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A TEOLOGIA DA REVOLUÇÃO NA NICARÁGUA SANDINISTA.

MORLINA, Fabio Clauz (USP)

INTRODUÇÃO
“Declarei, muitas vezes, que sou marxista por Cristo e seu Evangelho. Que
não fui levado ao marxismo pela leitura de Marx mas pela leitura do Evangelho. O
Evangelho de Jesus Cristo me fez marxista, como eu já disse e é verdade. Sou um
marxista que crê em Deus, segue Cristo, e é revolucionário por causa do seu Reino”
(CABRESTERO, 1983, p. 38. Entrevista com Ernesto Cardenal).
A frase acima destacada foi elaborada por Ernesto Cardenal: poeta,
sacerdote, escultor e Ministro da Cultura no governo sandinista. Formado em Letras
e Literatura, consagrou-se monge e participou de levantes revolucionários. Em 1979,
após o triunfo revolucionário, Ernesto Cardenal foi nomeado Ministro da Cultura.
“Para nós a revolução é amor. E entendemos por amor o amor ao próximo, ao
nos preocuparmos com a alimentação adequada de todos, a melhoria de vida de
toda a população, para que tenham uma vida digna, que haja serviço médico para
todos, educação e cultura para todos, diversões, a assistência aos anciãos e às
crianças. (...) Dizia também Camilo Torres que a revolução é uma tarefa cristã e
sacerdotal, e assim o é para mim. (...) Muitas vezes tenho dito que o programa do
governo da Frente Sandinista é dar de comer aos que têm fome, vestir os nus e
ensinar aos que não sabem... Dar tudo aos que nada tem”. (Ibid, pp. 23-24.
Entrevista com Ernesto Cardenal)
Essa interpretação da Bíblia colocando o cristão ao lado da Revolução foi o
principal discurso dos padres progressistas.
Analisando o que se passava na Nicarágua antes da tomada do poder e as
mudanças estruturais que a Igreja Católica estava passando podemos compreender
melhor este discurso cristão-revolucionário.
A Nicarágua vivia a mais de 40 anos dominada por uma ditadura da família
Somoza. A violência, a corrupção, a pobreza e o analfabetismo eram marcas
registradas da ditadura. O principal grupo de oposição a ditadura surge na década
de 1960, inspirado nos ideais de Augusto César Sandino (líder revolucionário
assassinado em 1934 pela Guarda Nacional de Anastácio Somoza Garcia) e como
líder intelectual e fundador Carlos Fonseca Amador: A Frente Sandinista de
Libertação Nacional (FSLN). Em paralelo, a Igreja Católica, a partir do Vaticano II e
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as Conferências latino-americanas de Medellín e Puebla, fez uma revisão de sua


prática apostólica e do papel da Igreja no mundo. Surgem as Comunidades Eclesiais
de Base (CEB), as pastorais e um novo referencial teológico: a Teologia da
Libertação. Em 1979 os sandinistas tomaram o poder e vão governar até 1990.
Neste período ocorreu uma intensa guerra civil patrocinada pelos Estados Unidos e
pelos contra-revolucionários.
A Revolução sandinista buscava formular uma nova base teórica-política. A
simbologia cristã na Nicarágua foi também política, pois promovia a FSLN como o
Evangelho em ação. Colocando Jesus ao lado do processo revolucionário e
demarcando os “pecadores” como os inimigos da nação (Estados Unidos,
Somozistas, Contras).
Na Conferência de Medellín foi apresentado que a América Latina vivia num
pecado estrutural. Para os nicaragüenses não bastava a troca de poder entre os
indivíduos, mas também transformar as estruturas da sociedade. Além disso, a
América Latina necessitava mais de um grande processo de libertação (econômica,
política e cultural) do que um processo de desenvolvimento. A fé e a política se
tornariam indissociáveis na construção de uma nova sociedade carregada de justiça
e liberdade.
Na Nicarágua somozista, tendo em vista a situação nacional, a saída
encontrada foi a Revolução Armada para a derrubada do regime somozista. Aqui se
inicia uma identificação entre os membros das CEB com o governo sandinista. As
camadas populares fortemente identificadas com o cristianismo e vendo os
sandinistas como saída para a ditadura somozista, aderiram as causas da revolução.
Leonardo Boff, um dos principais teóricos da Teologia da Libertação, assim
define a aproximação do cristão com a Revolução:
“O protesto e a revolução podem significar o exercício legítimo da liberdade
fundamental do homem como forma de introduzir a necessária ruptura para
deslanchar um processo libertador e para sacudir uma opressão desumana. (...) Há
situações em que a consciência cristã se vê obrigada a denúncia global do sistema
opressor e não vê outra saída senão pela morte suportada com galhardia e
dignidade. A vida não é o maior bem, podem ocorrer situações onde ela deva, em
consciência, ser sacrificada na defesa de valores inalienáveis da dignidade humana;
mais vale a glória de uma morte violenta do que o ‘gozo’ de uma liberdade maldita.”
(BOFF, 1998, pp. 113-114)
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O martírio passou a constituir o discurso dos cristãos revolucionários. Em uma


