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Gestão habitacional para uma

arquitetura sustentável
Housing management for sustainable architecture

Nirce Saffer Medvedovski


Ligia Maria de Ávila Chiarelli
Patrícia Tillmann
Michelle Muller Quandt

Resumo
través de uma análise comparativa dos conjuntos residenciais de Pelotas,

A RS, este estudo visa a identificar variáveis que permitam aprimorar as


práticas de gestão habitacional, buscando contribuir para a melhoria
desses espaços e propor parâmetros para novos projetos. Foram
realizados quatro estudos de caso em conjuntos habitacionais, públicos e privados.
Com ênfase nos processos de gestão habitacional, efetuou-se uma avaliação pós-
ocupação funcional, técnica e comportamental. Os principais resultados
encontrados foram: (a) os espaços coletivos dos conjuntos públicos apresentam
problemas de manutenção e conservação; (b) a maioria dos moradores não
participa da organização do condomínio em ambos os tipos de conjuntos
habitacionais; e (c) foram detectadas mudanças feitas pelos moradores, inserindo
novos usos e ampliações, não existindo controle destes por parte do condomínio.
Esses resultados mostram que a habitação de interesse social deve ser entendida
como prestação de serviços habitacionais. Além disto, a avaliação da gestão
condominial desses conjuntos tem mostrado a fragilidade da lei de condomínios
Nirce Saffer Medvedovski
Departamento de Arquitetura para lidar com as complexas relações existentes nos conjuntos habitacionais
Faculdade de Arquitetura e populares.
Urbanismo
Universidade Federal de Pelotas Palavras-chave: gestão habitacional, avaliação pós-ocupação, espaços coletivos,
Rua Benjamin Constant, 1359 condomínios
Pelotas – RS - Brasil
CEP: 96010-020
Fone: (53) 278-6855
E-mail: nirce@ufpel.tche.br
Abstract
Based on a comparative analysis of housing estates from Pelotas, RS, this study
Ligia Maria de Ávila Chiarelli aims to identify variables that support the improvement of housing management
Departamento de Arquitetura
Faculdade de Arquitetura e practices, in order to make contributions for the improvement of such spaces and
Urbanismo propose parameters for new designs. Four case studies were carried out in
Universidade Federal de Pelotas E-
mail: biloca@ufpel.tche.br
housing estates, some promoted by both the state and others by private developers.
A functional, technical and behavioural post occupancy evaluation was carried
Patrícia Tillmann out, emphasising housing management processes. The main results of this
Departamento de Arquitetura
Faculdade de Arquitetura e research study were: (a) the housing states promoted by the state had problems
Urbanismo related to maintenance and conservation of collective spaces; (b) most dwellers
Universidade Federal de Pelotas
E-mail: pattilman@yahoo.com
do not take part in the condominium organisation in both types of estates; and (c)
several changes made by dwellers were detected, including new uses and building
extensions, and the building managers do not have control on them. The results
Michelle Muller Quandt
Departamento de Arquitetura
suggest that social housing must be regarded as the provision of housing services.
Faculdade de Arquiterura e Moreover, the assessment of condominium management in those housing estates
Urbanismo indicates that the Brazilian condominium law is inadequate for dealing with the
Universidade Federal de Pelotas
E-mail: michelle.quandt@bol.com.br complex relationships that exist in housing estates for low income peopl.
Recebido em 16/11/2004 Keywords: housing management, post-occupancy evaluation, collcetive spaces,
Aceito em 20/06/2005 condomínium

