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Biografia de Mahommah G. Baquaqua* Apresentagao Silvia Hunold Lara Universidade Estadual de Campinas ‘Um dia, quando estava comegando a organizar este mimero da Revista Brasileira de Histéria, numa conversa com Peter Eisenberg, ele me disse: “—Vou por logo as cartas na mesa. Tenho um documento incrivel, mas um pouco longo, que gostaria de ver publicado em portugués. Posso traduzi- dy pdentcs pemmrou pillar pete R B. H. O que voe8 acha”? Ao ver do que se tratava, concordei de imediato: realmente, Peter tinha em mios uma pequena jéia! Ele havia conseguido obter, depois de varias pesquisas e tentativas, o texto da biografia de Mahommah G. Baquaqua. Trata-se de um ex-escravo, sua vida na Africa, sua escravizagio e transporte para o Brasil, de suas experiéncias como escravo em Pernambuco junto a um padeiro, sua venda para o capitéo de um navio que viajava até o Rio Grande do Sul, sua viagem até os Estados Unidos, da fuga para conseguir a liberdade, sua viagem ao Haiti, uma viagem de volta aos Estados Unidos ¢ daf para o Canad4; a narrativa de uma vida extraordindria que também traz dados extraordindrios sobre as experiéncias escravas no Brasil ¢ nas Américas. Um documento raro, eapecdinonte te peers TnoecaTan 6 testemunhos escravos diretos sobre a escraviddo no Brasil. Peter comegou a traduzir 0 texto, mas no pdde terminar o trabalho. Publico, entZo, uma parte deste relato (justamente aquela que sc refere a0 Brasil), no 36 como uma homenagem a um amigo ¢ colega de oficio que ja se foi, mas especialmente porque testemunhei sua sensibilidade como historiador e profissional ¢ seu desejo de ver divulgado um documento to importante quanto este. Esclareco que este texto foi publicado em Detroit em 1854. Esté escrito na primeira e na terceira pessoa, pois 0 relato foi compilado e editado por Samuel Moore, engajado na luta abolicionista. Os limites desta revista nao * Mahommah G. Baguaqua, Biography of Mahommak G. Baguagua. A native of Zoogoo, in the interior of Africa. Edited by Samuel Moore, Esq. (Detroit: George E, Pomery and Co., Tribune Office, 1854) pp. 40-57). Tradugie: Sonia Nussenzweig. 269 permitem a edig&o completa do texto — algo que pretendo fazer mais tarde. Por agora, 0s leitores podem desfrutar do privilégio de ler parte desta biografia de Mahommah G. Baquaqua e entrarem no mundo da escraviddo no- Brasil da primeira metade do século XIX pelas mos de alguém que a experimentou na propria pele, e que dela guarda uma meméria construida. através das experiéncias da vida. SAL. “(...) Em Gra-fe vi o primeiro homem branco 0 que, pode ter certeza, chamou-me muito a atengao. As janelas das casas também pareciam estranhas, pois era a primeira vez em minha vida que via casas'com janelas. Levaram-me a casa de um homem branco, onde permenecemos até a manha seguinte, quando me trouxeram o café da manhd. E, imagine minha surpresa quando vi que a pessoa que trazia minha comida era um velho conhecido, um conterraneo. Ele no me reconheceu a principio, mas quando me perguntou se meu nome era Gardo, ¢ eu lhe disse que sim, 0 pobre homem encheu-se de alegria e tomou minhas m4os e me sacudiu violentamente, tio contente estava em me rever. Seu nome era Woo-roo, virha de Zoogoo, ¢ fora escravizado hé cerca de dois anos; seus amigos no tinham idéia do que tinha acontecide com ele, Perguntou-me sobre seus amigos em Zoogoo, se eu viera de 14 recentemente, olhou para minha cabega ¢ observou que meus cabelos estavam cortados do mesmo jeito como quando estévamos juntos em Zoogoo e eu concordei. Talvez caiba notar aqui que, na Africa, as nagdes das distintas partes do territério tm seus modos diferentes de cortar o:cabelo e so conhecidas, por essa marca, a que parte do territério pertencem. Em Zoogoo, o cabelo de ambos os lados da cabega é raspado e, em cima da cabega, da testa até atrés, deixa-se o cabelo crescer em trés mechas redondas que ficam bem compridas mantendo-se os espagos entre clas raspados rente a cabega. Para alguém familiarizado com os diferentes cortes, ndo ha dificuldade em Teconhecer a que lugar um homem pertence. ‘Woo-roo parecia muito ansioso para que eu permanecesse em Gra-fe Mas meu destino era outro. Esta vila situava-se 4 margem de um grande rio. Depois do café da manha, levaram-me ao rio ¢ colocaram-me num barco, O Tio era muito largo e bifurcava em duas diregdes antes de desembocar no mar. O barco em que os escravos foram colocados era grande ¢ impulsionado por Temas, embora também tivesse velas. No entanto, como 0 vento no era suficientemente forte, tinha-se que usar também os remos. Est4vamos ha duas noites ¢ um dia nesse rio, quando chegamos a um lugar muito bonito, cujo nome nao me lembro. Nao ficamos ali por muito tempo, t&o logo os 270 ‘escravos foram reunidos ¢ 0 navio estava pronto para velejar, fizemo-nos ao mar, Enquanto estivemos nesse lugar, os escravos foram enjaulados, colocaram-nos de costas para'a fogueira ¢ deram ordens para no olharmos & nossa volta. Para se assegurarem de nossa obediéncia, um homem se postou nossa frente com um chicote na m4o pronto para acoitar o primeiro que ousasse desobedecer; outro homem circulava com um ferro quente ¢ nos