporto no final da tarde para comprar a passagem: estava decidido, voltaria para Los Angeles no dia seguinte, pela manhã. Quando retornei do aeroporto, Paulie me disse para tomar banho e me vestir, pois iríamos jantar na casa da Marilyn. Fiz conforme o combinado, e cheguei à casa de Marilyn pouco depois de Paulie. Toquei a campainha. - “Você veio!”. – Marilyn me recebeu com um caloroso abraço e com um sorriso na cara. - “E eu trouxe essa garrafa de vinho, para compensar o que tomamos hoje à tarde!”. – sorri enquanto deixava a garrafa em suas mãos. - “Entre, por favor!”. Marilyn morava sozinha, em uma casa menor que a de Paulie. Possuía apenas uma criada, que era sua babá desde os 6 anos de idade, chamada Rosário. Dentro da casa, seus troféus de hipismo e fotos de cavalos por toda a parte. Fotos com seus pais e irmão também espalhadas pelas paredes. Chegando à cozinha, as coisas tinham acabado de ficar prontas: Rosário havia preparado uma macarronada e um frango assado, além de uma excelente salada de alface, tomates e pepinos. Tivemos um jantar muito agradável, uma conversa interessante na qual Marilyn soube um pouco mais da vida de um simples matemático de Los Angeles, e eu pude saber detalhes da família e da profissão de uma hipista e veterinária profissional que veio de Dallas para Garland. Quanto à Paulie... Bem, Paulie ficava mais satisfeito só ouvindo, e de boca cheia. Mencionei o fato de que iria embora na manhã seguinte, e Marilyn se mostrou decepcionada. - “Pensei que fosse ficar mais... Estava tão legal ver um playboy tentando ser caipira!”. - “Pois é, não dá. Tenho assuntos à resolver em Los Angeles, e preciso muito ver como está a minha ex-sogra.”. - “Ainda assim, é um desaforo ir tão cedo...”. Paulie atendeu uma chamada no celular, e logo teve que sair. - “Estou com um problema com um peão, preciso resolver, desculpe- me sair assim do jantar, Marilyn.”. - “Imagine, Paulie. Eu e o Tony nos fazemos companhia, não é mesmo?”. – piscou e sorriu para mim. - “É claro.”. Assim continuamos o jantar, apenas eu e Marilyn. Ela demonstrava um enorme carinho por mim, e cansou de me elogiar por ter sido o pioneiro na montagem do Scadufax. Pediu que eu voltasse ao estábulo com ela, para se despedir do Scadufax. Após terminarmos de comer, fomos até lá. Joguei minha jaqueta em um monte de feno, andamos um pouco pelo estábulo, e entramos no local onde Scadufax estava guardado. - “Tchau, Scadufax. Um dia eu volto para te montar denovo!”. – beijei-lhe entre os olhos, e passei a mão na sua crina. Fechei a portinhola e saí. Dei um abraço em Marilyn, e fui buscar minha jaqueta. - “Ei, eu também tenho um presente de despedida, Tony.”. – Marilyn disse. Eu estava abaixado para pegar minha jaqueta, e me virei para ver Marilyn me jogar no monte de feno, me agarrar e me dar um caloroso beijo. Eu não sabia o que fazer. - “Desculpe-me... e trate de voltar.”. – Marilyn deu-me mais um beijo nos lábios, e voltou para casa correndo. Eu não fazia a mínima idéia do que havia acabado de acontecer, e nem sabia se poderia desfrutar daquele momento, pois eu tinha acabado de perder a noiva. Meu coração ganhou mais um ponto de interrogação, e eu voltei de vez para a casa de Paulie. À noite, antes de dormir, vasculhei a minha mala e encontrei a bíblia que ganhei de presente do padre McCartney. Eu abri a bíblia ocasionalmente em qualquer página, e caiu no capítulo 15 do livro de Jeremias. Especificamente, nos versículos 18 á 21, que dizem o seguinte: “Por que dura a minha dor continuamente, e a minha ferida me dói, e já não admite cura? Serias tu para mim como coisa mentirosa e como águas inconstantes? Portanto assim diz o SENHOR: Se tu voltares, então te trarei, e estarás diante de mim; e se apartares o precioso do vil, serás como a minha boca; tornem-se eles para ti, mas não voltes tu para eles. E eu te porei contra este povo como forte muro de bronze; e pelejarão contra ti, mas não prevalecerão contra ti; porque eu sou contigo para te guardar, para te livrar deles, diz o SENHOR. E arrebatar-te-ei da mão dos malignos, e livrar-te-ei da mão dos fortes.”