Você está na página 1de 117

Boa noite, caros alunos!

Hoje é dia 31 de março de 2021.


Na última aula, vimos o estudo que Walter
Benjamin faz de Marcel Proust e porque considera o
obra de Proust como a preservação da
experiência(Erfahrung) e da memória no mundo
moderno.
Veremos hoje o texto de Benjamin “Franz Kafka. A
propósito do décimo aniversário de sua morte”.
Benjamin analisa a obra de Kafka como o
desaparecimento da experiência (Erfahrung) ou,
antes, como o esquecimento.
Material disponível para aula
Introduzi no Canvas o powerpoint da aula, o texto de
Walter Benjamin, “Franz Kafka. A propósito do
décimo aniversário de sua morte”, publicado em
1936.
Introduzi também três propostas para o trabalho de
avaliação da disciplina.
Introduzi também um texto de minha autoria – “As
passagens da modernidade”, publicado nos anais do
Colóquio Nacional “A morte da arte hoje”, Belo
Horizonte: Laboratório de Estética da
FAFICH/UFMG, 1983. Este texto será comentado
hoje.
Franz Kafka (1883-1924)

Franz Kafka nasceu em 3 de julho de 1883, em


Praga. Teve uma infância solitária, pois os pais
passavam o dia inteiro na loja dos Kafka, e o
menino era cuidado por uma governanta, uma
cozinheira e uma empregada doméstica. Sua mãe
era submissa, e seu pai era um homem de negócios,
autoritário, que não apoiava a propensão de seu
filho para a literatura e teve grande influência na
obra do escritor — o conflito com o pai, um
opressor, foi refletido em algumas de suas
narrativas.
Franz Kafka (1883-1924)
Desde o início de sua vida, o escritor teve contato
com tchecos e alemães, por isso dominava os dois
idiomas. Assim, Hermann Kafka (1852-1931)
matriculou seu filho na Escola Alemã para Meninos,
que ficava perto de sua casa. O escritor estudou
nessa instituição de 1889 a 1893, sendo aprovado
com distinção. De 1893 a 1901, Kafka frequentou a
Escola Secundária Alemã. Nela ele teve uma
formação humanista e completou os três primeiros
anos com distinção. Em seguida, seu rendimento
decaiu, passando, inclusive, a apresentar
dificuldade em matemática.
Franz Kafka (1883-1924)

Entre 1901 e 1906, ele estudou na Universidade


Alemã de Praga. Optou por fazer Química, mas
transferiu-se para o Direito duas semanas depois.
Durante o curso, buscou estudar também filosofia e
história da arte. Devido à forte perseguição
antissemita, Kafka, como judeu, teve certa
dificuldade em entrar para o serviço público. Então
profissões liberais, como a de médico e advogado,
eram a melhor opção. Ele recebeu o diploma de
Direito em 18 de junho de 1906.
Foto de Franz Kafka, feita por Sigismund
Jacobi (1860-1935), provavelmente em
1906.
Franz Kafka (1883-1924)
Trabalhou na Companhia de Seguros Assicurazioni
Generali, por um breve período, de 1º de outubro
de 1907 a 31 de julho de 1908, e, durante 14 anos,
de 30 de agosto de 1908 a 1º de julho de 1922,
trabalhou no Instituto de Seguro de Acidentes de
Trabalho, que, parcialmente estatal, empregava
pouquíssimos judeus. Ali Kafka teve uma carreira
bem-sucedida, com promoções. No entanto,
recebeu uma aposentadoria antecipada, devido a
seus problemas de saúde. Kafka, assim como tantos
escritores, não pôde dedicar-se exclusivamente à
literatura, o que lhe provocava muita angústia.
Franz Kafka (1883-1924)

Em 1902, o escritor conheceu Max Brod (1884-


1968). Este era seu melhor amigo e, por isso, foi a
principal fonte para a posterior construção de sua
biografia, além de ter sido o principal responsável
pela divulgação da sua obra. Assim, ignorou o
último desejo do amigo, que, em testamento, pedia
para ele destruísse suas obras não publicadas. Max
Brod fez o oposto e, após a morte de Kafka,
começou a publicar seus textos.
Walter Benjamin

Benjamin, ajudado por Grete Karplus Adorno deixou


a Alemanha no dia 18 de março de 1933. Foi um dos
cerca de 60 mil alemães que, durante o ano de 1933,
se viram forçados a partir para o exílio.
Inicialmente foi para Paris. De lá  escreveu a Scholem
descrevendo a atmosfera de terror que se criara na
Alemanha. Em seguida, para economizar dinheiro,
deixou Paris, onde a vida era muito cara e foi para
Ibiza, no arquipélago espanhol de Baleares, onde a
vida era mais barata.
 
