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Políticas de direita e branquidade: a presença ausente da raça nas reformas educacionais

Políticas de direita e branquidade: a presença


ausente da raça nas reformas educacionais*

Michael W. Apple
Universidade de Winsconsin, Madison, USA

Tradução: Maria Isabel Edelweiss Bujes


* Uma versão anterior deste ensaio foi apresentada no simpósio Racismo e Reforma no Reino Unido: Mercado, Seleção e Desigual-
dade? da American Educational Research Association, San Diego, abril de 1998. Uma versão abreviada deste artigo será publicada
em Race, Ethnicity and Education.

Na excepcional análise que fizeram sobre a forma ensões acerca da experiência pessoal. Assim, quando vemos o
de operar dos discursos raciais nos Estados Unidos, Omi videoteipe de Rodney King sendo surrado, quando compara-
e Winant argumentam que raça não é apenas “algo a mos o preço de propriedades em diversos bairros, quando ava-
mais” (algo que é adicionado) mas é parte constitutiva liamos um cliente potencial, um vizinho ou um professor, quan-
de muitas de nossas experiências cotidianas mais corri- do fazemos parte de uma fila de desempregados numa agência
queiras. governamental, ou quando levamos a efeito milhares de outras
tarefas usuais, somos compelidos a pensar racialmente, a usar
Nos Estados Unidos, a raça está presente em cada insti-
as categorias e os sistemas de significado relativos a raça nos
tuição, em cada relação, em cada indivíduo. Isto não ocorre
quais fomos socializados. A despeito de exortações, tanto sin-
apenas em razão do modo pelo qual a sociedade é organiza-
ceras quanto hipócritas, não é possível nem mesmo desejável
da – espacial e culturalmente e em termos de estratificação
que nos tornemos “cegos em relação à cor” (color-blind). (Omi
etc. – mas também em razão de nossas percepções e compre-
& Winant, 1994, p. 158-159)

Não é possível desconhecer as questões relativas à


*
Nota da tradutora:Como já o fez Tomaz Tadeu da Silva, ao
cor; como dizem os autores “opor-se à raça requer que
revisar tradução de texto deste mesmo autor intitulado “Consumindo
nós a notemos e não que a ignoremos”. Apenas atentan-
o outro – branquidade, educação e batatas fritas baratas”, em M. C.
do para a raça é que podemos desafiá-la, “por reduzir
V. Costa (org.) Escola básica na virada do século: cultura, política
e currículo, Porto Alegre, FACED/UFRGS, 1995, utilizo neste texto
de forma absurda a experiência humana a uma essência
a palavra branquidade para traduzir o termo whiteness, como a “qua- atribuída a todos sem nenhum respeito ao contexto his-
lidade ou condição de ser branco”, conforme a versão eletrônica do tórico e social”. Ao nos defrontarmos diretamente com
dicionário Merriam Webster, em inglês. Para uma discussão das difi- a raça, “podemos desafiar o Estado, as instituições da
culdades que isto implica ver Nota do Revisor, à p. 10, na referida sociedade civil e a nós mesmos como indivíduos a com-
obra. bater o legado de desigualdade e injustiça herdado do