. O que senti foi uma revelação. De repente, pus-me a joelhos e comecei a orar. Pedindo a Deus por um caminho a trilhar, um motivo para continuar. E Deus me revelou que a minha maior arma para fazer a justiça não era a minha recém-parceira Maggie. Na verdade, a minha maior arma estava em minhas mãos: a bíblia. O perdão. O sacrifício. Seríamos eu e Deus contra o mundo, e se preciso fosse, usaria a Maggie. Deus me faria um muro de bronze: forte, resistente, e eu venceria o mal, caso permanecesse junto à Ele. Ele iria me arrebatar da mão dos malignos, e me livrar da mão dos mais fortes. Com isso, eu apartaria o precioso do vil: faria justiça para os bons. Só assim eu conseguiria a cura para a minha ferida, e superaria a perda de Anne. Aquela foi a noite da minha conversão: quando eu pedi verdadeiramente à Deus pela primeira vez, e recebi as respostas que eu precisava. Após essas revelações, fui dormir, sendo um novo homem: um cristão novo, renovado. Acordei como nunca, louvando e agradecendo à Deus. Tomei o café da manhã antes mesmo que Paulie acordasse, e fui ao quarto dele para acordá-lo. Pedi para que ele me levasse ao aeroporto pois eu queria dar-lhe um presente. Chegando lá, corri até a loja de conveniências, e comprei algumas coisas. Voltei-me à Paulie com um embrulho, e disse: - “Paulie, assim como você me deu o que você considera como arma, eu vou te dar o que eu tenho de mais precioso”. Eu dei à Paulie uma bíblia. Se me perguntassem uma semana antes o que eu achava de dar uma bíblia como presente, eu daria risada e diria que é piada. Consideraria uma ofensa. Mas agora, fazia mais sentido do que tudo. Dei um abraço no meu melhor amigo, prometi voltar, e embarquei. Cheguei em Los Angeles por volta das duas horas da tarde, e fui direto à igreja. O padre McCartney estava realizando confissões. Entrei na fila para pegar a minha chave, e aproveitei para deixar claro ao Padre que eu tinha uma nova missão. Chegava a minha vez: fechei a portinhola. - “Diga, meu filho.”. - “Confesso, padre, pequei...”. PARTE I: A escolha Capítulo 2: Maldições e Bênçãos
[Sexta-Feira, 8 de maio de 1998 – Catedral]
Assim que terminei de me confessar, dei um abraço forte no padre McCartney, enquanto ele me dizia que não iria me dizer penitência alguma, pois todos os meus pecados já haviam sido perdoados por Cristo na cruz. Disse-me também que era possível se observar um novo homem: renovado, renascido. Com algo a mais no coração: um propósito maior, uma vontade maior. E eu me sentia assim. Eu parecia mais forte, por mais que meu coração palpitasse de saudades da minha ex-noiva. Ex-noiva. Agora o “Ex” fazia parte da minha vida, sendo provavelmente o alvo a ser superado para que eu pudesse seguir em frente. O padre também pediu para que eu o acompanhasse até a minha casa, para ele me entregar as minhas chaves e me mostrar uma surpresa. Pegamos então um taxi e fomos até o meu apartamento. Subindo as escadas, o Padre começou a falar. - “Meu filho, quando cheguei aqui a polícia havia feito a limpa, mas os móveis estavam todos destruídos e seu apartamento estava revirado. Pensei, por tudo o que você estava passando, que deveria fazer alguma coisa.” – neste momento, ele colocou a chave na fechadura e abriu a porta do meu apartamento – “É por isso que eu reuni um grupo de senhoras na igreja que estavam aptas a me ajudar a limpar e organizar o seu apartamento, e também consegui uns cinco homens que puderam me ajudar à consertar tudo o que estava quebrado”. Era incrível. Meu apartamento parecia intacto, como se nada tivesse acontecido por ali. Tudo estava nos conformes (talvez não nos lugares de sempre, mas ninguém seria obrigado a saber aonde eu guardo meu material de pesca), e eu estava realmente agradecido. Era uma preocupação a menos, e uma gratificação enorme que eu devia ao Padre McCartney. - “Muito obrigado, Padre! É sério, obrigado mesmo!”. Eu o abraçava fortemente e com muita alegria, e finalmente me sentia em casa de novo. Claro, sentia a falta de Anna, mas é inigualável saber que possuía o conforto de pessoas que realmente posso chamar de amigos. Coloquei minhas malas na sala, e convidei o Padre para ficar e jantar comigo, eu estava maluco para ligar para uma Pizzaria e encomendar uma do tamanho gigante. Ele negou, disse que tinha afazeres na igreja e que precisava ir. Compreendi, me despedi dele, e assim estava, pela primeira vez desde a morte de Anna, completamente sozinho em casa. Liguei enfim, e pedi a pizza. Enquanto eu aguardava, sentia algo de estranho. Sabe? Aquele lugar era a casa da Anna... Tinha o cheiro dela, lembranças dela, o jeito dela e principalmente: o gosto dela. Minha pizza chega, e a única pessoa com quem eu troco palavras naquela noite era o entregador. Nesta noite eu descobri uma coisa: o barulho do silêncio chega a ser ensurdecedor. Incomoda demais, principalmente quando