Walter Benjamin
Para sobreviver, escreveu durante algum tempo artigos
que eram enviados para a Alemanha, onde eram
publicados sob pseudônimo.
Em 1932, havia escrito "Infância berlinense em torno de
1900". A escolha do tema era, de certo modo, uma
reação ao quadro de crise, uma volta às raízes, uma
busca de reforço para o sentido que a vida devia ter. Um
exame do texto, entretanto, mostra que a explicação
psicológica é insuficiente: o tema da infância
correspondia a uma necessidade teórica do
aprofundamento da reflexão de Benjamin sobre a
história.
•  
Walter Benjamin

Benjamin queria que o historiador partisse de seu


condicionamento presente para investigar o passado. Mas
queria ainda mais: que a matéria do passado jamais
passasse por "neutra". Precisamos sentir, concretamente,
que a nossa relação com o passado só ser  verdadeira se
mexer conosco, se estivermos nos dando conta de que
aquele passado nos concerne, tem algo de nós.
Todo passado está  carregado de possibilidades de futuro
que se perderam e que teriam (ou têm?) para nós uma
significação decisiva: Benjamin sublinhava a importância
desse "futuro do pretérito" na rememoração histórica.
Walter Benjamin
Peter Szondi tinha razão quando observou a
diferença entre Benjamin e Proust: enquanto o
escritor francês recuperava o autêntico significado
do que aconteceu, o crítico alemão estava
permanentemente atento para o que poderia ter
acontecido. "O tempo perdido de Benjamin não é o
passado, mas o futuro." A grande dificuldade para o
historiador está  em farejar os sonhos, as
aspirações, os movimentos subjetivos voltados para
o porvir que não chegaram a se expressar em
realidades objetivas duradouras, embora
estivessem prenhes de significação histórica.
Walter Benjamin

É aí que o tema da infância assumia um papel


fundamental: cada um de nós tem a possibilidade
de rememorar a sua própria infância, que é uma
história que lhe é íntima, que pode lhe abrir
segredos preciosos, que pode funcionar como um
centro especial de treinamento para o sujeito
desenvolver a sua sensibilidade e sua capacidade de
resgatar significações obscurecidas que ficaram no
passado. A ideia da infância se acha no centro da
concepção benjaminiana de história.
Walter Benjamin e Kafka

Na primeira carta que Benjamin mandou de Ibiza


para Scholem, falava do autor tcheco, objeto de
uma admiração antiga, que aumentava com a
devastadora experiência que lhe estava sendo
imposta. A situação criada pela ascensão de Hitler
ao poder parecia confirmar aquilo que Kafka tinha
pressentido em sua literatura: "A obra de Kafka é
profética", escreveu Benjamin.
Walter Benjamin e Kafka

Ele desenvolveu a sua interpretação de Kafka em


oposição à exegese predominante, quer dizer,
divergindo dos comentários de Max Brod. "Meu
esforço de aproximação de Kafka - um esforço que
não é de hoje, nem de ontem - me levou a trilhar
caminhos que são diferentes dos da recepção em
certa medida 'oficial' que os trabalhos dele têm
tido".
Walter Benjamin e Kafka
No ensaio que dedicou a Kafka em 1934, no décimo
aniversário de sua morte, Benjamin comparou, de
passagem, o escritor tcheco com o autor do
inesquecível História e consciência de classe:
"Lukàcs pensa em períodos históricos. Kafka pensa
em períodos cósmicos." Essa comparação enfatiza
os ritmos lentos dos fenômenos humanos que
interessam a Kafka: o que a sua literatura
representa é a alienação do trabalho, por exemplo,
algo que vem de longe, que remonta ao
aparecimento da escravidão e à origem das classes
sociais.
Walter Benjamin e Kafka

O adjetivo "cósmico" talvez valha como metáfora


da "longue durée" a que se referia o historiador
Fernand Braudel. Há  processos que se realizam, na
história, muito lentamente, numa ação que custa a
ser percebida. Não se podem comparar, digamos, o
ritmo das crises econômicas e políticas no
capitalismo com os ritmos da história da família e
da burocracia. A atenção de Kafka se concentra,
não há  dúvida, nesses últimos.
Walter Benjamin e Kafka

