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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizagáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoríam)
APRESENTAQÁO
DAEDigÁOON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanga a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanga e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
'/" visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenga católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propoe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortaleca
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abengoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicagáo.
A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confiaga
depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
ANO VI
ÍNDICE

1. CIENCIA E RELIGI&O

1) "Pode-se dizer que o estado de alma de alguém, influí ■


sobre o género e a hora de sua morte ?" 135

n. SAGRADA ESCRITURA

Z) "Quem é o autor da epístola aos Hebreas f

Desconfio daqueles que dizem nao ser Sao Paulo" US

in. MORAL

S) "Discute-se muito o dever de pagar impostas.


Bons moralistas autorizam a sonegacáo dos mesmos. Que há
de certo nesses debates ?" .• l¡i

i) "Pretende-se hoje em dia legalisar a prostituios.o, já que


parece ser urna praxe inevitável. Dizem que assim se emtariam
maiores males.

Que pensar a respeito ?" 165

TV. DIREITO CANÓNICO

5) "Porque, nao pode um filho ilegítimo ser ordenado sa-


eerdote ?
Nao é injusto fazer que os filhos paguem o pecado dos ge
nitores ?" " 17S

COM APROVAC&O ECLESIÁSTICA


«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

Ano VI — N» 64 —^}'
L CIENCIA E RELIGIAO '

«JOVEM ANCIAO» (Porto Alegre) : , ...^.«-«^^

1) «Pode-se dizer que o estado de alma de algúém"influí ' ■•■-


sobre o género e a hora de sua morte ?» i'"'

Em resposta, proporemos breve observagáo sobre a índole


psico-somática das doengas, observagáo que nos servirá de
base para abordar devidamente o assunto ácima.

1. Doenca: mal da alma e do corpo

Até o inicio do sáculo presente era comum considerar-se


toda doenga como avaria de determinado órgáo ou tecido do
corpo. Contudo, a partir dos estudios de psicanálise, mais e
mais se verifica que na raiz de muitas doengas há urna per-
türbacáo que nao é corpórea, somática, e que se chama «psí
quica» (isto é, dependente da «psy'ché» ou da alma espiritual
do homem).
• Pode haver, em verdade, ñas fungóes vitáis de um indi
viduo deficiencias e desordens que nao provenham de lesáo de
algum órgáo (o exame anatómico entáo nada acusa). Mesmo
nesses casos o respectivo paciente sofre, e afirma que sofre.
Nao se lhe replicará que nada tem, nem se desprezará a sua
sitüagáo, mas procurar-se-á a raiz doseu mal no setor psíquico
(ou no dominio dos afetos, das emocóes e da fantasía...).
Em nossos dias nao se assevera mais que tais doengas sao me
ramente imaginarias, mas os médicos váo ao encalco dos fa-
tóres psíquicos (fatóres emocionáis) e dos conflitos que pos-
sam estar causando tal incómodo.
Registram-se certas paralisias das pernas, dos bragos ou
dos músculos que nao acusam em absoluto lesáo orgánica;
dependem exclusivamente do psíquico ou do estado nervoso
do individuo. Diz-se que sao perturbacóes «psico-somáticas»
(isto é, oriundas no psíquico, muitas vézes em conflitos de
alma, íutas de consciéncia, e manifestadas no corpo ou no
plano somático). N. b. : «Psyché» = alma ; «soma» = corpo,
em grego.

A propósito veja «P.R.» 32/1960, qu. 1.

— 135 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 64/1963, "qu. 1

Eis o famoso caso que se tornou ponto de partida da psicanálise:


em 1895, Freud, em colaboragáo com Breuer, tratou de urna doente
que, entre outras coisas, sofría de paralisia de um braco. — Ora os
dois médicos chegaram-á conclusáo de que essa paralisia tinha causa
afetiva: a doente fóra, sim, obrigada a tratar de seu pal durante
grave molestia; um dia, porém, adormeceu, sentada numa cadeira,
com a cabeca apoiada no braco que pousava sobre o encostó da ca
deira. Ao acordar, sentiu comicháo no braco; esqueceú-a, contudo,
sem demora. Mais tarde, via-se vitima de doenca nervosa, desenca-
deada por fatores diversos ; isto. bastou para que viesse a sofrer do
braco, experimentando paralisia; esta deficiencia, aparentemente inex-
plicável, era a expressáo do seu sentimento de culpa (culpa por ter
adormecido enquanto montava guarda a seu pai enfermo).
«Alien Stoller afirmou recentemente que ao menos 50 % dos
doentes que váo pedir conselho, auxilio e alivio ao médico, nao apre-
sentam sinal orgánico capaz de explicar as suas perturbagóes.. Dale
Groom indica a mesma porcentagem. Outros autores referem. cotas
aínda mais elevadas. Nao obstante, tais perturbagóes devem ter suas
causas» (Erich Stern, Les conflits de la vie, causes de maladie. París
1955, 14s).
«Dentre 422 pessoas que nos últimos tempos se apresentaram a
consulta em um centro de Cancerologia, oito apenas estavam afeta-
das de cáncer. Entre esses pacientes, porém, manifestou-se urna por
centagem de angustiados muito superior á que se poderia esperar.
Certas pessoas angustiadas, nao podendo mais suportar a sua
tensáo mental, resolvem seus conflitos 'transferindo' a tensao... ou
focalizando-a como doenca física» (Josette Lyon, L'Angoisse mal du
siécle. París 1957, 4a. capa).

A medicina moderna, baseada nessas concepgóes, afirma


haver doenga todas as vézes que a canservagáo do organismo
está ameagada (por Iesáo ou por infecgáo) ou aínda todas as
vézes que um órgáo nao está mais á altura de desempenhar
a sua fungáo ou a capacidade de trabalho do individuo está
diminuida ou a coragem normal perante as lutas da vida está
abalada ou a impressáo de tedio domina a pessoa ou as rela-
"góes do individuo com o próximo estáo perturbadas de modo
que nao seja capaz de se adaptar as normas da vida social.
Nao há dúvida, todos os homens, mesmo os mais normáis
e sadios, experimentan! suas dificultades (aborrecimentos e
lutas) na vida; sao ocasióes de desgastes, enfraquecimento ou
Iesáo do organismo ; contudo sámente parte da humanidade
cai doente... e os que caem doentes, caem murtas vézes em
circunstancias imprevistas. Decepgóes e derrotas nao faltam a
quem quer que" seja ; todavía nao sao elas que desempenham o
papel fundamental na doenga; muito mais importante é o
modo como o sujeito a elas reage. Se se trata de pessoa psiqui-
camente amadurecida, sabe resolver satisfatóriamente as difi-
culdades; caso, porém, se trate de individuo imaturo, sucum
birá na luta, manifestando perturbagóes psico-somáticas.

— 136 —
CADA UM MORRE COMO VIVEU

Estas observagóes já nos habilitam a considerar a ques-


táo abaixo.

2. Estado de alma e circunstancias da morte

1. Vista a estreita correlagáo existente entre equilibrio


psíquico e saúde do corpo, compreende-se que perturbagóes psí
quicas (de alma) e confutas de consciencia muito possam in
fluir ñas circunstancias em que alguém morre.
Naturalmente, tém pleno valor as normas e os conselhos
dos médicos referentes á higiene e á conservagáo da saúde fí
sica. Gragas las conquistas da medicina e da cirurgia, tem-se
podido aumentar notoriamente o índice da longevidade nos
tempos modernos.

Diz-se que, entre o séc. IX e o séc. XIV da era crista, a duracSo


media da vida humana era de 31 anos. Diminuiu a seguir para au
mentar finalmente no decorrer do séc. XVII. Nos séc. XIX e XX, o
índice de longevidade tem subido em ritmo continuo e proporgees im
portantes, beneíiclando-se dos recursos da ciencia moderna. Atualmente
parece oscilar entre os 70 e 80 anos; julga-se que poderá atingir, os
150 anos. Nos Estados Unidos da América as estatísticas revelam que
um americano entre 250 mil ultrapassa os cem anos de idade.

Contudo observam os estudiosos que um dos melhores fa-


tóres de conservacáo da vida é a paz de alma ou a ausencia
de confutas (o que quer dizer em última análise: .. .urna cons
ciencia que esteja em harmonia com as regras da moralidade
e com a Lei de Deus). Regimes dietéticos e medicamentos mui-
tas vézes para nada servém neste setor; podem ser subterfu
gios aos quais o paciente recorre'a fim de satisfazer a urna
paixáo ou a urna tendencia desregrada.

Em testemunho disto, seja citado o caso dos antigos ascetas do


deserto e dos membros de comunidades religiosas atuais que, vivendo
um regime de vida pobre e austero, se tornam, nao obstante, notoria
mente longevos; nao sao os cuidados de medicina ou da prudencia
humana que lhes conservam a vida, mas antes a ordem ou a paz de
consciencia dentro de um horario de vida sobria e regrada.

Obrecht realizou um inquérito junto a cidadáos suígos que tinham


atingido os cem anos de idade; em conseqüéncia, mostrou-se impres-
sionado pela mentalidade que animava tais pessoas : «Em cada con
versa, encontrava-me eu sob o encanto dessa serenidade inabalável, da
modestia, da gratidao, da humildade e da resignacáo diante de urna
Providencia cheia de bondade. Essa atitude é um tanto humilhante
para o observador». Dos seus estudos concluía Obrecht que, para che-
gar a idade adiantada, é necessário em primeiro lugar possuir «essas
felizes disposlcSes do espirito» (cf. E. Stern, ob. cit. pág. 268).
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 64/1963, qu. 1

2. Destas observagóes deduziremos duas importantes con-


clusóes:

a) Um género de vida moralmente desregrado ou entre


gue as paixóes muitas vezes se traduz era perturbasoes do
corpo,. envelhecimento precoce e mesmo em aceleracáo da
morte do individuo.

Da citada obra de E. Stern (pág. 268s) extraímos a se-


guinte passagem de Metalnikov :

«Conhecemos numerosos casos de pessoas afetadas por doengas


graves (tuberculose, sífilis) que viveram anos a fio, chegando a idade
adiantada, porque souberam viver com certa sabedoria. Doutro lado,
vimos pessoas que morriam no pleno vigor dos anos porque haviam
cegamente dilapidado as suas fórcas. Um homem que possui firmeza
de vontade, deve saber dominar as paixoes ; assim a fórga do espirito
o preserva dos perigos que o ameacam através do corpo ¡ tal firmeza
de vontade assegura-lhe outrossim certa juventude de espirito, que
persiste mesmo em provecta idade da vida.
Conhecemos nao poucas pessoas que chegaram a idade avancada.
guardando a sua juventude de espirito e o seu frescor até o último
instante. Nao há dúvida, a firmeza da vontade e o método psicológico
de rejuvenescimento... explicam que até o fim da vida tenham fi-
cado jovens».

O regime de vida ociosa, cómodamente poupada, em vez


de ser fator de longevidade, pode muitas vézes redundar em
detrimento da vitalidade e em precipitagáo do desenlace final.
De fato, o trabalho, desde que seja regrado e sistemático, con
corre para desenvolver as energías do corpo e proporcionar
nobreza e alegría ao espirito. Por conseguinte, se o trabalho
vem a faltar, o individuo nao pode deixar de ressentir a la-
cuna assim acarretada em sua existencia ; sabe-se que muitas
pessoas comegam a envelhecer rápidamente quando, após ter
levado vida ativa, se véem afastadas, de seus afazeres, s&ndo
assim preservadas de certos esforcos e lutas. Se, de um lado,
o trabalho acarreta fadigas, de outro lado ele proporciona
regra de vida, ritmo e equilibrio físico-psíquico, podendo ¿es.
tarte tornar-se fator de longevidade.
A doutrina crista confirma plenamente a verificagáo ácima.
Com efeito, diz um adagio cristáo: «A ociosidade é inimiga
da alma»; ao que se pode acrescentar: «... e também do
corpo». ;.

b) A pessoa que tenha perdido o gósto de viver, é mais


rápidamente acometida pela morte do que o paciente que es
tima a vida c luta contra a morte.

— 138 —
CADA UM MORRE COMO VTVEU

Há, sem dúvida, pessoas doentes que absolutamente nao


tém o desejo de viver e, por isto, nada fazem para debelar a
molestia; «deixam-se morrer»... Muitos désses individuos
assim se comportam porque sofrem de um conflito interior ou
de um drama moral ao qual (talvez de maneira inconsciente)
desejariam escapar mediante a morte; a sua cura depende,
entáo, nao tanto de remedios como da solugáo do respectivo
problema íntimo.
Os autores costumam relatar casos que ilustram estas
afirmagóes. Transcrevemos aqui os que Erich Stern (ob. cit.)
refere, casos observados pelo próprio médico relator:

«Tratava-se de um doente de cinqüenta anos de idade, afetado de


tuberculose no pulmáo direito, com grande caverna pulmonar. O pul-
máo esquerdo estava em boas condicoes. Fdra submetido a um trata-
mentó de drenagem endocavitária, que nao dera resultado... e em con-
seqüéncla do qual multo sofría. Sempre Uvera temperamento difícil
e estranho; em tfida parte se sentirá infeliz, mesmo em suas relacóes
sociais e, em particular, no seu ambiente de familia. Doutro lado, era
muito vaidoso e procurava sempre desempenhar papel importante,
papel que nao era compativel com a sua doenca e com a sua sitúacao.
A tuberculose fibrosa néle se estabilizara, permitindo-lhe sair, jogar
cartas, etc.; rejeitava, porém, a idéia de adotar urna atividade qual-
quer que fósse acomodada ao seu estado de saúde (como seria para
desejar)... A vida lhe inspirava tedio, e ele nao parecia ver possibili-
dade de jamáis deixar o estabelecimento no qual se tratava, e dé
sair da sitúacao em que se encontrava.
Em conseqüéncia de urna gripe, a molestia evoluiu nos lobos su
periores e inferiores direitos — o que, a principio, nao apresentou ca-
ráter alarmante, de mals a mais que o lado esquerdo ficava intato
Teve febre durante algumas semanas, após as quais a temperatura
retrocedeu. Contudo, desde o primeiro dia de febre afirmou que seu
caso era desesperado. Comecou entáo a fazer todos os preparativos
para morrer, inclusive o seu testamento; escreveu cartas de despedida
e exigiu que lhe mandassem vir os filhos. As suas atitudes se ressen-
tiam todas de exibicionismo e teatralidade. Os acompanhantes procura-
ram acalmá-lo, assegurando-lhe que nao estava em perlgo de vida:
recusaram mesmo chamar os iilhos ; ele, porém, nao queria crer nos
médicos. Comepou a emagrecer, deixou de se alimentar; quando o
procuravam animar, alegava estar perto da morte. Algumas semanas
mais tarde, apresentou sinais de deficiencia cardiaca; seu estado geral
agravou-se vislvelmente. Entáo julgaram os médicos que a situacao
era alarmante e mandaram avisar os filhos. No dia em que foi despa
chado o respectivo telegrama, o estado de saúde do paciente era táo
grave que se aguardava o desenlace de um momento para outro. So-
fria de dispnéia, parecia sufocar-se, as pulsacoes eram irregulares...;
difícilmente podía falar. Todos os tratamentos foram vaos. Ele mesmo
sentía que ia morrendo, e observáva: 'Eis o que se chama agonía'.
Naquela época, as comunicac.3es eram muito dificeis, de modo que as
filhas do paciente só poderiam chegar dentro de tres ou quatro dias,
e o f ilho sómente após quatro ou cinco días. Nao obstante, ele queria
aínda ver os herdeiros, aos quais estava muito afeicoado. Depois de
ter sobrevivido ás vinte e quatro horas dentro das quais se esperava

— 139 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 64/1963. qu. 1

o desenlace a qualquer momento, o coracáo melhorou, a cianose re-


grediu; o enfermo comecou a respirar mais fácilmente, as dores car
diacas cessaram, o pulso tornou-se regular; o doente pediu alimento.
Por íim, chegaram as filhas e, dois dias mais tarde, o filho do en
fermo. Conversou com éles ; a seguir, seu estado de saúde voltou a
agravar-se e tres días depois ele veio a falecer.»

