Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
O estranho mundo de
GOREY
GETTY IMAGES
D
«Mr. E» soa foneticamente como mistery, terminante para o que viria a seguir. Em 1953,
«mistério». Dificilmente se encontrará um mudou-se para Nova Iorque, onde durante os
urante muitos anos, nome mais apropriado para um gato. trinta anos seguintes foi visto a ocupar uma
Edward Gorey foi cadeira nos espectáculos de ballet do New
uma figura inconfun- A Casa do Elefante York State Theater, envergando o traje de ga-
dível em Yarmouth Nascido em Chicago a 22 de Fevereiro de la habitual: casaco de pele e ténis. Fã do coreó-
Port. Alto, calvo e de barbas, brincos nas ore- 1925, numa família da classe média-alta, Ed- grafo George Balanchine, a quem venerava
lhas e largos anéis nos dedos, tinha um feti- ward St. John Gorey herdou o nome do pai, como um deus, raramente terá falhado uma
che por casacos de peles compridos, que jornalista no Chicago Tribune. Os pais divor- apresentação. Ao mesmo tempo, trabalhava
combinava com uns sapatos de ténis muito ciaram-se quando ele tinha onze anos e vol- para uma editora na ilustração de capas de li-
usados. Não se parecia com mais ninguém, taram a casar mais tarde. Pelo meio, enquan- vros: Dracula, de Bram Stoker; The War of the
excepto com ele próprio. Yarmouth Port é to vivia com a mãe, teve uma madrasta semi- Worlds, de H.G. Wells; e Old Possum’s Book of
uma terra pequena e algo coquette, onde se famosa: Corinna Mura, a actriz-cantora que Practical Cats, de T.S. Eliot, figuram entre os
respira a atmosfera veraneante de Cape Cod brilhou por cinco minutos em Casablanca, ao mais conhecidos. Balanchine morreu em
e as senhoras tomam o seu chá com bolinhos entoar o hino nacional francês em despique 1983. Pouco depois, Gorey meteu-se no seu
em lugares como The Optimist Café. É uma patriótico com a clientela alemã que fre- Volkswagen amarelo e mudou-se definitiva-
das paragens possíveis da cénica Route 6A, quenta o bar de Rick Blaine/Humphrey Bo- mente com os gatos para Cape Cod, sentindo
alinhada de ambos os lados com lojas de an- gart. Mais influente em Gorey, todavia, terá que já nada o prendia a Nova Iorque.
tiguidades, restaurantes e estalagens deco- sido a avó materna, no seu tempo bastante Ali encontrou aquela a que viria a chamar
radas como caixas de bombons. No Opti- popular como ilustradora de cartões festivos, a «Elephant House», julga-se que por causa
mist, porém, nenhum dos empregados sa- talento que o neto veio a aperfeiçoar com re- do aspecto velho e estalado da tinta, a lem-
bia onde ficava a casa-museu de Edward quintes de negra ironia. A única formação ar- brar a pele de um elefante. A decrepitude da
Gorey, situada a menos de 500 metros dali. tística que se lhe conhece é um semestre no casa combinava lindamente com a belíssi-
Indício de que ninguém é profeta na sua School of the Art Institute of Chicago, após o ma magnólia do jardim, capaz de resistir aos
própria terra ou um sinal da ambígua popu- qual, acabado o serviço militar, se mudou pa- Invernos agrestes e ao ar do mar. Gorey fi-
laridade do homem que adorava gatos mais ra o estado de Massachusetts e entrou para cou com ela. Tinha ganho dinheiro com o
do que tudo no mundo? Harvard. Aí, dedicou-se aos estudos france- projecto de cenografia e figurinos na produ-
Só a parte dos gatos é totalmente verdade. Em Yarmouth Port, a casa-museu ses e fez dupla boémia e literata com o poeta ção de Drácula para a Broadway; e a série de
Edward Gorey não era natural de Yarmouth de Edward Gorey fica em Strawberry Lane. Frank O’Hara, uma amizade dandy que não televisão Mistery!, onde assinou o genérico
Port, muito menos quis ser profeta ou repre- sobreviveu ao fim da universidade. animado de abertura, também fez com que
o seu trabalho chegasse a um grande núme-
ro de pessoas. De resto, o dinheiro, como va-
lor abstracto, não lhe dizia nada. Usava-o pa-
que cardíaco. Aconteceu poucos dias antes ra comprar as coisas de que gostava: livros,
da chegada dos Tiger Lillies, uma banda filmes, CD, obras de arte, antiguidades, bo-
com quem estava prestes a encetar mais necos de peluche… Quando decidiu mandar
uma parceria criativa. Foi tudo muito rápi- arranjar o telhado da casa, pagou tudo num
do. Os serviços de emergência vieram ime- só cheque. O homem apareceu meia dúzia
diatamente, mas nada pôde ser feito para de vezes e depois desapareceu do mapa. Os
o trazer de volta. Permaneceu ligado às amigos perguntaram-lhe por que tinha sido
máquinas durante dois dias, mas tinha dei- tão confiante. «Parecia-me mais prático pa-
xado escrito que não desejava ser man- gar assim», foi a resposta.