E Benjamin observa: "Há  muitos indícios de que o mundo


dos funcionários e o mundo dos pais são idênticos para
Kafka." No poder dos pais como no dos funcionários está 
presente uma capacidade misteriosa de amedrontar e
tornar perplexos os seres sobre os quais o poder se exerce:
os que mandam possuem códigos, mas os que recebem as
ordens não podem conhecer os princípios em que tais
ordens se baseiam e se sentem regidos por normas mais ou
menos inapreensíveis. A literatura de Kafka está  voltada
para a origem desses fenômenos. Benjamin, em Ibiza,
identificava-se fortemente com o espírito de Kafka.
Walter Benjamin e Kafka

Benjamin comparava os relatos de Kafka às


haggadah ( Dicionário Houaiss: relato de libertação
dos judeus do cativeiro egípcio, sob a liderança de
Moisés, acrescido de comentários, cantos e orações,
que se lê na celebração familiar que inicia o
Pessach; etim. Heb, lenda, fábula, conto, homilia)
dos judeus, isto é, às histórias dos rabinos, que
valem como ilustração e confirmação da doutrina
primeva: a halacha ( Dicionário Houaiss: tradição
legalística do judaísmo, que geralmente se
confronta com a teologia, a ética e o folclore).
Walter Benjamin e Kafka

Mas, em que consistia, na literatura kafkiana, a


doutrina que estava sendo ilustrada e confirmada?
Na realidade, essa doutrina jamais se definia. Um
ou outro textos pareciam aludir a pontos
doutrinários, porém os leitores nunca chegavam a
saber se estavam referidos a uma velha Halacha
que estava sendo restaurada ou a uma nova
doutrina que estava sendo antecipada.
Walter Benjamin e Kafka

Na medida em que faltava à ficção kafkiana esta lei


precisa e luminosa que seria capaz de se expressar
através de símbolos cristalinos, não tinha sentido
abordá-la como se ela fosse o apêndice de uma
construção teológica.
E era em torno desse ponto que Benjamin se
contrapunha, energicamente, à recepção "oficial"
de Kafka por Max Brod, insistindo no fato de que o
escritor tcheco não era o fundador de uma nova
religião e não devia ser transformado numa nova
espécie de santo.
Walter Benjamin e Kafka

Na opinião benjaminiana, a literatura de Kafka não


tinha nada de "edificante": Kafka era visto como um
espírito inquieto, profundamente insatisfeito, que
não se dispunha a se apoiar em doutrina alguma e
que se insurgia contra uma alienação que ele
mesmo não sabia se poderia vir a ser superada um
dia. A escala "cósmica" que lhe servia de referência
permitia-lhe enxergar o "avesso da história".
Walter Benjamin e Kafka

Do seu ângulo particular - escreveu Benjamin -


"Kafka rola o bloco do processo histórico, como
Sísifo rola o seu rochedo. Nesse movimento, o lado
de baixo desse bloco se torna visível. Não é um
espetáculo agradável. Mas Kafka consegue suportar
essa visão."
Walter Benjamin e Kafka

No verão de 1934, Benjamin fez uma longa visita à


casa de campo de Bertolt Brecht, em Svendborg, na
Dinamarca. Benjamin entregou a Brecht o seu
manuscrito sobre Kafka. Brecht fez fortes ressalvas
ao estilo episódico do ensaio e ao próprio Kafka, em
cuja obra encontrou "algumas coisas bastante
úteis", perdidas em meio a uma selva de
"obscurantismo".
Walter Benjamin e Kafka

Benjamin então abriu ao acaso o seu exemplar dos


contos completos de Kafka, parando numa pequena
história intitulada "A próxima aldeia" em um
capítulo daquilo que Benjamin chamaria "um longo
e violento debate sobre o meu Kafka". Eis o texto
de Kafka que os dois discutiram:
Walter Benjamin e Kafka

"Meu avô“ costumava dizer: “A vida ‚ incrivelmente


curta. Quando olho para trás, a vida me parece tão
curta, que mal consigo entender, por exemplo,
como um jovem pode ir até‚ a próxima aldeia, sem
ter medo que - mesmo sem sofrer nenhum
acidente - nem a extensão normal de uma vida feliz
seja o bastante para completar a viagem.“
Walter Benjamin e Kafka

