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Documentos institucionais sobre a guerra e a escravidão

Introdução à Escolástica Ibérica

Prof. Rodrigo Marinho S. Ribeiro


rmsribeiro@ufrgs.br
Delimitação dos novos territórios descobertos
Disputas entre Portugal, Espanha e possíveis outras potências marítimas sobre quem haveria
de exercer o domínio sobre os novos territórios conquistados levam o Papa Alexandre VI a
redigir a bula “Inter caetera” (1493) e a negociar o “Tratado de Tordesilhas” (1494),
dividindo o domínio dos novos territórios descobertos entre Portugal e Espanha.

Mais tarde (1497), o mesmo Alexandre VI esclarece pela carta “Ineffabilis et Summi Patris”
que a posse dos territórios do novo mundo estava condicionada à aceitação, por parte dos
habitantes dos locais, da autoridade dos reis de Espanha e Portugal:
“… se aconteceu de certas cidades, campos, territórios, lugares ou domínios pertencentes às
pessoas sem fé desejaram se tornar sujeitas a vós, pagar tributo a vós e reconhecer-vos
como seus Soberanos.”
Encomiendas e a Lei de Burgos (1512)
Encomienda: A Coroa Espanhola garantia a uma pessoa, a título perpétuo e hereditário, o
trabalho de um número específico de nativos de certa comunidade (não das terras).
Encomenderos forneceriam instrução na fé católica, na língua espanhola e em matéria
cívica, protegendo-os de tribos rivais e piratas, em troca de tributos de metais, comida,
etc. Não era considerado escravidão (os índios não eram propriedade), mas sim trabalhos
forçados/servidão.

Lei de Burgos (1512): Promulgada por Ferdinando II de Aragão. Proibía maus-tratos


contra os indígenas, punições severas, etc. Estabelecimento das encomiendas voluntárias.
Ensino do cristianismo (preocupação com igrejas e com a salvação dos índios, etc.),
permissão de dançar. Obrigação do encomendeiro de oferecer alimentos, “licença-
maternidade”, salário, lugar para dormir, dinheiro para se vestir, etc. Depois de dois anos
de serviço os índios estão livres para ir, quando se esperava que estariam civilizados e
propriamente cristãos.
Leyes Nuevas (1542)
Carlos I da Espanha, em virtude das reclamações de las Casas e Vitória, proíbe a
escravidão indígena (inclusive de títulos “justos”) e inicia a abolição do sistema de
encomienda. Algumas prescrições presentes nas Leyes nuevas:
• Nativos pagariam apenas impostos e, se trabalhassem, teriam de receber algo em troca
• Proibição de trabalho em minas, a menos que absolutamente necessário.
• Encomienda não passaria mais herediatariamente, mas se extinguiria.

Consequências: Revoltas nas colônias, muitas mortes, preocupação com colapso


econômico, das colônias.
A lei foi então revogada e uma mais complacente entrou em vigor.
Desenvolvimentos subsequentes
Atos da Coroa Espanhola:

1549 – Proibição de usar indígenas em trabalhos forçados.


1570 – Banimento da escravidão de nativos, exceto os hostis.
Instrução da Sagrada Congregação do Santo Ofício, 20 de junho
de 1866
“… Embora os Pontífices Romanos tenham tentado de tudo para que a
servidão fosse abolida dentre as nações, e embora seja especialmente
em virtude deles que há muito tempo muitas nações cristãs já não
possuem escravos em seus territórios; no entanto, considerada em si
mesma a servidão não é contrária ao direito natural e ao direito divino
e podem ser apresentados diversos justos títulos para servidão […]
uma vez que o domínio exercido pelo mestre com respeito ao
escravo não deve ser entendido senão como o direito perpétuo de
dispor do trabalho servil para seu próprio proveito, cujo domínio é
legítimo que uma pessoa ofereça a outra.”
Resumo da posição oficial da Igreja
o Povos indígenas são verdadeiros senhores de suas terras.