tido vivo «por circunstâncias artifi-
ciais», e as tomadas foram desliga- O gosto pelo insólito
das a 15 de Abril de 2000. Gorey foi Aparentemente, não houve nada de dramá-
cremado e parte das cinzas atira- tico na infância e adolescência do autor de
das ao mar, junto com a única flor The Gashlycrumb Tinies, a história em forma
que havia na magnólia do jardim. de alfabeto em que 26 personagens de crian-
Imponente, independente, Os animais fazem parte Simbolicamente, a casa-museu reabre ças são implacavelmente eliminadas
indiferente. Mr. E, o gato. do imaginário de Gorey. as portas ao público no mesmo dia do com uma só frase mortífera – desde
ano, depois de passar o Inverno em silen- «A» de «Amy que caiu das escadas»
ciosa hibernação. até «Z» de «Zillah que bebia demasia-
Agora, a casa é dominada por um felino do gin». As primeiras leituras de Go-
preto e branco, cujos onze quilos se atraves- rey (que aprendeu a ler sozinho aos
sentante de algum estilo, embora seja recla- culiar universo criativo. O passaporte expos- Bem-vindo, Mr. E sam à entrada como uma imponente bar- três anos e meio) terão preenchido,
mado por muitos como «gótico». Quanto ao to na vitrina guarda o carimbo da única via- Existem muitas pedras na casa onde viveu reira de pêlo. Apareceu num dia em que a pela imaginação, o vazio da norma-
resto, quando a revista Vanity Fairlhe pergun- gem fora dos Estados Unidos, às ilhas escoce- Edward Gorey, hoje adaptada para receber instituição promovia a adopção de cães e lidade quotidiana. Drácula, Franken-
tou «qual é o grande amor da sua vida?», ele sas de Orkney, em 1975. Porquê Orkney? Não um público ecléctico, desde pais com gatos; e há quem diga, por brincadeira (ou stein, Alice no País das Maravilhas e toda
respondeu simplesmente: «Gatos.» E, mais à se sabe. Gorey delirava com jogos de palavras crianças pela mão até dignos representan- não), que esta presença solitária é a encar- a obra de Victor Hugo foram devorados até
frente: «Se estivesse a morrer e pudesse vol- e manteve uma série de pseudónimos, a tes das mais radicais tribos urbanas. Exis- nação do próprio Gorey, empenhado em aos oito anos. Solitário, ma non troppo, ele pró-
tar sob a forma de uma pessoa ou de uma coi- maior parte anagramas do seu nome: Ogdred tem pedras que parecem sapos, pedras que manter-se de vigia ao espaço que habitou. prio confessou depois a um jornal que, em-
sa, o que acha que seria?» «Uma pedra.» «Qual Weary, Raddory Gewe, Dogear Wryde, E.G. parecem ovos de avestruz, pedras que só Convidados a sugerir um nome, os visitan- bora gostasse de se imaginar como um miú-
é a sua viagem favorita?» «Olhar através da ja- Deadworry, etc. Ele era suficientemente ex- parecem pedras. George, Alice, Jane e todos tes foram depositando papelinhos enrola- do «sensível e pálido», era mais do género de
nela.» Eis o retrato abreviado de alguém que cêntrico para atravessar o Atlântico em bus- os outros gatos foram adoptados por ami- dos dentro de um frasco. Tudo parecia brincar na rua e fazer coisas inesperadas.
gostava de estar em casa, entregue ao seu pe- ca do som de uma palavra como «Orkney». gos desde a súbita morte de Gorey por ata- apontar para que Mr. E fosse o escolhido. Uma colega da escola secundária contou co-