Tanto Brecht quanto Benjamin apresentaram


interpretações surpreendentes para esse pequeno
quebra-cabeças parabólico
A interpretação que Benjamin faz da parábola
retoma uma implicação do texto que foi ignorada
por Brecht, e a relaciona de forma peculiar, mas
reveladora, a uma de suas preocupações básicas:
Walter Benjamin e Kafka

"Dou a seguinte interpretação: a verdadeira medida


da vida é a memória. Retrospectivamente, ela
atravessa a vida com a velocidade de um raio. Com
a mesma rapidez com que se voltam algumas
páginas, ela já  recuou da próxima aldeia, para o
ponto em que o visitante decidiu partir. Aqueles
cujas vidas se transformaram numa escrita, como
os velhos, gostam de ler esta escrita apenas para
trás. Só assim eles se encontram consigo mesmos, e
só assim - fugindo do presente - a sua vida pode ser
compreendida."
Walter Benjamin e Kafka

A grande intuição de Benjamin a respeito de Kafka,


que podemos perceber não só aqui, mas também
em outros lugares, é que mesmo as suas aparentes
abstrações estão moldadas sobre o arcabouço de
uma intensa experiência concreta.
Ao contrário de Proust, Kafka raramente apresenta
uma personagem em pleno ato de relembrar, mas a
dimensão implícita da memória - pessoal, cultural e
racial - é crucial na sua obra.
Walter Benjamin e Kafka

No nível da análise mais simples, "A próxima aldeia"


indica que quanto mais velhos ficamos, maior fica a
nossa memória, e o tempo parece passar mais
depressa, até‚ chegar a um ponto que o avô “mal
consegue imaginar uma quantidade de tempo
suficiente - "a vida me parece tão curta" - para se
realizar uma viagem tão breve: apenas as ilusões da
juventude fazem com que o jovem viajante pense
que há  tempo o bastante para chegar ao seu
destino.
Walter Benjamin e Kafka

Benjamin, no entanto, ao reparar na ligação que o


avô “estabelece entre a sensação de vida ser curta
e o ato de olhar para trás", chama a atenção para o
fato de que o impulso da lembrança, rápido como
um raio, afasta-nos do nosso ponto de chegada,
orientando-nos de volta para o ponto de partida: é
só ai que o verdadeiro "eu" pode ser descoberto.
Walter Benjamin e Kafka

Esta ideia domina todo o mundo conceitual de


Benjamin e está  no fundo da leitura que faz de
Kafka e de Proust, de sua visão de história e
tradição, e de suas discussões sobre o narrador e o
declínio da aura sendo finalmente assumida na
meditação sobre o Angelus Novus de Klee. O que é
singular em sua análise é que ele tenha associado
essa ideia à escrita, ou melhor, à transformação da
vida em escrita, coisa que não é sequer insinuada
como imagem, ou como tema, no texto de Kafka.
Walter Benjamin e Kafka
A escrita exercia uma influência tão peculiar sobre
o pensamento de Benjamin, que ela logo deixa de
ser uma simples metáfora, para assumir um valor
de verdade na interpretação que ele faz do texto de
Kafka.
A leitura da palavra escrita é introduzida como
uma alegoria do rápido movimento para trás da
memória, mas logo a seguir ela se transforma numa
afirmação literal a respeito da situação das pessoas
de idade: a vida delas se torna uma escrita, que só
pode ser decifrada corretamente se lida de trás
para frente, até‚ chegar ao começo.
Walter Benjamin e Kafka
Se Benjamin coloca sobre a frágil estrutura de "A
próxima aldeia" uma carga de significado maior do
que ela pode carregar, é porque o passado e o
futuro, que são obviamente as antíteses temáticas
da parábola estão em constante tensão em seu
pensamento.
 Como Scholem e Kafka ele era fascinado pelo
passado, não apenas pela maneira como ele se
desenvolveu de forma dinâmica até o presente
(apesar de esse ser um de seus interesses básicos),
mas também pelo fato de representar um caminho
tortuoso até as origens arcaicas.
Walter Benjamin e Kafka

Essa tentativa de retorno às origens era uma


expressão básica de uma rebelião contra o
patrimônio burguês alemão. O conceito cultural
que orientava este legado era a ideia de Bildung -
uma educação moral e estética gradual, que
respondia às exigências de uma disciplina social
sempre voltada para o futuro, e que tem em vistas
a pessoa de sucesso que o homem culto tem o
potencial de se tornar.
Walter Benjamin e Kafka