Ambiente Construído, Porto Alegre, v. 5, n. 3, p. 49-61, jul./set. 2005. 49


ISSN 1415-8876 © 2005, Associação Nacional de Tecnologia do Ambiente Construído. Todos os direitos reservados
Introdução
Mediante uma análise comparativa de conjuntos compete a manutenção do pavimento das ruas para
residenciais de Pelotas, RS, este estudo visa que passe o caminhão do lixo? Quem se
identificar variáveis que permitam aprimorar as responsabiliza pela substituição do latão
práticas de gestão habitacional buscando contribuir danificado? Quem leva o lixo do segundo
para a qualificação e o uso efetivo desses espaços, pavimento até o latão? Colocar estas questões é
bem como contribuir para parâmetros para novos como querer descobrir as regras ocultas pela
projetos. Enfatizam-se os parâmetros que banalidade do cotidiano. Trata-se de mais que um
contribuam para a sustentabilidade. Trata-se de levantamento dos aspectos exteriores dos espaços,
uma reflexão crítica sobre os trabalhos realizados aqueles que são visíveis: o mobiliário, a vegetação,
até o presente pelo Núcleo de Estudos de a pavimentação, entre outros. Mesmo o que está
Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de escondido dos olhos, como a rede de água e a de
Arquitetura e Urbanismo (NAUrb) da esgoto, acaba aparecendo nas faltas ou nos
Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) sobre o excessos, como a falta de água o extravazamento
tema dos espaços coletivos e serviços públicos do esgoto.
urbanos1 em conjuntos habitacionais de interesse O NAUrb vem adotando a análise conjunta destes
social.2A gestão habitacional é aqui enfocada nos
espaços e dos serviços que lhe servem, entendendo
aspectos da vida coletiva destes conjuntos, sua indissociabilidade na abordagem do tema da
abordando tanto o uso e manutenção dos seus
gestão habitacional. Assim, além da manutenção
espaços exteriores como os serviços e infra- dos espaços exteriores, a eficácia e a eficiência dos
estrutura urbanos que lhe são atinentes. O conceito serviços urbanos são abordadas segundo o seguinte
de manutenção dos espaços exteriores tem sido
conjunto de ações (MEDVEDOVSKI, 1988, p.
freqüentemente associado à limpeza e conservação 43):
de caminhos, jardins e demais espaços de uso
coletivo (DUVAL, 1997; LAY, 1998; REIS, (a) manutenção – cuidados técnicos
1998). Quanto ao tema da infra-estrutura e serviços indispensáveis para o funcionamento regular e
urbanos, Abiko já destacava em 1995 que os permanente; conservação; manter em
serviços urbanos incluem não somente as redes de funcionamento as instalações e equipamentos
infra-estrutura urbana e os serviços em seus (manutenção preventiva);
aspectos físico-materiais, mas também a gestão (b) reparação – conserto; restauração de partes
dos serviços aos quais as redes dão sustentação. A danificadas; devolver a feição original das redes e
mesma abordagem deve ser estendida aos espaços equipamentos;
coletivos exteriores dos conjuntos habitacionais.
(c) melhoria – ampliação; expansão; pode referir-
Torna-se necessária a identificação não só das se à extensão da prestação do serviço (maior
ações de gestão como do responsável a quem número de pessoas atingidas pelo serviço) ou ao
compete cada uma delas. Tomando como exemplo seu aprimoramento (a melhoria da qualidade da
o serviço de coleta e disposição do lixo, a quem prestação do serviço); pode acontecer mediante o
aperfeiçoamento das técnicas, dos equipamentos
1
A presença e a qualidade dos serviços públicos urbanos estão ou das instalações; e
condicionadas pelo estágio de desenvolvimento das forças
produtivas e dos meios de produção. O consumo de água (d) alteração – modificação; correção;
residencial, assim como a eliminação dos dejetos domésticos,
entre outros, vincula-se historicamente ao desenvolvimento reformulação; mudar a prestação do serviço
técnico disponível, aos hábitos culturais e à inserção de classe quando mudam as necessidades; retificação dos
dos usuários/consumidores. Medvedovski (1988, item 1.3.2.3) serviços para atender a novas necessidades.
classifica os serviços públicos urbanos para Pelotas nos seguintes
itens: sistema viário: arruamento, alinhamento e nivelamento;
pavimentação, trânsito e tráfego, sinalização; infra-estrutura
A preocupação com a adequada gestão dos espaços
urbana: saneamento básico de água e esgoto, escoamento coletivos exteriores e serviços urbanos vem não só
pluvial e drenagem, energia elétrica; serviços urbanos: contribuir para a qualificação e o uso efetivo destes
abastecimento de gás, coleta de lixo e limpeza urbana,
iluminação pública; segurança pública, serviços de espaços, mas também para a sustentabilidade em
comunicações. suas várias abordagens.
2
Entre os projetos de pesquisa desenvolvidos no NAUrb, Martins (1994), ao analisar os limites do
destacamos: teses de doutorado: Medvedovski (1998), Costa
desenvolvimento sustentável na América Latina,
(2003); tese de mestrado: Chiarelli (2000); pesquisas: Diretrizes
Especiais para Regularização Urbanística, Técnica e Fundiária de
situa as origens do nosso desenvolvimento a partir
Conjuntos Habitacionais Populares (2001), WEB-HAB – Banco do modelo econômico, responsável, no seu
Digital de Habitação Popular – Produção de Conjuntos entendimento, pela atual situação ambiental. A
Residenciais em Altura Pelotas, RS – Período 1956-2000 (2003), e
Requali – Gerenciamento de requisitos e melhoria da qualidade partir dessas preocupações, alerta para o fato de
na habitação de interesse social (2004). Vide bibliografia.

50 Medvedovski, N. S; Chiarelli, L. M. A; Tillmann, P; Quandt, M. M.


que irão existir diferentes concepções de (c) sustentabilidade ambiental – compatibilização
desenvolvimento sustentável refletindo aquilo que com a preservação do meio ambiente, inclusive ao
é pensado sobre o que deve ser sustentado, para patrimônio ambiental urbano, adequada inserção
quem, para quê e de que maneira. De acordo com ao meio, eficiência energética, adequação da
essas concepções, irão se plasmando diferentes energia solar passiva, racionalização do uso da
alternativas de superação dos problemas. No água, adequada coleta e disposição e tratamento de
prefácio do mesmo livro, de uma maneira simples resíduos sólidos, adequado tratamento de esgoto,
e objetiva, Silva (1995) traduz: “desenvolvimento equacionamento da coleta pluvial com garantia de
sustentável é aquele que consegue garantir as permeabilidade do solo e retenção das águas no
necessidades das gerações presentes sem local; e
comprometer as das gerações futuras”. Quando se (d) sustentabilidade espacial – definição dos
aborda a questão da sustentabilidade relacionada domínios do público, privado e coletivo, inserindo
ao tema da Habitação de Interesse Social, podem
a discussão sobre conceitos já empregados na
ser analisadas variadas dimensões, incluindo habitação unifamiliar adaptada para a habitação
pontos de vista a partir de aspectos econômicos, multifamiliar: flexibilidade (construir para mudar),
ambientais, sociais, culturais, espaciais e outros
moradia progressiva (cujo produto final condiciona
(SEDREZ, 2004). O debate acerca desse tema se ou predetermina as etapas intermediárias) e
torna complexo, pois a relação entre essas moradia evolutiva (aquelas que no processo de
dimensões ainda não está suficientemente estudada
crescimento se podem desenvolver em caminhos
e esclarecida. Muitas decisões são tomadas alternativos) (FERRERO, 1998).
gerando ambigüidades. De forma geral, o
entendimento mais comumente aceito parece ser o Em suma, este artigo aborda a gestão de conjuntos
de que a tomada de decisões deve responder ao habitacionais no contexto da cidade de Pelotas,
desafio de que as alternativas habitacionais buscando identificar variáveis que permitam
venham a atender, dentro dos limites disponíveis, aprimorar as práticas de gestão habitacional com o
às expectativas dos futuros moradores. É possível fim de contribuir para a melhoria desses espaços
acrescentar que a tomada de decisões envolvendo bem como parâmetros para novos projetos. Sua
os futuros usuários deva ser acompanhada de ênfase foi colocada sobre melhorias e paramentos
esclarecimentos por parte dos projetistas para que, que se preocupam com a sustentabilidade.
ao garantir os interesses dos moradores de hoje,
não comprometa as necessidades das futuras Metodologia
gerações. Por outro lado, é importante admitir que A Avaliação Pós-Ocupação (APO) é uma
os interesses dos moradores mudam através do metodologia precisa e diversificada de avaliação
tempo, gerando novos desafios. dos ambientes construídos que apresenta como
Em estudo recente, Sedrez (2004) procura principal característica a participação dos usuários
contribuir com esse debate ao tratar da no processo de análise. Seu objetivo principal é
sustentabilidade do ambiente construído, avaliar o desempenho de ambientes construídos em
destacando a complexidade da abordagem do tema uso, buscando minimizar ou corrigir problemas
e a necessidade de um tratamento multidisciplinar detectados no ambiente construído utilizando os
desse assunto em empreendimentos de interesse resultados dessas avaliações como realimentadores
social. do ciclo do processo de projeto, produção e
manutenção.
Como nossa contribuição a essa discussão
poderíamos destacar: A APO dos serviços e espaços coletivos exteriores
foi realizada em dois estudos sobre quatro
(a) sustentabilidade econômica – emprego de
conjuntos habitacionais localizados na cidade de
materiais e técnicas adequados, considerando
Pelotas, sendo dois de interesse social e dois de
benefício à economia local (PELLI, 1997) e
promoção privada destinados aos setores de renda
custos. Diminuição de viagens entre habitação e
de 3 a 5 SM, aplicando métodos e técnicas
trabalho, com conseqüente economia de recursos
qualitativos e quantitativos, como entrevistas com
energéticos não renováveis;
informantes qualificados, questionários, mapas
(b) sustentabilidade sociocultural – diversidade de comportamentais (que localizam no espaço o
usos; geração de emprego e renda junto à comportamento dos usuários) e mapas temáticos
habitação, ambientes de apoio ao desenvolvimento (que espacializam indicadores urbanísticos ou
da comunidade; adequação de formas de variáveis socioeconômicas) produzidos através de
participação da comunidade; condomínio, georreferenciamento em sistemas de informações
associação de moradores, comissão de moradores, geográficas (SIG).
etc.;