você nasceu rodeado por pessoas e até esse ponto continuou tendo companhia em basicamente toda a vida. Eu amava a Anna, e eu sentia falta demais dela, mas não é por isso que eu deveria ficar sozinho até o fim da minha vida. Com vinte e cinco anos de idade não dava para abandonar tudo o que podia ter pela frente. A ousadia de Marilyn passava a me incomodar no ritmo frenético em que meu coração pulsava: intercalava os espaços da minha mente junto com as saudades que eu sentia de Anna. Era um absurdo, e meu coração gritava calado, urrando internamente, procurando não alimentar a confusão que estava sendo armada por meus mais íntimos sentimentos. Paulie tinha razão, eu precisava de um hobby. Algo para me ocupar, pra eu não ficar maluco. E foi aí que eu me lembrei da terceira mulher que estava na minha mente: Maggie. Terminando meu quarto pedaço de pizza, tirei da mala o presente me dado por Paulie, e me dirigi até um quarto vazio do apartamento. Aquele quarto me deu calafrios. Estava vazio, possuía apenas uma escrivaninha e uma cadeira. Foi idéia da Anna se desfazer da minha sala de estudos e passar todos os livros para o nosso quarto. No futuro, aquele quarto vazio se transformaria no quarto de um possível bebê. É, já pensávamos nisso, e era uma das maiores vontades de Anna. Coloquei o kit, a munição e a Maggie em cima da escrivaninha. Montei o kit para fazer a minha própria munição, e guardei o pote com as munições já prontas em uma gaveta com tranca. Levei a Maggie (armada com seis balas) para o meu quarto, e lá a guardei em uma maleta que eu possuía para trabalhar. Eu morria de medo de fazer besteiras com a Maggie, sabe? Se alguém me pegasse com uma arma em Los Angeles eu iria pra cadeia na hora. Contudo, algo me dizia que ela seria útil, e eu tinha a plena certeza de que uma hora ou outra eu a usaria. Sem mais nem menos, arrumei tudo e tranquei o quarto: coloquei meu bebê para dormir, até que ele chorasse pedindo para ser alimentado, se é que me entende. Voltei para a sala e para a minha (agora fria) pizza. Liguei a TV em qualquer canal com a intenção de pegar no sono, e estabeleci que aquele seria o rumo que a minha noite iria tomar. Como todos sabemos que a gente não tem o poder de estabelecer nada nas nossas vidas, o telefone tocou. - “Senhor Walker?”. - “Sou eu mesmo.”. - “Bom saber que já voltou à cidade. Eu sou o detetive Harrison Cash, e estou cuidando do caso do assassinato da sua noiva... E lhe trago notícias.” - “Boas ou más?” - “São... – Pensou um pouco, como se estivesse realizando um julgamento de valor sobre as notícias – são notícias.” - “Pode dizer” - “O seu organizador de casamentos nos ajudou reconhecendo o suspeito e o próprio confessou: nós prendemos um dos responsáveis pela morte de Anna. Ele está preso na delegacia, se quiser visitá-lo, peço para que um guarda te acompanhe.” Confesso que meu coração parou durante uns oito ou nove segundos. Ao contrário do que eu pensei que fosse haver, eu não senti raiva. Na verdade, eu não senti raiva, nem amor, nem ódio, nem pulsação, nem mesmo senti vida naquele momento: eu estava fora de mim. Era algo como atingir um estado de nirvana para a minha atual situação: era a luz no fim do túnel. Apenas fiquei bufando no telefone durante esse tempo. Quando voltei a um estado de possível conversa, só fui capaz de dizer duas palavras. - “Cinco minutos.” Desliguei o telefone e fui ao quarto de Maggie, que repousava tranquilamente no lugar onde eu a havia guardado. Entretanto, algo no meu coração me dizia que ainda não era a hora de usá-la. Coloquei um casaco e luvas, peguei a chave do meu carro e fui até a garagem. Liguei o meu Corvette e sintonizei uma rádio country que tocava Crazy Little Thing Called Love, do Queen. Achei melhor desligar o rádio – aquela música trazia uma animação que não era bem o que a noite estava preparando para mim. O som das gotas da garoa sobre o capô podia não ser agradável, mas era o ideal. Matutei com meus neurônios e fiz a corrida mais veloz da minha casa até a delegacia já feita por um corvette. Assim que cheguei, a vontade que tive era de descer do carro, acender um charuto e meter o pé na porta da delegacia, mas me controlei. Claro, devido ao fato de que não fumo e tampouco tenho a moral necessária para entrar aos chutes na casa dos homens da lei. Me guiei pela delegacia até que um homem de cabeços brancos e barba por fazer me encontrasse, e o seu nome era Harrison Cash. Percebi quem era graças à sua voz dita