celebração da CEB San Pablo Apostól realizada na Semana Santa de 1977, no
comentário da última estação da via-sacra era afirmado que todos os que deram a
vida pelo bem estão ainda vivos:
“O Senhor Jesus cumpriu sua promessa. Ressuscitou como ele havia
anunciado. Cristo vive! A dor sentida no dia da morte se transformou em gozo. Como
Cristo, todos os mártires, todos os de que entre nós tem desaparecido, estão vivos.
Cada um que têm dado sua vida pelo bem, está em certo modo vencendo o poder
do mal. Nossos irmãos mortos vivem. Vivem e nos dizem que o dia do Senhor está
próximo. A morte que representa o mal, não terá mais domínio sobre nós. Como
cristãos devemos apressar ante o dia do triunfo do bem sobre o mal”.1
A apropriação da morte dos líderes cristão-revolucionários e a reconstrução
de sua História para torná-lo um herói nacional foi bastante difundida durante o
governo sandinista. O martírio, último estágio do heroísmo, dinamizava a prática
revolucionária, pois inseria na população novos conceitos de valores e um
sentimento de inferioridade naquele que não participa do processo revolucionário.
Na Nicarágua, o exemplo do martírio está presente em diversas
personalidades, rememoradas e celebradas como exemplos a serem seguidos. Um
destes mártires foi Maurício Demièrre, internacionalista suíço, assassinado em 1986
pelos contra-revolucionários. Sua companheira, Chantal Bianchi, acabou
expressando assim a idéia do martírio na Nicarágua:
“Agora compreendo que todos os nossos mártires são uma ferramenta
privilegiada de Deus para revelar-se a seu povo. O povo da Nicarágua e todos os
outros povos oprimidos estão sendo amadurecidos no sangue de seus mártires, e
este sangue justo e inocente desmascara o pecado, a injustiça do pecado. E essa
mensagem é tão forte para nós que ficamos mais firmes em defender a vida. Porque
o sofrimento que provoca esse projeto de morte ao estrangular e violar nossas vidas
nos faz entrar num processo de purificação.” (SANTOS, s/d, p. 93. depoimento de
Chantal Bianchi)
Sempre lembrado nas celebrações nicaragüenses, o padre Gaspar Garcia
Laviana era considerado como alguém que se dedicava ao máximo em seus
objetivos. Gaspar se empenhou no trabalho de alfabetização, na formação de
Ministros da Palavra e na formação de cooperativas junto com operários. Quando
era pároco de San Juan del Sur (Rivas) e Tola, Gaspar decidiu se incorporar a luta
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armada dos sandinistas. Quando estava em luta era considerado o primeiro no


combate e o último na retirada. Alcançou o grau de comandante da Frente Sul, mas
caiu em combate em 11 de dezembro de 1978.
“O somozismo é pecado, e livrarmos da opressão é livrarmos do pecado. E
com o fusil nas mãos, cheios de fé e cheios de amor meu povo nicaragüense, hei de
combater até o último alento pelo advento do reino da justiça que o Messias nos
anunciou sob a luz da estrela de Belém.” (EL TAYACÁN e CEHILA, 1983, p. 55)