marcava como a tampas de barril ou a qualquer outro bem ou mercadoria inanimada. ‘Quando estivamos prontos para embarcar, fomos acorrentados uns aos ‘outros ¢ amarrados com cordas pelo pescogo e assim arrastados para a beira- mar. O navio estava a alguma distancia da praia, Nunca havia visto um navio antes e pensei que fosse algum objeto de adorac4o do homem branco. Imaginei que serfamos todos massacrados e que estévamos sendo conduzidos para 14 com essa intengdo. Temia por minha seguranga € 0 desalento se apossou quase inteiramente de mim. ‘Uma espécie de festa foi realizada em terra firme naquele dia. Aqueles que remaram os barcos foram fartamente regalados com uisque €, aos escravos, serviam arroz e outras coisas gostasas em abundancia, Nao estava ciente de que esta seria minha tltima festa na Africa, Nao sabia do meu destino. Feliz de mim que nao sabia. Sabia apenas que era um escravo, acorrentado pelo pescogo, e devia submeter-me prontamente ¢ de boa vontade, acontecesse 0 que acontecesse. Isso era tudo quanto eu achava que tinha 0 direito de saber. Por fim, quando chegamos & praia, ¢ est4vamos em pé na arcia, oh! como eu desejei que a arcia se abrisse e me engolisse. Ndo sou capaz de descrever minha desolagdo. © leitor pode imaginar, mas qualquer coisa parecida com um esbogo de meus sentimentos ndo seria, nem de longe, um retrato fiel. Escravos vindes de todas as partes do territ6rio estavam ali ¢ foram embarcados. O primeiro barco alcangou 0 navio em seguranga, apesar do vento forte e do mar agitado; o préximo a se aventurar, porém, emborcou ¢ todos se afogaram, com excegiio de um homem. Ao todo, trinta pessoas morreram. O homem que se salvou era muito corpulento ¢ estava em pé na proa. Ele tinha uma corrente na m4o, que agarrava com muita forga, procurando equilibrar o barco. Quando o barco virou, ele foi langado ao mar ‘com os outros, Mas, subindo a superficie de algum jeito embaixo do barco, ele conseguiu reviri-lo. Assim, salvou-se saltando para dentro do barco quando este se endireitou. Isso exigiu muita forga, ¢ 0 fato de ser um homem vigoroso Ihe deu vantagem sobre os demais. Fui colocado no prdximo barco que seguiu rumo ao navio. Mas Deus houve por bem me poupar, talvez por alguma boa razio. Fui entZo colocado no mais horrivel de todos os lugares, an ONAVIO NEGREIRO ‘Seus horrores, ah! quem pode descrever? Ninguém pode retratar seus horrores to fielmente como 0 pobre desventurado, o miserivel que tenha sido confinado em seus portais. Oh! amigos da humanidade, tenham piedade do pobre africano, alijado ¢ afastado de seus amigos ¢ de seu lar, ao ser vendido ¢ depositado no pordo de um navio negreiro, para aguardar ainda mais horrores e misérias em uma terra distante, entre religiosos € benevolentes. Sim, até mesmo entre eles. Mas, vamos ao navio! Fomos arremessados, nus, pordo adentro, os homens apinhados de lado e as mulheres do outro, O pordo cra t4o baixe que nao podiamos ficar em pé, éramos obrigados a nos agachar ou a sentar no chao, Noite ¢ dia eram iguais Para nés, 0 sono nos sendo negado devido ao confinamento de nossos corpos. Ficamos desesperados com 0 sofrimento e a fadiga. Oh! a repugnancia ¢ a imundicie daquele lugar horrivel nunca serao apagadas de minha meméria. Nao: enquanto a meméria mantiver seu posto nesse cérebro distraido, lembrarei daquilo, Meu corago até hoje adoece a0 pensar nisto, Que aqueles individuos humapitdrios, que s3o a favor da escravidao, coloquem-se no lugar do escravo no pordo barulhento de um navio negreiro, apenas por uma viagem da Africa & América, sem sequer experimentarem mais que isso dos horrores da escravidao; se nao sairem abolicionistas convictos, entZio nao tenho mais nada a dizer a favor da abolic3o. Acho, no entanto, qué suas opinides ¢ sentimentos relativos a escravidSo se modificariam de algum modo. Se nfo, deixem-nos prosseguir no curso da escravidao, ¢ cumprir seu tempo trabalhando em um campo de algodao, arroz, ou outra plantagSo. Se nfo disserem pare, basta! acho que devem ser feitos de ferro, sequer possuindo corag5es ou almas, Imagino que, em toda a criagdo, haja apenas um lugar mais horrivel que o pordo de um navio megreiro, ¢ esse lugar é aquele onde os donos de escravos ¢ seus lacaios muito provavelmente se encontrarao algum dia quando, ai de mim, ser tarde demais, tarde demais! A nica comida que tivemos durante a viagém foi milho velho cozido, Nao posso dizer quanto tempo ficamos confinados assim, mas pareceu ser muito tempo. Sofrfamos muito por falta de Agua, que nos era negada na medida de nossas necessidades. Um quartilho por dia era tudo que nos permitiam ¢ nada mais. Muitos escravos morreram no percurso. Houve um pobre companheiro que ficou tio desesperado pela sede que tentou apanhar a faca do homem que nos trazia 4gua. Foi levado a0 convés ¢ eu nunca mais soube 0 que Ihe aconteceu. Suponho que foi jogado ao mar. 272 Quando qualquer um de nés se tornava rebelde, sua came era cortada com uma faca € 0 corte esfregado com pimenta e vinagre para tornd-lo pacifico (!). Como os demais, fiquei muito mareado de inicio, mas nosso sofrimento no causou preocupagao alguma aos nossos brutais donos. Nosso sofrimento era da nossa conta, nao tinhamos .ninguém