Carlos Drummond de Andrade (Brasil) A excitante fila do feijo Larga, poeta, a mesa de escritrio, esquece a poesia burocrtica e vai

cedinho fila do feijo. Cedinho, eu disse? Vai, mas de vspera, seja noite de estrela ou chuva grossa, e sem certeza de trazer dois quilos. Certeza no ters, mas esperana (que substitui, em qualquer caso, tudo), uma espera-esperana de dez horas. Dez, doze ou mais: o tempo no importa quando aperta o desejo brasileiro de ter no prato a preta, amiga vagem. Cambures, patrulhinhas te protegem e gs lacrimogneo facilita o ato de comprar a tua cota. Se levas cassetete na cabea ou no brao, nas costas, na virilha, no o leves a mal: por teu bem. O feijo de todos, em princpio, tal como a liberdade, o amor, o ar. Mas h que conquist-lo a teus irmos. Bocas oitenta mil vo disputando cada manh o que somente chega para de vinte mil matar a gula. Insiste, no desistas: amanh outros vinte mil quilos em pacotes sero distribudos dessa forma. A conta-gotas vai-se escoando o estoque armazenado nos pores do Estado. Assim no falta nunca feijo-preto (embora falte sempre nas panelas). Mtodo esconde-pinga: no percebes que ele torna excitante a tua busca? Supermercados erguem barricadas contra esse teu projeto de comer. H gritos, h desmaios, h prises. Suspense la Hitchcock ante as cerradas

portas de bronze, guardas do escondido papilionceo gro que ambicionas. a grande aventura oferecida ao morno cotidiano em que vegetas. Instante de vibrar, curtir a vida na dimenso dramtica da luta por um ideal pedestre mas autntico: Feijo! Feijo, ao menos um tiquinho! Caldinho de feijo para as crianas... Feijoada, essa no: sonho puro, mas um feijo modesto e camarada que lembre os tempos to desmoronados em que ele florescia atrs da casa sem o olho normativo da Cobal. Se nada conseguires... tudo bem. Esperar que vale - o povo sabe enquanto leva as suas bordoadas. Larga, poeta, o verso comedido, a paz do teu jardim vocabular, e vai sofrer na fila do feijo. 25.10.1980 in Amar Se Aprende Amando