Benjamin e Scholem já  estavam preocupados com


o ponto de partida duas décadas antes. A linha de
pensamento que os dois adotaram - Scholem no
próprio material que estudava e Benjamin como
uma espécie de modelo para a organização da
temporalidade - seguia a estrutura imanente da
tradição judaica.
Walter Benjamin e Kafka

Tudo se originaria no momento fulgurante da


revelação, que se reproduz ao longo dos tempos
através de vários reflexos e refrações da exegese.
Todo este sistema está  centrado num grande
ponto de origem. Até mesmo o processo de
redenção que é um elemento vital da tradição, é
uma projeção para o futuro do relato do Éden,
contido na revelação.
Walter Benjamin e Kafka

Essa orientação em direção ao passado é diferente


do mito grego de uma idade de ouro, pois o seu
momento crucial não se encontra no mito do Éden,
e sim no evento dinâmico da revelação, que coloca
desafios constantes para as gerações posteriores,
fazendo que elas procurem elaborar e absorver o
seu significado através de um processo contínuo de
interpretação.
Walter Benjamin e Kafka

Uma prova profunda da integridade criativa de Kafka é o


fato dele representar essa profunda preocupação com as
origens sem o menor sinal de nostalgia. É possível ilustrar
essa afirmação através de duas de suas parábolas: uma que
lida com a ideia de revelação e outra de interpretação.
"Uma mensagem imperial", escrita em 1917, parece uma
parábola midrashista ( Houaiss: interpretação não literal de
textos bíblicos) clássica, ou uma mashal ( pequena
parábola com lição moral ou alegoria religiosa)ao
estabelecer, ainda que implicitamente, uma analogia entre
a monarquia terrestre e o rei celeste.
Walter Benjamin e Kafka

O Imperador, em seu leito de morte, sussurra a um


de seus emissários uma mensagem que, como
acontece com toda revelação (no sentido espiritual
do termo) ‚ "destinada somente a você". A narrativa
da parábola à primeira vista, parece se concentrar
em aspectos espaciais. No centro está  o Imperador,
no meio de seus palácios concêntricos, cercado pela
luminosa insígnia solar de seu reino; na periferia,
"escondendo-se na distância mais remota", está  a
sujeito para quem a mensagem é destinada.
Walter Benjamin e Kafka
O mensageiro imperial inicia a sua viagem do
interior para o exterior, passando por escadarias,
corredores e pátios que se multiplicam ao infinito, e
que, por sua vez, estão cercados pelo burburinho e
pela multidão agitada da capital. Quando a
parábola chega ao fim, a impossibilidade de se
entregar a mensagem não é mais representada
apenas no espaço, mas também pelo tempo: o
mensageiro segue o seu caminho labiríntico através
de infinitos palácios e pátios e, "e assim por
milhares de anos", levando uma mensagem "de um
homem morto" que ele nunca conseguirá  entregar.
Walter Benjamin e Kafka

A enorme importância da mensagem nunca é questionada -


afinal, ela fora enviada pelo próprio Imperador, e não era
destinada a ninguém além de "você”, que ouve a história.
 No entanto, esta parábola descreve uma revelação
anunciada, mas não consumada.Você realmente precisa da
mensagem, sem a qual acabará por definhar, mas jamais
irá  recebê-la. E ao contrário da mashal do rei da midrash
rabínica, esta história ficcional faz um jogo niilista com o
seu referencial teológico, pois a mensagem eternamente
retardada não parte de um Deus vivo, e sim como
descobrimos com um choque no final da penúltima frase,
de um homem morto.
Walter Benjamin e Kafka

"A mensagem imperial", então, mostra como Kafka


estava ligado ao processo da tradição - sempre
voltado para um momento dominante e revelatório
do passado - sem, no entanto, permitir-se a
segurança e o conforto oferecidos pela tradição.
 
 Franz Kakfa. "O novo advogado”

“ Temos um novo advogado, o doutor Bucéfalo. Pelo seu


aspecto não lembra nada os tempos em que era ainda
cavalo de batalha da Alexandre da Macedônia. Todavia,
chamaria a atenção de qualquer homem avisado. Vi
mesmo outro dia um simples meirinho seguir com
estupefação, com o seu olhar experiente de pequeno
camponês, o advogado no momento em que este,
erguendo as pernas bem alto, fazia ressoar o mármore sob
os seus passos, subindo um a um os degraus do palácio da
justiça.
Franz Kakfa. "O novo advogado”

De modo geral, a Ordem aprova a admissão de Bucéfalo.