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passado” e continuamente reproduzido no presente (Omi trapartida, estão implicadas com os efeitos latentes das
& Winant, 1994, p. 159). políticas e das práticas (ver Liston, 1998). No meu en-
Embora Omi e Winant estejam analisando dinâmi- tendimento, as últimas são mais fortes que as primeiras.
cas raciais nos Estados Unidos, espero que agora tam- Em resumo, este argumento vira de cabeça para
bém se torne claro que suas análises se estendem para baixo a lógica da assim chamada falácia genética. Serei
além dessas fronteiras geográficas, incluindo a Austrá- mais específico. Podemos pensar sobre a falácia genéti-
lia, o Reino Unido e muitas outras nações. Não seria ca de maneiras particulares. Tendemos a criticar os au-
possível entender a história, o estado atual e os múlti- tores que se apóiam no pressuposto de que a importân-
plos efeitos da política educacional sem colocar a raça cia e o significado de qualquer posição são totalmente
como um elemento central dessas análises. determinados pela sua origem. Assim, por exemplo, E.
Colocar a raça numa posição central é bem menos L. Thorndike – um dos fundadores da Psicologia Educa-
fácil do que se poderia esperar, mas se deve fazê-lo, re- cional – foi confirmadamente um eugenista, estava pro-
conhecendo sua complexidade. Raça não é uma catego- fundamente comprometido com o projeto de “melhora-
ria estável. Qual o seu significado, como é usada, por mento racial” e tinha uma visão da educação que era
quem, como é mobilizada no discurso público e qual o inerentemente não democrática. No entanto, estaremos
seu papel na políticas sociais mais amplas e na política pisando em terreno instável se concluirmos que todos os
educacional – tudo isto é contingente e histórico. De fato, aspectos de seu trabalho estão “comprometidos” pelas
seria enganoso falar de raça como uma coisa. Algo que suas (repugnantes) crenças sociais. O programa de pes-
é reificado, um objeto que pode ser medido como se fos- quisa de Thorndike pode ter sido epistemológica e em-
se uma simples entidade biológica. Raça é uma constru- piricamente problemático, mas é necessário um tipo di-
ção, um conjunto inteiro de relações sociais. Isso infe- ferente de evidência e uma análise mais complexa para
lizmente não impede as pessoas de falar de raça de um desmascarar toda ela do que para afirmar (corretamen-
modo simplista que ignora como as realidades se dife- te) que ela era freqüentemente racista, sexista, e elitista
renciam historicamente e em termos de poder.1 No en- (ver Gould, 1981 e Harraway, 1989, em relação a como
tanto, precisamos reconhecer a complexidade envolvi- esta análise mais complexa poderia ser realizada). De
da, neste caso. Dinâmicas raciais têm a suas próprias fato, não é raro encontrar educadores progressistas se
histórias e são relativamente autônomas. Mas elas tam- valendo do trabalho de Thorndike para servir de apoio a
bém participam em – formam e são formadas por – ou- posições vistas como mais radicais.
tras dinâmicas relativamente autônomas envolvendo clas- Quando falamos sobre racismo e sobre reformas
se, realidades coloniais e pós-coloniais, e assim por nas políticas atuais, necessitamos subverter a falácia
diante – todas elas implicadas e relacionadas com a cons- genética. As motivações explícitas dos apoiadores das
trução social da raça. Além disso, as dinâmicas raciais políticas do Partido Trabalhista no Reino Unido ou as
operam de modo sutil e poderoso mesmo quando elas propostas de Clinton para educação, como a de uma ava-
não se encontram claramente nas mentes dos atores en- liação nacional nos Estados Unidos, podem não ter tra-
volvidos. tado especificamente de raça ou terem pressuposto que
Podemos aqui fazer uma distinção entre explica- tais propostas “aplainariam” o campo de jogo para to-
ções funcionais e intencionais. Explicações intencionais dos. Suas intenções podem ter sido conscientemente
são aquelas intenções autoconscientes que guiam nos- “meritórias”. Entretanto, motivos conscientes não ga-
sas políticas e práticas. Explicações funcionais, em con- rantem de maneira alguma o modo como os argumentos
e as políticas serão empregados, quais serão seus múlti-
plos e determinados efeitos e funções, a que interesses
1
Estou aqui pensando no livro A curva do sino de Herrnstein e em última análise eles atenderão e que padrões identifi-
Murray. Ver Herrnstein e Murray (1994) e Kincheloe e Steinberg cáveis de benefícios diferenciais surgirão, dado que exis-
(1996). tem relações desiguais de capital econômico, cultural e

