Você está na página 1de 39

Levando os direitos a sério

Ronald Dworkin

Entre Hidra e Hércules


Marcelo Neves
AS TESES FUNDAMENTAIS DE HART

(1) o direito é um conjunto de regras;

(2) há um teste para identificar as regras que


pertencem ao direito, diferenciando de regras
morais ou sociais: são as regras de
reconhecimento, regras secundárias, ou “teste de
pedigree”).

(3) assim, um sistema jurídico é composto por


regras primárias e regras secundárias.
AS TESES FUNDAMENTAIS DE HART

(4) se algum caso não estiver regulado por esse


conjunto de regras, então esse caso não pode
ser decidido pela “aplicação do direito”. A
autoridade deve usar um poder discricionário
para buscar fora do direito um padrão que
solucione o caso, produzindo uma nova regra
jurídica.

(5) uma obrigação jurídica é uma obrigação


decorrente de alguma regra jurídica válida que
exige uma conduta. Se não há tal regra, não há
obrigação jurídica.
sobre a regra de reconhecimento

para Hart, uma regra pode ser obrigatória de


duas maneiras:

(1) se ela é aceita por aqueles que se submetem a


ela, ou

(2) se ela é válida.


nas sociedades primitivas não havia propriamente
“direito”, pois não era possível distinguir as regras
jurídicas das outras espécies de regra (não havia
qualquer regra de reconhecimento, mas apenas
normas primárias).

o surgimento de uma regra de reconhecimento é o


que faz surgir o direito, porque torna possível
distinguir o direito de outros sistemas de regras

para Hart, depois que o direito surgiu, uma obrigação


jurídica somente poderia ser estabelecida a partir de
uma regra válida

a regra de reconhecimento é a única regra jurídica


cuja obrigatoriedade depende da aceitação
Dworkin afirma que não existem apenas regras
primárias e regras secundárias, mas há outros
padrões normativos que operam dentro do direito

→ caso Riggs vs. Palmer (1889)

→ caso Henningsen vs. Bloomfield (1969)

Além das regras primárias e das regras


secundárias, há também os princípios e as
políticas (policies)
DISTINÇÃO FORTE
A diferença entre REGRAS E PRINCÍPIOS não é de grau,
pois há uma diferença qualitativa entre pois têm uma
estrutura diferente.

DWORKIN

As regras são normas aplicadas à maneira do tudo-ou-


nada. Se o fato de incidência ocorre e a regra for
VÁLIDA, esta deve ser aplicada. Se não for VÁLIDA,
não deve ser aplicada.

Os princípios possuem dimensão de VALIDADE e de


PESO. Princípios comportam graus de efetividade: os
princípios podem ser mais ou menos efetivos e, em
caso de conflito entre princípios, um não anula o outro.
PRINCÍPIOS X DIRETRIZES POLÍTICAS - POLICIES
(DWORKIN)

“Denomino 'política' [policy] aquele tipo de padrão que


estabelece um objetivo a ser alcançado, em geral uma
melhoria em algum aspecto econômico, político ou social da
comunidade (ainda que certos objetivos sejam negativos pelo
fato de estipularem que algum estado atual deve ser protegido
contra mudanças adversas).” (Dworkin, Levando os direitos a
sério, Martins Fontes, 2002, p. 36)
DIRETRIZES POLÍTICAS [policies] → METAS COLETIVAS

“Denomino 'princípio' um padrão que deve ser observado, não


porque vá promover ou assegurar uma situação econômica,
política ou social considerada desejável, mas porque é uma
exigência de justiça ou equidade ou alguma outra dimensão
da moralidade.” (obra citada, p. 36)
PRINCÍPIOS → PROTEÇÃO A DIREITOS INDIVIDUAIS
→ os princípios pertencem ao direito; quando
aplicam princípios, os juízes estão aplicando o
direito, e não indo além do direito
→ não é aplicado direito “ex post facto”, mas
direito preexistente
→ não há um teste que possa servir para os
princípios
→ os princípios vinculam juridicamente os juízes,
de modo que estabelecem a obrigação jurídica de
julgar em um determinado sentido (não há
discricionariedade, em sentido forte)
três tipos de discricionariedade

1) liberdade para decidir dentro de


parâmetros vagos estabelecidos por uma
autoridade (discricionariedade fraca)

2) ter autoridade para uma decisão que


não pode ser reformada

3) liberdade para decidir como quiser


(discricionariedade forte)
três relações entre norma e disposição:
1) norma atribuída imediatamente a uma
disposição constitucional (ou várias)
1 disposição → várias normas
várias disposições → 1 norma
2) norma implícita em uma disposição
constitucional (isonomia tributária e “ações
afirmativas” implícitas no art. 5º, caput, CR)