Com uma admirável compreensão dizem que Bucéfalo, no
ordenamento atual da sociedade, tem uma situação difícil
e que justamente por esta razão, bem como por causa de
sua importância na história universal, merece um
acolhimento condigno.  Hoje - quem o negará? - já não
existe nenhum Alexandre, o Grande. Ainda se sabe
assassinar: mantém-se a destreza em atingir com a lança
um amigo do outro lado da mesa de banquete; muita gente
há  que acha também ser a Macedônia demasiado estreita,
de sorte que amaldiçoa Felipe, o pai.
 Franz Kakfa. "O novo advogado”

Mas ninguém sabe o caminho para as Índias. Já no tempo


de Alexandre, as portas das Índias estavam fora de alcance,
mas ao menos o gládio (espada curta e de dois gumes) do
rei mostrava o caminho.
  Hoje as famosas portas foram transportadas para bem mais
longe e para bem mais alto. Ninguém indica o caminho.
Muita gente tem gládios, mas somente para os brandir:
perde-se o olhar que os queira seguir.
 Franz Kakfa. "O novo advogado”

Em verdade, tudo bem considerado, o melhor é talvez, à


semelhança de Bucéfalo, mergulhar nos livros de direito.
Livre, os flancos libertos das esporas dos cavaleiros, junto à
lâmpada passível, longe dos rugidos da batalha de
Alexandre, ele lê e passa as folhas dos nossos livros antigos.
 "O novo advogado" que confronta de maneira mais
explícita o presente com o passado, e que lida com a
exegese ao invés da revelação, converte a desarticulação
recente da tradição numa comédia do absurdo.
Franz Kakfa. "O novo advogado”

O advogado do título ‚ o Dr. Bucéfalo - o famoso cavalo de


Alexandre, o Grande - transformado em membro do
tribunal e estudante da lei. Muita coisa mudou, observa o
narrador, desde os tempos antigos, quando um herói podia
sonhar em conquistar todo o mundo conhecido.
"Hoje em dia, não se pode negar, não existe mais nenhum
Alexandre, o Grande". Pode haver ainda muitas espadas
erguidas nesse mundo de divisões e de traições
mesquinhas, mas não existe mais ninguém que possa
chefiar o caminho para as Índias.
 
 Franz Kakfa. "O novo advogado”

Bucéfalo não pensa mais em disputas armadas, nem na


luta pelo império. "Sob a plácida luz de uma lâmpada, com
os flancos já desacostumados, com as pernas de um
cavaleiro, livre, e longe do clamor da batalha, ele lê e vira
as páginas dos nossos livros antigos.“  Esta imagem final
transmite a sensação de uma discrepância triste e
inevitável. Os grandes atos do passado não podem mais ser
repetidos. De fato, talvez seja melhor que eles sejam
deixados de lado, pois esta referência poderia acarretar no
abandono do domínio da espada, em troca do menos
excitante - mas mais civilizado domínio da lei.
 Franz Kakfa. "O novo advogado”

Se a lei deve ser aplicada, é preciso estudá-la e


compreendê-la com cuidado, e é isto que Bucéfalo procura
fazer no final da parábola. No entanto, a imagem do
advogado quadrúpede virando as páginas dos livros com as
patas dianteiras ‚ um pouco risível, e não inspira muita
confiança. Afinal, o que este velho cavalo poderia entender
de nossas leis antigas? Mesmo que a mensagem imperial
chegasse até‚ nós, seriamos capazes de entender o seu
significado?”
Franz Kakfa. "O novo advogado”

Benjamin viu no bizarro jurista Bucéfalo um


emblema do mundo pós-tradição de Kafka. "O
caminho para a justiça é o aprendizado", ele
observa no final do ensaio sobre Kafka,
reproduzindo uma ideia central do judaísmo
rabínico, agora aplicada especificamente a
Bucéfalo.
Franz Kakfa. "O novo advogado”
Ele reconhece, no entanto, que os valores e os
costumes tradicionais sofrem aqui uma
transfiguração profunda, e provavelmente
irreversível: "E, no entanto, Kafka não se atreve a
ligar a este aprendizado às promessas que a
tradicão incorporou ao estudo do Torá (a lei
mosaica, livro que contém essa lei, isso é, as
escrituras religiosas judaicas e conhecido como
Pentateuco). Os professores que descrevem o
conto são sacristãos que perderam a sua casa de
oração, e os alunos são estudantes que perderam a
sua escritura sagrada."
Franz Kakfa. "O novo advogado”