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social e dado que existem estratégias desiguais para con- os autores ainda demonstram, classe, raça e gênero
verter um tipo de capital em outro, em nossas socieda- interagem de uma maneira complexa neste caso. O de-
des (Bourdieu, 1984; Apple, no prelo). sempenho dos meninos brancos, especialmente aqueles
Tais funções e resultados diferenciais estão claros na fronteira entre o D/C2 bastante seguidamente é visto
em algumas análises muito recentes sobre raça e educa- como mutável. Para os estudantes negros do sexo mas-
ção na Inglaterra. Por exemplo, no relatório dos resulta- culino, sua suposta “menor capacidade” é um pressu-
dos da investigação de Gillborn e Youdell, sobre os efei- posto tácito. Estudantes “de valor”, então, não são usual-
tos do estabelecimento de padrões nacionais e de mente negros, supostamente em razão de um conjunto
reformas similares nas escolas com grupos significati- de acidentes naturais (Gillborn & Youdell, 1998). Tudo
vos de crianças de cor, os autores afirmam que os dados isso não é necessariamente intencional. É devido a um
disponíveis sugerem que “sob os ganhos superficiais, conjunto sobredeterminado de relações históricas e a um
indicados por melhorias ano a ano em relação ao crité- complexo de micropolíticas relacionadas com recursos
rio padrão... em algumas áreas houve uma expansão da e poder, no interior da escola e entre a escola e o Estado,
desigualdade entre estudantes, escolas e, em alguns ca- local e nacional, bem como, por certo, às dinâmicas de
sos, entre grupos étnicos”, especialmente no caso da re- poder presentes na sociedade mais ampla.
lação entre alunos brancos e afro-caribenhos (Gillborn Entretanto, ao dizer isto, não pretendo sugerir que
& Youdell, 1998, p. 7). tais dinâmicas tornem a raça uma questão menos can-
Não é de surpreender que em seu perspicaz relató- dente. De fato, minha argumentação se opõe exatamen-
rio Gillborn e Youdell tenham encontrado o que cha- te a esta. A raça obtém boa parte de seu poder em razão
mam de um sistema de “triagem educacional”, operan- se seu próprio “encobrimento” (hiddenness). E em ne-
do na escola. De fato, seria surpreendente que isto não nhum lugar isso é mais verdadeiro do que nos discursos
acontecesse, tendo em vista o que conhecemos sobre os acerca dos mercados e da padronização.
efeitos, em outras instituições, de padrões raciais espe- Embora alguns comentadores possam estar certos
cíficos de desigualdade salarial, de emprego e desem- de que “o competitivo mercado das escolas no Reino
prego, de atenção à saúde e habitação, de nutrição, de Unido, imaginado pelos neoliberais, foi criado sem re-
enclausuramento (prisão), e de desempenho escolar em ferência às suas implicações para as minorias étnicas”
países como os Estados Unidos (ver, por exemplo, Apple, (Tomlinson, 1998), isso pode ser considerado verdadei-
1996, p. 68-90). Estes padrões e efeitos colocam em ro apenas quanto às intenções conscientes. Embora a
dúvida qualquer pretensão de que possa existir um cam- referência à raça possa estar manifestamente ausente nos
po justo para o jogo e não devemos nos surpreender que, discursos dos mercados, ela permanece uma presença
em tempos de crise fiscal e ideológica, múltiplas formas ausente que, eu acredito, está plenamente implicada nas
de triagem sejam encontradas em múltiplas instituições. metas e nas preocupações que cercam o apoio à mercan-
Assim, as admoestações de Gillborn e Youdell de- tilização da educação. Um sentimento de declínio eco-
veriam nos fazer duvidar que a busca constante de “pa- nômico e educacional, a crença de que o privado é bom
drões mais altos” e de níveis de desempenho sempre cres- e que o público é mau, foi acompanhado por um senti-
centes coloque apenas em ação aparatos aparentemente
neutros de reestratificação. Como eles demonstram (em-
bora fosse necessário uma quantidade considerável de 2
Nota da tradutora: os conceitos C ou D referem-se a conceitos
pesquisa empírica adicional para apoiar a afirmação mais atribuídos a resultados obtidos em testes de avaliação de desempe-
geral), em situações como esta ocorre uma limitação do nho. No sistema nacional de avaliação inglês, os conceitos A, B, ou C
currículo. Para aumentar os índices de uma escola nos representam aprovação e um conceito D ou menor que D significam
testes é preciso tanto enfatizar determinados conteúdos reprovação. Assim, como esclareceu-me o autor, fazem-se tentativas
quanto incentivar certos estudantes que possam contri- de “empurrar” certas crianças, em particular, que obtiveram um D
buir para uma mais alta performance da escola. Como para uma posição C.