Prossegue o Dr. Stern :

«Na mesma época, observamos outro doente, que chegou ao sana


torio em condicñes assaz graves, mas que nao se encontrava em ime-
diato perigo de vida. Todavía falava constantemente da morte... Pediu
que chamassem para junto de si a espñsa e os filhos. Sofría de tuber-
culose pulmonar fibrosa, a qual se complicou com urna tuberculose
intestinal, de tal modo que o enfermo muito difícilmente se alimentava.
Nao tinha resistencia íisica, nem coragem, nem esperanga nem desejo
de viver. Quería morrer e exigía que precipitassem o seu desenlace.
Na verdade, ele só morreu cinco meses mais tarde.
Nao há dúvida, tratava-se de doente gravemente afetado, mas o
desejo de morrer era um dos fatores que mais influiam no caso; jamáis
ésse doente lutou contra a molestia... Certamente pudera viver mais
tempo se tivesse tido mais vontade de viver» (ob. dt. pág. 275s).

Merece especial atengáo o desejo de suicidio, que acompa-


nha certas doencas mentáis e, em particular, os estados de
melancolía. Verdade é que muitas vézes o paciente apenas
ameaga suicidio, sem ter a coragem de o empreender. Contudo
nao se devem desprezar tais ameagas ; pode acontecer que o
enfermo faga realmente urna tentativa de suicidio, e a faga
em circunstancias tais que nao seja possivel socorré-lo, embora
no seu subconsciente a vitima nao desejasse prdpriamente a
morte e contasse com o socorro dos respectivos acompanhantes.

Haja vista o caso de urna doente que abriu o interruptor de gas


justamente no momento em que o marido transpós o limiar da residen
cia, ¿le costumava entrar diretamente em casa; naquele día, porém,
encontrou um amigo na escada e deteve-se a conversar com ele du
rante certo tempo; quando finalmente chegou ao apartamento, já
era tarde demais; o suicidio da esposa estava consumado (caso refe
rido por E. Stern, ob. cit. 276).

Pode acontecer que um suicidio, em aparéncia relacionado


com um fato ¡mediato de pouca importancia, se deva a antigo
confuto de alma. Com o decorrer do tempo, o paciente julga
que o conflito é insolúvel; desespera, colocando-se num estado
de alma tal que urna causa em si mesma insignificante já é
suficiente para desencadear conseqüéncias extremas.

Stern (pág. 276s) cita a propósito o caso de urna jovem nao casada
que, com a idade de 28 anos, ingeriu forte dose de gardenal.

— 140 —
CADA UM MORRE COMO VTVEU

Qual a razáo ¡mediata disto ?


Fóra abandonada por um amigo que ela conhecia havia algum
lempo e com o qual esperava contrair matrimonio.
Éste infortunio, porém, nao explicaría por si só o gesto desatinado.
Investigando de mais perto o episodio, os peritos averiguaran! que
a jovem ao mesmo tempo sofría dolorosas decepcóes no setor profissio-
nal; via-se assim diante de um impasse.
Mais ainda : verificaran! que desde os primeiros anos de juventude
tal pessoa experimentara grandes dificuldades na vida.
Com efeito. Quando era pequeña, contraira uma poliomielite, que a
deixara paralitica da perna esquerda; embora houvesse conseguido
memorar, nao podia caminhar normalmente. — Em conseqüéncia, a
paciente se julgava inferior aos irmáos e aos demais jovens, conce-
bendo inveja para com todos. Acometida de acentuada agressiyidade,
freqüentemente entrava em confuto com os respectivos familiares;
alias, estes eram pouco unidos entre si, o que desde ceüo muito a im-
pressionara. Aos vinte anos de idade, a jovem julgava estar em piores
condic5es do que as companheiras, no setor sentimental. Procurou
entáo uma satisfagao compensadora no dominio da arte; tentou tam-
bém atrair a si um ou outro rapaz; ora, justamente quando os seus
esforgos lhe pareciam coroados de éxito, sofreu dura decepgáo por parte
do amigo. Éste golpe, sobrevindo aos demaís, bastou para que a vida
já lhe parecesse intolerável; resolveu entáo apelar para o sucídio.

Os episodios e as observagóes ácima levam a ver, em pri-


meira linha, como o envelhecimento e o desenlace de alguém
podem ser profundamente influenciados por fatóres psíquicos ;
o otimismo, o desejo de viver e de permanecer jovem desem-
penham, juntamente com outros elementos, uma ac.áo de gran
de importancia neste setor.
Ulteriormente, porém, dever-se-á dizer: o otimismo frente
á vida, a alegría de viver e a paz de alma, em última análise,
dependem da fidelidade a Deus. É impossível (ao menos nos
casos normáis) conseguir-se a paz de alma sem se dar aten-
gáo ao problema religioso. Deus é o primeiro Valor, e Valor
que se apresenta naturalmente a cada criatura humana, de tal
modo que nao se pode conceber equilibrio psíquico sem que a
pessoa tome explícitamente a posigáo que lhe convém perante
Deus. Sufocar o problema religioso ou fugir déle sao táticas
que jamáis podem pacificar alguém ; ao contrario, só concor-
rem para iludir e, eventualmente, provocar conflitos íntimos.
Feliz o cristáo que vive com a consciéncia pura e reta diante
de Deus, sem resistir á vontade do Senhor ! Para tal sujeito,
os contratempos da vida perdem grande parte da sua impor
tancia ; ele terá a fórga para os vencer, mesmo quando sucum-
birem os seus companheiros alheios a Deus.
3. Podem-se oportunamente ainda fazer as seguintes
advertencias referentes ao estado de alma e as circunstancias
da morte de alguém :

— 141 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 64/1963, gu. 1

a) Os últimos minutos, as últimas horas e até os últimos


dias de um moribundo podem parecer extremamente dolorosos
a quem os observa. Julga-se, porém, que, na maioria dos casos,
nao sao táo penosos para o paciente quanto parecem ; os ge
midos, a agitagáo, a perda de fórqas dos agonizantes impres-
sionam terrívelmente os acompanhantes, mas nao sao sitiáis
de tamanha dor nos agonizantes. — E por que ? — Porque,
antes da morte, a consciéncia psicológica ou a lucidez de alma
é atenuada ou mesmo suspensa. Poucas sao as pessoas que
guardam plena consciéncia de si até os últimos instantes
da vida.

Nao poucos autores tém tentado provar que geralmente os mori


bundos se extinguem sem dores nem sofrimentos extraordinarios.
Ao contrario, a fase de vida que precede a agonia é que parece
especialmente aflitiva; e isto,... porque o enfermo vive entáo anteci-
padamente a agonia e a morte, concebendo temor e angustia, que ele
bem poderia dispensar.

Para mitigar ou mesmo evitar tal angustia, é de grande


valor urna consciéncia crista plenamente entregue á santíssima
vontade de Deus O cristáo nao tem motivo para temer a morte,
poroue sabe nue «aos fiéis de Deus a vida nao é tirada, mas
apenas mudada» (prefacio da Missa dos defuntos).

b) Já se tem dito que certas pessoas, justamente antes


da morte, adquirem maior lucidez de espirito.
Pode-se admitir isso. Há doentes oue, pouco antes de
morrer, parecem ver desfilar ante os olhos toda a sua vida
passf da. É de crer aue nessa ocasiáo Deus lhes dé a gra^a
de fazer um ato de arrependimento profundo pelos males co
metidos : ésse ato talvez nao cheTue a se exprimir em palavras,
mas cera vá'ido perante o Senhor.
Há outros enfermos, porém, que ñas proximidades do
desenlace se tornam mais e mais insensíveis ; nao mostram
emocáo nem mesmo diante dos mais caros familiares e ami
gos. É dif'cil dizer o que entáo se dá em seu íntimo.

c) Certos individuos prevéem ou pressentem o faleci-


mento próximo. Isto nada tem de surpreendente, pois a morte
é muitas vézes precedida de transformagóes orgánicas ; estas
podem repercutir na consciéncia do sujeito, de modo a des
pertar, principalmente em pessoas particularmente sensiveis,
a previsáo do desenlace.

Narram-se também casos de comunicagáo do moribundo com pes


soas situadas a grande distancia (o moribundo comunica seu desenlace

— 142 —
QUEM ESCREVEU A EPÍSTOLA AOS HEBREUS ?

ou alguma outra mensagem); sao fenómenos de telepatía, de percepcio


extra-sensorial..., que a ciencia moderna reconhece como fenómenos
naturais; nao significam que a alma do moribundo saia antecipada-
mente do corpo e «voe> para se entreter com éste ou aquéle individuo,
mas apenas que entre pessoas separadas por grande distancia pode
haver contato,... contato que se estabelece independentemente dos sen
tidos, mediante facilidades próprias, cujo procedimento até certo ponto
já pode ser descrito, mas ainda nao está plenamente estudado. Ñas pro
ximidades da morte, estando o psiqulsmo da pessoa particularmente
atetado, pode-se admitir que as faculdades de expressáo e de apreensao
se exergam com mais agudez.

d) Por vézes verifica-se inesperada melhora de saúde


mediatamente antes da morte...
Que significa isso ?
— Os médicos reconhecem que certas fungóes vitáis, an
tes de se extinguir por completo, desenvolvem transitoriamente
urna atividade mais intensa. Observe-se outrossim que, em
certos casos, a melhora consiste em aparente cicatrizagáo de
chagas muito antigás ; entáo, o que se dá, é apenas a diminui-
gáo dos processos de secregáo e inflamagáo, que sao manifes-
tagóes vitáis e que se váo enfraquecendo, de modo a diminuir
o vulto das chagas...

Estas nocóes parecem, cada qual do seu modo, sugerir,


em síntese, que a verdadeira vida do homem se configura na
sua consciéncia ou no seu estado de alma, o que finalmente
quer dizer: ... na atitude que cada individuo toma perante
Deus.

II. SAGRABA ESCRITURA

F. S. C. (Canoas, RS) :

2) «Qucm é o autor da epístola aos Hebreus ?


Desconfió daquelcs que dizem nao ser Sao Paulo».

A exegese contemporánea, mesmo católica, baseando-se


em sólidos argumentos, nega quase unánimemente a tese, táo
comum até os últimos tempos, de que Sao Paulo tenha escrito
a epístola aos Hebreus. A esta negativa nada se pode opor
por parte da fé, pois, em qualquer hipótese, se continua a
afirmar que a citada epístola é a Palavra de Deus e pertence
ao canon ou catálogo das Escrituras Sagradas.

É preciso distinguir nítidamente entre inspiracáo ou canonicidade


de determinado escrito e autor humano do mesmo. A inspiragáo é
carisma ou graga que Deus pode outorgar a qualquer de seus servos.

— 143 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 64/1963, qu. 2

Geralmente estamos habilitados, por indicios diversos, a indicar o nome


do servo de Deus ou do autor humano do qual o Espirito Santo se quis
servir para produzir determinado escrito biblico. Há casos, porém, em
que pairam dúvidas, mesmo insolúveis, a respeito da identidade désse
autor (é o que se dá, por exemplo, com os autores dos livros dos Reis,
das Crónicas, da Sabedoria, etc.). Tais dúvidas por si nao afetam o
valor inspirado ou canónico do respectivo livro biblico; pode-se entáo
estudar e discutir a questao do autor humano, sem que haja impiedade
ou derrogacáo á fé, a menos que a Igreja se pronuncie oficialmente
sobre o problema. — Ora tal é o caso da epistola aos Hebreus : embora
a S. Igreja tenha definido a sua canonicidade ou Índole inspirada, nunca
definiu ter sido S. Paulo o seu redator. Por conseguinte, éste segundo
ponto fica entregue á livre pesquisa dos exegetas: assim como os me-
dievais julgavam ter motivos para indicar S. Paulo, os modernos (com
mais raza o aínda) julgam dever negar esta posigáo.

A solugáo há de ser deduzida a partir de argumentos de


crítica literaria e de testemunhos da historia ; nao se pode
evocar alguma proposigáo de fé pro ou contra a autenticidade
paulina de Hebr (*).
Vamos, pois, em nossa explanagáo averiguar primeiramente
em que consiste o problema da autoría de Hebr ; a seguir, pro
curaremos a solugáo que mais probabilidades reúne.

1. Os dados do problema

A questáo do autor de Hebr se apresenta assaz obscura; já nos pri-


meiros séculos da nossa era havia opinióes diversas a tal propósito.
Enquanto os cristáos do Oriente atribuiam a epistola ao Apostólo
S. Paulo, os do Ocidente até meados do séc. IV se mostraram hesitantes
a respeito, tendendo mesmo a negar a origem paulina de Hebr. Do
séc. IV em diante, registrou-se entre todos unanimidade em afirmar
que S. Paulo era o autor de Hebr. Nos últimos decenios, porém, os exe
getas tém de novo focalizado o problema, sendo que os mais abalizados
negam tenha o Apostólo redigido tal documento.
Vejamos de perto quais as raz5es evocadas na controversia.

A. Contra a origem paulina de Hebr

1. Apresentam-se, antes do mais, razóes de crítica lite


raria, das quais as principáis sao as seguintes :

a) O autor de Hebr se distingue dos Apostólos própria-


mente ditos, reconhecendo ter recebido a mensagem evangé
lica da parte dos que a ouviram diretamente de Cristo. Cf.
Hebr 2,3 : «Anunciada primeiramente pelo Senhor, a salvagáo
nos foi depois transmitida com toda a seguranga por aqueles
quo a ouviram».