3) norma atribuída não a um ou a vários


dispositivos, mas à constituição como um todo
(proporcionalidade e razoabilidade)
manter a identidade constitucional
numa relação de dupla contingência

intérprete-aplicador legislador-constituinte
(ego) (alter)

negar “ego” conduz a um positivismo


constitucional legalista “ingênuo”, fechado, com
modelo puro de regras

negar “alter” conduz a um positivismo


constitucional realista ou decisionismo judicial
Em muitos casos, a distinção entre
“regras” e “princípios” não tem muita
relevância prática

- mera observância cotidiana


- pura aplicação burocrática

Nessas situações, as pessoas cumprem


(ou descumprem) normas sem se
questionar como essas normas vinculam.
Aplicação “mecânica”, pela força do
hábito, pela internalização
A relevância (teórica e prática) da
diferença entre “regras” e “princípios”
somente se revela quando surge uma
controvérsia sobre a norma a aplicar ao
caso

A distinção somente tem sentido no plano


da argumentação jurídica

O discurso rompe o “consenso ingênuo”


presente no cotidiano: introduz o
dissenso
os princípios só podem ser articulados no plano
do discurso

Habermas: discurso orientado para o consenso

Neves: a sociedade complexa é marcada pelo


dissenso

sociedade simples → sociedade complexa


(homogênea) (heterogênea)
(elimina o dissenso) (assimila o dissenso)
(direito/moral imutáveis) (direito mutável)
(direito não é aplicado, (direito aplicado)
mas afirmado)
“Os princípios constitucionais são
artefatos normativos que servem
precisamente para absorver o dissenso
e, paradoxalmente, possibilitar-lhe e
estimular-lhe a emergência sob as
condições de um sistema jurídico
complexo.” (p. 97-98)
observação de primeira ordem

versus

observação de segunda ordem


observação de primeira ordem

observância cotidiana / aplicação rotineira


pelos agentes estatais e pelos indivíduos
não questionam a validade ou o sentido
das normas

(proibição de fumar, ordem de pagamento


do vencimento até certo dia, reclamação
administrativa pelo não-pagamento dos
vencimentos, contrato de locação)
direito como sistema funcionalmente
diferenciado (sistema x ambiente)

os subsistemas sociais diferenciam-se a


partir do surgimento de modos diferentes
de comunicação; surgem seus próprios
critérios internos de seletividade

sistemas sociais são abertos e fechados

subsistemas autopoiéticos são


operacionalmente fechados, porém
cognitivamente abertos (“irritabilidade”)
observação de segunda ordem

os envolvidos discutem sobre as normas


a serem aplicadas, sobre sua validade,
seu sentido e suas condições de
cumprimento

possibilidade de rediscussão
permanente sobre as normas a aplicar e
as condições para a aplicação
os textos normativos, no plano abstrato,
não servem primariamente para orientar
expectativas cognitivas, mas para
estabilizar expectativas normativas

diante de um caso, cabe ao intérprete-


aplicador “estruturar o material
normativo”: aqui entram regras e
princípios no plano da argumentação
jurídica
→ As regras estão num plano de
observação de primeira ordem, em
relação ao caso a se decidir.

→ Os princípios são mecanismos


reflexivos, estão no plano reflexivo, são
normas de normas, e possibilitam o
balizamento para a aplicação de regras.
Em sociedades complexas, princípios servem
para estabilizar expectativas normativas e
estimulam a expressão do dissenso em torno
de questões jurídicas e, numa observação de
segunda ordem, possibilitam que se rediscuta
permanentemente as normas a aplicar e a sua
amplitude.

Mas os princípios NÃO resolvem casos


concretos. Nos casos concretos, sempre uma
REGRA vai ser aplicada.
“Os princípios são normas no plano
reflexivo, possibilitanto o balizamento e a
construção ou reconstrução de regras.
Estas, enquanto razões imediatas para
normas de decisão, são condições da
aplicação dos princípios à solução dos
casos.”

(Entre Hidra e Hércules, p. 103)


princípios e regras têm funções diferentes

“(...) os princípios constitucionais, enquanto normas de


normas do ponto de vista da estática jurídica, passam
a ser um filtro fundamental em face da pluralidade de
expectativas normativas existentes no ambiente do
sistema jurídico, com pretensão de abrangência moral.
As regras, inclusive as constitucionais, destinadas a
atuar, por fim, como razões definitivas de solução de
controvérsias jurídicas, mostraram-se insuscetíveis de
realizar plenamente essa tarefa seletiva de maneira
imediata. Elas, de certa maneira, são subcomplexas
para oferecer critérios seletivos perante uma
pluralidade desordenada e conflituosa de expectativas
normativas no âmbito da moral, dos valores e dos
diversos sistemas funcionais da sociedade. (cont...)
(…) Uma Constituição formada apenas de
regras seria, perante um contexto social
hipercomplexo, inadequada. Os princípios
constitucionais, por implicarem certa distância
do caso a decidir e uma relação mais flexível
entre o antecedente e o consequente, são mais
adequados a enfrentar a diversidade de
expectativas normativas que circulam na
sociedade..Por outro lado, os princípios
apresentam-se subcomplexos perante o caso a
decidir. As regras, em sua estruturação,
mostram-se mais adequadas para oferecer
fundamento imediato ao caso a decidir.” (p. 118)
Dworkin, Alexy, Aarnio admitem tipos
híbridos