AS CEB NA NICARÁGUA
Em Nicarágua, a primeira CEB teve origem em 1966 na cidade de Manágua.
Os primeiros momentos das CEB nicaragüenses foram de reflexão da situação
vivida pela ditadura somozista. Ainda se priorizava na década de 60 uma renovação
litúrgica e pastoral.
Somente na década de 70 as CEB assumiram um compromisso social efetivo.
Neste momento, os encontros promovidos pelas CEB já não mais estavam
preocupados com a liturgia, mas com o engajamento de seus membros nos
movimentos sociais, bem como a reivindicação de melhorias nas condições de vida,
contra a inflação e contra os abusos da lei. Estas reivindicações colocaram as CEB
como pioneiras na luta contra a opressão somozista.
Após o terremoto ocorrido em Manágua em dezembro de 1972, o perfil de
alguns grupos vinculados a Igreja começa a tomar um tom de conscientização
revolucionária. A ditadura somozista passa a ser enxergada como a origem dos
males do povo de Nicarágua. Neste sentido só pensavam na revolução como
solução. Desse modo, muitos cristãos se engajaram na FSLN, tomando a vanguarda
na luta armada:
“Todos estes trabalhos deviam dar um salto qualitativo convertendo-se em
base social de apoio cristão a luta da FSLN, o qual em efeito sucedeu, logrando-se
que desde uma perspectiva cristã se respaldara massivamente a luta
revolucionária.”2
Finalmente, temos a próxima etapa, que é a participação das CEB no novo
governo. Nesta nova etapa, muitos agentes de pastoral deixaram de atuar nas
comunidades e passaram a se preocupar com a organização do governo sandinista.
Norma Galo, uma das fundadoras da Comunidade San Pablo Apóstol, assim definia
esta nova etapa:
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“O papel das Comunidades de Base varia com relação à época anterior; antes
do triunfo, o papel das comunidades era um papel de denúncia, de formação da
consciência do indivíduo para que lutasse através de sua fé cristã pela
transformação da sociedade. Agora se trata de fortalecer um projeto revolucionário
que foi pelo qual lutamos desde os primeiros anos; trata-se, então, de que as
Comunidades marchem a par da revolução.” (AMANECER, 1986, p. 30. Depoimento
de Norma Galo)
As CEB possuíam uma particularidade simbólica, provida de imagens,
músicas, homilias e orações. Ao mesmo tempo, nas CEB e nas pastorais sociais,
prevalecia a visão de Cristo identificado com as camadas populares e o povo da
Bíblia sendo percussor das lutas sociais. A construção destes símbolos se
relacionava com a comunidade de fiéis estabelecendo uma relação entre o sagrado
e o cotidiano. Inseriu-se uma nova mística que transportava os sentimentos mais
íntimos de fé para a causa revolucionária. Portanto, a simbologia aproxima o crente
a um Universo místico que afeta a sua fé e impõem novos valores éticos que
consagram a revolução como um processo natural do cristianismo.
A Nicarágua é constituída de um povo extremamente cristão, o que facilita a
construção de uma simbologia própria e vinculada aos ideais de cada grupo. No
caso das CEB, a produção cultural era semelhante aos ideais do governo sandinista,
portanto temos uma política cultural agregada a uma religiosidade simbólica.