logo na primeira frase, que ainda estava na minha cabeça desde que saí de casa. - “Senhor Walker?” – De novo, as mesmas exatas palavras que fizeram meu coração sair pela garganta. - “Você é o Detetive Cash?” - “Sim, sou eu. Me acompanhe , por favor.” Caminhamos até uma sala de observação de interrogatório, do tipo das vistas nos filmes de ação, com um falso espelho e tudo. Se eu tivesse oito anos e o responsável pela morte do meu grande amor não estivesse do outro lado da sala, eu estaria me divertindo. Mas eu mascava as bochechas numa tentativa feroz de me automedicar para evitar um ataque agressivo. - “Ali está ele. Diego Muñoz, descendente de latinos mas cidadão americano.” – Esclareceu de maneira bem descritiva e desnecessária o Detetive Cash. - “Eu posso entrar?” – Com a certeza de que entraria de qualquer jeito, mas sendo educado. - “Como, sozinho?” - “De preferência, e anonimamente.” - “Olha, eu sei que você espera um sim. Eu sei que você torce por um sim. Eu sei que na sua cabeça, colocar o seu punho entre os dentes dele será satisfatório e reconfortante. Mas isso não vai trazer a Anna de volta, e muito menos vai te fazer o bem que você espera.” - “Isso é um sim?” - “Você vai tomar cuidado com o que irá fazer?” – Tentava me controlar como um pai à um filho pequeno. - “Isso é um sim?” – Insisti, com muito ímpeto, exatamente como um filho pequeno que está decidido do presente que quer receber do Papai Noel. - “Siga em frente. Eu estou aqui te observando e como reforço caso algo aconteça. Se tudo estiver correndo bem, faça um sinal com a cabeça. Se não, faça um sinal e eu irei até lá.” – Melhor, impossível. Eu iria tirar tudo o que eu quisesse daquele safado, e se eu quisesse manter só entre nós dois, eu poderia. - “Muito obrigado.” Ele me deu uma chave antiga e me coordenou. Com as diretivas dadas pelo detetive, cheguei de frente à porta do interrogatório. Com a alma engasgada e com o coração latejando, abri a porta e dei uma boa olhada no meliante. Cabelo espetado, brincos em ambas as orelhas e uma tatuagem de uma caveira em chamas em seu braço esquerdo, um magrelo de uns 21 anos estava sentado e sendo acusado de estuprar e assassinar a minha noiva. - “Quem é tu, meu irmão?” – Me questionou no maior estilo “menino mau”. Demorei cerca de um minuto a responder, enquanto me locomovia até a cadeira em frente à dele, sem nenhuma mesa entre nós, provocando um silêncio enquanto pensava no que dizer. - “Eu sou o seu pior pesadelo.” – Ok, eu sei que citar Rambo talvez não fosse a melhor das idéias. Mas, no momento, eu não pude deixar escapar um clichê que viesse do fundo da minha alma e que realmente fizesse sentido. Tirei meu casaco e coloquei sob a cadeira, e prossegui. - “Uhh... Que medo.” – Zombou enquanto desviava o olhar. Eu olhava para o espelho, me lembrando do lugar em que o Detetive Cash estava, fazendo-lhe um sinal de sim com a cabeça. Voltei o olhar ao marginal. - “Você... Você é realmente culpado das acusações?” - “É claro que não... e mesmo se eu fosse, acha que eu ia confessar, maluco? Tenho cara de otário pra ti?” - “Tem.” – Novamente fiz o sinal com a cabeça para o Detetive. - “Folgado de merda... Por acaso essa mulher era alguma coisa tua?” - “Quem pergunta nesta merda é o folgado de merda aqui.” – Tomei as rédeas da situação, com uma calma e frieza que só são obtidas através do desespero. – “Você é culpado ou não?”. - “Pois é, de otário eu só tenho a cara então.” – Me respondeu, ainda referenciando à sua outra resposta. Aproximei a minha cadeira da dele, fiz sinal ao Cash e repeti a pergunta. Novamente uma negação. Fiz isso mais umas três vezes, e quando me dei conta, estava praticamente colado nele, sentindo cada respiração minha tornar-se também a dele, e nossos corações ficando cada vez mais acelerados e agressivos. - “Você fez esta merda ou não?” – insisti. - “Já disse meu irmão, de mim você não vai tirar resposta nenhuma” Pude ver uma tatuagem em seu pulso esquerdo, com a palavra “Sangria”. Eu já tinha ouvido falar desse nome antes, a polícia havia investigado um assalto por membros de uma gangue com este nome há alguns meses antecedentes à este, e então liguei os fatos. - “Sangria, é? Aquele grupo de góticos metidos a bandidos?” Percebi que era um assunto do qual ele não gostava de tratar, pois ignorou da primeira vez. Talvez eu tivesse achado um ponto fraco. - “Ou vai me dizer que este é o nome do seu clube do livro?” – Aproveitei a deixa para provocar. - “Não te interessa.” - “Ou