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Daí que, analisando os métodos de defesa da Igreja e da doutrina por ela proposta,
salta aos olhos a consideração que se deve fazer do estabelecimento de pressupostos
aceitos por ambos os lados envolvidos no debate. A inteligência nos mostra isso, e a
experiência o confirma.
Assim, ao tratarmos com um espírita, temos de ter em mente que, ao lado das
inumeráveis facetas dogmáticas implicadas na aceitação do ensino kardecista e que se
mostram totalmente diversas do ensinado por Cristo e Sua Santa Igreja Católica, tem-
se uma crença comum em um Deus único. Presente está o pressuposto basilar, que
não precisa ser explicado, e dele partimos aos outros assuntos: da possibilidade de
Deus revelar-se, da historicidade de tal revelação, do conteúdo e das etapas da
mesma, da vinda e da natureza de Jesus Cristo, de Sua obra redentora na Cruz, do
evento e das provas de Sua Ressurreição, da constituição de Sua Igreja, da
continuidade de sua missão no tempo etc.
Da mesma maneira, debatendo com um agnóstico, figura tão comum nos dias
hodiernos, é necessária a explicitação da existência de Divindade, da possibilidade de
Seu conhecimento pela intelecção, de Sua transcendência (negando a modernista
imanência divina), e da conciliação entre fé e razão. Somente depois de demonstrado
isso e conseguido algum progresso, passaremos a outros assuntos, numa crescente e
lógica apresentação das matérias.
O presente artigo quer ser uma pequena contribuição para os que desejam iniciar-se
no diálogo com protestantes. Pretende também lançar dados básicos para aqueles que
querem entender melhor a posição católica frente às dúvidas lançadas por um número
cada vez maior de seitas ditas “evangélicas” que se multiplicam em cada esquina.
Estabelecendo um pressuposto comum com os cristãos das várias organizações
surgidas da Reforma, teremos mais êxito em nossos debates. Qual é esse
fundamento? – tal indagação tentará ser respondida no decorrer do ensaio. Por outro
lado, formando católicos mais convictos, “sempre prontos a responder para vossa
defesa a todo aquele que vos pedir a razão de vossa esperança” (I Pe 3,15), a semente
do erro não florescerá e a cizânia plantada pelo inimigo poderá, desde logo ser
descoberta.
Podem perguntar alguns protestantes, e mesmo católicos sem uma sólida cultura
religiosa, se algumas noções de hermenêutica bíblica e a aplicação de certas regras
para a interpretação das passagens da Escritura não dariam a autoridade necessária ao
fiel para as interprete. Tal artimanha se desfaz logo, bastando a pergunta: quem
estabelece tais regras? Existiriam tantas maneiras de se construir chaves exegéticas
quantas proposições teológicas conflitantes forem cridas como verdadeiras. Assim,
também o calvinista afirma, ao lado da clássica sustentação de “iluminação do Espírito
Santo”, que suas teses têm “embasamento teológico” e que “seguem as regras para a
interpretação bíblica.” De outra sorte, o batista, negando muito do credo de Calvino, e
para ensinar teorias totalmente opostas, apelaria para os mesmas argumentos,
supondo-se apenas que as referidas “regras hermenêuticas” seriam outras. Cada qual
interpretaria conforme se tornasse a exegese mais coerente com o sistema teológico
adotado, e estaria abolida a segurança, persistindo o problema. “Antes de tudo, sabei
que nenhuma profecia da Escritura é de interpretação pessoal.” (II Pe 1,20)
Todo o erro acima aludido decorre de uma sentença do pensamento luterano, ainda
que já adotada pelos precursores da Reforma Protestante. É a sustentação de que toda
doutrina, para ser considerada verdadeira, deva estar contida nas páginas da Bíblia.
Afirmação aparentemente piedosa, carrega em si todo o rancor contra a Igreja, e
prepara os espíritos mais fracos para a inoculação do veneno protestante, traduzido na
revolta contra tudo o que não satisfizer os anseios puramente humanos reclamados
pela consciência escrupulosa dos reformadores. Nesse sentido, apelando para essa
frase – “toda doutrina verdadeira deve estar na Bíblia” –, tentam envolver os católicos
em uma rede, da qual os incautos podem vir a não mais sair. Em face da gravidade da
questão, torna-se imperativo mostrar a inconsistência lógica da assertiva, que passa
despercebida até mesmo pelos protestantes que aderem à heresia de boa-fé.
Se a sentença de que toda a verdade está na Bíblia é correta, ela mesma deve estar
nas páginas de algum livro da Sagrada Escritura. É uma conseqüência obrigatória para
quem a profere. Logo, aos que ensinam “toda doutrina verdadeira deve estar na
Bíblia”, cabe indagar onde, na Escritura, está contida tal afirmação. Sim, pois a frase
em si é uma doutrina, e, se é verdadeira, como propugam seus fautores, deve estar na
Bíblia, sob pena de considerá-la uma contradição. Alguns responderão, citando o
Apóstolo: “Toda a Escritura é inspirada por Deus, e útil para ensinar, para repreender,
para corrigir e para formar na justiça.” (II Tm 3,16) Entretanto, se a passagem afirma
a inspiração divina da Bíblia – que não é negado pelos católicos! –, ela não sustenta,
por outro lado, que somente a Escritura possui tal inspiração. Assim, afirmar “Fulano é
inteligente” não importa em dizer que “Só Fulano é inteligente.” A aludida perícope
escriturística não prova o argumento protestante.
A autoridade da Bíblia não pode residir exclusivamente nela mesma, pois dessa
maneira não teríamos argumentos para rebater os islamitas ou os mórmons, que
admitem outros livros sagrados. A resposta protestante aos muçulmanos não os
convence da verdade bíblica e da falsidade corânica – se maometanos se convertem ao
cristianismo de matriz protestante, o fazem por outros motivos e com argumentos
diversos do apresentado pela “Sola Scriptura”. A “Sola Scriptura” produz versões
contraditórias entre as denominações protestantes.Não há unidade doutrinária.
Nós, católicos, também cremos na autoridade da Bíblia, mas não porque ela se nos
afirma dessa maneira. A razão de nossa fé na Escritura reside também fora dela, por
razões lógicas – cairíamos, já o dissemos, em petição de princípio, se sustentássemos
a mesma tese protestante de que a autoridade bíblica reside somente em suas
páginas. Cremos na Bíblia porque assim nos manda a Igreja. A origem da autoridade
da Bíblia está na Igreja, que tem sua autoridade em Cristo, Seu Fundador, que, por ser
Deus, é a fonte primária de toda legítima autoridade. Com Santo Agostinho, aliás tão
utilizado (e distorcido, claro!) pelos protestantes para defender seus impropérios
predestinacionistas, fazemos profissão de fé: “Eu não creria no Evangelho, se a isto
não me levasse a autoridade da Igreja católica.” (Contra epistulam Manichaei quam
vocant fundamenti, 5,6; PL 42,176)
Temos de ver, na Sagrada Escritura, a orientação segura para nossa vida, mas como
presente de Deus para nós através da Igreja. Não somos os católicos pessoas que
desprezam a Bíblia. Antes de tudo, queremos é defendê-la, colocando-a no justo lugar,
e não acima da Igreja, ambiente no qual ela foi gerada. “Na Sagrada Escritura, a Igreja
encontra incessantemente seu alimento e sua força, pois nela não acolhe somente uma
palavra humana, mas o que ela é realmente: a Palavra de Deus. Com efeito, nos Livros
Sagrados o Pai que está nos céus vem carinhosamente ao encontro de seus filhos e
com eles fala.” (Catecismo da Igreja Católica, 104)