REVISTAS E JORNAIS
A revista Amañecer do Centro Ecumênico Antonio Valdivieso lista o que
considera alguns desafios dos cristãos diante da Revolução sandinista. Destaca a
opinião contrária a revolução de alguns grupos da Igreja Católica e de Igrejas
Evangélicas, o que para a revista Amañecer é uma atitude anticristã, pois os seres
humanos sempre têm diversas opções políticas e, portanto, não existe uma
neutralidade, dessa forma, quando estes grupos demonstram atitudes contrárias a
revolução, eles estão a favor da situação de pecado que é o capitalismo e também
estão a favor de grupos de empresários e ricos, que na realidade, não são aqueles
que de fato caminhavam com Cristo.
“O medo irracional ao marxismo e os exageros de um anticomunismo
apaixonado São reflexos capitalistas que incapacitam a Igreja para despregar-se do
sistema materialista chamado capitalismo; são reflexos ‘ideológicos’ impróprios do
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cristão, reflexos que mantém a Igreja afastada do povo. (...) A Igreja que vive em um
processo de transformações revolucionárias têm o privilégio histórico (e a
responsabilidade) de viver o processo pascal anunciando e construindo o Reino de
Deus nas transformações profundas de um povo que cria sua história.” (Ibid, p. 14)
No jornal El Tayacán, Jesus sempre aparece como um Rebelde que mostra
suas cicatrizes de luta de amor contra o egoísmo dos opressores. Portanto, para
superar o medo e o egoísmo e seguirmos Jesus, o jornal El Tayacán afirma que
devemos antes reconhecer nossas dificuldades e só assim poderiamos construir um
novo caminho e uma fortaleza.
“(...) O ressuscitado é aquele garoto, que nasceu em um estábulo, no seio de
uma família de camponeses. O filho daquela Maria se alegrava intensamente porque
Deus ‘enche de bens aos famintos e despede aos ricos de mãos vazias’. O
Ressuscitado é aquele camponês carpinteiro, que trabalhou durante trinta anos
como qualquer um de nós. O ressuscitado é aquele Mestre de pés descalços, que
acompanhado de doze pobres, percorria a Palestina proclamando a Boa Nova: ‘Bem
aventurados os pobres!’ O que dizia que Deus é o Pai de todos e devemos
compartilhar como irmãos. E ele compartilhou tudo, até a mesma vida.” (EL
TAYACÁN, 1986, p. 1)

OS TEÓLOGOS NICARAGUENSES
“Para muitos cristãos da Nicarágua, viver a fé dentro do processo
revolucionário é algo muito natural, sem absolutizar ou deificar a revolução de seu
povo, sentem em sua vida de todos os dias que não existe nenhuma contradição em
praticar ativamente sua fé e em participar no processo da revolução”. (AMANECER,
1986, p. 28)
Vários teólogos e leigos buscaram associar o discurso cristão e o discurso
revolucionário. Destacaremos quatro teólogos que se envolveram diretamente com o
governo: Padre Miguel D´Escoto - Ministro das Relações Exteriores; Padre Fernando
Cardenal - Coordenador da Cruzada Nacional de Alfabetização e depois Ministro da
Educação; Uriel Molina - responsável pelo Centro Ecumênico Antonio Valdivieso e
pela revista Amañecer; e concluiremos com Ernesto Cardenal e sua Teologia da
Revolução.
a) Miguel D’Escoto: O padre Miguel D’Escoto antes de 1979, buscava
estabelecer contatos com líderes sandinistas e promovia Comitês de Solidariedade
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nos Estados Unidos. No processo revolucionário, D´Escoto via nas pessoas “uma
total entrega do corpo”, o que ele considerava a própria Eucarística. Pois acreditava
que a fidelidade ao povo oprimido pode ser uma forma concreta de fidelidade a
Cristo: “O sofrimento que nos vem por tratar de criar uma nova ordem mais justa,
mais fraterna, essa sim que é a cruz” (EL TAYACÁN, 1986, p. 8. Entrevista com
Miguel D’Escoto)
Como forma de protestar diante da situação de guerra imposta pelos Estados
Unidos e os Contras, o padre Miguel D’Escoto, em julho de 1985 decidiu fazer um
jejum de protesto e pedido de paz.
Miguel D’Escoto afirmava que a revolução sandinista não buscava soluções
ideológicas prontas do exterior para resolver seus problemas, ela já possui uma
ideologia com base nos ideais de Sandino, com quatro grandes pilares: O
nacionalismo (no sentido dos nicaragüenses decidirem seu próprio destino), a
democracia (não só eleitoral, mas que abrange o político, social e econômico), a
justiça autêntica e, finalmente, o cristianismo, no qual Miguel D’Escoto lembra que
com a influência do cristianismo na Nicarágua após o triunfo da revolução não
ocorreram fuzilamentos. Portanto, o sandinismo, seria a ideologia da Revolução
nicaragüense.
“Queremos viver numa Nicarágua onde não nos chamamos de irmãos
apenas, e sim porque realmente somos irmãos, porque compartilhamos tudo. Uma
Nicarágua sem fome, sem analfabetismo, com hospitais e assistência para todos,
com moradias, com empregos para todos. Onde todos se sintam membros de uma
grande família de nicaragüense, unidos não somente pelo amor à pátria, e sim pelo
amor entre todos nós. Quer dizer, o que nós queremos é uma Nicarágua que seja
autenticamente cristã; que seja sandinista, solidária, fraternal. O que implica,
necessariamente, uma Nicarágua sem capitalismo e sem nenhuma ingerência do
imperialismo em nossas decisões políticas, em nosso país. Essa é nossa meta. Esse
é nosso sonho.”3
b) Fernando Cardenal: Para Fernando Cardenal o inferno já está na Terra
para milhões de latino-americanos que vivem na miséria, por isso considerava que
teria como designação o serviço de libertação plena dos pobres, o que envolveria a
política, a economia e o social. Para Fernando Cardenal isso assinalaria a vinda do
Reino de Deus em sua plenitude.
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Fernando Cardenal acreditava no governo da FSLN como forma de libertação