pior: eles são seus machos!” – Passei dos limites. Ainda não sei onde estava com a cabeça, mas já não controlava minhas respostas. - “Bicho... não luta contra o que você não vai poder agüentar depois.” - “Ah, mas pra entrar na sangria eu aposto que você teve que agüentar muito ‘desaforo’ desse bando de homens, não é?” Ele foi se enfurecendo aos poucos, e eu continuava com as provocações e com os sinais de sim feitos ao Detetive Cash. Até que uma hora, ele perdeu o controle. - “Que beleza, ‘meu irmão’! Como é que eles te chamam na Sangria? Betty? Susie? Carlita?” – Por algum motivo, essa foi a gota d’água. Talvez Carlita fosse o nome da irmã dele, ou eu tivesse realmente cutucado mais a ferida do que eu esperava. - “Você quer saber a verdade, filho da puta? Eu tracei aquela puta de luxo sim. Aproveitei cada instante com aquela vagabunda, e quando me dei conta, todos os meus amigos também queriam um pedaço. Aí então, tivemos que dividir, ‘há-há’, sabe como é. Não é toda hora que um filé daqueles estava servido e lambuzado pros outros comerem. E quando a gente já estava empanturrada, socamos a cabeça dela com tanto prazer que no final eu estava excitado de novo!” – Me disse, com a maior cara de cretino que alguém já se dirigiu à mim. Meu coração ansiou por aquele momento que havia acabado de chegar: ele havia confessado, só para mim, que havia feito o crime. Eu mantive a tranqüilidade e tranquei a porta do interrogatório. Olhei para o Detetive Cash, e pela primeira vez fiz um sinal de não, para que ele desse a volta e entrasse na sala. Mas enquanto isso, eu tinha outros planos para Diego. - “Maldito.” – Fechei o punho direito e acertei a cara dele, enquanto segurava o seu colarinho com a esquerda. Fiz isso repetidas vezes enquanto o Detetive Cash batia insistentemente na porta do interrogatório, pedindo para que eu abrisse a porta. Bati, e bati, e bati, e bati, e quando a última lágrima caiu de meu olho, eu abri a porta. - “O que aconteceu?” – Invadiu a sala o Detetive Cash, me separando de Diego e tentando cuidar do nosso meliante espancado. Peguei meu casaco de volta, coloquei sobre o ombro e, enquanto saía da sala, eu declarei: - “Agora a gente tem provas. Mete esse pirralho na cadeia e certifique-se de que ele vai ser a mulherzinha de alguém bem maior do que ele. Obrigado Cash, mas eu tenho que ir.” – Deixei a sala com os nervos à flor da pele, e o coração batendo em um ritmo absurdo. O Detetive Cash esboçou uma reação de decepção com a minha atitude ao perceber que eu havia perdido a cabeça e esmurrado Diego, e sequer se despediu de mim em resposta. Deixei a delegacia, entrei no meu Corvette e voltei para casa, ouvindo o que agora era uma forte chuva batendo na lataria e com os olhos cheios de lágrimas por pensar no que aconteceu. Cheguei em casa, vi o último pedaço da minha pizza fria apodrecendo pela metade em meu antigo prato, que eu já não tinha mais vontade de comer. Passei reto até o meu quarto, coloquei a cabeça no travesseiro que ainda tinha o cheiro de Anna, e dormi. Dormi com sangue entre as juntas dos dedos no punho, com lágrimas nos olhos e com uma cicatriz eterna no espírito, por onde sempre jorraria tristeza e uma lembrança absurdamente desconfortável para sempre que eu me lembrasse. Mais uma daquelas noites que passam como um trem-bala, cujo sonho é esquecido e que necessita de um bom banho pela manhã para poder encarar o dia. Foi o que eu fiz: lavei as lágrimas, o suor e o sangue com água quente e me vesti para voltar à minha vida comum, se é que isso era possível. Trabalho. Eu acho que nunca mencionei minha ocupação, a não ser ter citado o fato de que sou um matemático. Eu sou um professor de matemática da universidade de Los Angeles, cargo conseguido graças à minha formação. Eu tive um professor que me guiou dentro da faculdade para que eu fizesse a minha carreira acadêmica, o ‘Doutor’ Benjamin Liffe. Aliás, quando eu o conheci, era apenas o ‘Mestre’ Ben era realmente um mentor pra mim: colocou-me dentro de um projeto de iniciação científica quando ainda estava no terceiro ano da faculdade, e me guiou durante o meu mestrado, indicando-me para o meu tão desejado e atual emprego. Consegui uma cadeira na LAU como professor de Cálculo. Integrais, derivadas e noções de limite: o meu aprofundamento na ciência é um grande contrapeso se colocado em frente à minha vida nova e cristã. Mas é o mais forte argumento que tenho de que minha fé não veio pela ignorância, mas sim pelo