(>) Usaremos a algia Hebr para abreviar a deslgnacfio «Epístola aos


Ucbreus».

— 144 —
QUEM ESCREVEU A EPÍSTOLA AOS HEBREUS ?

Ao contrario, S. Paulo com muito ardor asseverava a


sua missáo de Apostólo enviado diretamente por Cristo para
pregar ó Evangelho. Cf. Gal 1,1: «Paulo, constituido Apostólo
nao pelos homens, nem por intermedio de algum homem, mas
por Jesús Cristo...»; Gal 1,12: «Nao foi de .algum homem
que recebi ou aprendí o Evangelho; foi-me revelado por
Jesús Cristo».

Ora as duas posicóes parecem irredutíveis urna a outra.

Isto é confirmado pela referencia que o autor de Hebr faz aos


chefes da comunidade de seus leitores: «Lembrai-vos de vossos dirigen
tes, que vos pregaran» a palavra de Deus. Considerai qual foi o fim de
sua vida, e imitai-lhes a fe» (Hebr 13,7). Sao Paulo nao teria escrito
tais palavras, pois ele mesmo era dirigente de comunidades e exercia
ciosamente as suas funcóes.

b) Hebr carece do exordio habitual ñas epístolas pau


linas, em que o Apostólo se apresenta aos leitores e os saúda.
Donde concluem alguns exegetas que tal documento nao é
urna epístola, mas um tratado teológico, ao qual foi acrescen-
tado posteriormente um epílogo ou fecho de epístola (cf.
13,18-25).

c) O vocabulario de Hebr difere assaz do dos genuínos


escritos de S. Paulo. De fato, dentre as 992 palavras que cons-
tituem o léxico de Hebr, 292 nao se encontram ñas auténticas
epístolas paulinas; a ausencia de alguns désses vocábulos no
«corpo de escritos paulinos» vem a ser particularmente estra-
nha (assim as palavras «to hagion», santuario, que ocorre 10
vézes em Hebr; «hiereus», sacerdote, que aparece 14 vézes
em Hebr; «archiiereus», Sumo Sacerdote, 17 vézes em
Hebr...).
Doutro lado, pergunta-se : porque faltam em Hebr certos
termos táo característicos de S. Paulo ? Tais seriam : «apoka-
Iypsis», revelacáo, e «apokalypto», revelar, 27 vézes ocorren-
tes em S. Paulo; «gnosis», conhecimento, 23 vézes em S. Paulo;
«gnosis», conhecimento, 23 vézes em S. Paulo; «dikaioo», justi
ficar, 26 vézes em S. Paulo; «ethnos», povo, 53 vézes em
S. Paulo ; «evangelion», evangelho, 69 vézes em S. Paulo.

"'"* d) O estilo de Hebr é literario e mesmo clássico, o mais


esmerado que ocorra no Novo Testamento; caracteriza-se pela
harmonía e pelo ritmo fluente (cf. 1,1-4; 2,2-4. 14-18; 7,20-25),
ao passo que o estilo de S. Paulo é o de urna eloqüéncia ar-
dente, cujas frases sao nao raro cortadas bruscamente, ficando

— 145 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 64/1963, qu. 2

incompletas; apelos ardentes, afeüvidade vibrante assim se


manifestam (cf. Rom 1,1-7; 2,17-21; 5,12s).

e) O modo de citar a S. Escritura em Hebr também di


verge do que é habitual em S. Paulo. — S. Paulo muitas vézes
nomeia o autor do livro que ele cita («Moisés diz...», Rom
10,19 ; «Davi diz...», Rom 4,6 ; «Isaías diz...», Rom 10,16);
caso nao indique nome, o Apostólo recorre a fórmulas clássi-
cas («como está escrito, diz a Escritura, diz a Lei» ou sim-
plesmente «está escrito...»). Ao contrario, o autor de Hebr
refere-se diretamente a Deus ou ao Espirito Santo (cf. 2,12.13;
3,7; 4,4; 7,17; 10,5.15).
f) No terreno doutrinário própriamente dito, notam-se
pontos de vista diversos em S. Paulo e em Hebr (o que nao
quer dizer: oposigóes ou contradigóes).
Assim, ao considerar a Lei de Moisés ou as disposigóes
do Antigo Testamento, S. Paulo focaliza principalmente o
aspecto moral da Lei: esta era excelente, mas nao podia san
tificar o homem porque a natureza humana era fraca, ainda
carecente da graga do Redentor; em conseqüéncia, o papel
da Lei foi o de excitar nos judeus a consciéncia de sua inca-
pacidade para irem a Deus e, conseqüentemente, o desejo do
Redentor. — A epístola aos Hebreus focaliza de preferencia
o aspecto ritual da Lei: apresenta-a, sim, como um código
de oblagóes e cerimónias que figuravam o sacrificio de Cristo,
preparando assim os homens a receber o Redentor.
Além disto, nota-se que S.. Paulo concentra todo o seu
ensinamento em torno da doutrina de Jesús Cristo crucificado
e ressuscitado; tem sempre ante os olhos o sacrificio ofere-
cido na cruz (cf. Gal 3,1). — A epístola aos Hebreus, porém,
prefere contemplar Jesús assentado á direita de Deus Pai,
sempre intercedendo por nos, após a vitória obtida na térra.
Em conseqüéncia, os leitores de Hebr sao convidados a levan
tar os coracóes para Cristo Sumo Sacerdote, que oficia no
céu; S. Paulo póe, antes, énfase no fato de que o cristáo vive
em Cristo e Cristo vive no cristáo (é éste um outro aspecto
do misterio de Cristo e da Igreja).

2. Além das razóes de crítica interna ácima recenseadas,


fala contra a origem paulina de Hebr o depoimento de autores
cristaos ocidentais dos primeiros séculos.
De fato. Até fins do séc. IV, nao poucos escritores citavam
a epístola aos Hebreus como documento sagrado, canónico,
mas mostravam-se incertos a respeito do redator, atribuindo-a

— 146 —
QUEM ESCREVEU A EPÍSTOLA AOS HEBREUS ?

nao raro a S. Barnabé. Assim S. Ireneu (séc. II), S. Hipólito


de-Roma (f 235), Tertuliano (t depois de 220), S. Gregorio
de Elvira (t depois de 392).
Outros escritores chegavam a negar a índole inspirada ou
canónica de Hebr, posigáo esta que se explica em conseqüencia
de urna situagáo transitoria provocada por certa heresia dos
sáculos n/m. Com efeito, os Montañistas e Novacianos, por
essa época, negavam a remissibilidade de certos pecados gra
ves, apelando abusivamente para Hebr 6,4-8, como se a Sa
grada Escritura mesma ensinasse nao haver perdáo para deter
minadas culpas. Visando entáo tirar o valor ao argumento de
tais rigoristas, alguns mestres e pregadores puseram em dú-
vida a autoridade de Hebr, enumerando por vézes éste do
cumento entre os escritos apócrifos ou náo-bíblicos.

Assim íízeram Caio Romano (inicio do séc. III), S. Cipriano


(t 258), S. Optato de Muevo (cérea de 370-375), o autor do fragmento
Muratoriano (catálogo biblico do séc. II) e o do Canon Mommseniano
(em 360 aproximadamente). Contemporáneamente, porém, nao deixa-
vam de se íazer ouvir vozes que reconheciam a índole canónica ou
inspirada de Hebr, embora nao soubessem exatamente qual o respec
tivo autor humano.

S. Jerónimo, aínda no inicio do séc. TV, aludía a Hebr nos seguintes


trémos: «Entre os romanos até nossos dias nao é Oda como carta do
Apostólo Paulo». S. Agostinho, a partir de 409 até o iim da vida (430),
citava, sim, Hebr como escrito canónico ou inspirado mas nao a apre-
sentava como obra de S. Paulo.

Desde meados do séc. IV, á medida que se esvanecia o


perigo do rigorismo herético, foi prevalecendo no Ocidente a
persuasáo de que Hebr pertence ao catálogo sagrado. Em con
seqüencia, os concilios de Hipona (393) e de Cartago I (397)
a enumeraram entre os escritos bíblicos, afirmando assim urna
posigáo que se tornou unánime em toda a S. Igreja. Quanto á
autoría paulina da epístola, ela foi sendo mais e mais profes-
sada pelos latinos a partir do séc. IV, de modo a ser comu-
mente admitida nos sáculos seguintes até os últimos tempos.
Eis as principáis razóes que levam bons exegetas católicos
modernos a controverter a origem paulina (nao o valor bíblico
ou inspirado) de Hebr.
Contudo ainda há os que defendem ter S. Paulo escrito
tal carta. Recorrem aos argumentos abaixo :

B. Em favor da origem paulina de Hebr.

1. Principalmente razóes históricas ou os testemunhos dos


escritores do Oriente sao aqui evocados.

— 147 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 64/1963, qu. 2. -

Desde remota época, houve escritores cristáos orientáis que atri-


buiram a S. Paulo a epístola aos Hebreus, embora nao faltasse simul
táneamente quem (como no Ocidente) duvidasse dessa tese. Basta
nomear entre outros, o «benvaventurado presbítero» do séc. II (Pan-
teño de Alexandria?), cujo testemunho é assira transmitido por Cle
mente de Alexandria: «Já que o Senhor (Jesús), Apostólo de Deus
todo-poderoso (cf. Hebr 3,1), f6ra enviado aos Hebreus, Paulo, em vir-
tude da sua modestia, e por ter sido enviado aos gentíos, nao se apre-
sentou no cabecalho da epístola como Apostólo dos Hebreus» (testemu
nho consignado por Eusébio, Hist. ecles. 6, 14, 2ss ed. Migne gr. 20,
549. 552). • -
Clemente de Alexandria (t antes de 215), segundo Eusébio (1. a),
«aíirmava ter S. Paulo fsentó a epístola aos Hebreus, mas em idioma
hebraico, visto que se dirigía primariamente aos hebreus; Lucas teria
zelosamente traduzido para o grego».
Como se vé, também Clemente nao nutre dúvida sobre a origem
paulina de Hebr, mas mostra-se consciente do problema dessa carta.
Nao é necessário nos detenhamos no enunciado dos diversos nomes
que íavorecem a tese da autenticidade.

2. Kaz5cs literarias ou de critica interna também sao


aduzidas para demonstrar a origem paulina de Hebr. Apesar
das diferengas, há, sem dúvida, semelhangas de doutrina e vo
cabulario entre Hebr e as epístolas de S. Paulo. Contudo essas
semelhancas perdem algo da sua fórga de argumento no nosso
problema, desde que se leve em conta a grande influencia que
em geral as treze genuínas epístolas de S. Paulo devem ter
exercido sobre o pensamento e o vocabulario de qualquer dos
escritores cristáos contemporáneos e subseqüentes ao Apos
tólo. «As iniciativas e a autoridade de Paulo sao tais que nao
se poderia conceber*uma epístola posterior, dotada de certa
envergadura, que nao lhe devesse grande parte de seus concei-
tos e nao se exprimisse em termos análogos... Depois do ano
de 64, ninguém podia mais falar de Cristo, da fé, da salva-
Cáo, etc., sem sé referir ao menos implícitamente ao que Paulo
escrevera sobre tais assuntos» (C. Spicq, L'Epitre aux hébreux I.
París 1952, 144).

Os exegetas, porém, assinalam alguns pormenores de pensamento


e de linguagem particularmente significativos, dentre os quais se
podem citar os seguintes :
Cristo é descrito como irmao dos homens (Hebr 2,11; Rom 8, 29);
... obediente até a morte (Hebr 5,8; Rom 5,19; 2 Cor 10,5;
Flp 2,8);
Jesús nao quis agradar a Si mesmo (Rom 15, 3; 2 Cor 8,9), abra
cando conseqüentemente o soírimento e a morte (Hebr 12, 1-3).
O éxodo dos israelitas que sairam do Egito, mas nao puderam
entrar na Térra Prometida por causa da sua iníidelidade, é explanado
no mesmo sentido em Hebr 3,7s e 1 Cor 10,1-13. «Todas essas coisas Ihes
aconteciam para servir de exemplo e foram escritas para nossa orien-
tagáo» (1 Cor 10,11).

— 148 —
QUEM ESCREVEU A EPÍSTOLA AOS HEBREUS ? :

As montanhas do Sinai e de Siáo (Jerusalém) correspondem anti


téticamente urna a outra (Hebr 12,18-22; Gal 4,24-26)..
A Lei de Moisés era insuficiente para reconciliar os homens com
Deus (Hebr 10,1-4; Rom 3,20; 5,20; Gal 3,19). Em conseqüéncia, loi
ab-rogada por Cristo (Hebr 10,4-7; Rom 10,4).
Que se poderla concluir de tais semelhancas ? .
É o que se verá ño parágrafo abaixo.

2. A solucáo mais provável

Considerando" os pontos de contato entre Hebr e S. Paulo,


bons exegetas modernos concluem que a epístola aos Hebreus,
assim concebida, deve ser tida como evolucao homogénea e
complemento do epistolario paulino. De um lado, ficam sendo
inegáveis as divergencias acidentais (nao essenciais) já apon-
tadas; em conseqüéncia julgam os críticos que o redator de
Hebr nao pode ser identificado com o Apostólo S. Paulo. De
outro lado, ésse redator se mostra táo familiarizado com a
mensagem do grande Apostólo que a própria crítica é indu-
zida a procurá-lo no círculo dos discípulos de S. Paulo.

«A análise désses pontos de afinidade nao prova em absoluto que


um só autor tenha escrito Hebr e o epistolario paulino, nem prova que,
de dois autores, um tenha copiado os escritos do outro. O problema é
muito mais complexo, dadas as divergencias de vocabulario que ácima
realcamos. O que se pode concluir, é que o redator da epístola aos
Hebreus conhecia muito bem os escritos de S. Paulo; lera-os muitas
vézes, e déles se nutrirá. Isto nos leva a crer que tenha sido um discí
pulo do Apostólo» (E. Jacquier, Histoire des livres du Nouveau Tes-
táment I. Paris 1908, 465).

Tais consideracóes e a conclusáo que délas decorre sao


bem plausíveis ; merecem preferencia sobre a tese que atribuí,
sem mais, a origem de Hebr ao Apostólo S. Paulo. Em outros
termos, a mesma sentenga pode ser assim enunciada : o Apos
tólo S. Paulo é o autor (no sentido de «principal fonte da
doutrina e dos conceitos») da epístola; um discípulo, porém,
do erande Apostólo terá sido o redator désse documento, dan-
do-lhe nao sómente o seu estilo e o seu vocabulario próprios,
mas também os tragos característicos da sua formagáo e
mentalidade.