Gestão habitacional para uma arquitetura sustentável 51


O primeiro estudou dois conjuntos habitacionais em CAD e tabuladas em Excell, sem utilização do
promovidos pelo Estado no final da década de 70, SIG (ver MEDVEDOVSKI, 1988). Num segundo
ainda dentro da concepção modernista de grandes momento as técnicas de georreferenciamento e
empreendimentos edificados de uma só vez (1.780 confecção de mapas temáticos a partir de bancos
e 2.400 unidades), os conjuntos habitacionais de dados alfanuméricos foram aplicadas ao
Lindóia e Guabiroba. A gestão dos espaços conjunto Lindóia. Foram gerados mapas temáticos
coletivos exteriores e dos serviços urbanos foram digitais sobre os temas de usos e ampliações,
assumidos pela prefeitura municipal e pelas regularidade do ISSQN, condições das redes dos
concessionárias de serviços públicos, uma vez que serviços de água e esgoto, inadimplência junto à
não foram organizados os condomínios que concessionária de saneamento, simulação do
deveriam efetuar sua gestão. Sem controle do pagamento de IPTU pelo acréscimo de área
condomínio ou da municipalidade, os usuários irregular, entre outros.
ampliaram suas moradias e incorporaram novos
Nos conjuntos privados foram aplicados
usos. Há problemas de manutenção das vias e questionários em uma amostra exploratória para o
praças, bem como dos serviços, resultantes da usuário adulto de 30 unidades em cada conjunto
indefinição de competências entre os usuários e o
habitacional. Observação de traços físicos com uso
Poder Público. Os espaços coletivos exteriores de fotos e check list (ou listas pré-codificadas –
permaneceram abertos à utilização de usuários listas de itens a serem observados, levantados
externos, e o conjunto adquiriu uma conformação
previamente à ida a campo) e mapas
semelhante à dos bairros próximos, com uso comportamentais também foram empregados (ver
intenso das vias principais para comércio e COSTA, 2003).
serviços e apropriação das praças de quarteirão
pelos moradores imediatos. Para o diagnóstico da qualidade dos serviços
públicos urbanos na esfera do cotidiano, a
No segundo caso foram estudados dois conjuntos Avaliação Técnica foi realizada junto com a
habitacionais de menor porte promovidos pela
Avaliação Organizacional, a primeira identificando
iniciativa privada (700 e 1.200 unidades), os as condições técnicas dos serviços, e a segunda, a
conjuntos Cohaduque e Village Center I, que são sua gestão. Pesquisas qualitativas por meio de
geridos por condomínios estabelecidos pelos
entrevistas com informantes qualificados foram
próprios moradores. A apropriação de espaços utilizadas bem como dados secundários de
exteriores é rigidamente controlada pelo síndico e registros de ocorrência de manutenção e reparos
há pouca diversidade de usos. A manutenção dos
em redes de esgoto e tanques sépticos fornecidos
espaços coletivos e serviços é efetuada pelo pela prestadora do serviço de saneamento.
condomínio, encontrando duas situações
diferenciadas: o primeiro conjunto permanece Destacamos a validade da aplicação dos métodos e
aberto a usuários externos; e o segundo apresenta- técnicas da APO como instrumento amplo que
se totalmente fechado. No conjunto que permanece permitiu revelar outros aspectos além dos
aberto surgem ambulantes e trailers tolerados pelo inicialmente objetivados nas pesquisas citadas e
condomínio. Em ambos os casos os usuários propiciar dados para a reflexão sobre a
declararam-se satisfeitos com a atuação do sustentabilidade. Entendemos que este fato deva-se
condomínio, mas foi verificado um grande atribuir à utilização de métodos qualitativos, que,
distanciamento e desinteresse dos usuários em com cunho exploratório, abrem a reflexão sobre o
relação aos aspectos de gestão e pouca utilização objeto estudado.
dos espaços exteriores. A exceção a esse perfil de
comportamento refere-se aos espaços imediatos Resultados e discussão – as
das entradas no Conjunto Village Center I, onde os
moradores, isoladamente ou em grupo, com a relações entre gestão de
conivência do condomínio, efetuaram conjuntos habitacionais e
modificações na forma física, qualificaram o
espaço e efetuam a adequada manutenção.
sustentabilidade
Em ambos os casos foram aplicados métodos Análise do Instrumento Jurídico do
qualitativos e quantitativos, como observações, Condomínio
entrevistas e questionários com utilização de
diversas técnicas. Em primeiro lugar, cumpre analisar o instrumento
jurídico do condomínio, a fim de frisar seus
Para o caso dos conjuntos públicos foi realizada caracteres jurídicos absolutamente inadequados
uma primeira pesquisa de cunho cadastral sobre os para lidar com o problema dos conjuntos
aspectos de uso do solo e ampliações, registradas habitacionais.