da opressão que o povo da Nicarágua vivia durante a ditadura somozista.
Aproximava a prática revolucionária e o Evangelho: “Não preciso abençoar a
revolução. Ela se legitima pela sua coerência com o Evangelho.” (CABESTRERO,
1983, p. 81. Entrevista com Fernando Cardenal)
c) Uriel Molina: Uriel Molina, assinalou as diversas etapas de seu
envolvimento com a Revolução. Em 1965, vendo guerrilheiros serem assassinados
pela Guarda Nacional, Uriel Molina se juntou com outros seis sacerdotes para criticar
a brutalidade da ação da Guarda Nacional. O jornal Diário Nacional (que era adepto
do regime somozista) apelidou os sacerdotes como “Os Sete Irmãos de Marx”. Em
1971, montou uma Comunidade Cristã com jovens universitários (que segundo ele
se tornaram figuras de destaque na FSLN). Nesta Comunidade buscavam integrar a
fé e a revolução. Porém, algo ainda inquietava Uriel Molina neste inicio da década
de 70:
“Pois nós, sacerdotes acostumados a ensinar, tivemos muito que aprender
com os jovens que fizeram a Revolução. Eles nos ensinaram que o Evangelho e as
lições de Jesus contêm normas de organização e que por isso a luta revolucionária
em todas as suas formas, seja através do canto, do violão, da leitura bíblica, da
literatura, da greve ou da luta armada, constitui um todo único, que marca para
sempre o ritmo de nosso compromisso.” (SAAVEDRA, 1990, pp. 113–114)
Sobre a opção dos cristãos pela luta armada, Uriel Molina afirma que não
conseguia associar a sua fé cristã com qualquer forma violenta. Porém, Fernando
Cardenal foi o grande orientador de Uriel Molina, pois lhe eliminou a idéia de que a
violência e o cristianismo não combinam: “Não deporemos Somoza com orações,
mas à bala.” (Ibid, pp. 117 – 118)
d) Ernesto Cardenal: Ernesto Cardenal fundou a Comunidade de
Solentiname em 1966. Localizada em uma ilha no lago de Nicarágua, Solentiname
se tornou o grande referencial artístico-revolucionário na Nicarágua. Nesta
comunidade foram produzidos diversos quadros, geralmente destacando um Cristo
camponês e revolucionário, tendo como inimigos os somozistas, os ‘Contra’ e os
Estados Unidos. Os membros de Solentiname também participaram do processo
revolucionário, através da tomada do quartel de São Carlos em 1977. Ernesto
Cardenal relatou este episódio:
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“Acontece que, um dia, um grupo de rapazes de Solentiname (alguns de