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mento de perda nem sempre expresso, um sentimento de a história dos “imigrantes” (Cornbleth & Waugh, 1995).
que as coisas se encontram fora de controle, um senti- “Nós” somos uma nação de imigrantes. Somos “todos”
mento anômico que é associado pelas pessoas à perda imigrantes, desde os originais povos americanos nati-
de “seu lugar de direito” no mundo (de um “império” vos (índios) que supostamente atravessaram o Estreito
agora em declínio). O “privado” é o lugar onde as coi- de Behring às pessoas que vieram mais recentemente da
sas correm bem e as organizações são eficientes, o lugar Europa, Ásia, África e América Latina. Por certo, o so-
da autonomia e da escolha individual. O “público” está mos. Mas uma história deste tipo interpreta de forma
fora de controle, é desorganizado e heterogêneo. “Nós” equivocada as diferentes condições em que isso ocor-
precisamos proteger “nossa” escolha individual daque- reu. Alguns “imigrantes” vieram acorrentados, foram
les que são os controladores ou os “poluidores” (cujas escravizados, e enfrentaram séculos de repressão e de
culturas e os próprios corpos são exóticos ou perigo- apartheid obrigatório patrocinado pelo Estado. Outros
sos). Assim, acredito que existam conexões muito pró- foram condenados à morte ou ao enclausuramento for-
ximas entre o apoio para as perspectivas neoliberais de çado em razão das políticas oficiais. E existem enormes
liberdade individual e de mercado e as perspectivas dos diferenças entre a criação de um “nós” (artificial) e a
neoconservadores com suas claras preocupações rela- destruição da experiência e da memória históricas
cionadas com padrões, “excelência” e declínio. (Apple, 1996).
Neste particular, acredito que nas atuais condições Esta destruição e o modo como foi conseguida está
os currículos nacionais representam freqüentemente um relacionada novamente ao modo como a raça funciona
passo atrás em relação à educação anti-racista (embora como uma presença ausente (ao menos para certas pes-
não devamos romantizar a situação anterior; pois temo soas), em nossas sociedades. Podemos tornar isso mais
que, na realidade, não ocorriam ali muitos esforços anti- claro ao focalizar nossa atenção na invisibilidade da
racistas). Não é de estranhar que, à medida que ocor- branquidade. De fato, quero sugerir que aqueles que estão
riam ganhos pelo descentramento das narrativas domi- profundamente comprometidos com os currículos e com
nantes, a dominação retornasse na forma de currículos um ensino anti-racista necessitam atentar mais para a
nacionais (e avaliação nacional) que especificavam – identidade branca.
freqüentemente com minuciosos detalhes – como todos Infelizmente, é verdade que muitos brancos ainda
“nós” somos? Em muitos países, por certo, as tentativas acreditam que há um custo social em não ser uma pes-
para construir um currículo nacional e/ou padrões na- soa de cor, mas em ser branco. Os brancos são os novos
cionais levaram ou levam a soluções de compromisso, a perdedores num campo de jogo, que eles acreditam, te-
ir além da mera menção à cultura e à história dos “ou- ria sido aplainado agora que os Estados Unidos se tor-
tros”. (Este é, com, certeza, o caso dos Estados Uni- naram um país supostamente igualitário, uma sociedade
dos). E é nestas soluções de compromisso que vemos o que não atenta para a cor. Uma vez que os tempos são
discurso hegemônico em sua face mais criativa (Apple, árduos para todos, as políticas para dar atenção a gru-
1993; Apple, 1996). pos sub-representados – como a ação afirmativa – es-
Tomemos, por exemplo, os novos padrões nacio- tão injustamente apoiando os “não brancos”. Assim, os
nais de História, nos Estados Unidos, e as tentativas dos brancos podem agora reivindicar o status de vítimas
livros didáticos para responder à criação de padrões na (Gallagher, 1995, p. 194). Estes sentimentos têm uma
perspectiva de uma narrativa multicultural que “nos” une importância considerável nas políticas educacionais nos
a todos, para criar um indefinido/vago “nós”. Tal dis- Estados Unidos, mas também em muitos outros países.
curso, embora tenha vários elementos que soam progres- A atenção dada ao partido australiano antiimigracionista
sistas, demonstra como as narrativas hegemônicas apa- de Pauline Hanson, denominado Uma Nação, por exem-
gam da memória histórica questões específicas de plo, ilustra este fato.
diferença e de opressão. Muitos livros-texto em nossas Como vem sendo construída pela restauração con-
escolas constroem a história dos Estados Unidos como servadora, a branquidade como um produto explicita-