52 Medvedovski, N. S; Chiarelli, L. M. A; Tillmann, P; Quandt, M. M.


Como se sabe, no condomínio por unidades É o caso dos conjuntos Lindóia e Guabiroba em
autônomas tem-se uma figura jurídica original, na Pelotas.
qual se combinam uma com a propriedade e uma Muitos foram os problemas que marcaram esse
propriedade individual perfazendo o instituto do
período, tanto na esfera do gerenciamento pelo
Condomínio. Segundo Pereira (1983, p. 92), a Poder Público, como na esfera jurídica da eficácia
singularidade deste instituto jurídico estaria da figura do condomínio neste segmento
justamente “na fusão dos conceitos de domínio
populacional. De outra parte, também os usuários
particular ou exclusivo e de domínio plural ou experimentaram a fragilidade de um modelo que
comum, para a criação de um conceito próprio ou edificou para os pobres na periferia da urbe, no
de um complexus jurídico que existe neste tipo de
limite entre a cidade e o campo, com soluções de
propriedade e que não é encontrado em nenhum projeto homogeneizadoras e com material de baixa
outro tipo de propriedade”. A originalidade, então, qualidade.
do Condomínio estaria neste amálgama que une a
propriedade particular com o condomínio A figura jurídica do condomínio tornou-se uma
tradicional, resultando em outra figura jurídica ficção jurídica entre essa população. A legislação
com regime próprio. omitiu-se acerca do papel do Poder Público nesses
casos, deixando uma lacuna de difícil
No Brasil, o Condomínio por unidades autônomas
equacionamento no caso dos conjuntos
foi regulado pela Lei nº 4.591, de 16 de dezembro residenciais de caráter popular. O grande problema
de 1964, e mais recentemente pelo novo Código é que as unidades habitacionais foram
Civil, Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. O
comercializadas sem que os condomínios tivessem
artigo 1.331, § 1º e 2º, trata de indicar, se constituído de fato, quem dirá de direito. Os
separadamente, o que é propriedade individual e o
espaços tidos como “comuns” foram, não
que é comunhão: raramente, apropriados privadamente pelos
Art. 1.331 Pode haver, em edificações, partes que condôminos ou por terceiros estranhos ao
são propriedades exclusivas, e partes que são condomínio. As responsabilidades pela gestão dos
propriedade comum dos condôminos. serviços urbanos e pela manutenção das áreas
§ 1º As partes suscetíveis de utilização coletivas ficam indefinidas. Muitos especialistas
independente, tais como apartamentos, passaram a descrer das possibilidades de essa
escritórios, salas, lojas, sobrelojas ou abrigos figura jurídica ser capaz de solucionar
para veículos, com as respectivas frações ideais adequadamente os problemas técnicos e jurídicos
no solo e nas outras partes comuns, sujeitam-se que passaram a grassar entre os conjuntos
a propriedade exclusiva, podendo ser alienadas habitacionais alinhados com tal perfil. A
e gravadas livremente por seus proprietários. irregularidade passou a ser a regra; e a
§ 2º O solo, a estrutura do prédio, o telhado, a regularidade, a exceção.
rede geral de distribuição de água, esgoto, gás e
Outro aspecto a examinar é o condomínio como
eletricidade, a calefação e refrigeração centrais,
e as demais partes comuns, inclusive o acesso instituto de Direito Civil para lidar com um
ao logradouro público, são utilizados em comum problema de Direito Urbanístico. Medvedovski
pelos condôminos, não podendo ser alienados (1998) levanta a questão da inadequação do
separadamente, ou divididos. instituto jurídico do condomínio. Cita a obra de
direito urbanístico de Silva (1995, p. 314), na
Ambos os direitos, conjugados, formam uma
análise do Regime do Desenvolvimento Urbano
unidade jurídica, não havendo preponderância de
Condominial, que destaca que existe um conflito
um sobre o outro ou relação de acessoriedade.
implícito na própria natureza da “Lei de
Uma das formas de se constituir o condomínio é a Condomínios” (Lei nº 4.591/64), pois:
promoção pelo Poder Público, quando a
O regime jurídico dessa modalidade de
municipalidade ou órgão autárquico, ou mesmo o desenvolvimento urbano [...] é do direito
Estado, edifica ou terceiriza a construção e oferece privado, [...] com natureza jurídica, como visto,
aos particulares, previamente cadastrados ou não, a de condomínio privado, natureza que não é
compra de unidades sob regime de Condomínio adequada a qualquer forma de desenvolvimento
por unidades autônomas. Esta modalidade foi urbano, que, caracterizando-se como espécie de
bastante freqüente ao tempo do BNH e resultou em ordenação do solo, há de entrar no campo da
inúmeros conjuntos habitacionais destinados ao atividade urbanística do poder público, sujeita
atendimento das demandas por moradia da ao regime de direito público (Direito
Urbanístico) [grifo nosso].
população de baixa renda, espalhados pelas
cidades brasileiras. Bonna de Villa (1987, p. 81), em trabalho da
Cepam sobre conjuntos em condomínio, considera
que a referida lei “foi feita para regulamentar