reconhecimento indiscutível de que há alguém maior do que todos nós, e que esse alguém pode nos ajudar se quisermos. Cheguei à faculdade com o meu corvette, e mais uma vez na vida me orgulhei de estacionar em uma vaga em cujo asfalto se lê “T. Walker”. Dirigi-me à minha sala por um corredor onde todos os funcionários e conhecidos me davam pêsames e me acolhiam de volta. Já no meu escritório, sentei-me e arrumei as minhas anotações para que eu retomasse as aulas na Segunda-Feira. Sim, ainda estava no sábado, dia nove de maio, mas eu havia passado quase uma semana longe de tudo e precisava me atualizar. Passados alguns minutos, a minha porta se abre. - “Doutor Ben!” – comentei feliz ao ver que era meu grande mentor que entrava em meu escritório. - “Tony, meu filho! Como você está? Eu lhe devo desculpas!” - “Estou melhorando a cada dia, graças a Deus. Por que me deve desculpas?” - “Eu não pude estar muito próximo de você no funeral. Eu estava muito emocionado e certamente não sei como poderia ter te aliviado, portanto preferi ficar presente até o fim, prestando uma homenagem silenciosa e sem comprometer a minha lealdade. Mas meu coração se culpa: eu deveria ter conversado com você, meu filho!” Eu me lembro disso. Doutor Ben teve uma postura extremamente apática no funeral de Anna. Eu me lembro de tê-lo abraçado, mas realmente não trocamos uma só palavra. Ele chorou muito, e eu tinha certeza de que tomava as minhas dores, e não guardo mágoa dele. - “Pare com isso, Doutor! O senhor sabe o quão importante é para mim, e eu entendo as suas intenções! Não há o que desculpar por aqui.” - “Agradeço que pense assim.” – Neste momento, eu colocava em minha sala algo que agora estava faltando: a minha bíblia. Coloquei-a em cima da escrivaninha, e me voltei para o Doutor Ben. - “Doutor, tem algo que eu quero que você saiba.” - “O que, meu filho?” - “Eu encontrei à Cristo, vi a verdade e me converti.” Minhas conversas com o Doutor Ben eram sempre assim: diretas ao ponto. Somos dois profissionais da área de ciências exatas, e gostamos de soluções concretas. Deixamos a ‘enrolação’ para os profissionais da área de biológicas e humanas, enquanto nos preocupamos com ser certeiros no que afirmamos. - “Isso é sério?” – Disse-me, abrindo um sorriso no canto da boca. - “Sim, doutor.” - “Que maravilha! Glórias e louvores a Deus!” Esqueci de citar: Ben possui uma história de vida conhecida em Los Angeles. Em sua juventude ele abusou do sexo, das drogas e do Rock’n’Roll, e deu no que deu: ele perdeu a perna direita, do joelho para baixo, em um acidente enquanto disputava um “racha” de carro. E esse nem é o pior lado do acidente. O lado mais absurdo é que os dois carros capotaram em um penhasco, e o outro carro explodiu. Enquanto o carro de Ben pegava fogo, ele foi ajudado por um padre, que o retirou dos escombros e o levou para a sua igreja, onde cuidou dele e fez o seu corpo quase-morto ser salvo (tendo como desconto apenas a perda na perna direita: o que foi considerado um milagre para Ben). Mas Ben é alguém reservado em relação à sua fé: a não ser que requisitado, ele nunca traz isso à tona. Não sou ninguém para julgar, mas acredito que o testemunho dele poderia ser mais bem utilizado por sua experiência de vida, mas isso é outra história. Enfim, Ben ficou realmente feliz ao saber de minha conversão, me abraçou e se dispôs a caminhar comigo nessa vida nova. - “Doutor Ben, quem tomou as minhas classes nesta semana?” - “Quem você acha? Eu mesmo cuidei disso, oras!” Entregou-me os relatórios dos alunos e até onde a matéria havia chegado. Engraçado: eu havia programado essas exatas aulas para esta semana, antes de tudo acontecer. Talvez todos estes anos de convivência me deixaram com o raciocínio parecido com o do Doutor. O agradeci, ele se despediu de minha sala e eu fiquei estudando até o horário de almoço. Recebi um telefonema horas antes do almoço, era uma voz conhecida. - “Senhor Walker?” – Essa frase, dita pelo Detetive Harrison, era uma máquina do tempo. - “Cash.” – Fui extremamente seco e frio: o nosso último momento de conversa não foi assim muito agradável, se é que se lembram. - “Olhe, eu não vou comentar nada sobre ontem. Nós temos tudo para incriminar o Diego, você sabe. Tudo gravado. Eu não quero saber se você esteve errado em fazer o que fez, e eu até te dou a minha parcela da razão.” – Parece que ele finalmente caiu em si, apesar de ter deveres com a lei era de se entender a minha fúria para com o imbecil do