O redator de Hebr nao f oi, portanto,, um mero secretario ou, como -


se diria na linguagem moderna, um datilógrafo de S. Paulo. Devia ter
personalidade intelectual e religiosa muito acentuada. Era um pensador
que, mesmo ao sofrer influencias do seu ambiente, guardou a autono
mía de pensamento e expréssáo, apresentando assim algo de genial e
contribuindo para enriquecer a teologia do Novo Testamento. Em parti
cular, julga-se que deve ter sido um judeu — dado que conhecia muito
bem as Escrituras do Antigo Testamento — e um judeu de Alexandria

— 149 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 64/1963, qu. 2

no Egito, pois nesta cidade desde o íim da era pré-cristá se constituirá


urna escola judaica de exegese que, usando de estilo grego assaz ele
gante, tendia a desenvolver o sentido místico ou tipológico dos livros do
Antigo Testamento (como faz o redator'de Hebr). Dessa escola, o prin
cipal representante foi o israelita Filo de Alexandria.

A esta altura, porém, impóe-se a elucidaeáo de urna dúvida


que poderia surgir do confronto da conclusáo ácima com pon
deroso documento do magisterio eclesiástico referente á orf-
gem de Hebr.

S. E as declárameles da Pontificia Comissao Bíblica ?

Aos 24 de junho de 1914, a Pontificia Comissao Bíblica


(a qual nao goza do carisma da infalibilidade) respondía a
tres perguntas que lhe foram feitas a respeito da epístola aos
Hebreus. Tais declaracóes sao, por vézes, interpretadas em sen
tido demasiado estrito como se vedassem qualquer discussáo
crítica concernente la origem de Hebr. Errónea seria esta con
clusáo. — Eis o que se depreende de urna análise fiel das de-
cisóes da P. Comissao :

1) As dúvidas e controversias verificadas nos primeiros


séculos a propósito da canoniddade e autenticidade de Hebr
nao constituem argumento suficiente para que nao se enumere
tal documento no catálogo das cartas paulinas. A epístola aos
Hebreua é, pois, um documento canónico, bíblico, cujo lugar
adequado no canon sagrado é o «corpo dos escritos apostólicos».

2) As razóes literarias ou de crítica interna de Hebr


nao bastam por si para que se negué a influencia do Apostólo
S. Paulo na confeceáo desta carta, Há mesmo, entre os escri
tos paulinos e Hebr, afinidade tal que se deve admitir a mesma
fonte ou a mesma origem para todos ésses documentos. Con-
tudo essa identidade de fonte ou origem nao quer dizer que
S. Paulo tenha dado a respectiva forma literaria a Hebr, como
se depreende do ítem abaixo: '

3) É perfeitamente lícito, salvo ulterior juizo do magis


terio da Igreja, atribuir a redacáo literaria de Hebr a um es
critor diverso do Apostólo S. Paulo.
Assim, como se vé, a* Pontificia Comissao Biblica admite,
para Hebr, origem paulina em sentido largo ou, conforme di-
zem alguns, «autenticidade paulina indireta».

Resta aberta aos críticos a tarefa de identificar o redator de Hebr.


O parágrafo abaixo tentará referir as sentencas dos exegetas contem
poráneos mais abalizados no assunto.

— 150 —
QUEM ESCREVEU A EPÍSTOLA AOS HEBREUS ?

4. Qttem terá sido o redator ?

A resposta a éste quesito é tao obscura que muitos autores se


abstém de a procurar, desistindo portanto de aventar conjeturas sobre
qualquer dos possíveis nomes de escritores antigos. O exegeta alemáo
A. Oepke chega a comparar o problema ao da «quadratura do circulo»
(Das Neue Gottesvolk. Gütersloh 1950, pág. 17).

Dentre as varias respostas formuladas, destacaremos ape


nas as que se seguem :

a) Urna das. hipóteses mais antigás indica S. Clemente,


bispo de Roma em fins do séc. I.
Éste autor deixou urna carta genuinamente sua, escrita
aos Corintios. Ora o confronto desta missiva com a epístola
aos Hebreus resulta em desabono da hipótese: Clemente nao
possui a genialidade do autor de Hebr; cita e imita... mais.
do que aprofunda os temas. Ademáis, se Clemente de Roma
fósse o redator de Hebr, nao se entende que justamente em
Roma nao" houvesse conhecimento disto, como de fato náó
houve. \

b) Outra teoría antiga aponta S. Lucas Evangelista. Éste


escritor reúne mais títulos de probabilidade do que o ante
rior : pertence, sim, á segunda geracáo apostólica; foi assíduo
companheiro de S. Paulo; usa de estilo e vocabulario muito
afins aos de Hebr ; interessa-se pelo Templo e o culto era Jeru-
salém; considera Jesús especialmente como Salvador misericor
dioso, etc. — Contudo tais pontos de contato sao superficiais:
Lucas, no Evangelho e nos Atos, se revela um historiador
atento aos fatos concretos ; nao é teólogo especulativo, ao passo
que o autor de Hebr dá muito mais atencáo as idéias do que
aos fatos concretos. Sirio, e nao israelita, convertido do hele
nismo paganizante, Lucas difícilmente tena podido assimilar o
Antigo Testamento e experimentar a simpatía pela historia e
as instituigóes de Israel que transparece através de Hebr. A afi-
nidade, portanto, vigente entre Hebr e os escritos de S. Lucas
se deve ao fato de que todos ésses documentos dependem da
catequese paulina.

c) Goza de certa autoridade a sentenga que atribuí a


redacto de Hebr a S. Bamabé. Professam-na escritores anti
gos desde Tertuliano assim como a maioria dos exegetasr
contemporáneos. Varios títulos recomendam tal tese : Bar-
nabé pertenceu, sim, á segunda geracáo crista, como urna das.
figuras mais eminentes da época dos Apostólos. Era de raga
judaica, oriundo da Diáspora helenista, ou seja, da ilha de

— 151 —
«sPERGUNTE E RESPONDEREMOS» 64/1963, qu. 2

Cipro ; falava o grego desde a infancia; pode muito bem ter


sido formado em Alexandria, já que freqüentes er.atn as rela-
góes entre Cipro e o porto de Alexandria. Acompanhou S.
Paulo no apostolado em Antioquia e na primeira viagem mis-
sionária. Além disto, era levita e, por isto, ótimo conhece-
dor dos ritos e dos costumes dos israelitas.
Contudo também esta sentenga apresenta seus pontos
obscuros:
sabe-se que Bannabé se separou de S. Paulo no inicio da
segunda viagem missionária (por volta do ano de 50; cf. At
15,36-39); nao se tem noticia de que haja voltado para perto
do Apostólo. Ora a epístola aos Hebreus parece ter sido redi-
gida pouco antes do ano de 70;
em Antioquia Bamabé fez concessóes as observancias ju
daicas (cf. Gal 2,13), mostrando assim estranha independen
cia em relagáo a S. Paulo ;
conforme Gal 2,9 e At 11,22-24, S. Barnabé se entregou
ao apostolado entre os gentíos; nao pertenciam, portante, ao
temario de sua pregagáo habitual os assuntos abordados em
Hebr (daí estranhar-se tivesse escrito tal epístola) ;
em Licaónia usaram da palavra Paulo e Barnabé, de tal
modo que o povo, impressionado, identificou S. Paulo com o
Deus da Palavra, Hermes (cf. At 14,12). Nao seria isto in
dicio de que Barnabé nao possuia dons de eloqüéncia, dons
que se devem supor no redator de Hebr ?

d) Alguns comentadores modernos, ao ler a epístola aos Hebreus,


se lembram do diácono e primeiro mártir S. EstévSo, impressionados
pelos traeos de semelhanga existentes entre Hebr e o sermao de S. Es-
téváo em At 7 : ambos estes documentos percorrem a historia de Israel
para mostrar que, rejeitando Cristo, os judeus renegaram o seu pas-
sado e desviaram a linha de suas tradigóes, que os devia normalmente
levar a Jesús Cristo como a seu complemento. O percurso, em ambos
os casos, se detém ñas mesmas etapas: Abraáo, José, Moisés, Josué.
Era ambos os documentos, le-se até a tradicao rabinica segundo a qual
a Lei foi transmitida a Moisés pelos anjos e o tabernáculo de Deus na
térra foi construido á semelhanca de um modelo celeste (c£. At' 7, 38.
44 e Hebr 2,2; 8,5).

Todavia S. Estévao morreu cedo demais (antes da conversáo do


próprio S. Paulo em 36) para poder ser tido como autor de Hebr. Dos
pontos de contato indicados apenas se pode concluir que a apologia de
S. Estéváo perante o sinedrio se tornou fonte básica da apologética
paulina e crista dos primelros séculos; por conseguinte, terá exercido
influencia notável sobre Hebr.

e) Outras sentencas se tém feito ouvir, sem fundamento sólido,


em favor do diácono Filipe, profeta, taumaturgo, evangelizador do Sul
da Palestina (cf. At 21,8); ..." em favor de Aristiño, a quem se atribuí
o epilogo do Evangelho de S. Marcos (como se houvesse afinidade entre

— 152 —
QUEM ESCREVEU A EPÍSTOLA ÁOS HEBREUS ?

Hebr e Me 16, 9-20); ... em favor de Prisclla e de seu marido Aquila,


casal judeu milito chegado a S. Paulo...

f) Finalmente, depois de ponderadas todas as hipóteses


dos exegetas, a mais plausível parece ser a que atribuí Hebr
a Apolo de Alexandria.
Com efeito. A respeito déste personagem refere S. Lucas:

«Chegou a Éfeso um judeu chamado Apolo, natural de Alexandria,


homem eloqüente e muito versado ñas Escrituras. F6ra instruido no
que se refere ao caminho do Senhor, e, dotado de espirito ardoroso,.
falava e ensinava com exatidáo a respeito de Jesús, embora só conhe-
cesse o batismo de Joáo. Comegou a falar desassombradamente na sina
goga. Quando Priscila e Áquila o ouviram, levaram-no consigo e expu-
seram-lhe com exatidáo o caminho do Senhor. Como desejasse dirigir-se
á Acaia, Os irmaos o animaram e escreveram aos discípulos de lá para
que o recebessem. Chegando, prestou, pelo dom que possuia, grande
servico aos que tinham abracado a fé, porque refutava vigorosamente
os Judeus em público, demonstrando que Jesús é o Cristo» (At 18,
24-28).

Apolo era, pois, judeu e, por conseguinte, bom conhece-


dor das Escrituras e dos costumes de Israel. Mas também era
helenista, muito versado na oratoria grega e, em particular,
na sabedoria de Alexandria, sua cidade natal. Ora estas duas
caracter'sticas parecem marcar radicalmente o escritor de
Hebr. Ademáis era um apologista, arguto para discutir e para
refutar os judeus, como também revela ser o redator de Hebr.
Qual bom estilista e orador, Apolo (como faz justamente o
redator de Hebr) devia evitar tüdo que fósse expressáo vulgar
ou capaz de melindrar seus ouvintes e leitores :

note-se como em Hebr 13,22 o autor sagrado, terminando a sua


exortaeáo, com delicadeza e urbanidade pede aos leitores que a rece-
bam benévolamente. Para ele, a vida crista é um estilo ou urna atitude
de alma (13,5), que a graca de Deus torna béla (5,14; 10,24; 13,9.18).
Dedica estima especial á honra e ao brio de caráter: assim incute a
fidelidade á tradicáo venerável dos Pais, c.ll,... a necessidade de nos
tornarmos dignos da assembléia celeste, 12,22s, podendo a apostasia
constituir um motivo de escándalo particularmente grave, 10,36-39.

Apolo deveter gozado de grande autoridade e prestigio


entre os primeiros cristáos, a semelhanga do que se dava com
o redator de Hebr ; por isto, em Corinto alguns fiéis o queriam
indevidamente fazer chefe de partido, assemelhando-o a Pedro
e Paulo, colunas da Igreja (cf. 1 Cor 1,12; 3,4-6; 4,6); Apolo
nao tinha, pois, temperamento para ser mero secretario ou
repetidor.
Varios outros pontos de contato se poderiam assinalar ;
embora cada qual de per si parega de pouca monta, o séu con-

— 153 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 64/1963, qu. 3

junto nao deixa de ter fórga persuasiva. Por isto com boa pro-
babilidade de acertó pode-se admitir tenha Apolo, de fato, sido
o feliz e nobre redator de Hebr. .

A título de complemento, diga-se que o autor sagrado deve ter tido


em vista urna comunidade de judeus convertidos ao Cristianismo nos
primeiros'tempos mediante a pregacaó de S. Estéváo e exilados em vir-
tude da perseguigáo que se seguiu ao martirio déste santo; deviam ter
emigrado para o litoral da Siria e da Palestina (Cesaréia-oú Antio-
quia?). Eram antigos sacerdotes israelitas, que, com grande apreco, se
recordavam das cerimónias que éles haviam celebrado no Templo de
Jerusalém; como cristáos, participavam de um culto relativamente
simples, íicando ademáis sujeitos a maus tratos e odio da parte de seus
compatriotas. O contraste os afligía, de mais a mais que Cristo, retar-
dando a sua segunda vinda, parecía haver esquecido os seus;'dal o desá
nimo e as dúvidas de íé que os invadiam... Ora, para os corroborar
na arenca e na coragem é que o redator de Hebr Ihes terá escrito-a
sua palavra de exortacáo (cf. 13, 22), impregnada de eloqüéncia e en
tusiasmo : quls mostrar-lhes como o anügo culto Israelita tendía, essen-
clalmente a se consumar em Cristo; em conseqüéncia, era mesmo neces-
sário que se entregassem á mensagem crista e viyessem da fe, regime
normal para todos os justos (cf. 10,38). — O lugar da redacáo terá
sido a Italia, entre os anos de 65/67, ou seja, antes/da queda de Jeru
salém, pois justamente o culto que se continuava a celebrar-na Cidade
Santa aínda devia estar atraindo os destinatarios dé Hebr.'

MORAL

JANGADA (Aparecida) :

3) «Discute-se muito o dever de pagar impostas. Bons


: moralistas autorizam a sonegagáo dos mesmos. Que ha de certo
nesses debates ?»
• ■• Os impostes constituem assunto muito melindroso em nossos tem-
pos dando ccaslao a que pessoas sensatas proponham sentencas assaz
diversas em tdrno da obrigatoriedade dos mesmos. Isto se entende bem,
*pois a questao na vida prática se reveste de toeétas múltiplas, rica
mente matizadas., . <., „ ^L j»-
Na presenté resposta, esfórgar-nos-emos por localizar, os grandes
principios a partir dos quais se deverá procurar a solucáo.dos casos
particulares. ' . ■ • i
Já que dois sao os sujeitos interessados na questao dos impostes
— o Estado e o cidadáo —, compreende-se que o problema "aprésente
dois aspectos principáis: «Estado e impostes», «Cidadáo e impostes».
É a estes dois títulos que vamos agora voltar a nossa atencáo, a flm
de poder formular algumas conclusoes úteis na vida cotidiana^1.