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mente cultural está ganhando vida própria. Os argumen- da saúde, educacional – de fato, de todas as nossas ins-
tos dos discursos conservadores que circulam hoje com tituições – sem colocar a política da branquidade tanto
tanto poder, as barreiras à igualdade social e à igualda- consciente quanto inconscientemente como uma dinâ-
de de oportunidades foram postos de lado. Os brancos, mica central. Por certo, pouco do que estou dizendo aqui
portanto, não têm privilégios. Grande parte disto, por é novo. Como os teóricos que trabalham com raça e os
certo, não é verdadeiro. Embora enfraquecida por ou- escritores pós coloniais documentaram, identidades e for-
tras dinâmicas de poder, existe ainda uma vantagem con- mas raciais têm sido e são blocos constitutivos das es-
siderável em ser branco nesta sociedade. Entretanto, não truturas de nossas vidas diárias, das nossas comunida-
é a verdade ou a falsidade destas afirmações que está des reais ou imaginadas e dos processos e produtos
aqui em questão. O que está em questão é, muito mais, a culturais.3
produção de identidades brancas regressivas. Vejamos esta situação mais de perto. Raça é uma
As implicações disso tudo são profundas, tanto do categoria usualmente aplicada a pessoas “não brancas”.
ponto de vista político quanto cultural. Porque, em razão As pessoas brancas usualmente não são vistas nem no-
do uso cínico das identidades raciais pela direita, em ra- meadas. Elas são posicionadas no centro, como a norma
zão dos medos e das ameaças econômicas que muitos humana. Os “outros” são racializados; “nós” somos
cidadãos experimentam e em razão do poder histórico da apenas pessoas (Dyer, 1997, p. 1). Richard Dyer nos
raça sobre a psique norte-americana e sobre a formação fala disso no seu esclarecedor livro intitulado White.
das identidades em muitos outros países, muitos mem-
Não existe posição que tenha mais poder do que aquela
bros dessas sociedades podem desenvolver formas de so-
de ser “apenas” humano. O direito ao poder é o direito a falar
lidariedade baseadas em sua “branquidade”. Isso, no mí-
por toda a humanidade. Pessoas racializadas não podem fazê-
nimo, tem conseqüências em termos das lutas que se
lo – podem apenas falar pela sua raça. Mas pessoas não
travam em torno de significados e identidades e pela ca-
racializadas podem fazê-lo, porque elas não representam o in-
racterização e controle de nossas principais instituições.
teresse de uma raça. Atribuir aos brancos uma raça é deslocá-
Como podemos interromper essas formações ideo-
los/deslocar-nos da posição de poder, com todas suas desi-
lógicas? Como desenvolver práticas pedagógicas anti-
gualdades, opressão, privilégios e sofrimentos; deslocá-los/des-
racistas que reconheçam as identidades brancas sem
locar-nos é cortar pela raiz a autoridade com a qual eles falam
contudo levar a formações regressivas? Estas são ques-
e agem/nós falamos e agimos no mundo e sobre ele.
tões ideológicas e pedagógicas complexas. Assim, não
podemos lidar com tais questões a menos que nos dete- “Nossa” própria linguagem mostra a invisibilidade
nhamos diretamente sobre as relações de poder diferen- de relações de poder na fala comum sobre o que é ser
cial que criaram o – e foram criadas pelo – terreno pe- branco. “Nós” falamos de uma folha de papel não escri-
dagógico no qual elas operam. Isso requer uma atenção ta como “em branco”. Uma sala toda pintada de branco
especial ao papel do Estado, às políticas estatais, à mu- é vista, quem sabe, “como necessitada de um pouco de
dança do trabalhismo em direção à direita e à reconstru- cor”. Outros exemplos podem ser multiplicados. Mas a
ção do senso comum que a direita empreendeu com tan- idéia de branquidade como invisibilidade, como algo que
to sucesso. não existe, serve idealmente para designar o grupo so-
Se quisermos ser fiéis ao registro histórico, a cial que é tomado como a “humanidade comum” (Dyer,
branquidade não é, certamente, algo que acabamos de 1997, p. 47). Neste sentido, por exemplo, a “nossa”
descobrir. A política da branquidade tem sido enorme e, branquidade dá direitos à maioria branca de representar
por vezes, terrivelmente eficiente na formação de coali-
zões que unem as pessoas, atravessando diferenças cul-
turais, relações de classe e de gênero, mesmo contra os 3
Existe uma vasta literatura a este respeito. Ver, por exemplo,
seus interesses (Dyer, 1997, p. 19). Não seria possível Omi e Winant (1994), Mc Carthy e Crichlow (1994), Tate (1997),
escrever a “nossa” história econômica, política, legal, Fine, Weis, Powell e Mun (1997) e Mc Carthy (1998).