meliante na noite passada. - “Assim espero mesmo.” - “Mas eu gostaria que marcássemos uma reunião casual para hoje, tendo como participantes nós dois e a advogada do distrito policial que está no caso.” - “Advogada?” - “Sim, a promotora Jane Auris.” - “Ok, por mim tudo bem. A que horário, e onde?” – Achei a idéia excelente, eu queria resolver isso logo e colocar minha vida pra frente. - “Poderíamos nos encontrar daqui a meia hora para almoçar no restaurante próximo da universidade, pode ser?” – Melhor ainda: eles servem um espaguete ao molho branco que é absurdamente delicioso. - “Mas é claro que sim! Os vejo daqui a pouco então, obrigado.” - “Até breve, senhor Walker.” - “Boa tarde, Cash”. Desliguei o telefone do escritório, e levei pouco menos de meia hora para me preparar e arrumar tudo na faculdade. Tranquei a minha sala e fui a pé mesmo para o restaurante, no horário marcado. Estavam, ao lado de uma viatura policial, o já conhecido Detetive Harrison Cash e uma ruiva alta, de cabelos lisos presos com coque e olhos azuis, que presumi ser Jane Auris, que devia ser por volta da idade dos 30. - “Senhor Walker.” – Frase nenhuma com essa voz me trazia tanto impacto. - “Detetive Cash. Senhorita Jane?” - “Muito prazer, senhor Walker.” – me respondeu com uma voz rouca e fria. Era o tipo de mulher cuja postura era forte e invejável, verdadeiramente uma advogada por quem eu colocaria a minha mão no fogo à primeira vista. Entramos no restaurante e fizemos nossos pedidos. Apresentaram-me as provas e a ficha de Diego Muñoz, e me disseram que tinham total capacidade de fazê-lo ser levado em cárcere da maneira que as coisas estavam caminhando. Mas uma pergunta que fiz recebeu uma resposta que não foi muito bem quista por mim. - “E quanto tempo ele vai ficar preso?” - “Pois é... senhorita Jane?” – O Detetive Cash, visivelmente envergonhado, passou a vez para a advogada - “Bom... este é um assunto delicado. Você sabe que a justiça de hoje em dia não é exatamente o que chamamos de justa. Negociando com o juiz, provavelmente ele pegará uns vinte ou vinte e cinco anos... Mas...” – Insinuou em tom de arrependimento. - “Mas?” – Questionei, esperando pelo pior. - “Mas recursos e pedidos podem diminuir isso para dez ou quinze anos. Contando com isso, com contraprovas e com ‘bom comportamento’, provavelmente ele ficará preso uns quatro anos e sairá em condicional.” – Eu não podia aceitar o fato de que o assassino da minha esposa iria ficar somente esse tempo na prisão, e antes que eu pudesse reclamar, ela finalizou o raciocínio. – “E, prendendo ele, provavelmente não conseguiremos investigar mais ninguém do caso, e assim o assunto morrerá com ele.” - “Mas como? Não estamos falando de qualquer coisa, é da morte da minha noiva! São dos responsáveis pela minha infelicidade, pela tristeza de minha ex-sogra! E vocês dizem que ela morreu para que um marginalzinho pegasse três ou quatro anos de cadeia e saísse por bom comportamento? Isso é um absurdo!” - “Infelizmente, é o nosso sistema.” Aquilo me encheu de insatisfação. Como pode haver tanta injustiça? Era algo tão simples: confissão de assassinato e estupro, e ele ficaria só uns três anos na cadeia? Não era justo, não era mesmo. Eu comecei a valorizar o meu senso de justiça acima do proposto pelo sistema. É, o sistema. Eu e ele nos tornamos inimigos públicos a partir deste ponto. - “Puta merda.” - “Pois é.” – E a advogada prosseguiu. – “Nós temos uma audiência marcada com o juiz para a segunda-feira às oito da manhã, e tudo o que você tem que fazer para que ele seja preso é dizer que quer indiciá-lo fronte ao tribunal.” É aí que estava o problema: eu não queria que ele fosse preso por três anos. Mas também não queria que ele saísse impune disso, obviamente: o que eu queria era a justiça. A minha visão da justiça. Eu nunca fiz o estilo ‘bandido bom é bandido morto’, mas os ideais dessa causa passavam a me convencer cada vez mais. Concordei em falar com o juiz na segunda, e me despedi. O resto do final de semana foi simples: arrumada a minha vida no emprego, me alimentei com parentes e amigos e, no domingo à noite, telefonei para a minha casa. Sim, a minha casa, onde meus pais moram, e com os quais eu não falava desde o funeral de Anna. Ainda não mencionei meus pais pelo fato de não ter sido relevante: é óbvio que eles me consolaram mais do que ninguém no funeral, mas meus momentos com eles foram essencialmente emotivos e nada produtivos para que eu tivesse que relatar, e se