o Condenação da redução à escravidão de índios e negros livres


inocentes, seja baseada em ideias como de “escravos por natureza”
ou pela simples força/captura (títulos injustos). Aceitação de se
tomar capturados em uma guerra justa como escravos (título justo).
Posterior rejeição da escravidão em geral por reconhecer os
abusos e desvios que havia mesmo nos supostos títulos justos.
Documentos relativos ao século XV
No contexto, das guerras entre cristãos e muçulmanos [“sarracenos”]
nos continentes africano e asiático são redigidas uma série de bulas
papais (“Dum diversas” (1452), “Romanus Pontifex” (1454), “Inter
Caetera” (1456), etc.) garantindo e reforçando à Espanha e Portugal o
direito de dominar e inclusive reduzir à escravidão aqueles que
estiverem em guerra contra a cristandade.
Papa Eugênio IV, Bula Sicut Dudum (1435)
“… No entanto, com a passagem do tempo aconteceu que algumas das
referidas ilhas [Canárias], por causa da falta de governantes e defensores
adequados para [zelar por elas] […], alguns cristãos (e dizemô-lo com
tristeza) se aproveitando da ocasião e com falsas razões, se aproximaram de
tais ilhas por meio de navios e, usando de armas, capturaram e
transportaram pelo mar muitas pessoas de ambos os sexos, tomando
vantagem de sua simplicidade […] Privaram os nativos de sua propriedade
ou a tomaram para seu próprio uso, e submeteram alguns dos habitantes de
tais ilhas à servidão perpétua, venderam-nos a outras pessoas…
Papa Eugênio IV, Bula Sicut Dudum (1435)
… Nós [o Papa] ordenamos a todos fiéis […] que, no espaço de quinze dias
da publicação desta bula no lugar em que vivem, restorem à prévia liberdade
todos e cada uma das pessoas de ambos os sexos que eram antes residentes
das ilhas Canárias e que foram feitos cativos […] e sujeitos à escravidão. Tais
pessoas hão de ser total e perpetuamente livres e hão de ser libertas sem que
tenham de pagar nada […] Se isto não for feito, quando os quinze dias
houveres passado, [aqueles que se negarem a cumprir] incorrerão na pena de
excomunhão ipso facto, da qual não poderão ser absolvidos, exceto se prestes
a morrer […], a menos que tenham primeiro libertado as pessoas que
capturar e restaurado seus bens…”
Papa Paulo III, Bula Sublimus Dei (1537)
“[...] O inimigo da raça humana, que se opõe a todas as boas ações para levar os homens à
destruição [...] inventou um modo nunca visto antes de evitar a pregação da palavra de
Deus para a salvação dos povos: ele inspirou seus servos, os quais, para agradá-lo, não
hesitaram em propagar a ideia de que os índios [i. e. os nativos] do Ocidente e do Sul, e
outros povos sobre os quais tomamos conhecimento recentemente, deveriam ser tratados
como brutos incapazes de razão, criados para nosso serviço, supostamente incapazes de
receber a fé católica. Nós [o Papa], que, embora indignos, exercemos na Terra o poder de
Nosso Senhor e buscamos com todas as nossas forças trazer para a nossa proteção as
ovelhas do rebanho do Senhor que estão fora dele, consideramos, no entanto, que os
índios são verdadeiramente homens e que, de acordo com o que fomos informados, não
apenas são capazes de entender a fé católica como desejam muitíssimo recebê-la.
Papa Paulo III, Bula Sublimus Dei (1537)
Definimos e declaramos [...] que os ditos índios e todas as demais
pessoas que possam ser descobertas mais tarde por cristãos não
devem de modo algum ser destituídas de sua liberdade ou da
posse de sua propriedade, mesmo que estejam fora da fé de Jesus
Cristo, e que eles podem e devem, livre e legitimamente, gozar de
sua liberdade e da posse de sua propriedade, nem devem eles de
maneira alguma ser escravizados; e, se acontecer o contrário, que
a ação seja anulada e não tenha efeito [...]”
Papa Paulo III, Carta Pastorale Officium (1537)

“Portanto, levando em consideração o fato de que os próprios índios,


embora estejam fora do seio da Igreja [...] são seres humanos e,
portanto, capazes de fé e salvação, não devem ser reduzidos à
escravidão, mas sim, por meio de pregações e bons exemplos, sejam
convidados à vida eterna”