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as reivindicações de terra dos aborígenes australianos as vozes e os testemunhos daqueles grupos cujos sonhos,
na Australian Native Title Act (Lei australiana de pro- esperanças, vidas e mesmo corpos têm sido destruídos
priedade de terras indígenas), se não como sinistras, pelo pelas relações atuais de exploração e de dominação.
menos como algo que se baseia em valores e numa expe- Além disso, manter a atenção sobre a branquidade
riência cultural “exótica”. Daí é um pequeno passo para pode simplesmente gerar culpa, hostilidade ou sentimen-
que as reivindicações indígenas sejam tomadas como um tos de perda do poder, por parte dos brancos. Pode, de
“tratamento especial” dado aos povos aborígenes e que fato, impedir a criação daquelas “unidades descentradas”
não está disponível para os “australianos comuns”. que falam através das diferenças e podem levar a coali-
Em vista disso, de algo que poderia ser melhor cu- zões que desafiem as relações culturais, políticas e eco-
nhado como uma presença ausente, um projeto crucial – nômicas dominantes. Portanto, fazer isto requer uma
político, cultural e sobretudo pedagógico – é tornar es- imensa sensibilidade, um sentido claro das múltiplas di-
tranha a branquidade (Dyer, 1997, p. 4). Assim, parte nâmicas de poder envolvidas em cada situação e uma
de nossa tarefa em termos de consciência e mobilização pedagogia nuançada (e, por vezes, arriscada).
pedagógica e política é dizer a nós mesmos e ensinar Questões como branquidade podem parecer dema-
aos nossos alunos que as identidades são constituídas siado teóricas para alguns leitores ou mais um tópico
historicamente. Necessitamos reconhecer que “os sujei- “na moda” que encontrou um jeito de imiscuir-se na agen-
tos são produzidos através de múltiplas identificações”. da educacional crítica. Esse seria um erro grave. Aquilo
Devemos ver nosso projeto como não reificando a iden- que é considerado como “conhecimento oficial” carrega
tidade, mas tanto entendendo sua produção como um de forma consistente a marca de tensões, lutas, e com-
processo continuado de diferenciação quanto, principal- promissos nos quais a raça desempenha um papel im-
mente, como sujeito à redefinição, resistência e mudan- portante (Apple, 1993, 1999). Além disso, como Steven
ça (Scott, 1995, p. 11). Selden mostrou claramente em sua recente história das
Existem perigos ao fazer isso, por certo. Como ar- estreitas relações entre eugenia e prática e política edu-
gumento em Cultural Politics and Education (Apple, cacionais, quase toda prática atual em educação – pa-
1996), fazer com que os brancos focalizem a branquidade drões, avaliação, modelos sistematizados de planejamen-
pode ter efeitos contraditórios, dos quais precisamos es- to curricular, educação para superdotados, e muitos
tar bem conscientes. Isso pode possibilitar o reconheci- outros temas – tem suas raízes em preocupações como
mento do poder diferencial e da natureza racializada de “melhoramento da raça”, medo do outro etc. (Selden,
todos – e isto é muito bom. Entretanto, pode servir tam- 1999). E tais preocupações estão, elas também, enrai-
bém para outros propósitos além de desafiar a autoridade zadas no olhar da branquidade como norma não reco-
do Ocidente branco. Pode correr o risco de levar ao indi- nhecida. Assim, questões de branquidade se encontram
vidualismo possessivo que tem tanta força em nossa so- no próprio âmago da política e da prática educacionais.
ciedade. Isto é, tal processo pode servir à assustadora fun- O risco de ignorá-las é nosso.
ção de que se diga simplesmente “Chega de falarmos de Isto é, por certo, em parte uma questão das políti-
você, deixe que eu lhe fale de mim”. A menos que seja- cas de “identidade” e, na última década tem havido um
mos bastante cuidadosos e reflexivos, isso ainda pode crescente interesse pelas questões de identidade na edu-
acabar privilegiando homens a mulheres brancos de clas- cação e nos Estudos Culturais. Entretanto, uma das maio-
se média, necessitados de exposição pública. Esta parece res falhas na pesquisa sobre identidade é seu fracasso
ser uma necessidade sem fim de muitas dessas pessoas. em tratar de modo adequado as políticas hegemônicas
Acadêmicos que fazem parte da comunidade educacio- da direita. Como mostrei com pesar em outro lugar, a
nal crítica nem sempre estarão imunes a tais tensões. restauração conservadora tem tido muito sucesso em criar
Assim, precisamos estar em guarda para assegurar que ativas posições de sujeito que incorporam vários grupos
um foco na branquidade não se torne mais uma desculpa sob o guarda-chuva de uma nova aliança hegemônica.
para recolocar no centro as vozes dominantes e ignorar Ela tem sido capaz de assumir uma política dentro e fora