Benjamin era fascinado pela ideia da revelação,


pela ideia tipicamente judaica da verdade como
escritura. O cerne de seu pensamento a respeito da
revelação era o conceito de aura, que estudou ao
longo dos últimos 11 anos de sua vida.
Franz Kakfa. "O novo advogado”

Mas Benjamin pensava na aura basicamente em


termos temporais: um objeto imaginado adquire
um valor sobrenatural, próximo ao sagrado, pois
está  enraizado na memória. Assim, no ensaio
sobre Baudelaire, ele define a aura como "as
associações que, habitando a mémoire involuntaire
tendem a se agrupar em torno do objeto da
percepção." O principal palco de atuação da aura
seria, portanto, a consciência individual, e não a
experiência histórica ou coletiva.
Franz Kakfa. "O novo advogado”

Há, no entanto, diversas analogias estruturais entre


a definição de aura em Benjamin e a imagem do
Sinai envolto em raios e trovões, concebido pela
tradição judaica como palco das revelações.
  Em ambos os casos, a potência da verdade se
encontra no passado, e tem que ser captada, ou
"recuperada", deste passado (da mesma maneira
que Benjamin concebe a memória, em "A próxima
aldeia", correndo como um raio em direção a um
ponto de origem revelador).
Franz Kakfa. "O novo advogado”

Além disso, a verdade e os valores da tradição se


manifestariam através de sua irrupção no âmbito
do mundano, e não seriam ditados pela vontade
humana - Benjamin não associa a aura à memória
pura e simples, mas sim à memória involuntária,
que surge do inconsciente.
• Além disso, tudo aquilo que é lembrado desse
modo torna-se uma espécie de manancial
semântico inesgotável, produzindo um número
infinito de significados. "Pois um evento vivido
‚ sempre finito", declara Benjamin no ensaio sobre
Proust, "pelo menos se ele for confinado a uma
única esfera da experiência; um evento relembrado
é infinito, pois ‚ apenas uma chave para tudo aquilo
que aconteceu antes e depois dele".
• O que se conclui desta ênfase na forma epifânica da
memória é que a experiência estética em geral é,
antes de tudo, o mais forte e sutil instrumento
mnemônico criado pela cultura.
•  
• Benjamin obviamente acreditava que a memória
daquilo que está  oculto no ventre do tempo podia
se manifestar de diversas maneiras, mas a única
que lhe era acessível pessoalmente era a
experiência estética, que ele tendia a associar à
percepção do dejá  vu - a parte que toca ao
receptor, digamos do fenômeno da aura.
Passagens de Paris

No século XIX construíram-se em Paris cerca de 150


passagens. As passagens eram anteriormente
espaços intermediários entre as ruas.
Com a nova iluminação a gás, o espaço urbano de
Paris torna-se mais seguro.
As passagens ocupam os espaços intermediários e
sua arquitetura de ferro e vidro abriga instalações e
lojas elegantes para o lazer da burguesia da época.
Galerie Vivienne, Paris século XIX
As passagens da modernidade
As passagens da modernidade
As passagens da modernidade
As passagens da modernidade
As passagens da modernidade
As passagens da modernidade
As passagens da modernidade
As passagens da modernidade
As passagens da modernidade
As passagens da modernidade
As passagens da modernidade
As passagens da modernidade
As passagens da modernidade
As passagens da modernidade
As passagens da modernidade
As passagens da modernidade
As passagens da modernidade
As passagens da modernidade
As passagens da modernidade
As passagens da modernidade
As passagens da modernidade
As passagens da modernidade
As passagens da modernidade
As passagens da modernidade
As passagens da modernidade
As passagens da modernidade
As passagens da modernidade
As passagens da modernidade
As passagens da modernidade
As passagens da modernidade
As passagens da modernidade
As passagens da modernidade
As passagens da modernidade
As passagens da modernidade
As passagens da modernidade
As passagens da modernidade
As passagens da modernidade
As passagens da modernidade
As passagens da modernidade
As passagens da modernidade
As passagens da modernidade
As passagens da modernidade
As passagens da modernidade
As passagens da modernidade
As passagens da modernidade

Você também pode gostar