com quem pudéssemos compartilhé-lo, ninguém para cuidar de nés ou até mesmo nos dizer alguma palavra de conforto. Alguns foram jogados ao mar antes que 0 Ultimo suspiro exalasse de seus corpos; quando supunham que alguém nao. iria sobreviver, era assim que se livravam dele. Apenas duas vezes durante a viagem nos permitiram subir ao convés para que pudéssemos nos lavar — uma vez enquanto est4vamos em alto mar, ¢ outra pouco antes de entrarmos no porto. Chegamos em Pernambuco, América do Sul, de manha cedo € 0 navio ficou zanzando durando o dia, sem langar ancora. Ficamos sem comida ¢ sem bebida o dia inteiro e nos foi dado a entender que deveriamos permanecer em siléncio absoluto, sem clamor algum, sendo: nossas vidas estariarm em perigo. Mas quando “a noite langou seu manto de trevas sobre a terra c 0 mar”, deitaram ferros ¢ nos permitiram ir ao convés para sermos vistos ¢ manuseados por nossos futuros senhores, que vieram da cidade. Desembarcamos a algumas milhas da cidade, na casa de um fazendciro, que era usada como uma espécie de mercado de escravos. O fazendeiro tinha uma grande quantidade de escravos ¢ no demorou muito para que eu 0 presenciasse empregando livremente seu chicote contra um rapaz. Essa cena causou-me uma impressao profunda pois, é claro, imaginei que em breve este seria meu destino. E oh!, ndo tardou, ai de mim, para que meus temores se is Quando desembarquei, senti-me grato & Providéncia por ter me permitido respirar ar puro novamente, pensamento este que absorvia quase todos os outros. Pouco me importava, entdo, de ser um escravo, havia me safado do navio e era apenas nisso que eu pensava. Alguns escravos a bordo sabiam falar portugués. Haviam vivido no litoral com familias portuguesas ¢ faziam o papel de intérpretes. Nao eram colocados no por’o como nés, mas desciam ocasionalmente para nos dizer uma coisa on outra. Estes escravos nunca sabiam que seriam despachados até 0 momento em que eram colocados a bordo do navio. Permancci nesse mercado de escravos apenas um dia ou dois, antes de ser vendido a outro waficante na cidade que, por sua vez, me revendeu a um homem do interior, que era padeiro ¢ residia num lugar ndio muito distante de Pernambuco. Quando um navio negreiro aporta, a noticia espalha-se como um rastilho de pélvora. Acorrem, entio, todos os interessados na chegada da embarcacao com sua carga de mercadoria viva, selecionando do estoque aqueles mais adequados aos seus propésitos, ¢ comprando os escravos da mesmissima maneira como s¢ compra gado ou cavalos num mercado. Mas, se num carregamento no houver 0 tipo de escravo adequado as necessidades ¢ desejos dos compradores, encomenda-se ao Capito, especificando os tipos exigidos, que serao trazidos na préxima vez em que o navio vier ao porto. H4 uma grande quantidade de pessoas que fazem um verdadeiro negécio dessa compra ¢ venda de came humana ¢ que sé fazem isso para se manter, dependendo inteiramente desse tipo de trifico. Durante minha viagem no navio negreiro, consegui aprender um pouco de portugués com aqueles homens que mencionei antes e, como meu senhor ra um portugués, podia compreender muito bem o que ele queria ¢ Ihe dei a entender que faria tudo 0 que ele precisava to bem quanto me fosse possivel, e ele pareceu bastante satisfeito com isso. Sua familia era composta por ele, sua mulher, duas criangas ¢ uma parente. Além de mim, ele tinha quatro escravos. Ele era catdlico, ¢ fazia regularmente oragdes com a familia duas vezes por dia, mais ou menos da seguinte maneira: Ele tinha um grande relégio na entrada de sua casa dentro do qual havia algumas imagens feitas de barro, que eram utilizadas no culto. Nos todos tinhamos que nos ajoelhar diante delas; a familia na frente ¢ os escravos atrds. Fomos ensinados a entoar algumas palavras cujo significado no sabiamos. Também tinhamos que fazer o sinal da cruz diversas vezes. Enquanto orava, meu senhor segurava um chicote na mao e aqueles que mostravam sinais de desaten¢3o ou sonoléncia eram prontamente trazidos & consciéncia pelo toque ardido do chicote. Esta cra principalmente a sina das escravas, que adormeciam apesar das imagens, das persignacdes ¢ de outros divertimentos semelhantes. Em breve me puseram para trabalhar pesado, trabalho a que ninguém 6 submetido, a ndo ser escravos ¢ cavalos. Quando este homem me comprou, ele estava construindo uma casa. Era necess4rio buscar pedras para a constru¢do a um distincia considerdvel, do outro lado do tio, € fui forgado.a carreg-las. Eram tdo pesadas que trés homens foram incumbidos de ergué-las. ¢ colocé-las sobre minha cabega, fardo que era obrigado a sustentar por pelo menos um quarto de milha, até o local onde se encontrava o barco. As vezes, a pedra exercia tamanha press4o sobre minha cabega que era obrigado a jog4- la no cho, Meu senhor ficava bravo quando isso acontecia e costumava dizer que 0 cassoori (cachorro)” havia jogado a pedra no cho enquanto eu, no intimo, pensava que ele € que era 0 pior cachorro; mas era apenas um pensamento, j4 que ndo ousava express4-lo em palavras. * Grafado desta forma no original, seguido pela tradugio para o inglés “(dog)” W.T) 274 Meu conhecimento da lingua Portuguesa melhorou rapidamente