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Políticas de direita e branquidade: a presença ausente da raça nas reformas educacionais

da educação, na qual o medo de um outro racializado BOURDIEU, P., (1984). Distinction. Cambridge : Harvard University
está associado a medos que dizem respeito à nação, cul- Press.
tura, controle, e declínio – e a medos pessoais intensos CARLSON, D., APPLE, M. W., (1998). (eds.) Power/knowledge/
sobre o futuro dos filhos numa economia em crise. Tudo pedagogy. Boulder : Westview Press.
isto está associado de uma maneira tensa, criativa e com-
CORNBLETH, C., WAUGH, D., (1995). The great speckled bird.
plexa (Apple, 1993; Apple, 1996; Carlson e Apple,
New York : St. Martin’s Press.
1998). Deste modo, trajetórias socialmente muito mais
DYER, R., (1997). White. New York : Routledge.
democráticas de reforma são interrompidas (ver, por
exemplo, Apple e Beane, 1999) e grupos de pessoas são FINE, M. WEIS, L., POWELL, L., e MUN, W., (1997). (eds.) Off
empurradas para projetos direitistas implicitamente white. New York: Routledge.
racializados pelo sucesso da direita em institucionalizar GALLAGHER, C., (1995). “White reconstruction in the university”,
sua lógica e seus pressupostos. Socialist Review 94 : 165-187.
Em face disto, aqueles dentre nós que estão com-
GILLBORN, D., YOUDELL, D., (1998). “Raising standards and
prometidos com práticas e políticas educacionais anti- deepening inequality: League tables and selection in multi-ethnic
racistas e engajados em observar o funcionamento real secondary schools”, trabalho apresentado no simpósio Racism and
de “reformas” recentemente propostas ou daquelas em Reform in the United Kingdom, American Educational Research
curso, deveriam estar atentos não apenas para os efeitos Association, San Diego.
raciais de mercados e padrões, mas também aos modos
GOULD, S. J., (1981). The mismeasure of man. New York : W. W.
criativos com os quais movimentos neoliberais e neo-
Norton.
conservadores operam para convencer tantas pessoas
(incluindo muitos líderes do Partido Trabalhista, no Rei- HARRAWAY, D., (1989). Primate visions. New York : Routledge.

no Unido e na Austrália, e do Partido Democrático, nos HERRNSTEIN, R., MURRAY, C., (1994). The bell curve. New York :
Estados Unidos) de que estas políticas são apenas tec- The Free Press, 1994.
nologias neutras. E elas não o são. KINCHELOE, J., STEINBERG, S., (1996). Measured lies. New
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MICHAEL W. APPLE é professor da cátedra John Bascom de LISTON, D., (1998). Capitalist schools. New York : Routledge.
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Revista Brasileira de Educação 67

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