1. Estado e impostos

1. É fato obvio que existe, e deve existir, o qué se chama


/ «o bem comum». Éste consta dos diversos elementos que a

; -154-
O DEVER DE PAGAR IMPOSTOS

sociedade fornece aos seus membros, a fím de que possam .


exercer os seus legítimos direitos e conseguir o respectivo ideal.

Assim o bem comum compreende, entre outras coisas,

ordem e seguranza públicas no interior da cidade e do país (isto só


se obtém mediante tropas que defendam a patria; policia e trlbunais
que coibam os malíeitores; corpo de bombeiros...),
assisténcia social para os indigentes, os enfermos, os anclaos
(donde hospitais, asilos, orfanatos, lactarios...),
educagáo (escolas),
cultura (bibliotecas, museus, monumentos de arte),
transportes e comunicacoes (estradas de rodagem, íerrovias, cór
relos, telefones...),
servicos de aguas e esgotos,
• servicos de limpeza pública,
rede de eletricidade, etc.

Ora ésses diversos fatores do bem-estar público nao sao


dados como tais pela natureza, mas tém que ser conquistados'
pelos esforcos e-a colaboragáo dos cidadáos. O órgáo coorde- '
nador désses esforgos é, por definicáo, o Estado. Sim ; ás auto
ridades civis, e sómenté a estas, compete fixar certps objetivos .,.
de interésse comum da sociedade e determinar as partes que /
cada cidadáo ou cada entidade particular deve desenvolver Y
para a consecugáo dos mesmos. Com efeito; é o Gbverno qué
possui as informagoes e a supervisáo necessárias para orientar
os esforgos dos particulares em demanda do bem comum.
Donde se segué que o Estado, na medida em que propugna- os ,('
interésses da sociedade, tem o direito de contar com a contri-
büicáo de cada cidadáo. Esta contribuicáo ha de ser, na sua
forma mais obvia, monetaria ou financeira (tributaria). .'. >

Na antigüidade, a contribuicáo dos cidadáos para o bem comum ■"■


era prestada diretamente sob a forma de servicos públicos («leitour-
giai», em grego) ou sob a forma de géneros naturais (gado, trigo, ce-
reais,...). Hojé em dia, dado o desenvolvimento da técnica e a comple- :■ <
xidade dos servicos públicos, é evidentemente mais fácil e manuseável '
o tributo sob a forma de dinheiro. — É a essa contrlbuicao que se dá o :
nome de «imposto». - ., V

Vé-se assim que a cobranca de impostes (ou a cobranga:;fá


da contribuicáo de cada ddadfio para o bém comum) é direitor"^
e dever do Estado. Se nao tivessem ésse direito, as autoridades ';.í
civis ficariam de todo impotentes para realizar a sua missáó, f/j i
e o próprio bem comum se ressentiria fatalmente ; .pode-se <ftr¡:0_
zér que jos cidadáos acabariam por perder mesmo á possibili^%a
dade de ganhar 0 seu pao na sociedade. ',.'$:}{M

■ ' ■ • " -*■- A ."♦ -í.ii8


«PERGUNTE E RESPONDEREMOS!» 64/1963, qu. 3

2. Contudo, ao determinar e exigir os impostes, o Estado


deve observar certas normas, a fim de nao exorbitar dos seus
direitos e merecer o acatamento dos súditos :

a) sejam justas as causas em vista das quais se exigen)


os tributos. O Govérno deverá intencionar realmente o bem
comum (tanto do ponto de vista material como do ponto de
vista moral) da sociedade; portante impostes exigidos para
festas indignas, campanhas ou guerras iníquas, escolas impias,
etc. carecem de fórga obrigatória ;

b) cuide o Govérno de nao dar preferencia a interésses


de particulares, com detrimento para o bem comum. Mesmo
entre as causas de interésse comum, observe a hierarquia dos
valores, favorecendo antes do mais os empreendimentos de
primeira necessidade (servigos de agua, habitagáo, transportes
públicos, etc.);

c) a avaliacáo dos impostes seja proporcional & posigáo


de cada individuo na sociedade. O que quer dizer: cada um
contribuirá de acordó com o que possui e o que arrecada como
renda. Certos cidadáos e certas instituicóes que, por seus afa-
zeres mesmos, já contribuem para o bem comum, deveráo ser
contemplados á parte, podendo mesmo ser dispensados de
impostes ; seria, sim, contrario á justiga dificultar a existencia
de pessoas físicas ou moráis que se dedicam primariamente ao
servigo do próximo;

d) se poss'vel, seja a arrecadagáo de impostes feita em


épocas fixas, devidamente previstas, a fim de nao surpreender
os contribuintes, causando-lhes incómodos e prejudicando o
ritmo normal da vida nos lares e no comercio.

Eis os aspectos prec'puos do problema dos impostes que


dizem respeito primariamente ao Estado. Passemos agora ao
titulo reciproco.

2. Cidadáo e impostes

Aos direitos e deveres do Govérno corresponden! natural


mente deveres e direitos dos cidadáos.

1. Em primeiro lugar, observe-se que o pagamento de


impostes constituí, para os membros da sociedade, urna ge-
nuína obrigagao.

— 156 —
O DEVER DE PAGAR ÍMPOSTOS

É o que sempre ensinou a Tradicáo crista, baseada, de


resto, em textos da S. Escritura mesma.

Tenham-se em vista, por exemplo,


as palavras de Jesús, a quém perguntaram os fariseus se era licito
pagar tributo a César ou nao : «Dai a César o que é de César, e a Deus
o que é de Deus» (Mt 22,17-21).
O sentido exato do adagio se acha explanado em «P. R.» 14/1959,
qu. 7.

Éste ensinamento verbal, Cristo o confirmou pelo seu exemplo


mesmo, mandando que Pedro pagasse o tributo em seu próprio nome e
em nome de Jesús; cf. Mt 17, 23-26.

Sao Paulo se íaz eco da mesma norma :


«Sede submissos ás autoridades civis nao sómente por temor do
castigo, mas por motivos de consciéncia. Nao é por éste mesmo motivo
que pagáis impostos? Os governantes sao agentes de Deus, os quais
se aplicam asslduamente á sua tarefa. Dai a cada um o que lhe é de-
vido: o imposto a quem é devido o imposto; as taxas, a quem sao de
vidas as taxas» (Rom 13,5-7).
Esta diretiva do Apostólo sugere duas conclusdes:

a) o pagamento de impostos há de ser feito nao apenas por temor


de castigo, como se as leis que os exigem íóssem meramente penáis
deis que cada cidadáo pode licitamente infringir, ficando apenas suieito
a cumprir pena, caso seja descoberto em infracáo da lei). Trata-se,
antes, de um dever de consciéncia, que obriga os cidadaos diante de
Deus e por causa do próprio Deus;

b) em conseqüéncia, pode-se dizer que, ao cobrar impostos, as au


toridades civis procedem em nome de Deus mesmo (naturalmente,
desde que preencham os requisitos da consciéncia crista há pouco enun
ciados).

2. O dever de pagar impostos parece decorrer da natu-


reza mesma social do homem. Éste foi feito de tal modo que
precisa de viver na sociedade civil, déla recebendo os beneficios
necessários á consecugao do seu ideal. Fora da sociedade, o
homem normalmente nao «se realiza». Ora a vida na sociedade
se ternaria impossivel se cada cidadáo nao se responsabilizasse
por urna parcela das despesas que o Estado, em prol dos ci-
dadáos, tem que realizar, a fim de fornecer a cada um as
enormes vantagens da boa ordem pública, dos meios de trans
porte, correios, escolas, etc."
Donde se vé que a sonegagáo de impostos pode ser tida
(de acordó, alias, com a sentenga de bons moralistas) como
lesáo de justica comutativa. Há, sim, como que um contrato
impl'cito entre o povo e o Govérno. As autoridades se com-
prometem a promover o bem comum, ao passo que o povo, ao
aceitar o Govérno, implícitamente contrai a obrigacáo de con-.

_ 157 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 64/1963, qu. 3

tribuir para satisfazer as justas despesas do Estado. Caso al-


guém nao preste a sua contribuigáo e, nao obstante, queira
usufruir dos beneficios públicos prestados pelo Govérno, viola
um contrato implícito.

S. Afonso julga que éste modo de ver é o mais comuna entre os


moralistas, chegando mesmo a citar 23 autores que aíirmam a obriga-
toriedade dos impostos em nome de um contrato ou da justica comu-
tativa (cf. Theol. Mor. 1. 3 n. 616).

Quanto la sentenga que reduz as leis de impostos á cate


goría de leis meramente penáis, é relativamente recente na
historia. O seu primeiro arauto parece ter sido Angelo Carleto,
(t 1495), na sua «Summa Angélica», obra que encontrou logo
um forte opositor na pessoa de Silvestre Frieras O.P.
(t 1523). Ainda hoje autores de certo renome (como Génicot,
Berardi...) defendem a posigáo de Angelo Carleto, alegando
principalmente o modo de ver e agir comum entre os homens
de todo e qualquer país em geral: poucos sao os que levam a
serio a obrigagáo de impostos; a maioria dos cidadáos apenas
se sujeita a sofrer as penas respectivas, caso sejam apreendi-
dos em flagrante sonegagáo ; do seu lado, as próprias autori
dades civis parecem nao fazer caso de obrigagáo de conscién
cia ; o fato de imporem penas fortes ou mesmo exageradas
aos transgressores das leis de impostos mostra que consideratn
estas leis como meramente penáis. — Tais razóes sao muito
iracas ; além de se basear numa apredagáo superficial da reali-
dade, supóem que a praxe da maioria dos homens seja válido
criterio para se definir o que é certo e reto.

O S. Padre Pió XII dizia: «Nao resta dúvlda sobre o dever que
toca a cada cidadáo de sustentar parte das despesas publicas».
Aludindo a estas palavras, o Sr. Bispo de Tarbes e Lourdes
(Franca) comentava : «Fica, portanto, rejeitada a tese daqueles que
ensinam serem as leis tributarias leis meramente penáis, as quais só
obrigam a quem é apreendido em flagrante contraveneno. O paga
mento de impostos constituí dever de consciéncia... Se a minha em
presa (comercial ou industrial) dá lucros, nao tenho o direito, diante do
Estado, de a declarar deficitaria» (cf. documento transcrito em Apén
dice a éste artigo).
Sobre a obrigacao de restituigáo dos impostos sonegados (conse-
qüéncia da tese da justica comutativa), observe-se o que adiante nesta
dissertacáo será proposto.

Idóneos moralistas julgam que, em vista da seria obriga


gáo de consciéncia decorrente. das leis de impostos (quando
justas), pode alguém pecar gravemente, caso se negué a prestar
a sua contribuigáo (a gravidade, maior ou menor, deverá ser

— 158 —
O DEVER DE PAGAR IMPOSTOS

avallada vez por vez, de acordó com as circunstancias próprias


de cada situagáo). Se alguém, pelo fato de pagar todos os im:
postos justos, ficasse privado de recursos para dar esmolas e
colaborar em obras de beneficencia, teria, nao obstante, cuiri-
prido seus deveres de caridade, pois os Governos modernos
(caso séjam honestos) costumam destinar certa parte das arre-
cadagóes públicas a obras de previdencia social e assisténcia aos
indigentes (repita-se, porém :... caso os Governos sejarri ho
nestos. ..).

Enunciada a posigáo do Estado e dos cidadáos frente aos


impostes, desgamos a algumas conclusóes que levem em conta
devida a realidade prática de nossos dias.

3. Conclusóes

1. Infelizmente, yerifica-se que os belos principios, pro


feridos no plano doutrinário ou especulativo a respeito dos im
postes, na prática sao freqüentemente solapados e espezinhados.
Em vez de haver compreensáo mutua entre o Estado e os ci
dadáos e, conseqüentemente, colaboragáo no tocante aos im
postes, nota-se desconfianga recíproca como se o Govérno e o
súdito se sentissem Iesados um pelo outro nesse setor. Daí a
tendencia, de ambos a «defender-se» : de um lado, os cidadáos
sonegam os impostes, porque julgam que as autoridades os
exageram e nao os apHcam aos fins devidos ; de outro lado, o
Estado tende a elevar os impostes, a fim de conseguir arreca
dar ao menos urna quantia razoável para satisfazer as des
pesas do orgamento público ; e, quanto mais urna das partes
procura «defender-se», tanto mais a outra se esmera na agres-
sáo. Disso só resulta grave detrimento para o bem comum.
Pergunta-se entáo: Donde parte o mal ? Qual é o primei-
ro a subtrair-se ao dever : o Estado, que esbanja os bens públi
cos, ou os cidadáos, que se recusam a colaborar como deveriam?
Difícil é dizer onde e como comega o processo erróneo. O
fatp é que estamos diante de um círculo vicioso, em que há
graves falhas de parte a parte. Por isto, a fim de remediar efi
cazmente á situagáo de mal-estar, torna-seimprescindível re
correr á consciéncia e aos seus ditames espontáneos. Moralistas
e sociólogos bem orientados (como Scaipteur, De Marco) fa-
lam da necessidade de reeducar tanto o Estado como os cida
dáos, avivando em todos a consciéncia da responsabilidade so
cial e do dever de colaborarem em confianza e benevolencia
mutuas.

1 _ 159 _
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 64/1963, qu. 3

Inegávelmente, podem-se apontar íalhas nos sistemas de cobranca


e aplicacáo dos impostes de cada país : «Multas vézes, imposic5es pesa
das oprimem a iniciativa particular, freiam o deserivolvimento da indus
tria e do comercio, desalentam as boas vontades» (Pió XII, discurso
citado em Apéndice a éste artigo).
Com efeito, nem todas as leis tributarias sao justas, nem o emprégo
do dinheiro arrecadado é sempre honesto. Está claro que ás autoridades
compete o dever imperioso de remediar a tais deficiencias.
É de crer, porém, que as reformas «ñas cúpulas» ou nos governos
seráo sempre tardías e lentas, porque o Govérno é geralmente tido como
algo de mais ou menos impessoal, com quem ninguém se julga 100%
identificado. — Dai a urgencia de reforma que toca a cada cidadáo em
particular; é da renovacao moral de cada um que depende a renovagáo
do Govérno, das leis e da vida pública. Sem se deter na consideragáo vá
das falhas álheias, procure cada qual avivar em si a consciencia de sua
responsabilidade pessoal.
Nao há dúvida, difícil ou utópico é encontrar alguma lei civil que
satisfaca a todas as exigencias da justiga individual e social; nada do
que é humano, é perfeito. Isto, porém, nao deve ser fácilmente evocado
pelos cidadaos como pretexto para sonegarem impostos; procurem,
mesmo ñas condicóes concretas em que os povos vivem hoje em dia,
colaborar o bem comum; evitarSo, sim, de um lado, dar alimento á in-
j ustica e á exploracáo, mas, de outro lado, esforc.ar-se-áo por nao pro
vocar o mal-estar que a sonegacáo de impostos pode causar (a desor-
dem assim oriunda ás vézes é maior do que aquela a que se quer dar
remedio mediante a sonegacao).