enquanto estava ali c, muito em breve, conseguia contar alé cem. Fui entio encarregado pelo meu senhor de vender pao, primeiro percorrendo a vila, seguindo de 14 para o campo e, ao entardecer, depois de ter voltado para casa, ia para o mercado onde vendia até as nove horas da noite. ‘Como era bastante honesto, perseverante, geralmente vendia tudo mas, as vezes, ndo era téo bem sucedido e, nessas ocasiées, o agoite era meu quinhio. Meus companheiros de cativeiro ndo eram to constantes quanto eu, sendo muito dados & bebida ¢, por isso, eram menos rentéveis para meu senhor. Aproveitei disso para procurar clevar-me em sua opinido, sendo muito prestativo ¢ obediente, mas tudo em vdo; fizesse o que fizesse, descobri que servia a um tirano ¢ nada parecia satisfaz8-lo. Entdo comecei a beber como os outros €, assim, éramos todos da mesma laia, mau senhor, maus escravos. As coisas iam de mal a pior € estava muito ansioso para trocar de senhor, ent&o tentei fugir mas logo fui apanhado, atado e restituido a ele, Em seguida, tentei ver 0 que me aconteceria se fosse desleal e indolente. Assim, um dia, quando me mandaram vender p&o como de costume, vendi apenas uma pequena quantia e, com o dinheiro que recebi, comprei uisque ¢ bebi A vontade, voltando para casa bastante embrigado. Quando fui fazer as contas da didria, meu senhor pegou minha cesta e, descobrindo.o estado em que as coisas estavam, fyi muito severamente espancado. En disse a ele que no deveria mais me acoitar e fiquei com tanta raiva que me veio a cabega a idéia de mat4-lo e, em seguida, suicidar-me. Por fim, resolvi me afogar. Preferia morrer do que viver sendo um escravo. Corri entio até o rio ¢ me joguei na 4gua mas, como fui visto por algumas pessoas que estavam num arco, fui salvo. A maré estava baixa, sen3o seus esforgos teriam provavelmente sido inuteis ¢, nao obstante a minha predisposi¢a0, agradeci a ‘Deus por ter preservado minha vida ¢ impedido que um ato to perverso se consumasse. Isse me levou a refletir scriamente que “Deus se move por caminhos misteriosos” ¢ que todos os seus atos so atos de benevoléncia ¢ misericérdia. Nessa época, eu era apenas um pobre pagio, quase t4o ignorante quanto um Hotentote, ¢ ndo havia aprendido sobre o verdadeiro Deus ou quaisquer de seus mandamentos Divinos. No entanto, embora fosse ignorante ¢ escravo odiava a escravidao, .principalmente porque, suponho, era uma de suas vitimas. Depois deste triste atentado contra minha vida, fui levado & casa de meu senhor que atou minhas mdos para tris, colocou-me de pés juntos, chicoteou-me sem misericérdia ¢ me espancou na cabeca e nas faces com uma vara pesada, em seguida ele me sacudiu pelo pescogo ¢ langou minha cabega contra os batentes da porta cortando ¢ contundindo a regiao em toro 275 de minhas témporas, As cicatrizes desse tratamento selvagem sio visiveis até hoje e assim permanecerao pelo resto de minha vida. Depois de toda essa crucldade, ele me levou & cidade e me vendeu a um traficante ao qual j4 haviam me enviado uma vez. Porém, naquela ocasiaio, seus amigos lhe haviam aconselhado a nao se desfazer de mim, pois consideravam que ele se beneficiaria mais me mantendo, jé que eu era um escravo rentével. Nao relatei nem uma décima parte do cruel sofrimento que ‘Suportei enquanto servia a esse patife com feig6es humanas. Os limites desta obra ndo permitirio mais que uma olhada apressada 4s diferentes cenas que aconteceram em minha carreira. Poderia contar mais-do que seria agraddvel a “ouvidos educados”, 0 que, certamente, no faria bem algum. Poderia relatar acontecimentos que “congelariam vosso sangue juvenil, dilacerariam vossa alma, ¢ fariam cada fio de cabelo se erguer como os espinhos de um amedrontado porco espinho”, Contudo, seria apenas uma repetic3o dos mil e um contos, freqiientemente narrados, dos horrores do cruel sistema da escravidio. O homem a quem fui novamente vendido era de fato muito cruel. Ele comprou duas fémeas na ocasiio em que me adquiriu. Uma delas era uma menina muito bonita a quem ele tratou com escandalosa barbaridade. Depois de algumas semanas, ele me despachou de navio para o Rio de Janeiro onde permaneci duas semanas até ser vendido novamente, Havia l4 um homem de cor que queria me comprar mas, por uma ou outra razZo, n3o fechou 0 negécio. Menciono esse fato apenas para ilustrar que a posse de escravos se origina no poder, ¢ qualquer um que dispde dos meios para comprar seu semelhante com o vil metal pode se tornar um senhor de escravos, nfo importa qual seja a sua cor, seu credo ou sua nacionalidade; e que 0 homem negro escravizaria seu semelhante to prontamente quanto o homem branco, tivesse ele o poder. Finalmente, fui vendido para o Capito de um navio que poderia ser qualificado de um “caso dificil”. Ele me convidou para conhecer sua Senhora (esposa)” . Fiz minha melhor reveréncia para ela e, em breve, fui instalado €m meu novo posto, que consistia em polir as pegas de bronze que se eacontravam no navio, lavar as facas ¢ os garfos, ¢ fazer outras pequenas tarefas que tém que ser feitas na cabine. De inicio, nZo gostei da minha sitvagdo mas, ao me familiarizar com a wipulago ¢ o restante dos escravos, me dei bastante bem. Em pouco tempo fui promovido ao cargo de segundo camarciro. O camareiro cuidava da dispensa e eu levava as provisées a0 cozinheiro ¢ servia & mesa; como era bem esperto, cles me mantinham muito ocupado. Pouco tempo depois, o capit4o € 0 camareiro tiveram um * Grafsdo desta forma no original, seguido pela tradugdo para o inglés “(wife)”, WT). 