Gestão habitacional para uma arquitetura sustentável 53


relações comerciais e regimes de propriedade, não condôminos estão intermediadas pela propriedade
com a preocupação de expedir normas de sua unidade privativa. Esta é que é essencial, e
urbanísticas”. não as áreas coletivas, que são consideradas
“acessórias”. Conforme Alfonsin (2000), “O
Alfonsin (2002), em parecer jurídico sobre a
irregularidade de conjuntos habitacionais para a vínculo jurídico que congrega os condôminos é um
pesquisa Finep/Habitare conduzida pelo NAUrb, vínculo real e não pessoal, ou seja, as pessoas
estão relacionadas em virtude da coisa que as
conclui pela inadequação do instituto jurídico do
condomínio, que é um instituto de Direito Civil, liga, ou seja, o edifício utilizado a um só tempo
ramo do Direito Privado, para lidar com uma privada e comumente por todos”.
realidade de conjunto habitacional de baixa renda, Entretanto, no conceito mais amplo de habitação
matéria que, sem dúvida, deveria ser regulada pelo (PELLI, 1997), esta é um conjunto de “situações,
Direito Urbanístico, ramo do Direito Público, por bens e serviços, desagregáveis no tempo e espaço e
lidar, em verdade, com “uso, ocupação e em seus processos de produção e uso”. A
parcelamento do solo urbano”, competência legislação condominial tem seu cerne na área
eminentemente municipal. No Item I, sobre a privativa e é extremamente operacional para
sustentabilidade ambiental, trataremos de resolver questões de propriedade onde a convenção
exemplificar os problemas de gestão em de condomínio e o regimento condominial são
saneamento de esgotos para um desses conjuntos rigidamente cumpridos. Entretanto, para qualquer
habitacionais de promoção pública. pequena mudança ou acréscimo nas áreas
privativas ou comuns, o regime condominial não
Por outro lado, no caso em que os condomínios se
constituíram de fato e de direto, como nos casos se mostra flexível: os cálculos de frações ideais
deverão ser refeitos e estas obras deverão ser
dos conjuntos promovidos pela iniciativa privada,
Cohaduque e Village Center I, verificamos a aprovadas por dois terços dos condôminos, se
inadequação da forma jurídica em tratar as forem realizadas em partes comuns (Art. 1.342), e
da unanimidade dos mesmos, caso se tratar de
relações humanas que se queiram constituir de
forma solidária. novo pavimento ou de outro edifício no “solo
comum” (Art. 1.343). Problema semelhante ocorre
A obra de Mezzari (1996), Condomínio e para a introdução de novos usos no espaço do
Incorporação no Registro de Imóveis, voltada a condomínio.
“clarear conceitos e harmonizar as relações das
pessoas com o Registro de Imóveis” (MEZZARI, Sobre a participação do morador na gestão do
1996, p. 10), enfoca o condomínio como uma condomínio, a legislação anterior e o Novo Código
Civil permitem delegar a terceiros (o sindico, os
relação empresarial. Considera que o termo
“condomínio” não foi adequado, pois o legislador subsíndicos e as imobiliárias) a gestão de tudo que
abdicou de dar novos nomes para novas situações. é comum, permitindo, de certa forma, a alienação
do condômino das decisões sobre sua vida
“Aqueles que falam em condomínio partem da
relação jurídica que somente existe nas áreas de cotidiana (Art. 1.347, § 2º).
uso comum e no terreno, declaradamente Feitas essas considerações, relatamos dois recortes
acessórios daquilo que é o principal – a unidade dos estudos já realizados sobre o tema de gestão
autônoma” (grifo nosso) (MEZZARI, 1996, p. 20). dos espaços exteriores e serviços urbanos nos
Essa ênfase na unidade habitacional (a unidade conjuntos habitacionais citados para relacioná-los
autônoma), para o caso da promoção de conjuntos com o tema da sustentabilidade.
residenciais, era parte da visão central-
desenvolvimentista, para usar o termo de Bonduki
(1997, p. 62), que orientou a promulgação da
Estudos de caso
referida lei, que também instituiu as Incorporações Sustentabilidade ambiental (estudos de caso nos
Imobiliárias, poucos meses depois de dar corpo a conjuntos públicos): os espaços coletivos dos
um sistema financeiro da habitação calcado no conjuntos públicos apresentam problemas de
Banco Nacional de Habitação (BNH) e no manutenção e conservação, com sérios impactos
estímulo à poupança privada: o principal era a ambientais. Segundo o trabalho “Diretrizes
unidade autônoma. O fundamental era viabilizar o Especiais para Regularização Urbanística, Técnica
mercado imobiliário e possibilitar a identificação e Fundiária de Conjuntos Habitacionais Populares”
de cada unidade autônoma para dela fazer uma (2001), a falta de critérios socioeconômicos nas
unidade “comercializável” e passível de servir de decisões de projeto acarreta em sérios problemas
garantia a empréstimos bancários. Os espaços de gestão, conservação e manutenção nos
coletivos eram meros acessórios que viabilizavam conjuntos habitacionais. No estudo de caso
o acesso à habitação, para o caso dos edifícios abordado no trabalho, o conjunto habitacional
multifamiliares. Portanto, as relações entre os