você chegou até este ponto sabe que eu costumo ser franco e direto, sem protelações. Meu pai é um homem muito nobre, e quando digo isso, não exagero. Os valores de honestidade e justiça que eu aprendi foram basicamente todos com ele, e eu me culpo por não procurar a sua palavra de sabedoria sempre que eu preciso (mesmo sabendo que preciso muito). Dono de uma loja de ferramentas, meu pai é o famoso “faz-tudo”. Conserta desde televisores até vassouras elétricas, e te vende qualquer coisa que você precisar. Possui também um senso de honra inigualável, e é querido por todos no bairro onde vive. Grande senhor Albert Walker: sem formação superior (acadêmica), mas com um coração superior ao da humanidade. Já a minha mãe é o braço direito do meu pai. Irma Walker é uma mulher forte, decidida e explosiva: talvez a sua ascendência italiana tenha algo a ver com isso. Dona de casa, minha mãe sempre tomou as decisões da casa junto ao meu pai, e zelou pelo bem da nossa família. Sempre se preocupou com o bem de seus amigos, e é a presidenta do conselho do bairro: ativista como ninguém. No telefonema que dei para casa, conversei com os meus pais sobre a minha situação, como eu sabia que a pena do rapaz iria ser injusta e o que eu poderia fazer para mudar isso. Após uma longa argumentação com o meu pai, tomei uma decisão que esclareceu a minha mente e que organizou os meus pensamentos de maneira que eu finalmente havia enxergado uma saída. Desliguei o telefone no domingo à noite, orei pedindo o discernimento do que eu poderia fazer, e fui dormir. Acordei bem cedo na segunda-feira: banhei-me, tomei café, li o meu jornal e comi um donut de baunilha. O relógio marcava sete horas e quarenta minutos quando eu saí de casa para ir ao fórum, aonde eu cheguei faltando cinco minutos para começar a audiência. Encontrei Jane Auris sentada na mesa onde eu também deveria estar, e a cumprimentei. - “Bom dia, senhorita Auris.” - “Bom dia, senhor Walker. Está preparado?” - “Absolutamente.” - “Espero mesmo que sim.” O juiz adentrou o recinto, e após um breve instante pediu o silêncio e a ordem no tribunal. - “Está iniciada a sessão do julgamento de Diego Muñoz, indiciado por estupro e assassinato pelo senhor Anthony Walker, através da polícia de Los Angeles representada pela promotora Jane Auris.” Senti um frio na espinha: o que eu estava prestes a fazer poderia mudar todo o rumo da minha vida. Tentei permanecer firme, e atento às palavras do juiz. - “Senhor Anthony Walker, queira se levantar, por favor.” - “Meritíssimo?” – Indaguei com uma tensão enorme correndo pelo meu corpo, após me levantar. Me dei conta que havia chegado a minha hora, e que eu deveria fazer o que eu achava que tinha que fazer. - “O senhor afirma que o senhor Diego Muñoz é culpado dos crimes de homicídio e estupro da senhora Anna Dawson?” – Meu corpo estremeceu, eu finalmente dei um suspiro mais forte. Tomei coragem, e respondi. - “Não, meritíssimo. Retiro todas as acusações.” Talvez, para o público que estivesse no tribunal, aquilo fosse inesperado, mas para mim fazia todo o sentido. Eu não queria que o sistema colocasse as suas mãos sujas no meu réu: eu queria fazer a justiça do meu jeito. Não bastava culpar somente o Muñoz, e muito menos somente por quatro anos. Eu queria pegar todos eles, um por um, e fazê-los pagar pelo sofrimento que me haviam causado. - “Você está louco?” – Sussurrava uma nervosa Jane Auris em meu ouvido, indignada com o caso que acabara de perder. – “Este caso já estava ganho! Como você abriu mão dele tão facilmente?”. - “Já que é desta forma, declaro retiradas todas as acusações, e o réu, inocente. Caso encerrado.”- Disse o juiz, visivelmente espantado com a minha decisão. Abri mão da justiça do sistema, em troca da minha, mas não podia deixar isso passar. Diego olhou para mim, deu risada e celebrou estar livre novamente. Jane juntou as suas coisas, olhou-me com cara de desprezo e foi embora, passando quase que por cima de mim. Eu havia acabado de escolher um caminho sem volta: ele não sairia impune, longe disso. Comparado ao meu julgamento, o sistema é uma dama, e pode ter certeza que o Diego não perdia por esperar: aquela podia até não ser a sua última risada, mas foi com certeza o seu último deboche. Era a hora de utilizar o que aprendi, era hora de descobrir tudo o que eu pudesse saber da sangria, e era hora de colocar todos eles pra correr. Chegou a hora de acordar a Maggie de seu sono profundo, e ensiná-la a andar. Ou a correr.