276 desentendimento e este abandonou o seu cargo, ocasidio em que as chaves de seu oficio foram entregues aos meus cuidados. Fiz tudo que estava a0 meu alcance para agradar meu senhor, o capitao, ¢ ele, por sua vez, depositou confianga em mim. A senhora do capit3o era tudo menos uma boa mulher; linha um temperamento deplor4vel. O capitio a havia raptado em Santa Catarina, quando ela estava prestes a se casar ¢ creio que nunca se casou com cla. Freqiientemente ela me fez cair em desgraca diante de meu senhor ¢, entio, eu era infalivelmente acoitado. Por vezes ela fazia de tudo para que cu levasse uma surra ¢, em outras ocasides, ¢la interferia para evitd-lo, conforme seu humor. Ela era um estranho composto de humanidade e brutalidade. Ela sempre navegava com 0 capitao. Em nossa primeira viagem, fomos para o Rio Grande. A viagem, em si, teria sido razoavelmente agradavel se eu nao tivesse ficado mareado. O porto no Rio Grande & um tanto raso ¢, ao entrar, encalhamos na areia. Como isso aconteceu na maré baixa, foi muito dificil fazé-lo flutuar novamente mas, enfim conseguimos. Permutamos nossa carga por carne seca ¢ prosseguimos para o Rio de Janeiro, onde conseguimos vendé-la em pouco tempo. Dirigimo-nos, ento & Santa Catarina para obter Farina,” uma espécie de farinha usada principalmente pelos escravos. De 14, voltamos novamente ao Rio Grande, trocamos nossa carga por leo de baleia e safmos para © mar novamente, rumo ao Rio de Janeiro. Como a nau estava sobrecarregada, enfrentamos maus momentos; pensdvamos estar todos perdidos mas, ao aliviar a embarcagao de parte de sua carga, jogando uma quantidade ao mar, o navio ¢ toda sua tipulacdo foram salvos, mais uma yez, das mandibulas vorazes do elemento destrutivo. Ventos de proa prevaleciam e, embora avist4ssemos 0 porto por varios dias, nio conseguiamos chegar ao ancoradouro por mais que tentAssemos. Enquanto permanecfamos naquela posi¢ao ‘duvidosa, sem saber se estévamos perdidos ou no, ocorreu-me que a morte seria apenas uma libertagdo de meu cativeiro ¢, por isso mesmo, mais benvinda que o contnirio. Na verdade, pouco me importava com o que pudesse acontecer. Era apenas um escravo © me sentia como uma pessoa sem esperanga ou perspectiva de libertagao, sem amigos ou liberdade. Nao tinha nenhuma esperanga em relac&o a este mundo e nada sabia sobre o outro; tudo era desalento, tudo era temor. O presente ¢ o futuro eram uma coisa s6, no havia linha diviséria, tudo Labuta! Labuta!! Crucidade! Crucidade!! Nenhum_ fim, a no ser a morte, para os meus sofrimentos. Nao era Cristo naquele tempo, nada sabia sobre o amor do Salvador, nada sobre sua graca salvadora, seu amor pelos pobres pecadores perdidos, * Grafado desta forma no original. (N.T.) 277° sobre sua missdo de paz ¢ boa vontade para com todos os homens, nem havia ouvido falar naquela boa terra, to graciosamente | descrita pelo pocta, “uma terra de puro deleite onde habitam santos imortais”, terra prometida, da qual a cada dia o Cristio mais se aproxima. Nao! Essas “novas de grande alegria” nad haviam sido transmitidas 4 minha mente sombria ¢ tudo era negro desespero. Mas, quando ouvi as palavras do Salvador, “vinde a mim todos os que estais oprimidos ¢ eu vos aliviarei”, eu 0 procurei ¢ encontrei ¢ foi como um bélsamo para as minhas feridas, uma consolac4o para minha alma atormentada. Quando penso em tudo isso e considero o passado, fico feliz por seguir lutanto neste mundo para cumprir minha missdo aqui, ¢ fazer © trabalho de que sou incumbido, Ah! Cristandade, vés que sois apaziguadora dos sofrimentos do homem, guia dos cegos ¢ forza dos fracos, ide em vossa miss&o, anunciai em toda parte as pacfficas novas de salvagao ¢ fazei feliz. 0 coracio do homem e, “entio, o deserto serd feliz ¢ florescer4 como a rosa”. Entio, a escravidéo com todos os seus horrores finalmente chegaré a seu término pois ninguém possuindo o vosso poder e sob vossa influéncia pode perpetuar um chamado tao completamente discrepante e repugnante a todas as vossas doutrinas. Depois de muito trabalho, atracamos em perfeita seguranga. Durante essa viagem, suportei mais punigées corporais do que em toda a minha vida. Um dia, o contramestre, um camarada que era um perfeito bruto, mandou-me lavar a embarcagdo, quando acabei o servico, ele apontou para um lugar onde disse haver uma mancha e, blasfemando, ordenou-me que esfregasse ali novamente, o que fiz. Porém, como ndo estava de bom humor, ordenou-me que fizesse aquilo uma terceira vez, ¢ assim por diante. Ao perceber que era. apenas um capricho, ndo havendo mancha alguma para limpar, enfim recus¢i-me a continuar esfregando, Ele entio me atacou com um cabo de vassoura ¢, tendo 0 escovio de esfrega em minha mao, eu 0 ergui contra ele, O senhor, que viu tudo-o que se passava, ficou muito bravo comigo por tentar atingir 0 contramestre. Ordenou a um de seus imediatos que lhe cortasse um pedago de corda; ele me disse que seria acoitado, ¢ cu respondi “muito bem”, mas continuei trabalhando, mantendo sempre um olho nele, observando scus movimentos. Quando havia servido o café da manhi, ele veio por tras de mim antes que eu pudesse sair de seu caminho, e me bateu nos ombros com a corda que, sendo muito comprida, pendeu para baixo e me acertou com muita forga no estémago, provocando dor ¢ nduscas; a forga com a qual esse. golpe me acertou me derrubou e, assim, prostado no convés, ele me espancou de um modo estremamente brutal. Minha senhora interveio, a essa altura, salvando-me de violéncias adicionais. 