54 Medvedovski, N. S; Chiarelli, L. M. A; Tillmann, P; Quandt, M. M.


Lindóia, as decisões de projetos obedeceram e até modificar a forma física e o tratamento
rigidamente a critérios técnicos e de ordem original dos espaços coletivos mais próximos das
econômica. O resultado foi a ocupação de espaços suas habitações. Isso se percebe nas características
coletivos onde se encontram as redes de água e físicas diferenciadas com que se apresentam essas
esgoto do conjunto resultando em problemas sérios áreas, adaptadas e melhoradas continuamente pelos
de entupimento, mau cheiro e transbordamento. residentes, sem oposição dos demais e com o
As Figuras 1 e 2 a seguir mostram os números do silêncio da administração condominial. Esta se
conjunto habitacional Lindóia, referentes a infra- limita a prover intervenção física de conservação
estrutura. geral, sem atenção especial para nenhum ambiente
Se analisarmos individualmente o sistema de externo em particular com o fim de qualificá-lo. O
abastecimento de água e a coleta do esgoto resultado pode ser apreciado na avaliação de
sanitário, observaremos que ele funcionaria satisfação dos moradores em relação aos espaços
perfeitamente. Porém, a falta de gestão e públicos. No Village I, 66,6% e, no Cohaduque,
manutenção faz com que este não apresente o 96,7% dos entrevistados consideraram boa ou
desempenho esperado. Tal fato leva a que milhares ótima a conservação das áreas condominiais.
de litros de esgoto sem tratamento sejam Ponderando que em outra oportunidade no
despejados nos coletores pluviais, que por sua vez questionário indicam não utilizar os espaços
deságuam no arroio Pelotas. Segundo a norma abertos, pode-se supor que essa avaliação positiva
brasileira, cada pessoa contribui com cerca de 100 inclua, além das praças, playground e caminhos, os
litros por dia de esgoto cloacal. Na época da espaços personalizados e mantidos por sua ação
execução do projeto estimava-se uma população de direta. Tal fato elevaria a satisfação (ver Figura 4).
7.100 pessoas. Assim temos uma contribuição Sustentabilidade sociocultural (estudos de caso
diária de esgoto cloacal de 7.100 pessoas x 100 nos conjuntos privados): mediante uma avaliação
litros = 710.000 litros/dia. Esse despejo diário de pós-ocupação nos conjuntos habitacionais Village
esgoto cloacal nos mananciais locais gera sérios Center I e Cohaduque, ambos com um sistema de
danos ao meio ambiente, comprometendo as autogestão sediada no próprio conjunto, pode-se
futuras gerações. observar que os moradores não participam, nem se
interessam em participar das questões
Foi verificada com os projetos dos conjuntos
habitacionais estudados a aplicação do pensamento administrativas do condomínio, conforme Figuras
imediatista da solução econômica no desenho da 4 e 5.
rede (mesmo que este obedeça às normas técnicas), De acordo com as respostas obtidas pela aplicação
cuja eficiência é avaliada segundo o custo de de um questionário, há um distanciamento quase
produção, sem preocupação com a eficácia – a unânime dos residentes em relação à administração
qualidade na operação, a manutenção e a dos conjuntos. Apenas 13,3% das respostas no
reparação. Em nível do projeto, previsão de contingente pesquisado na Cohaduque e 23,3% no
melhorias e alterações são idéias remotas. Village Center I já participam ou indicam algum
Sustentabilidade ambiental (estudos de caso nos interesse de eventualmente participar das
atividades rotineiras do condomínio e de sua
conjuntos privados): como vimos anteriormente, a
preocupação com a gestão adequada dos espaços própria organização.
coletivos exteriores vem não só contribuir para a Além disso, cerca de 73% dos entrevistados na
qualificação e o uso efetivo desses espaços mas Cohaduque e 90% no Village Center I
também para a sustentabilidade ambiental, como desconhecem a finalidade de aplicação do
se pode observar nos conjuntos Village I e montante de valores arrecadados no condomínio,
Cohaduque. Verificou-se a coexistência de um conforme Figura 6, apontando apenas que a maior
processo informal e independente de autogestão, parte dos recursos destina-se a cobrir as despesas
paralelo à administração condominial central, pelo ordinárias, como tarifa da água e o pagamento de
qual o morador, isoladamente ou em grupo, funcionários
imprime o seu jeito de conservar, direcionar o uso

Gestão habitacional para uma arquitetura sustentável 55


Fonte: Medvedovski (2001)

Figura 1 - Extrato do mapa 14 – Acesso ao tanque séptico

4,92%
(88)

29,55%
(528) Sem Acesso
Com Acesso
Acesso Parcial
65,53%
(1171)

Fonte: Medvedovski (2001)

Figura 2 - Gráfico cadastral com percentual de acessibilidade aos tanques sépticos

Fonte: Costa (2003)

Figura 3 - Espaços mantidos e personalizados pelos moradores no Village I, pela possibilidade de


autogestão condominial

56 Medvedovski, N. S; Chiarelli, L. M. A; Tillmann, P; Quandt, M. M.


Você participa das reuniões do condomínio?

100
90
80
70
Porcentagem

60 Cohaduque
Village
50
40
30
20
10
0
ativamente exporadicamente não participa ou nunca
raramente
Avaliação

Fonte: Costa (2003)


Figura 4 - Síntese das respostas obtidas sobre a participação dos moradores na organização condominial
dos conjuntos

Gostaria de participar da organização do condomínio?


100

90

80

70
Cohaduque
Porcentagem

60 Village

50

40

30

20

10

0
sim não não sabe já participa sem resposta
Avaliação

Fonte: Costa (2003)


Figura 5 - Síntese das respostas obtidas sobre o interesse dos moradores na organização condominial
dos conjuntos

Gestão habitacional para uma arquitetura sustentável 57


Você sabe no que é gasto o valor do condomínio?

100
90
80
70
Porcentagem

60 Cohaduque
50 Village
40
30
20
10
0
sim não
Avaliação

Fonte: Costa (2003)


Figura 6: Síntese das respostas obtidas sobre os gastos do condomínio

Observou-se, portanto, que há desinteresse por o fechamento dos espaços do conjunto e a exclusão
parte dos moradores nas questões de gestão dos das atividades não-residenciais foi o que permitiu a
conjuntos habitacionais, o que significa a ausência diversidade e a flexibilidade dentro do seu espaço.
de qualificação dos espaços condominiais e Apesar de a maior parte das atividades comerciais
demanda por melhorias. localizar-se nas ampliações efetuadas pelos
Sustentabilidade sociocultural (estudos de caso moradores e estar em situação de irregularidade no
nos conjuntos públicos): foram detectadas Cadastro Urbano Municipal, bem como junto ao
mudanças feitas pelos moradores, inserindo novos Registro de Imóveis, foi possível verificar que
usos e ampliações onde não há o controle rígido do estes não encontraram maiores dificuldades de
condomínio. obter o alvará junto ao Departamento de Controle
Verificou-se que os projetos originais dos dois Urbanístico (DCUrb) da Prefeitura Municipal de
Pelotas. Bastava que o futuro comerciante
conjuntos públicos estudados previam exatamente
esta segregação de atividades dentro do próprio realizasse um abaixo-assinado junto aos moradores
conjunto: seu projeto original apresentava um do quarteirão declarando o acordo deles com a
abertura do novo negócio. A justificativa da lei
espaço central onde estão localizados o
supermercado, a escola, a igreja e a creche. A esclarecia que seu objetivo era “estimular a
maior parte dos conjuntos COHAB pelo Brasil manutenção e a geração de empregos, bem como a
renda dos pequenos empreendimentos”.
afora subestimou o consumo de bens e serviços
dos setores de mais baixa renda, destinando-lhes Portanto, o Legislativo Municipal viu-se obrigado
acanhado lugar no espaço dos conjuntos. Com a reconhecer uma realidade imposta pelo
exceção do comércio local centralizado pelo cotidiano, e essas práticas foram regulamentadas
“supermercado”, preconizou-se somente o através da aplicação de uma legislação geral e
provimento de bens e serviços públicos. outra específica para os conjuntos habitacionais
Simplesmente, esses usuários não foram encarados (Lei Municipal nº 2.837/84).
como consumidores de bens e serviços privados.
O levantamento de campo do Lindóia e do
Esse fato ocasionou o surgimento de diversas Guabiroba revelou a presença de 129 atividades de
atividades privadas nos conjuntos habitacionais, o comércio e serviço no primeiro e 167 no segundo.
que gerou um crescimento desordenado de
Isso resultou numa média de uma em cada 14
edificações sobre os espaços coletivos do conjunto. unidades domiciliares gerando uma atividade de
A falta de um controle centralizado e com amparo emprego ou renda, conforme Figura 7.
legal, como de um condomínio, que determinasse