2. O fato de que nem todos os impostos sao justos ou


sao aplicados aos devidos fins, dá fundamento para que muitos
moralistas julguem nao estar obrigado a devolver ao Estado
o cidadáo que Ihe tenha sonegado impostos.
Qúanto a restituieáo, caso deva ser feita, pode ser empreen-
dida de diversos modos: ou o cidadáo paga diretamente ao
Estado ou entrega aos pobres e a obras de utilidade pública a
respectiva quantia.

3. É mais grave a sonegagáo de impostos diretos (isto é,


impostos sobre a renda e os bens imóveis) do que a de impos
tos indiretos (isto é, impostos anexos a transagóes, vendas, Con
tratos, álfandega, correios, etc.). Isto, porém, nao quer dizer
que ao cristáo seja licito subtrair-se a estes últimos, cedendo
ao laxismo ou ao libertinismo.

4. Quanto aos cobradores de impostos e fiscais do Go


vérno, incumbe-lhes grave dever de honestidade no desempe-
nho de suas fungóes. Existe entre éles e o Govérno um implí
cito contrato de fidelidade no exercício de sua tarefa; a infi-
delidade, por conseguinte, vem a ser lesáo de contrato, no
caso. Compreende-se, pois, que nao lhes é lícita a aceitagáo de
subórno ou porcentagem em «negociatas» e fraudes. Aceitar

— 160 — •
O DEVEB DE PAGAR IMPOSTOS

tais «beneficios» equivale nao sómente a um ato momentáneo


de desonestidade, mas também a criar um clima de deprevacáo
e ganancia cada vez mais venenoso para a ordem pública. Es-
táo, pois,obrigados a devolver ao Estado (caso se trate de
imposto justo) a quantta que éles tenham concorrido para so-
negar ao Govérno.
Os contribuintes que subornam ou compram os cobradores *
e fiscais, kicorrem em falta moral. Caso tenham motivo justo
para nao pagar impostes ou taxas, facam-no por outra via
que nao a do subórno.

5. Os contrabandistas e os seus respectivos clientes co-


metem falta grave, caso se entreguem de maneira habitual ao
comercio de contrabando. Tal prática nao sómente viola a leí
civil, mas também lesa os direitos do próximo, ou seja, de
comerciantes que honestamente desejam viver do seu trabalho
sem ser prejudicados pela desonesta concorréncia dos contra
bandistas.

6. Aos moralistas, colocados diante de questóes de im-


postos, convém procurar aproximar os ánimos e sugerir fór
mulas que conciliem os justos interésses do Estado e do con-
tribuinte. É relativamente fácil pleitear unilateralmente a
causa dos cidadáos ou a do Govérno; mais difícil é levar em
conta os justos direitos de ambas as partes. Contudo esta deve
ser precisamente a tarefa do arauto da consciéncia crista.

Apéndice

Para ilustrar os principios propostos, seguem-se dois do


cumentos de importancia capital, provenientes das autoridades
eclesiásticas.
a) Trechos da alocucáo de Pió XII aos membros do X
Congresso da Associacáo Fiscal Internacional realizado em
Roma (palavras datadas de 2 de outubro de 1956) :

«Nenhuma dúvida subsiste sobre o dever que a cada cidadáo in


cumbe de sustentar parte das despesas públicas. Contudo o Estado, por
seu lado, como encarregado de proteger e de promover o bem comum
dos cidadáos, tem a obrigacáo de nao repartir entre estes senáo as atri-
buiqóes necessárias e proporcionadas aos seus recursos. O imposto nunca
pode, pois, tornar-se para os poderes públicos um meio cómodo de cobrir
o déficit provocado por urna administracao imprevidente, meio de favo
recer urna industria ou um ramo de comercio a custa de outro igual
mente útil. O Estado vedará, a si mesmo todo esbanjamento dos dinhei-
ros públicos; de antemao procurará evitar os abusos e as injustigas da
parte dos seus funcionarios, bem como a evasáo daqueles que sao leglti-
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 64/1963, qu. 3

mámente atingidos. Os Estados modernos tendem hoje em dia a multi


plicar as suas intervencSes e a assegurar um número crescente de servi-
cos; exercem controle mais estrito sdbre a economía; intervertí mais ná
protecao social de varias categorías de trabalhadores; por isto as suas
necessidades de dinheiro crescem na medida em que avultam as suas
administracdes. Muitas vézes imposigóes multo pesadas oprimem a ini
ciativa particular, freiam o desenvolvimento da industria e do comercio,
desalentam as boas vontades. Por isto, percorrendo a lista dos assuntos
tratados pelos vossos Congressos precedentes, vimos com prazer que
recomendáveis eliminar da legislacáo certas disposigSes nocivas aos ver-
dadeiros interésses dos particulares e das familias, como ao progresso
normal do comercio e dos negocios no plano nacional e internacional.
Insistieis em particular sdbre as vantagens de urna legislacáo mais uni-
íorme, que evite as duplas taxac5es e os estorvos á circulacáo interna
cional dos capitais e dos bens...
Em suma, pode-se dizer que as dimensSes considerávels dos Esta
dos atuais exigem cuidados para o reajustamento da legislacáo fiscal
aínda agravada, em mais de um ponto, por um empirismo discutiveL
Além disto, é capital que os principios moráis que justificam o imposto
aparecam claramente tanto aos governantes como aos governados e
sejam efetivamente aplicados. Promova-se com criterios sempíe mais
sensiveis e mais adequados a adaptacao do imposto ás possibilidades
reais de cada um. Entáo já nao será sentida a liscalidade como um ónus
sempre excessivo e mais ou menos arbitrario, mas representará, num
Estado mais bem organizado e mais apto a promover o funcionamiento
harmonioso das diferentes atividades da sociedade, um aspecto, humilde
talvez e multo material, mas indispensável, da solidariedade cívica e da
contribuicáo de cada um para o bem de todos. A sabedoria dos gover
nantes e a eficacia de urna administracáo devotada e Integra devem
demonstrar á. evidencia que ó sacrificio imposto corresponde a um ser-
vigo real e produz os seus frutos> (transcrito da «Revista Eclesiástica

b) Aos 7 de maio de 1959, Mons. Théas, bispo de Tarbes


e Lourdes (Franca), baixava a seguinte nota, que, embora vise
diretamente a situacáo francesa, contém principios válidos
para todo e qualquer cristáo :

«O Govérno estipula os impostos; está obrigado a fazé-lo levando


em conta exigencias da justica distributiva.
O contribuinte paga os impostos; está obrigado a fazé-lo para obe
decer a justica social.
O presente documento, necessariamente breve, voluntariamente In
completo, deixará de assinalar os deveres do legislador, seus erros e
suas falhas em assuntos fiscais. "
Desejamos apenas esclarecer a consciéncia dos contribuintes e, sem
pretender dizer tudo, lembrar ao menos o essencial niima questao bas
tante complexa e muito prática.

Como precedem os contribuintes ?

Há contribuintes muito honestos : de boa vontade e da maneira


conveniente tomam parte nos encargos do Estado. Seráo numerosos

— 162 —
O DEVER DE PAGAR EMPOSTOS

ésses cidadáos conscienciosos, solícitos dos seus deveres cívicos e dese-


josos de assegurar o bem comum da nacáo ? Quem o ousaria afirmar ? '
A mentalidade de muitos, principalmente dentre os mais afortuna
dos, é a seguinte: subtrair-se o mais possivel aos impostos é sinal de- ;
inteligencia e habilidade; é excelente meio de bem administrar os negó1.-'y:
cios. A fraude ñas dedaracSes feitas ao fisco é nao sámente permitida,*1';
mas louvável. O pagamento de impostos escapa ao dominio da cons-
ciéncia. As leis tributarias sao meramente penáis; resumem-se nesta
regra: 'O desvio nao apreendido nao é passivel de pena (Pas vu, pas
pris!)'.
Essa falta de ética tributaria é sustentada por adeptos numerosos.
Em obra recente, o autor Camilo Scaipteur citava tais palavras de um
escritor inglés: 'Agrada-me o cidadáo que rouba o fisco; é ladráo ho
nesto, pois só rouba ao Estado, que é urna abstracao' (Le Devoir fiscal,
Desclée de Brouwer).
É grave o fato de que muitos cristaos julgam ser legitima, sem res
tricto alguma, a fraudulencia no pagamento de impostos. Querem a
prosperidade da nacáo; desejam a grandeza da patria, mas trabalham
pelo depauperamento da mesma. Talvez após haver rezado pela Franca
imaginem ter o direito de recusar as contribuicóes qbrigatórias.
Péguy escrevia: 'Orar pela Vitoria e recusar-se a combater, é con
trario á. ética honesta'.
Poderiamos dizer: 'Orar pela Franca e subtrair-se ilegítimamente
aos impostos, é contrario á ética honesta', é algo de culposo.

Que diz a Igreja ?

. Ela sempre falou através dos seus moralistas; verdade é que estes
nem sempre estiveram de acordó entre si.
Mas há apenas alguns anos o Papa tratou da questáo, de modo que
o seu ensinamento pos termo a certas controversias.
Aos 2 de outubro de 1956, Pió XII recebia os 600 participantes do
X Congresso da Associagáo Internacional de Direito Financeiro e Fiscal,
estudiosos provenientes de vinte e duas nacSes. Em sua alocucáo, lem-
brou os deveres do Estado e dos cidadáos em materia de impostos. Diri-
gindo-se aos cidadáos contribuintes, Sua Santidade formulou esta regra
fundamental, á qual daráo adesáo todos os moralistas, todos os casuis
tas e todos os fiéis católicos : 'Nao resta dúvida, Incumbe á cada cidadáo
o dever de sustentar parte das despesas públicas*.
Comentando essa importante declaracáo do Sumo Pontífice, o
Pe. Bigo, Diretor da 'Actlon Populalre', escreveu: 'Existe obrigacáo de
consciéncia, sob pena de pecado grave, de sustentar parte das despesas '
públicas' (Revue de l'Action Populaire, nov. 1958, pág. 1077).
Fica, portento, rejeitada a tese daqueles que ensinam ser as leis
tributarias leis meramente penáis, as quais só obrigam a quem é
apreendido em flagrante contraveneno.
Qual o fundamento do dever que assim se impSe aos cidadáos? Na i
citada alocucao, Pío XII nos diz que 'os impostos constituem um aspecto
humilde talvez, e multo material, mas indispensável, da solidariedade
cívica e da colaboracáo de cada qual para o bem comum de todos'.

— 163— •
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 64/1963, qu. 3

É, portanto, a justiga social que obliga a pagar impostos. Como diz


muito acertadamente o Pe. Bigo, 'o Estado tem o direito de reivindicar
para a coletividade, mediante impostos, certas bens que pertencem a
cidadáos particulares, e estes, em consciéncia, estüo obrigados a obede-
cer-lhe, caso a lei n&o seja manifestamente injusta' (Revue de l'Action
Populairc, nov. 1958, pág. 1078).

Na prática, que fazer ?

1. O pagamento de impostos é dever de consciéncia. Deus mesmo


mostrou que o quer, ao dizer : 'Dai a César o que é de César'. Sem tri
butos adequados, o Govérno nao pode cumprir a sua tarefa.

2. Deus é verdade e luz. Mesmo diante do Estado e do fisco, é pre


ciso tomemos uma atitude de veracidade, retidáo, lealdade, honestidade.

3. Satanaz é o pai da mentira. A mentira vem a ser a ruina de


tdda a vida social. Um homém honesto nao mente para quem quer que
seja, nem mesmo para o fisco. Ele nao engaña, nao comete fraude em
suas declaracóes. Mentira hábil, mentira bem sucedida íica sendo men
tira e, por conseguinte, pecado.
Se minha empresa dá lucro, nao tenho o direito, diante do Estado,
de a declarar deficitaria.

4. A obrigatoriedade de impostos admite, por vézes, excegSes. Eis


os casos mais freqüentes (nao sao, alias, os únicos) :

a) Quando o Govérno tem conhecimento da sonegacáo e a aprova


implícitamente, elevando, em conseqüéncia, as suas taxas, o contri
buinte honesto pode, na mesma proporcao, diminuir as suas declaracSes,
guiando-se pelo parecer de conselheiros competentes e conscienciosos.

b) Quando, no tocante a determinado imposto, a fraude é geral e


o Govérno nSo protesta contra ela, o contribuinte honesto pode acomo-
dar-se ao costume, o qual se torna práticamente legitimo. Caso nao se
acomode, o cidadáo se sujeita a pagar uma taxa que, sem dúvida, é rela
tivamente injusta.

5. Dever-se-ia empreender uma campanha de honestidade fiscal.


O Estado deve dar o exemplo repartindo equitativamente os impostos,
administrando sabiamente os direitos públicos e evitando tudo que favo-
reca a fraude. Entáo tomar-se-á mais fácil aos cidadáos 'caminhar na
verdade', repelindo fraude e mentira.

t Pierre-Marie
bispo de Tarbes e Lourdes».

(Documento publicado no «Bulletin Religieux du diocése de Tarbes


et Lourdes» aos 7 de maio de 1959, reproduzido em «Documentation
Catholique» LVI [1959] n" 1305, col. 757s).

— 164 —
t!. 'I"

LÍCITA A PROSTITUICAO ? •

CRISTAO REGENTE (Rio de Janeiro) :

4) «Pretende-se hoje em dia legalizar a prostitoicao, ja


qae parece ser urna praxe inevitável. Dizem que assim se evi-
tariam maiores males.
Que pensar a respeito ?»