(Acrescido de pena de excomunhão latae setentiae reservada à Sé Apostólica pelo


desrespeito à carta, pena depois revogada por interferência do rei da Espanha,
Carlos V)
Papa Urbano VIII, Bula Commissum Nobis (1639)
“… confiamos a ti [Coletor de Débitos da Câmara Apostólica em Portugal] o
dever e te ordenamos pelas presentes cartas que, tu próprio, ou tu por meio de
outros, que providencia auxílio e defesa a todos os índios, no Paraguai e nas
províncias do Brasil […] assim como aos outros índios que vivam em oturas
reigões […] que tu proibas qualquer um de reduzi-los a escravidão, de vendê-los,
de comprá-los, de trocá-los, de dá-los, de separar mães e crianças, de espoliá-los
de suas propriades, de transportá-los a outros lugares, de privar-lhes a liberdade
em qualquer caso… Qualquer um que contradizer este decreto incorrerá em
excomunhão latae sententiae, da qual ninguém pode dar absolvição, senão Nós
próprios ou o Romano Pontífice que esteja reinando…”
Instrução do Santo Ofício, de 20 de março de 1686
“Pergunta-se:
‘1. É permitido capturar pela força ou pela fraude negros (ou outros nativos) inocentes?’
Respondemos: Não.
‘2. É permitido comprar, vender, ou fazer outros contratos com relação a negros ou outros
nativos inocentes?’ Respondemos: Não. [...]
‘4. Os compradores de negros (ou outros nativos) estão obrigados a perguntar sobre o título
de servidão (isto é, se foram escravizados justa ou injustamente) […] ?’ Respondemos: Sim.
‘5. Os possuidores de [escravos] negros (ou outros nativos) inocentes capturados pela força
e pela fraude estão obrigados a libertá-los?’ Respondemos: Sim.
‘6. Aqueles que capturam, compram e possuem [escravos] negros (ou outros nativos)
inocentes por meio da força ou fraude estão obrigados a fazer compensações a eles?’
Respondemos: Sim.”
Papa Gregório XVI, Bula In Supremo (1839)
“ Elevados à suprema dignidade do apostolado e representando, ainda que sem nenhum mérito, a
pessoa de Jesus Cristo Filho de Deus, que por sua desmedida caridade se fez homem e se dignou
morrer pela redenção do mundo, sentimos que pertence à nossa solicitude pastoral esforçar-nos
para dissuadir completamente os fiéis do desumano mercado dos negros e de quaisquer outros
homens. [...]
[Histórico dos benefícios que o cristianismo trouxe para a questão da escravidão.]
Portanto, com o transcorrer do tempo, tendo-se dissipado o nevoeiro das bárbaras superstições, e
tendo-se mitigado os costumes também dos povos mais selvagens sob o influxo da caridade,
chegou-se ao ponto que, há vários séculos, não mais existiam escravos em meio aos povos cristãos.
Mas depois, e o dizemos com imensa dor, apareceram entre os cristãos alguns que, cegados de
modo torpe pela cobiça do ganho sujo, em distantes e inacessíveis regiões, reduziram indígenas,
negros e outros míseros à escravidão. Com comércio cada vez mais organizado, daqueles que
tinham sido capturados por outros, não hesitaram em favorecer o indigno delito destes. [...]
Papa Gregório XVI, Bula In Supremo (1839)
[...] Essa atenção a essas sanções dos nossos predecessores contribuíram muito, com a
ajuda de Deus, para que os indígenas e os outros acima mencionados fossem defendidos
da crueldade dos invasores e da cupidez dos mercadores cristãos, mas não o suficiente
para fazer com que esta Santa Sé pudesse alegrar-se do pleno sucesso dos seus esforços a
esse respeito, dado que o tráfico dos negros, ainda que tenha diminuído notavelmente em
muitas partes, todavia ainda é bastante utilizado por numerosos cristãos. [...]
com a nossa apostólica autoridade, admoestamos e esconjuramos energicamente no
Senhor todos os fiéis cristãos de qualquer condição que, doravante, ninguém ouse fazer
violência, desapropriar de seus bens ou reduzir seja quem for à condição de escravo, ou
prestar ajuda ou favorecer àqueles que cometem tal delito ou querem exercitar o indigno
comércio por meio do qual os negros são reduzidos a escravos - como se não fossem seres
humanos, mas pura e simplesmente animais, sem nenhuma distinção, contra todos os
direitos de justiça e humanidade -, são comprados, vendidos e constrangidos a trabalhos
duríssimos....
Papa Gregório XVI, Bula In Supremo (1839)
... Nós, julgando as mencionadas ações indignas do nome cristão, condenamo-las
com nossa apostólica autoridade. Proibimos e vetamos com a mesma autoridade a
qualquer eclesiástico ou leigo defender como lícito o tráfico dos negros, qualquer
seja o escopo ou pretexto, e de presumir ensinar outro modo, pública e
privadamente, contra aquilo que com a presente carta apostólica expressamos.”
Outros documentos relevantes
Carta “Altitudo Divini Consilii”, de Paulo III, em 1537.
Bula “Cum Sicuti”, de Gregório 14, em 1591
Bula “Immensa Pastorum”, de Bento XIV, em 1741
Carta “Inter Tot Ac Tantas”, de Pio VII, em 1814 (esp. escravidão negra)
Carta “Letter “Etsi Perspecta”, de Pio VII, em 1823 (esp. escravidão negra)
Carta “In Plurimis”, de Leo XIII, em 1888 (esp. escravidão negra)
Carta “Catholicae Ecclesiae”, de Leão XIII, em 1890
A Escolástica Ibérica
Ou também: Escolástica Barroca, Escolástica Renascentista,
Segunda Escolástica

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