271R Permanecemos no Rio de Janeiro por quase um més, Enquanto estdvamos 14, ocorreu um incidente que passo a relatar como ilustragao do sistema da escravidao. « ‘Um dia, tive que ir & terra com meu senhor como um dos remadores. Enquanto estive 14, bebi vinho A vontade e, vendo.meu senhor por perta, voltando para o bote, fui em direcZo ao lugar onde este se encontrava e, estando um tanto atordoado com a bebida e perturbado por ter visto meu senhor, caf na 4gua mas, como era raso, nao sofri nada além de um bom mergulho por conta de minha bebedeira. Fui retirado de 14 com facilidade. Enquanto remava, minha cabeca girava muito, devido aos efeitos do dlcool que tinha bebido e, conseqtientemente, nao puxava o remo com firmeza. Quando meu senhor, vendo que eu estava em apuros, perguntou 0 que | havia comigo, eu respondi “nada senhor”; ele perguntou mais uma vez, “vocé andou bebendo?” eu respondi, nao senhor! Assim, sendo mal tratado, aprendi a beber ¢, a partir disso, aprendi a mentir e, sem diivida teria ido, passo a passo, de mal a pior até que nada fosse suficientemente vil para meu gosto, ¢ tudo isso por meio do horrivel sistema da escravidao. Fico feliz, porém, a0 dizer que fui levado, pela graga de Deus, a abandonar meus hdbitos pecaminosos. Quando a carga foi desembarcada, um mercador Inglés, que tinha uma quantidade de café para ser transportada para Nova Torque, contratou os servigos de meu senhor. Estipulou-se, depois de algum tempo, que eu o acompanharia, juntamente com varios outros, para servi-lo a bordo do navio. ‘Tinhamos aprendido que em Nova Torque nfo havia escravidao, que era um pais livre ¢ que, uma vez ali, nada tinhamos a temer de nossos crutis senhores ¢ est4vamos muito ansiosos para chegar 14. Antes de zarpar, fomos informados de que famos para uma terra de liberdade. Disse, ent&o, vocé nunca mais me vera, uma vez que tenhamos chegado I4. A idéia de estar a caminho de um pais livre me enchia de alegria © despontava em mim um raio de esperanga de que ndo estava distante 0 dia em que seria um homem livre, Na verdade, j4 me sentia livre! Como era belo © resplandecer do sol naquela manhd memordvel, a manha da nossa partida para a terra da liberdade sobre a qual tanto haviamos ouvido falar. Os ventos também estavam favordveis, logo as velas se desfraldaram diante da brisa animadora e nosso navio rumou para aquela terra feliz, Durante aquela viagem, as obrigacSes do servico pareciam leves, na verdade, em antecipagaio 8 vistio daquela terra grandiosa ¢ absolutamente nada me pertubava. Obedeci a todas as ordens de born grado ¢ com vivacidade, Aquela foi a época mais feliz de minha vida, mesmo agora meu coragZo palpita com jubiloso deleite quando penso naquela viagem, e creio que Deus todo misericordioso tudo ordenou para o meu bem; como me sentia grato, 279 Os ventos permaneceram favordveis durante um percurso yeloz de varios dias seguidos, apds os quais enfrentamos tempestades ¢ borrascas que ndo s6 retardaram um tanto nosso progresso, como nos puseram em perigo de sermos enviados “Aquele destino do qual nenhum viajante retorna”, pois temeu-se pela nossa seguranga. Uma noite, durante a viagem, um verdadeiro furacdo soprou a noite inteira e, pouco antes do amanhecer, a lampada da bitdcula apagou com o pesado balango do navio. Ordenaram-me que a acendesse, mas devido a0 vento forte, depois de varias tentativas, fracassei completamente, Ah, diz 0 capitio, meu rapaz, vocé ndo consegue acender a bitécula, nao €? © homem a postos no leme disse que j4 havia clareado o bastante, e que podia passar sem a lampada ¢ enxergar 0 compasso a contento. Porém, como ordens foram dadas, estando ou ndo a luz em falta, elas tém que ser obedecidas; assim, mais trés imediatos foram chamados e um cobertor foi colocado em volta da bit4cula para protegé-la contra o vento, finalmente conseguiram acendé-la, mas eu, nao sabendo como fazé-lo, no havia podido acendé-la, eu havia tentado diversas vezes. Depois disso, 0 capitio saiu de sua cabine, vestiu-se ¢ mandou-me acender sua limpada; quando fui atendé- Jo, ele apanhou uma vara grossa para me bater e, apontando um golpe em minha cabega, levantei o braco para evitar que ela fosse atingida, ele me disse para manter minha mdo abaixada. Eu obedeci, mas quando o golpe descia, levantei a m&o novamente e consegui salvar meu cranio de ser rachado; cle nfo queria acertar minha mao pois isso me impediria de fazer meu trabalho, mas estando ou nfio com minha cabega quebrada, teria que dar conta de meu servigo rotineiro, Ele entio me disse para dar meia volta para pudesse bater-me