Antes do mais, convém lembrar o que se entende por


«prostituigáo»: trata-se de relagóes sexuais entre pessoas nao
casadas, sendo que a mulher se entrega a troco de pagamento,
vendendo o seu próprio corpo, sem que haja nisso amor hu
mano própriamente dito.
Como referem os noticiarios, a praxe da prostituicáo se
alastra cada vez mais no mundo inteiro. Em conseqüéncia, há
quem a queira justificar e apregoe que nao se lhe deveriam
impor sangóes, mas, ao contrario, regülamentá-la e legalizá-Ia,
dando assim plenos direitos de existencia as chamadas «casas
de tolerancia».
Veremos abaixo o que pensa a consciéncia crista a res
peito, quais as causas e quais os remedios que se poderiam
assinalar para tal estado de coisas.

1. Será lícita ?

1. Em primeiro lugar, interessa saber quais os principáis


argumentos que atualmente se evocam para reconhecer e le
galizar a prostituicáo. Ei-los em resumo :

a) Trata-se de praxe táo antiga quanto o género huma


no. Inútil é procurar combaté-Ia. Regulamentando-a, as auto
ridades ao menos impediráo que piores males se exercam. Re-
primindo-a, fazem que as mulheres honestas sofram o perigo
de ser violentadas e que se multipliquem os atos de imorali-
dade mais degradantes.

b) Vender o corpo na prostituicáo nao é menos digno


do que vender o corpo e suas energías nos empregos penosos'
que a vida moderna oferece em troco de «salario mínimo».

A guisa de ilustracao, citamos aqui um tópico da imprensa carioca


de 19/XI/1962 :
«Toda a vida existiu prostituicáo — 'a mais antiga profissáo do
mundo' — e toda a vida existirá, enquanto persistirem os absurdos
tabus sexuais que regem o funcionamento de todas as sociedades.
Adianta prender prostitutas? Claro que nao, e todo o mundo alfabeti
zado sabe disso. Elas seráo sóltas e voltario a atividade...

— 165 —
' «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 64/1963, qu. 4

Até hoje, do ponto de vista social, o que Shaw disse s6bre a pros-
tituicáo em 'A Profissáo da Senhora Warren1, permanece imbatível:.
por que urna moca bonita e miserável há de vender o seu corpo num
trabalho infecto, ganhando salario-mínimo, se pode vendé-lo muito mais
caro — e até, em certos casos, com possibllidades de tornar-se capita
lista — num trabalho igualmente infecto?»■ («última Hora» de
19/XI/1962).

Na mais sobria das reivindicares, alguns autores reconhecem que


ao menos ñas pequeñas cidades se pode e deve combater a prostituicáo,
ao passo que nos grandes centros de populacho afirmam que sé torna
necessário e oportuno dar-lhe existencia legal e a devida organizado.

2. A tais opinióes, por mais válidas que paregam, a cons-


ciéncia crista nao hesita em opor sua repulsa peremptória. A
rejeigáo da prostituigáo nao depende de fatóres de historia,
cultura, economía,... mas baseia-se na própria natureza do
ato sexual humano. Éste nao é mera funcáo do corpo e da
materia, mas é funcáo de um composto psico-somático ; as
fungóes psíquicas ou da alma tém nesse ato um papel diretívo
imprescindivel. Ora as fungóes da.alma por excelencia sao o
conhecimento e o amor. Isto quer dizer que a vida sexual do
homem é feita para se exercer em estrita dependencia do
amor. Só o amor total de um jovem a urna jovem ou -de um
varáo a urna mulher justifica a uniáo dos corpos no plano se
xual. Essa doacáo de amor total é firmada por um contrato
que se chama «o casamento». É o.casamento que dá estabili-
dade ao lar, permitindo que se crie um ambiente definido onde
a prole — finalidade primaria da vida conjugal — poderá ser
devidamente educada. Destas consideragóes se segué que todo
tipo de uniáo sexual realizada fora do casamento, qualquer
que seja o seu título ou pretexto, é ilícito. Particularmente
grave é a prostituigáo, pois por esta os seres humanos chegam
a equiparar um ato que deveria exprimir seu amor e sua per-
sonalidade, a urna mercadoria sujeita as leis da oferta e da
procura. v
A prostituicáo, portante, equivale ao absoluto vilipendio
da personalidade ou da dignidade humana, merecendo assim o
repudio de toda consdéncia honesta.

3. A recusa resiste mesmo as duas razóes ácima refe


ridas, que visam reconhecer direitos á prostituicáo. Com efeito,

a) dizer que se trata de um mal inveterado na historia,


mal que nao podemos pretender extinguir, mas que é preciso
aceitar a fim de evitar maiores males, é dar provas de men-
talidade cética, cansada ou decrépita. O mal será sempre mal
e deverá ser sempre denunciado como tal, independentemente

— 166 —
LÍCITA A PROSTITUICAO ? ^

da opiniáo ou da praxe dos diversos grupos sociais. O cristáo,


ao apontar francamente o mal, tem confianca na grasa dé.
Deus, dente de que o Senhor nao abandona nenhum dos dis¿
cípülos que Lhé, queiram ser fiéis, nao coloca ninguém em sitúa-
gao tal que nao possa evitar o pecado. É, pois, com otimismo
e esperanga que o discípulo de Cristo se insurge contra a prós-
tituicáo, por mais alastrada que ela esteja no genero humano.
b) Doutro lado, asseverar que «tanto faz vender-se na
prostituigáo como vender-se num emprégo .miserável de salario
mínimo» é indicio de que nao se compreende o que é a criatura
humana. O trabalho constituí por si mesmo um valor, um eno-
brecimento da personalidade; o fato de ser ele, em alguns
casos, mal remunerado nao degrada o próprio trabalho; o
operario, pelo fato mesmo de ser operario, poderá conservar-se
sempre reto e digno (verdade é que o trabalhador mal remu
nerado fica sujeito a precarias condigóes de vida material, o
que fácilmente dá ensejo a tentagóes, desordens e v'cips Por
isto deve-se combater a insuficiencia de salarios. Esta, porém,
é um mal que nao torna mau o trabalho em si). Ao contrario,
a prostituido é por si mesma um mal, que em caso nenhum
pode ser reconhecido como bem ou como algo de lícito; viola
as leis da natureza humana como tal.

4. Há, porém, quem queira legitimar a prostituicSo recorrendo ao


texto bíblico de Oséias c. 1: o Senhor Deus mandou, sim, ao profeta
f^se unlr-se á prostituta Gomer; em conseqüéncia, esta concebeu tres
filhos... — Que dtzer ?
Evidentemente, como se depreende da leitura completa do.texto,
tratá-se de urna acao simbólica ou de um ensinamento dado a Israel sob
a forma de um quadro cénico; o Senhor o mandou executar precisa
mente a fim de mostrar ao pnvo de Israel o que é infidelidade para com
Deus ou o pecado : é algo de táo hediondo que deve ser comparado á he
diondez da prostitüicáo (a plebe de Israel pecadora era assemelhada a
prostituta). A admoestacáo, porém, se concluía com estes dizeres do
Senhor:
«Obstruirei os caminhos da prostituta, para que nao encontré mais
as suas veredas; irá ao encalco dos seus amantes, mas nao os atingirá;
procurá-los-á, mas nao os encontrará. EntSo dirá : 'Voltarei ao meu
primeiro marido, pois eu era mais feliz outrora do que hoje'» (Os l,8s).
Destarte se vé que o texto de Os 1 está longe de fornecer qualquer
justificativa para a prostitüicáo.

5. Além dos motivos doutrinários apresentados contra a


prostituigáo, devem-se lembrar as dolorosas conseqüéncias de-
correntes désse vicio:
a) no plano psicológico, apodera-se da mulher prostituta
um sentido profundo de frustragáo e desintegragáo. De fato,

— 167 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 64/1963, qu. 4

realizar a vida sexual sem amor ou afeto significa mero des


gaste, depauperamento nao devidamente compensado (nao é o
dinheiro que pode satisfazer as exigencias mais profundas da
alma). Quando a criatura humana se limita a viver únicamente
segundo as leis da materia, nao pode deixar de se sentir in
quieta e sequiosa;
b) no plano higiénico, doengas varias sao contraídas pela
prática da prostituigáo — o que bem se entende, dados os
abusos do corpo sobre os quais se baseia ésse vicio;
c) no plano social, a prostituigáo degrada a mulher, re-
duzindo-a nao raro a condigáo de escrava, pois ela se vende,
deixando-se agenciar pelas leis do dinheiro, de tal modo que já
se tem falado do «tráfico das mulheres brancas» ;
d) no plano económico, a prostituigáo nao deixa de ser
causa de miseria material, pois, além de constituir precario
ganha-páo para a mulher, é, para os homens, motivo de des
pesas desregradas: em vez de empregar o seu dinheiro recor-
rendo a remedios e tratamentos médicos ou dando-se a diver-
timentos, esportes e recreios sadios, o varáo, pela procura das
«casas de tolerancia», se entrega a gastos apaixonados — o
que nao pode deixar de redundar em miseria material.

Tais sao os elementos que levam a condenar a prostitui


cáo. Indagamos agora quais as respectivas

% Causas...

Os autores costumam apontar os seguintes fatores de pros-


tituigáo :

1) Causas económico-sociais.

Tem-se verificado que a prostituigáo se alastra quando as


populagóes crescem mais rápidamente do que as oportunida
des de emprégo ou de ganha-páo. Sabe-se outrossim que é das
classes pobres que procede o maior contingente de prostitutas
e que se entregam ao vicio mais fácilmente as operarías nao
qualificadas do que as qualificadas.

Observa-se igualmente que a prostituicáo é estimulada pelos gran


des desequilibrios sociais, como sao
as guerras, com as suas bruscas transformacoes económicas (infla-
cáo, penuria de víveres e habitacóes... 1 e sociais (destacamento de
populacSes),
as rápidas mudangas das estruturas e dos valores tradicionais
(como elas se deram no Japáo, por exemplo, após a guerra de 1939451.

— 168 —
LICITA A PROSTITU1CAO ?

Grande número de prostitutas provém de familias destrocadas pelos


flagelos públicos; provém principalmente dos lares onde faltou o pai
e onde a instrucáo se tornou muito precaria ou mesmo nula.
Muitas donzelas que deixam o seu torráo e a vida rural para ir ao
encalco de emprégo ñas grandes cidades, se véem vitimas da miseria
e, na impossibilidade de sobreviver honestamente, passam a ganhar o
pao pela prática do vicio. Da mesma forma, numerosos jovens do
campo, passando a viver ñas cidades, fácilmente se deixam arrastar
pelo caminho da devassidáo.

2) Causas psicológicas.

Inegávelmente, em bom número de casos trata-se de mu-


Hieres oligofrénicas. As neuroses e o alcoolismo também de-
sempenham papel importante no desencadeamento do vicio.

Além das causas imediatas assim indicadas, deve-se men


cionar um motivo ainda mais profundo, que exerce sua influen
cia em quase todos os casos desastrosos: é a diluigáo da cons-
ciéncia moral em nossos tempos, a desenfreada procura do
gozo, a mentalidade «existencialista», leviana, de um mundo
que perdeu o senso religioso.
Faz-se mister entáo procurar :

3. Quais os remedios oportunos ?

Qualquer tentativa de regulamentar oficialmente a prostí-


tuigáo, está longe de diminuir ou frear os males decorrentes
desta prática; ao contrario, só contrjbui para agravar as si-
tuaffóes.
Em conseqüéncia, a IV Assembléia Geral das Nacóes Uni
das afirmou a necessidade de se abolir em todas as nagóes
qualquer medida administrativa que tenda a legalizar a prosti-
tuigáo ou facilitar a vida das mulheres que se entregam ao
vicio.
Já a Franca, por lei de 13 de abril de 1946, aboliu oficial
mente a prostituigáo. A Italia o fez em 1958 por decreto do
Parlamento, em que tomou partes muito ativas a senadora
Lina Merlin, porta-voz dos direitos e da dignidade da mulher.
Até mesmo o govérno comunista de Changai (China), adotan
do medidas enérgicas e desenvolvendo intensa campanha, re-
solveu extinguir a prostituicáo naquela cidade portuaria, que
era o primeiro teatro de tal vicio no mundo inteiro; hoje em
dia o número- de prostitutas em Changai é extremamente re-
duzido.
Deve-se acrescentar que a prostituicáo está oficialmente
abolida em varios países dos cinco continentes mundiais.

— 169 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS* 64/1963, qu. 4

A fim de opor dique eficaz ao mal, os pensadores apré-


goam as seguintes medidas :
a) procurem os governantes e os cidadáos de responsa-
bilidade elevar o nivel de vida das classes mais pobres, princi
palmente dos que, vivendo nos campos, experimentan! penuria
e se deixam seduzir pelas «vantagens» da vida ñas cidades.
Faz-se mister, em particular, prover a habitagóes dignas de
urna vida familiar a fim de que a familia permanega unida,
sem se desintegrar;
b) dé-se eficaz assisténcia & infancia desamparada a fim
de que os pequeninos nao sejam expostos a aprender e desde
cedo praticar a vida viciada ;
c) levante-se o nivel cultural do povo em geral, mediante
luta contra o analfabetismo, fundagáo de escolas, filmes edu
cativos, etc.;
d) procure-se proporcionar aos trabalhadores centros re
creativos e esportivos adequados, a fim de que, após o trabalho,
possam gozar de restauragáo fisica e psíquica moralmente sadia,
desviando-se assim dos focos de perversáo ;
e) dé-se aten^áo ao problema do alcoolismo... Preconi-
zam-se restrigóes ao comercio de bebidas embriagantes, o fe-
chamento de tabernas e cantinas após certa hora da noite e
em determinados dias do ano...;
f) nos casos mais agudos, a fim de recuperar as prosti
tutas ou as jovens propensas á prostituigáo, faz-se mister solici
tar a coopera áo de pessbas especializadas em psiquiatría, psi
cología, medicina, pedagogía,... se possível, em casas devida-
mente instaladas para ésse fim. As Religiosas do Bom Pastor
se tém tornado beneméritas nessa tática.
Contudo nenhuma de tais medidas, será realmente eficaz,
se nao se promover ao mesmo tempo o despertar da conscién-
cia moral que deve inspirar e sustentar o comportamento
humano. Qualquer lei ou disposigáo administrativa será algo de
artificial e estéril, se dentro dos cidadáos nao se suscitar a
aspiragáo a urna vida menos devassada, se nao se excitarem
o zólo do bem, o amor a honra e á Yfrtude De modo especial,
será preciso fazer que a mulher conceba seriamente a cons-
ciéncia da sua nobreza e da sua grandiosa missáo de esposa
e máe. Sem esta renovagáo interior, as leis, por si apenas, de
pouco ou nada serviráo. Ora tal renovagáo de consciéncia só
pode ser obtida pela Religiáo; seria utopia querer levantar
a moralidade, fazendo-se abstra;áo de Deus («moral leiga» ou
neutra é impossível).