→ “regras que são como princípios” /


regras incompletas (suscetíveis de
sopesamento)
nulidade de contrato com proibição de
comércio (não-razoável)

→ princípios que são como regras


liberdade de expressão (sem colisão com
outro princípio)
Humberto Ávila propõe uma terceira
categoria de norma: os postulados
normativos aplicativos (normas de
segundo grau)

postulados inespecíficos: ponderação,


concordância prática, proibição do excesso,
otimização

postulados específicos: igualdade,


razoabilidade, proporcionalidade

Marcelo Neves não admite uma terceira


categoria, mas admite híbridos
“O enquadramento conceitual proposto no presente
trabalho não comporta um terceiro “tipo ideal” de
normas (sem que se negue aqui a existência de outros
padrões no sistema jurídico além das normas). Ou as
normas estão no nível reflexivo da ordem jurídica,
servindo tanto para o balizamento ou a construção
hermenêutica de outras normas, mas não sendo razão
definitiva para uma norma de decisão de questões
jurídicas, e, portanto, devem ser classificadas
primariamente como princípios; ou elas são normas
suscetíveis de atuar como razão definitiva de questões
jurídicas, não atuando como mecanismo reflexivo e,
portanto, devem ser classificas primariamente como
regras. Se não for possível enquadrá-la primariamente
em nenhuma das categorias, cabe falar de híbridos.”
(Entre Hidra e Hércules, p. 109)
para Marcelo Neves, o princípio da
proporcionalidade não é originariamente uma
norma – nem regra, nem princípio

o princípio da proporcionalidade é uma


condição de possibilidade de uma Constituição
de um Estado Constitucional

Se é condição de possibilidade, não pertence à


Constituição, originalmente. Não é uma norma.

Mas se torna uma norma por reentry (reentrada)


no sistema que torna possível. De condição de
possibilidade da ordem para a ser norma da
própria ordem.
regra, princípio, máxima, postulado?

Marcelo Neves chama de “critério da


proporcionalidade” e propõe duas análises
diferentes:
(1) adequação e necessidade: regras com
razão definitiva para decidir

(2) proporcionalidade em sentido estrito:


sopesamento (ponderação) + mandamento de
otimização
tem estrutura de regra, mas funciona como
princípio: é um híbrido
relação circular entre regras e princípios

princípios só se realizam pela construção


de regras – seja a regra legal, seja a
regra de decisão.

no processo concretizador, há uma


relação reflexiva (circular, não hierárquica)
entre princípios e regras.
os princípios servem para o balizamento,
construção, desenvolvimento, enfraquecimento,
fortalecimento das regras

princípios são razões ou fundamentos para


regras

as regras são condições de aplicação dos


princípios na solução de casos concretos

sem regras, os princípios perdem seu


significado prático ou servem apenas para
manipulação retórica
ponderação: uma técnica de solução de colisão

dever de ponderação otimizadora


X
proteção contra
riscos de desdiferenciação

a ponderação não leva em conta o problema da


incomensurabilidade de paradigmas (modelos
de argumentação)

pressupõe uma uma decisão correta ou mais


correta, a partir de uma instância superior
(subjetiva ou intersubjetiva)
Não houve ponderação nos seguintes
casos, mas reação contra o risco de
desdiferenciação:

(1) lei de biossegurança: direito e religião


(ADI 3510)

(2) importação de pneus usados: direito e


economia (ADPF 101)
a colisão intraprincípos

não é uma colisão entre princípios, mas

(1) colisão envolvendo o mesmo


princípio invocado por partes litigantes

pode haver uma ponderação, mas sem


direito “prima facie” ilimitados

ou (2) colisão entre visões diferentes do


mesmo princípio
a ponderação não pode resolver
a dimensão de um direito varia muito a
depender da esfera social em que a
controvérsia surge

dignidade do filho
vs.
dignidade da empregada doméstica

- gritos e repreensões vigorosas

- trabalhos domésticos (limpar a privada)


a dimensão de um direito varia muito a
depender da esfera social em que a
controvérsia surge

(1) infanticídio
em comunidades indígenas

(2) penas corporais


em counidades indígenas

concepção de “vida” e “morte”


concepção de “maus tratos” e “tortura”

Você também pode gostar