58 Medvedovski, N. S; Chiarelli, L. M. A; Tillmann, P; Quandt, M. M.


Fonte: Medvedovski (2001)
Figura 7: Extrato dos Mapas 10 e 11: Atividades cadastradas no ISS – 1° e 2° Pavimentos

Mudando os marcos estudos de avaliação pós-ocupação, buscando


contribuir para a melhoria destes espaços bem
referenciais como com parâmetros para novos projetos.
Há de se inverter o raciocínio tradicional que Dentro deste marco teórico-metodológico, são
coloca a habitação como uma mercadoria e que propostas as reflexões a seguir.
esta mercadoria está acabada por ocasião da venda.
(a) No tema dos serviços urbanos, integrar a
Tal concepção de habitação não nos permite
gestão ao projeto, prevendo as ações de operação,
abarcar toda a complexidade do tema. Também
reparo e manutenção. Os usuários devem ter
exclui toda a habitação produzida com a
domínio dos aspectos que interferem em sua vida
participação do usuário e ao longo do tempo, que
cotidiana. Este domínio significa clareza das
consiste na esmagadora maioria das habitações
atribuições das várias instâncias de uso e
urbanas brasileiras.
apropriação destes serviços e suas redes quanto ao
Propostas como as formuladas por Vitor Pelli tema da gestão, com reflexo direto no projeto. Um
(1997), estudioso latino-americano da habitação, maior controle do consumo de insumos (como
de “unidades de gestão habitacional” e um água, gás, energia, etc.) e de destinação dos
“sistema de serviços participativos e progressivos”, resíduos (esgoto, águas servidas, lixo, etc.) da
poderão ser um dos caminhos a seguir, utilizando o atividade habitacional resultará em maior
conceito de “serviços habitacionais”3. A prestação sustentabilidade ambiental;
de “serviços habitacionais” deverá ser concebida (b) A “casa evolutiva”, produzida com a
como um “serviço social” ou, mais precisamente,
participação do usuário4 e utilizada também como
como “serviço de promoção, apoio,
local de trabalho, tem se mostrado como a solução
acompanhamento e fortalecimento de processos de
mais viável para uma política habitacional que
resolução de necessidades habitacionais centrados
dispõe de escassos recursos para enfrentar o déficit
na gestão dos próprios moradores” (1997, p. 41,
de 6,6 milhões de moradias. Este é o momento de
nossa tradução).
propor novas tipologias, apoiadas por sistemas
Esta concepção de moradia amplia o foco do construtivos adequados, e buscar no âmbito
ensino e da produção das habitações de interesse jurídico uma legislação que permita abrigar esse
social, normalmente centrado no projeto e crescimento e essa mudança. Devemos prever e
construção, para o tema do uso e gestão da antecipar o “puxado”, a garagem transformada em
habitação. Em outras palavras, de uma proposta comércio, o segundo piso, a casa do filho que
localizada no momento da entrega do produto, casou e necessita uma nova casa. A realidade
passa a focar a habitação ao longo de sua ensina que há progressividade e flexibilidade na
promoção e sua utilização, incorporando os temas construção da habitação popular. Hoje temos
da operação, manutenção, ampliação e tantos programas de regularização porque (de uma
modificação. O tema das delimitações entre o maneira simplista) a progressividade e a
público, coletivo e privado e das formas de gestão flexibilidade não foram previstas no projeto e
dos espaços coletivos passa a ser focado a partir de construção. Este fato nos leva a repensar o projeto