por tras. Eu Ihe disse para me bater 0 quanto quisesse. Ele estava enfurecido e batia a esmo ¢m minha cabega e corpo, onde porventura acertasse. Eu o desafiei a fazer o pior, a fazer o que pudesse para tirar sua mais completa vingan¢a numa pessoa miscrdvel como eu. Elt entio chamou trés imediatos ¢ Ihes ordenou que me amarrassem ao canhdo. Pensei em me jogar na 4gua, mas ndo me sentia plenamente satisfeito com a perspectiva de ir sozinho; se pudesse ter prazer de levé-lo comigo, teria me" jegado de bom grado. Os trés homens me agarraram ¢ me prenderam de ‘brugos sobre o canhdo; foram ordenados a agoitar-me, 0 que fizeram com bastante diligéncia; ele entZo exigiu que eu me submetesse e lhe implorasse por misericérdia, mas isso eu nao faria. Eu disse a ele para me matar se assim 0 quisesse, mas por misericérdia em suas maos eu ndo iria implorar! Também Ihe disse que quando me desatassem do canhao, cle deveria se cuidar; naquele dia, enquanto examinava meu corpo dilacerado sangrando, tefleti que, embora estivesse machucado e despedacado, meu corag4o nao estava subjugado, 280 Assim que me desataram avancei em direg4o ao capitio, que deu ordens aos homens para me prenderem na proa do navio ¢ nao deixarem que cu me aproximasse dele novamente. Os cortes e machucados me deixaram tio dolorido que n&o consegui fazer nada por varios dias. Enquanto estava doente, o capitao me mandava boas provisOes de sua prépria mesa, sem diivida para conciliar-se comigo depois dos maus feitos cruéis que me havia infligido, mas foi em v4o. Nao tinha a menor pressa em voltar novamente ao trabalho, j4 que antes disso ele muitas vezes fez com. que eu fosse agoitado por ndo conseguir realizar algo que demandaria o trabalho de trés homens. Assim, dali em diante, senti-me inclinado a deix4- Jo passar sem quaisquer de meus servicos. A escravidio € m4, a cscravidio é um erro. Esse capitao fez uma enorme quantidade de coisas cruéis que seria horrivel relatar. Ele tratava as escravas com imensa crueldade e barbaridade. Ele impunha toda a sua vontade, nao havia ninguém para tomar o partido delas. Ele era, naquele tempo, o “monarca de tudo 0 que estivesse sob sua vista”, o “rei da casa flutuante”, ninguém ousava contestar seu poder ou controlar sua vontade, Mas estd se aproximando 0 dia em que seu poder scr4 investido em outro ¢ de sua intendéncia teré que prestar contas. E, ai, que explicagao poderia ele dar para os crimes impediosos cometidos sobre os corpos contorcidos dos pobres miseraveis que estavam sob seu jugo, quando seu reinado cessar ea grande prestag&o de contas chegar, o que ele dird? Qual seri seu destino? Isso 86 seré revelado quando o grandioso livro for aberto. Que Deus 0 perdoe (em sua infinita misericérdia) pelas torturas infligidas em seus semelhantes, embora de aparéncia diferente. A primeira palavra do Inglés que meus dois companheiros e eu aprendemos foi L-i-v-r-e; ela nos foi ensinada por um Inglés a bordo e, oh! quantas ¢ quantas vezes eu a repeti. Esse mesmo homem contou-me muito a respeito da cidade de Nova lorque, (ele sabia falar Portugués). Ele me contou que as pessoas de cor em Nova Iorque eram todas livres, o que me fez sentir muito feliz ¢ ansiava pelo dia vindouro quando estaria 14. O dia, enfim, chegou, mas ndo era coisa facil fugir, para dois rapazes ¢ uma moca que sabiam falar apenas uma palavra de Inglés, ndo tendo, como tinhamos suposto, qualquer amigo para nos ajudar. Mas Deus era nosso amigo, como se comprovou no final, ¢ fez surgir para nés muito amigos ‘em uma terra estranha, O piloto que veio a bordo de nosso navio nos tratou com muita ‘bondade ~ ele parecia diferente de qualquer pessoa que eu jd tinha visto antes — €-e8sa pequena circunstincia nos encorajou. No dia seguinte, muitas pessoas de cor vieram a bordo, e pergutaram se éramos livres. O capito nos havia dito anteriormente para nio contarmas que éramos escravos, mas nao 281 atendemos ao seu desejo, e ele, ao ver tantas pessoas vindo a bordo, comegon a temer que sua propriedade teria a idéia de dar no pé e fugir. Ele entio, muito prudentemente, nos informou que Nova lorque n&o era lugar para nds nos aventurarmos — que era um lugar muito ruim ¢ que, t4o certo como as pessoas iriam nos apanhar, nos malariam. Mas, quando est4vamos asés, concluimos que na primeira oportunidade nos arriscarfamos para ver como nés nos sairiamos em um pais livre. ‘Um dia, depois de ter tomado bastante vinho, fui imprudente a ponto de dizer que no ficaria mais a bordo, que eu seria livre. O capitio, ouvindo isso, me-chamou 14 embaixo e ele ¢ mais trés tentaram me prender, mas nao conseguiram; no fim, porém, eles conseguiram me prender num quarto da proa. Fiquei confinado alf varios dias, O homem que trazia minha comida batia na porta e, se cu Ihe dissesse para entrar, ele entrava, se no, ele passaya ao largo de meu quarto € eu nao 'yecebia comida. Numa ocasido eu. the disse que n&o permaneceria preso ali vivo nem mais um dia, que iria sair. E, ao anoitecer, havendo alguns pedacos de ferro no quarto, apanhei um deles — uma barra com cerca de dois pés de comprimento — e com esta abri a porta & forca ¢ fui-me embora. Os homens estavam todos ocupados trabalhando e a esposa do capito