— 170 —
LÍCITA A PROSTITUICAO ?

Dai se vé o papel importante que toca aos genuinos cristáos pe-


rante o problema da prostituicáo. Cabe-lhes levar o Cristo a tantas
almas que so se entregam ao vicio, porque nunca tiveram conheci-
mentó exato da mensagem do Senhor. Sao vitimas que muitas vézes
se sentem mal na sua vida debochada, mas nao sabem absolutamente
o que fazer para se libertar dos grilhSes da sua escravidáo. Multipli-
que-se o número dos apostólos que se dedicam á recuperadlo das pros:
titutas.

4. Unía entrevista

A guisa de ilustrado, segue-se aqui o teor de urna reportagem


efetuada por jornalista colombiano em um centro de prostituicáo de
Bogotá (as declaragdes abaixo corroboraráo quanto acaba de ser dito
em linguagem mais teórica) :

«Conseguí entrar em urna 'casa' de certa rúa do bairro 'délas', após


muitas recusas da parte das respectivas moradoras. Eu as queria entre
vistar; elas, porém, nao o aceitavam.
'Venho propor-te algumas perguntas. Nao publicarei nem teu nome
nem a rúa. Apenas desejo fazer algo para que a sociedade vos com-
preenda'.
Urna délas respondeu: — 'Isso nao me interess'a. Estou trabalhando'.
Outra: 'Pertences ao Servico de Saúde Pública, nao é verdade?'
Urna terceira: 'Essa solicitagao nao me agrada. Trata-se de um
'negocio' como outro qualquer; negocio, porém, que nao nos convém'.
Por fim, ouviu-se alguém dizer: 'Abre-lhe a porta, Dóris'.
Entrei.
Carmenza era urna jovem de vinte e sete anos de idade aproxima
damente, tez morena, rosto serio, perpassado por certa docura, olhar
entristecido... Logo que me aprésente! e lhe maniiestei meu interésse,
ela aquiesceu com surpreendente trariqüilidade, como se pudera ler em
meu coracao a verdadeira e sincera intencao de quem escreve estas
linhas. Tal atitude, á primeira vista, signiíicava, para mim, que se tra-
tava de urna mulher de fundo bom, ... de urna boa pessoa imersa pelos
golpes da vida dentro dessa monstruosidade que é o 'negocio' do 'amor
vendido'. Sentamo-nos na saleta de visitas daquela pobre casa, pobre
também por sua falta de limpeza e pintura, e formulei a primeira das
muitas perguntas que havia de lhe dirigir :
— 'Queres deixar ésse género de vida?
— Sim; sem demora. Eu o tenho pedido a Deus, mas nao me tem
ouvido.'
Assim falou tranquilamente, creio que sem o minimo sentimento
de desrespeito para com o Criador. Lancei-lhe um olhar detido, e ela
continuou:
— 'Há dez anos, quando eu tinha apenas dezessete anos, casei-me.
Depois de certo periodo, outra mulher se intrometeu na v¡da de meu
marido, file entao me abandonou, sem se interessar, na mínima parcela
que fdsse, pelas minhas condlcSes financelras e pelas dos dois filhos
que tlnhamos, os quais hoje já atingem os oito e dez anos de idade.
Quando nasceu o segundo, separamo-nos definitivamente. Fui morar'
com minha familia'.
Estava assim esbocado o drama futuro. Pois quase todas as mulhe-
res tém seu drama. Voltemos, porém, & nossa entrevista.

_. 171 _
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 64/1963. qu. 4

— 'Naquelas circunstancias novas, como comecaste o teu atual gé


nero de vida?
— Urna amiga me disse que aqui se ganhava muito dinheiro. Eu
precisava disto para meus filhos. Nunca Uvera relacSes com outro
homem que nao meu marido mesmo. Eu nutria um conceito muito ele
vado do lar e do matrimonio. Mas... Vocé já compreende... Já há
bastante tempo que vivo aqui'.
Continué! a indagar: 'Quantas mulheres 'trabalham' aqui?'
— Além de mim, há outras quatro.
— Dás-te bem com elas?
— Bem. Mas nem sempre aprovo a sua conduta. Dizem palavras
desonestas e vulgares. Eu nao fago o mal a ninguém. Vocé já vé o que
sou; foi a vida que me trouxe até aqui. Ouvi dizer que em breve se
multiplicaráo as empresas ñas quais as mulheres poderáo trabalhar.
Se eu conseguisse emprégo, sairia daqui ¡mediatamente. Esta situacáo -
nao me agrada'.
Perguntei-lhe de novo: — 'Ganhas muito dinheiro? '
— N3o. O 'comercio' nao vai muito bem.
— Carmenza, que estudos íizeste?
— Cursei até o quarto ano da escola primaria.
— Gostas de ler?
— Outrora gostava um pouco. Costumava ler os jomáis e o Novo
Testamento'.
Indiretamente esbogava-se assim o problema religioso. Por lsto per
guntei-lhe :
—'Já praticaste a religiáo ?
— Fiz a Primeira Comunháo. Antes de me casar, confessava-me
com freqüéncia. Quase nao tinha pecados.
— Voltarias a confessar-te?
— Agora tenho muitos pecados.
—É assim que pensas?
— Na verdade, tenho um só pecado grave, muito grave: o de ter
entrado aqui. Contudo eu o fiz em vista de meus filhos. Quando eu sair
daqui, acabar-se-áo os meus pecados'.
Prometí mandar-lhe alguns livros religiosos, promessa que cumpri
pessoalmente poucos dias depois da entrevista.
-Antes de deixar aquela casa em que tinhamos falado de Deus, vi
aparecer um semblante de crianca. Indagava a respeito de alguém.
Carmenza respondeu-lhe, e o menino se íoi. Comente! entáo sob forma
de pergunta : — 'Ésse menino estarla a par do que se íaz aqui? — Sim,
como nao haveria de saber tudo? É filho da mulher...'
Éste tópico nao precisa de comentario.
Antes de ir embora, dei-lhe (a Caímenza) um brinquedinho que eu
trazia comigo e que ela.aceitou como lembranca. Nos nos entreolhamos
detidamente. Éramos, e somos, dois filhos de Deus que tém percorrido
e ainda percorrem caminhos diversos. A respeito déla, diráo todos que
é pecadora. Quanto a mim; sou um pai de familia, de familia de classe
media. Contudo naquele momento alguma coisa nos aproximava, muita
coisa nos aproximava um do outro. Nao em váo nossas almas, todas as
almas, foram criadas pelo mesmo Ser Supremo e dotadas da mesma
finalidade : conhecer, amar e servir a Deus».

(Traduzido do periódico colombiano <E1 Voto Nacional», maio de


1962 n' 779, pág. 22s>.

— 172 —
ORDENACAO SACERDOTAL DE FILHOS ILEGÍTIMOS

IV; DBREITO CANÓNICO

JOVEM IDEALISTA (Minas) :

.5) «Porque nao pode um filho ilegítimo ser ordenado


sacerdote ?
• Nao é injusto fazer que os filhos paguem o pecado dos
genitores ?»

A legislagáo da Igreja considera a ilegitimidade de nasci-


mento como obstáculo ao sacerdocio, nao, porém, obstáculo
insuperável e decisivo.
Vejamos, pois, o que consta a propósito, e o que se pode
fazer em tais casos para auxiliar as almas de ideal.

1. A legislagáo vigente

1. Segundo o canon 984 n» 1, os filhos ilegítimos ou na-


turais sao «irregulares (isto é, inabilitados para as ordens sa
cras) por defeito» (ex defectu), quer se trate de ilegitimidade
pública, quer de ilegitimidade meramente oculta. Contudo, se
os genitores vém a legitimar a sua uniáo mediante a recepgáo
válida do sacramento do matrimonio, apaga-se a nódoa de irre-
gularidade dos filhos. A nódoa cancela-se também se ésses jo-
vens sao admitidos a fazer profissáo solene em urna Ordem
Religiosa (beneditina, dominicana, franciscana...).
Por sua vez, o canon 1363 n' 1 manda que só se aceitem
nos Seminarios filhos legítimos. Contudo, a propósito déste
canon em particular, a Pontificia Comissáo «orneada para a
Interpretacáo do Código de Direito Canónico publicou urna de
claracáo auténtica aos 13 de julho de 1930, asseverando que
háo de ser considerados como legítimos, com todos os beneficios
daí decorrentes, os filhos legitimados por casamento posterior
dos genitores (cf. «Acta Apostolicae Sedis» 22 [1930] 365).

Nao se pode, porém, deixar de mencionar ou'tra declaracáo, publi


cada aos 6 de dezembro de 1930, a qual fazia duas excecoes á declara-
Cao anterior, estipulando o seguinte: os filhos nascidos de genitores
que se uniram com impedimento de idade (menos de dezesseis anos
para o jovem, e menos de quatorze para a donzela) ou de disparidade
de culto (um dos cónjuges nao é batizado, o outro foi batizado na
Igreja Católica) nao sao legitimados pelo casamento subseqüente dos
genitores, ainda que o respectivo impedimento tivesse cessado quando
os genitores vieram a se casar.

2. A Sagrada Congregacáo do Concilio, aos 13 de agosto


de 1936, apresentou as razóes pelas quais sao excluidos dos

— 173 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 64/1963, qu. 5

Seminarios os filhos ilegítimos (cf. «Enchiridion Clericorum»


n< 285).Ei-las:

«a) Antes do mais, leve-se em conta a dignidade e excelencia do


sacramento da Ordem...

b) É preciso manifestar repudio a indigna conduta do genitor...


o qual désse modo se verá punido.

c) Teme-se que a incontinencia dos pais se reproduza na prole,


pois os filhos costumam ser imitadores dos parentes.

d) Faz-se mister evitar o escándalo que se poderia originar entre


os companheiros de um filho ilegitimo promovido ás Ordens sacras.

e) Muito se receia que a incontinencia paterna se prolongue na


prole ilegitima, pois as taras do genitor costumam transmitir-se aos
respectivos filhos».

Diante de tais determinagSes, pergunta-se :

2. Como proceder na prática ?

1. Das cinco razóes apresentadas, julgam os autores que


conservará sempre importancia decisiva a terceira, ou seja, o
fator psicológico-moral. Os demais argumentos poderáo ceder
com facilidade (o quinto argumento, por exemplo; baseando-se
na hereditariedade, perdeu muito do seu significado á luz da
biología e da genética contemporáneas).
O fator psicológico pode, sem dúvida, influir no comporta-
mentó dos filhos naturais e excitá-los a desvíos moráis.

Considere-se, por exemplo, a situacáo da imae solteira» : é multas


vézes assaltada pela angustia (a consciéncia a repreende, provocando
confuto interior; a vergonha da desonra deprime-a; acabrunham-na as
múltiplas complicagóes que lhe sobrevém no setor familiar e so
cial, etc.). Nessa angustia, a infeliz genitora é freqüentemente levada ao
desespero e a a?5es desatinadas; dai se origina um ambiente psicoló
gico e moral bem diferente daquele de que a crianga precisa para se
desenvolver regularmente.
Examinando os registros de batizados, os estudiosos averiguaram
que em geral os filhos ilegítimos nascem de genitores que, por sua vez,
sao filhos naturais ou filhos oriundos de relacSes ilegitimas. Isto me
rece atencao, mas nao causa surprésa desde que se leve em conta que
os filhos ilegítimos sao freqüentemente levianos e superficiais nos
assuntos referentes á castidade; está muito apagado néles, ou ás vézes
íalta-lHes por completo, o horror do pecado de impureza, de modo que
as normas de cautela e de luta contra as tentacSes de impureza pouco
ou nenhum efeito surtem entre éles.

Em tais jovens o fator psicológico exerce, sem dúvida, forte


influencia: tendem a imitar a conduta pecaminosa dos genito-

— 174 —
ORDENACAO SACERDOTAL DE FILHOS ILEGÍTIMOS

res. Quando atingem a idade da razáo e, morhiente, quando


chegam á adolescencia, comegaíido a experimentar o despertar
dos sentidos e da carne, sofrem veementemente a acáo do com-
portamento de seus pais; ésses jovens concebem urna menta-
lidade de tolerancia e indiferenga para com os pecados de im
pureza, inclinando-se fácilmente a concessóes libertinas e rao-
ralmente ilícitas. Ora tais concessóes constituem seria ameaca
e grave perigo para a castidade total e perpetua a que se
obriga o candidato ao sacerdocio.

2. Sabedor dessas circunstancias, que atitude tomará o


educador competente dianté de filhos ilegítimos que desejem
um dia receber as ordens sacras ?

— a) Estude atentamente cada caso de per si para poder


avaliar se realmente (e até que panto) tais jovens sofreram
a influencia dos elementos nocivos que acabam de ser apon-
tados.

b) Se, de um lado, o rapaz apresenta sinais de auténtica


vocagáo sacerdotal (piedade, zélo para com as coisas de Deus,
virtude, saúde física, etc.) e, de outro lado, o perigo da in
continencia parece excluido para o futuro, o Superior eclesiás
tico pode admitir tal candidato no Seminario; tratará entáo
/ de pedir á Santa Sé dispensa da respectiva irregularidade, dis
pensa que por certo nao será negada.

1 c) Caso, após criteriosa observagáo, aínda subsistam mo


tivos para duvidar seriamente da futura continencia do candi
dato, o Superior procurará dissuadi-lo de se tornar, nessas
• condigóes, sacerdote diocesano ou de entrar em um Instituto
religioso dedicado á vida ativa; o ministerio sacerdotal e o
[i apostolado lhe imporiam freqüentes e perigosos contatos com
o mundo. Dir-lhe-á que ao menos aguarde um pouco, fazeñdo
no mundo urna tentativa de viver casta e piedosamente durante
período de témpo razoável.' Dado que esta experiencia reco-
w. mende o candidato, já se poderá pensar em recébenlo no Semi
nario, pedindo-se á Santa Sé a devida dispensa.

d) Nao se faráo tantas exigencias a um filho ilegítimo


que deseje professar em Ordem Religiosa contemplativa de
clausura papal; o género de vida ai abracado expóe menos o
candidato aos perigos do pecado. Admitido na Ordem, o can
didato poderá ai receber q sacerdocio,, desde que obtenha a
licenga da Santa Sé, se esta fór necessáila no caso (também

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«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 64/1963, qu. 5

os Estatutos particulares de certas Ordens proibem a aceitagáo


de filhos ilegítimos^.

Estas normas parecem sabias : de um lado, atendem á


necessidade dfe' nao se éxpor á desonra o estado sacerdotal; de
outro lado, evitam as injustigas que se poderiam cometer para
com jovens que realmente nao tém culpa dos desvios cometidos
pelos genitores. >

D. Esteváo Bettcncourt O.S.B.

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