Você está na página 1de 2

Limite Doze

O Vento e o Palhao
(Baseado em fatos de uma vida amaldioada por L & F) O vento sopra do norte, aplacando-lhe o incmodo calor do sol das onze. Do terrao do prdio, a cidade uma colnia de formigas; formigas que andam em automveis, que constroem coisas... Respirando fundo, o homem sente o ar puro a 250 metros de altura. O silncio (com exceo do vento) impressionante. Mesmo com a enorme algazarra na avenida l embaixo, nenhum rudo chega a ele. A angstia toma-lhe os sentimentos. Apesar da manh magnificamente bela, o homem nada v, alm de um comeo de acmulo de nuvens, poluio, lixo humano. Cem andares... Debruado na borda frontal do prdio, o homem lembra-se do dia anterior. Tudo normal, at a noite, quando tomara tal deciso. A solido da punhalada final a dois dias fora definitiva. Ningum agentaria viver, depois do ocorrido. O ar parece convidativo, o vento sussurra, com sua voz sedutora; sbito, a respirao torna-se mais leve, o ar adquire um aroma gostoso, irresistvel. Ento, ele se levanta. Com os ps na amurada, ele abre os braos, para o Deus que o chama. Nada mais importa, a no ser a liberdade. O vento. O salto. A vida passa em seus olhos, mais rpido que o vento, que purifica seu corpo. Horizontalmente ele desce, cada andar,

cada metro, cada segundo, tudo meticulosamente aproveitado. A viso de seus primeiros anos como gente, a me, o pai, a casa, uma casa comum entre tantas outras, o primeiro natal, os presentes, o abrao dos familiares no garoto de cabelos encaracolados... Metade de sua vida se foi. A outra parte, j com seus vinte anos, foi mais dolorida. A desunio, a mudana de temperamento, emprego e amigos perdidos, a casa no paga, o despejo, a perda dos treze milhes, as tragdias sucessivas, tudo no mesmo dia... Tudo conspirou para aquilo. O vento sempre o chamou. Apenas trinta andares agora, e ele se lembra que tinha que mandar para o costureiro sua preciosa roupa! No h mais tempo, h apenas o vento. O vento que entra pelas narinas, que inunda todo o seu ser. Cada centmetro seu sente o ar que vem de todos os lados, dandolhe uma sensao de formigamento calmante. No h mais tempo. O trreo chega com violncia superior a um nibus caindo-lhe na cabea, vindo do 3 andar. O cho mancha-se de vermelho vivo, numa exploso que parte do corpo quase achatado que jaz no cho, o corpo que viveu duas vezes a mesma coisa, uma na vida, outra a caminho da morte. Antes tivesse padecido no caminho. A alguns metros dali, duzentos, talvez, algo espera. Uma lavanderia, um armrio. No armrio, uma roupa surrada, com marcas de queimaduras e tudo o mais. Uma roupa de palhao, que esperar a eternidade para ser reparada.

V.V.D.

Você também pode gostar