4
Ver Pell (1997) sobre formas de participação de menor a maior
3
Ver PELLI (1997) grau.

Gestão habitacional para uma arquitetura sustentável 59


da habitação e do conjunto habitacional. Este urbanas. In: GORDILHO-SOUZA, Ângela (Org.).
projeto deve pressupor e levar à sustentabilidade Habitar contemporâneo: novas questões no
espacial e econômica, “construir para a mudança”, Brasil dos anos 90. Salvador: Universidade Federal
“projetar para a mudança”. E isto se aplica à da Bahia, Faculdade de Arquitetura, Mestrado em
unidade habitacional e aos espaços coletivos Arquitetura e Urbanismo – Lab-Habitar, 1997. p.
quando estes estiverem fazendo parte da tipologia 65-66.
em questão; e
BRASIL. Decreto-Lei nº 4591, 16 de dezembro de
(c) A avaliação da gestão condominial destes 1964. Condomínio em Edificações e
conjuntos tem mostrado a fragilidade desta figura Incorporações Imobiliárias.
jurídica para lidar com as complexas relações
existentes nos conjuntos habitacionais populares, BRASIL. Decreto-lei nº 10.406, 10 de janeiro de
sugerindo que os aspectos registrais e de 2002. Código Civil.
propriedade deverão se adaptar a essa exigência da
realidade brasileira e latino-americana. Devemos CHIARELLI, Lígia Maria Ávila. A promoção de
trazer do grande esforço de regularização que o conjuntos residenciais em Pelotas: um estudo de
Ministério da Cidade está realizando novas caso para o financiamento adotado pelas empresas
reflexões sobre as figuras jurídicas mais adequadas construtoras, após a extinção do BNH. 2000. 152
para abrigar os aspectos de participação p. Dissertação (Mestrado em Arquitetura) -
comunitária dos moradores. Uma proposta que tem Universidade Católica de Pelotas, Pelotas, 2000.
sido levantada na esfera jurídica, de delegar à COSTA, Armando Rodrigues da. Gestão de
Associação de Moradores, associação esta sem fins conjuntos habitacionais. 2003. Tese (Doutorado
lucrativos, abrigada pelo Código Civil, o em Integração Regional) - Universidade Federal de
desenvolvimento comunitário, deverá ser mais Pelotas, Pelotas, 2003.
debatida. Delegar ao Condomínio a
regulamentação da propriedade e à Associação a DUVAL, Maria da Graça A. S. Legibilidade de
regulamentação das relações sociais é uma layout e apropriação de espaços abertos
esquizofrenia que ignora que nas relações de coletivos. 1997. 161 p. Dissertação (Mestrado em
propriedade estão embutidas as relações sociais. Arquitetura) - Universidade Federal do Rio Grande
Finalizando, esta seqüência cumulativa de do Sul, Porto Alegre, 1997.
trabalhos de APO bem como uma visão crítica dos FERRERO, Julia. La vivenda evolutiva. Revista
programas governamentais de promoção da Vivienda Popular, Montevideo: Universidad de la
habitação estão propiciando o estabelecimento de República, Facultad de Arquitectura, n. 3, p. 5-14,
novos parâmetros para o desenvolvimento de ações 1998.
integradoras do projeto, uso e gestão de conjuntos
habitacionais de interesse social e incorporando a LAY, Maria Cristina Dias. Relações entre
sustentabilidade. legibilidade de layout e apropriação de espaços
abertos em conjuntos habitacionais. In:
Bibliografia ENCONTRO NACIONAL DE TECNOLOGIA
DO AMBIENTE CONSTRUÍDO, 7., UFSC,
ABIKO, Alex Kenya, ALMEIDA, Marco Antonio
Florianópolis. Anais... Rio de Janeiro, 1998. p.
Plácido. Serviços públicos urbanos. São Paulo:
757-765.
EPUSP, 1995 Texto Técnico, Escola Politécnica
da USP. Departamento de Engenharia de MARTINS, S. R.; VALDIVIESO, S. M.; CIOTTI,
Construção Civil. TT/PCC/10. A. La cooperación para el desarrollo y la cuestión
ambiental: una visión latinoamericana. Quaderni
ALFONSIN, Betânia de Moraes. Condomínio: o
Della Scuola Italiana, Madrid, v. II, n. 2, p. 149-
processo social é mais importante que a figura
156, 1994.
jurídica. Porto Alegre, 2000. In:
MEDVEDOVSKI, Nirce Saffer (Coord.). MEDVEDOVSKI, Nirce Saffer. A vida sem
Diretrizes especiais para regularização condomínio: configuração e serviços públicos
urbanística, técnica e fundiária de conjuntos urbanos em conjuntos habitacionais de interesse
habitacionais populares. 2001. Relatório de social. 1998. 487 p. Tese (Doutorado em
Pesquisa, v. IV – Análises Jurídicas: FINEP, Arquitetura) - Universidade de São Paulo, São
NAURB/FAURB/UFPEL, Pelotas, 2001. Paulo, 1998.
MEDVEDOVSKI, Nirce Saffer (Coord.).
Diretrizes especiais para regularização
BONDUKI, Nabil Georges. HABITAT II e a
urbanística, técnica e fundiária de conjuntos
emergência de um novo ideário em políticas

60 Medvedovski, N. S; Chiarelli, L. M. A; Tillmann, P; Quandt, M. M.


habitacionais populares. 2001. Relatório de REIS, Antônio Tarcísio. Tipos arquitetônicos
Pesquisa: FINEP, NAURB/FAURB/UFPEL, habitacionais: implicações para controle de
Pelotas. território, manutenção e uso dos espaços abertos e
aparência de conjuntos habitacionais. In:
MEDVEDOVSKI, Nirce Saffer (Coord.). ENCONTRO NACIONAL DE TECNOLOGIA
WEBHAB - Banco Digital de Habitação DO AMBIENTE CONSTRUÍDO, 7., 1998, Rio de
Popular - Produção de Conjuntos Residenciais Janeiro. Anais... Florianópolis: NPC – ECV –
em Altura Pelotas / RS -Período 1956-2000. CTC - UFSC, 1998. v. 1, p. 605-612.
2003. Relatório de Pesquisa: CNPQ,
NAURB/FAURB/UFPEL, Pelotas, 2000. SEDREZ, Michele de Moraes. Sustentabilidade
do ambiente construído para a avaliação de
MEZZARI, Mario P. Condomínio e empreendimentos habitacionais de interesse
incorporação no Registro de Imóveis. Porto social. 2004. 160 p. Dissertação (Mestrado em
Alegre: Livraria do Advogado, 1996. Engenharia Civil) - Programa de Pós-Graduação
NETO, José de Paula Barros (Coord.). REQUALI de Engenharia Civil, Universidade Federal do Rio
- Gerenciamento de requisitos e melhoria da Grande do Sul, Porto Alegre, 2004.
qualidade na habitação de interesse social. SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico
FINEP, UFC-UECE-UFRGS-UFPEL-UEL-UEFS, brasileiro. 2. ed. rev. e atual. São Paulo:
2004. Pesquisa em desenvolvimento Malheiros, 1995. 422 p.
PELLI, Vitor. Experiencias innovadoras en VILLA, Bona de. Critérios para elaboração de
vivienda popular: la necessidad de clarificacion e normas urbanísticas municipais para
replicabilidad. Vivienda Popular, Montevideo: loteamentos e conjuntos em condomínio. São
Facultad de Arquitectura de la Republica, n. 1, jul. Paulo: Fundação Prefeito Faria Lima/CEPAM,
1997. 1987. 92 p.
PEREIRA, Caio Mário. Condomínio e
incorporações. Rio de Janeiro: Forense, 1983.

Gestão habitacional para uma arquitetura sustentável 61

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