estava em pé no convés quando subi de minha prisio. Eu ‘os ouvi perguntando uns aos outros quem havia me deixado sair, mas ninguém soube dizer. Fiz mesuras diante da mulher do capitio ¢ segui adiante, para a amurada da embarcacdo. Havia uma prancha estendida do navio a terra. Atravessei-a andando ¢ sai correndo como se fosse por minha vida, sem saber, € claro, para onde ia. Fui observado em minha fuga por um vigia que era um pouco manco. Ele procurou me deter, mas me safei dele ¢ segui em frente até alcangar uma loja em cuja porta me detive um pouco para respirar. Eles me perguntaram 0 que & que havia, mas eu nao podia Ihes contar jé que ndo sabia nada de Inglés exceto a palavra L-i-v-r-e, Pouco depois, o vigia manco ¢ outro homem me alcangaram. Um deles tirou uma estrela brilhante do bolso e me mostrou, mas eu n3o conseguia compreender © que ele queria com isso, Fui entdo levado para a casa de guarda © trancafiado alia noite inteira, Na manhd seguinte 0 capit4o chegou, pagou as despesas ¢ me levou com ele de volta ao navio. Os oficiais me disseram que eu seria um homem livre se assim escolhesse, mas eu no sabia como agir. Assim, depois de um pouco de persuasio por parte do capitdo, este me. induziu a voltar com ele, pois n4o havia o que temer. Isso aconteceu num Sdbado, ¢ nas Segunda-feira seguinte, & tarde, trés carruagens chegaram, parando perio da embarcacio. Alguns cavalheiros desceram delas ¢ vieram a bordo. Eles andaram de um lado para o outro do convés conversando com 0 capitdo, dizendo-Ihe que todos a bordo eram livres e exigindo que ele hasteasse a bandeira. Ele enrubesceu um bocado e disse que nao 0 faria, 282 enfureceu-se ¢ esbravejou muito. Fomos, posteriormente, levados em suas carruagens, acompanhados pelo capitSo, a um prédio muito bonito com um portico espléndido na parte da frente. Sua entrada, a qual se subia por um lance de escadarias de m4rmore, era circundada por uma elegante grade de ferro, tendo portSes em diversos lugares, ormamentada ao redor com rvores ¢ arbustos de vdrios tipos. A mim, este pareceu-me um lugar muito belo, ja que nunca havia visto nada parecido antes. Soube posteriormente que este prédio era a Prefeitura de Nova Iorque. Quando chegamos ao salao do prédio, este estava apinhado de gente de todos os tipos, ¢ um grande niimero de pessoas estava em pé, préximo as portas e as escadarias, e espalhadas pelo patio. Alguns conversavam, outros apenas passavam 0 tempo andando para 14 e para cf. O cénsul brasileiro cstava 14 ¢ quando fomos chamados, Perguntaram-me se desejvamos permanecer ali ou voltar para o Brasil. Respondi pelo meu companheiro e por mim que nés nfo desej4vamos voltar, mas a escrava que estava conosco disse que ela voltaria. Nao tenho diividas de que ela preferiria ficar mas, vendo o capitio ali, ficou intimidada e teve medo de dizer o que pensava, ¢ 0 meu companheiro também, Eu, por outro lado, disse audaciosamente que preferia morrer do que voltar ao cativeiro!! Depois que uma enorme quantidade de perguntas foi feita € respondida, fomos levados ao que eu supunha ser uma prisdo ¢ ali trancafiados, Alguns dias depois, fomos conduzidos outra vez a Prefeitura e muitas outras perguntas foram feitas. Fomos entZo levados de volta aos nossos velhos alojamentos, 4 prisdo, como preparativo, assim supunha, para sermos enviados novamente ao Brasil, mas no tinha certeza disso, pois nao conseguia compreender todas as ceriménias de nos wancafiar e nos soltar, conduzindo-nos ao tribunal para nos fazerem perguntas ¢ nos exibirem diante do piblico ali reunido — tudo isso era novidade para mim; portanto, eu ndo conseguia compreender plenamente o significado de tudo isso, mas tinha muito medo de estarmos prestes a sermos devolvidos ao cativeiro - tremia 36 de pensar nisso! Enquanto est4vamos encarcerados, alguns amigos que haviam se interessado muito por nossa causa, tramaram um meio pelo qual as portas da prisio foram abertas enquanto o carcereiro dormia. Nao encontramos dificuldade alguma em passar por ele ¢ alcangar, mais uma vez, “o ar puro do paraiso”, ¢, com a ajuda daqueles amigos, a quem jamais hei de esquecer, me foi possivel chegar & cidade de Boston, em Massachussetts, Ali permaneci sob a protegao deles por cerca de quatro semanas, quando foi acertado que eu deveria ser enviado a Inglaterra ou ao Haiti. Fui consultado sobre o assunto para saber o que eu preferia e, depois de ter ponderado por algum tempo, pensei que o clima do Haiti seria mais parecido com aquele de ‘meu prdprio pais e que conviria melhor & minha satide € meus sentimentos. Nao sabia exatamente que tipo de lugar era a Inglaterra, sendo talvez tivesse 283 preferido ir para 14, especialmente porque, como soube posteriormente, quase todos os ingleses so amigos do homem de cor e de sua raga, ¢ eles tém feito muito pelo meu povo em termos de seu bem-estar ¢ progresso e continuam lutando até hoje pela causa abolicionista e por todas as outras boas causas. Naquelas circunstincias, resolvi ir para o Haiti; assim sendo, uma passagem gratuita foi providenciada para nés e uma quantidade considerdvel de provisdes foi angariada para meu consumo durante a viagem.(...)”

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