minha comunidade) e também moças, por convicções profundas, e depois de haver
pensado sobre o problema por longo tempo, resolveram empunhar armas. Por que o
fizeram? Fizeram-no unicamente por uma razão: por seu amor ao Reino de Deus.
Por seu ardente desejo de que se implante uma sociedade justa, um reino de Deus
real e concreto aqui na Terra”. (VERSUS, 1978, p. 84 – depoimento de Ernesto
Cardenal)
A contemplação foi um marca profunda na vida de Ernesto Cardenal.
Afirmava que a contemplação é a união com Deus, mas para se unir a Deus o
grande passo é a união com os camponeses pobres. Mas para que a contemplação
fosse verdadeira, deveria ocorrer um compromisso político, que conduzisse a
Revolução. Cardenal deixava claro que sua vocação religiosa estava ligada a uma
vocação profética para servir o povo na construção do que chamava: “Reino de Vida
no Amor”.
“O que levou Solentiname a abraçar a causa revolucionária foi o Evangelho,
que comentávamos com os camponeses na missa de domingo. A única mensagem
do Evangelho é a revolução, que ele chama de Reino de Deus, ou dos Céus, em
Mateus – exigência da superação de todas as ameaças de pecado, de injustiça, de
opressão, até que só o amor seja possível. Isso é o mesmo que a sociedade
comunista perfeita”. (BETTO, 1979, pp. 143-144. Entrevista com Ernesto Cardenal)
Cardenal associa constantemente o marxismo com o Evangelho, porém deixa
claro que os dois elementos são diferentes:
“Não existe incompatibilidade alguma entre o cristianismo e o marxismo. Não
são coisas iguais. São diferentes, mas não incompatíveis. (...) O marxismo é um
método cientifico de estudar a sociedade e modificá-la. O que Cristo fez foi
apresentar-nos as metas de transformação da sociedade, metas da humanidade
perfeita que havemos de criar com Ele. Essas metas são a fraternidade e o amor.
Mas Ele não nos disse que métodos científicos deviamos empregar para consegui-
lo.” (CABESTRERO, 1983, p. 37. Entrevista com Ernesto Cardenal)

CONCLUSÃO
A partir deste ensaio percebemos a construção de um imaginário cristão-
revolucionário através da análise do discurso produzido na Nicarágua Sandinista.
Esta construção ideológica foi fundamental para estabelecimento e manutenção do
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governo sandinista, tendo em vista a necessidade do apoio popular a Revolução, e


considerando que os nicaragüenses eram em sua maioria cristãos. Na Nicarágua
nascia uma nova experiência que associou Mística e Revolução.

BIBLIOGRAFIA
AMANECER – nº 1 (mayo/1981), nº 38/39 (diciembre/1985), nº 43 (junio-
agosto/1986), nº46 (enero-febrero/1987), nº47 (marzo/1987), nº50 (junio-
julio/1987), nº 54 (enero-febrero/1988), nº 58(marzo/1989), nº60 (maio/1989),
nº78 (junio-julio/1992).
BETTO, Frei - Diário de Puebla – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
BOFF, Leonardo – Teologia do Cativeiro e da Libertação – Petrópolis: Vozes,
1998.
CABESTRERO, Teófilo - Ministros de Deus, Ministros do povo - Petrópolis:
Vozes, 1983.
EL TAYACÁN, Periódico Popular (1982 até 1986) – (vários exemplares).
EL TAYACÁN e CEHILA, La Historia de la Iglesia en Nicaragua, Manágua:
CEHILA e El Tayacán, 1983.
HIGUET, Etienne – O misticismo na experiência católica – in: Religiosidade
popular e misticismo no Brasil – São Paulo: Paulinas, 1984.
ORTEGA, Daniel, et al. – Nicarágua: Por uma cultura revolucionária. São Paulo:
Hucitec, 1987.
QUEIROZ, José J. (org) – A Igreja dos pobres na América Latina – São Paulo:
Brasiliense, 1980.
SAAVEDRA, Daniel Ortega – Democracia e Religião: Diálogos com Daniel
Ortega Saavedra – tradução: Elizabeth Griff Mariano – São Paulo: FTD,
1990.
SANTOS, Carlos César dos – Revolução e Igreja na Nicarágua agredida – São
Paulo: FTD, s/d.
VERSUS, Cadernos pelo Socialismo, São Paulo: Versus, 1978.

1
EL TAYACÁN, nº194, 1986, ano 5, p. 15 – La Historia de la San Pablo - comentário da última estação da Via
Sacra celebrada pelas comunidades cristãs dos bairros de San Pablo na Semana Santa de 1977, com a
vigilância da Guarda Nacional.
2
VENTANA, 15 de fevereiro de 1986, p. 4 - Texto de José Miguel Torres H. do Eixo Ecumênico de Nicarágua.
3
QUEIROZ, José J., 1980, p. 207 - Depoimento de Miguel D´Escoto, durante o Encontro promovido pela
PUC/SP em 1980, na noite dedicada a Nicarágua.

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