Você está na página 1de 40



cadernos de não-ficção
isto não é uma revista.

isto é a imagem, na tela do seu computador, de uma revista.

O significado é a representação psíquica de uma coisa.

e não a coisa em si.

Mas claro que você já sabia disso, não?


cadernos de não-ficção

cadernos de não-ficção
 
C A D E R N O S de

NÃO FICÇÃO
aNO I • NúMERO 1 • MMVIII
Editorial por antônio xerxenesky

David Foster Wallace se enforcou so carinho pela figura de Foster Wallace, blogueiros (estavam proibidos comentá-
Expediente
em um dia de setembro. Foi um dia hor- sorridente em sua bandana, tremendo rios do tipo “o livro é bom/ruim porque
rível para a família dele e para seus fãs, de timidez nas entrevistas. Quis compar- ___”) e, ao mesmo tempo, não se deixar
Editor
e nós, os vivos e saudáveis, mal conse- tilhar as informações que encontrava so- cair em academicismo hermético – nun-
Antônio Xerxenesky
guimos imaginar quão horrível deve ter bre ele e, para meu desespero, descobri ca esquecendo, claro, a máxima de Ro-
Projeto gráfico e editoração que havia muita pouca gente para con- land Barthes: “A crítica busca validades,
Samir Machado de Machado
sido o dia de Wallace para que ele tives-
se coragem de cometer o que planejava tar. DFW, no Brasil, é um fantasma. “O não verdades”. Se foram bem-sucedidos,
Ilustração da Capa cara tem que ficar mais conhecido por só a resposta do público dirá. O plano é
há muito. Mas, como em um conto de
Marcelo Ferranti
www.coroflot.com/ferreti DFW (acostume-se com a abreviatura) aqui! De repente, agora alguém se mexe que estes Cadernos continuem e que
onde o protagonista tenta convencer a e traduz logo o Jest!”, eu resmunguei. agreguem cada vez mais críticos e pes-
Jornalista responsável
Luciana Thomé - mtb/rs 9056 interlocutora de que algo de bom pode Porém, só ficar parado não adianta. soas interessadas em discutir literatura.
ser extraído de uma garota que foi estu- E, então, me veio a ideia de fazer uma Acho que deu para entender como
Impressão
Por sua conta e risco prada, do mesmo modo como se produ- revistinha em PDF reunindo lamentos, surgiu a Cadernos de Não-Ficção que
ziram, graças a experiências traumáticas rememorações, ensaios sobre o Foster você, leitor, tem em frente a seus olhos.
Colaboraram para esta edição
Alexandre Rodrigues da Segunda Guerra Mundial, vários dos Wallace. Parecia uma boa maneira de Ela nasceu de um trágico suicídio e cres-
Breno Kümmel melhores livros e filmes já feitos, eu ar- divulgar a sua obra no Brasil e de ho- ceu para se tornar um veículo de divul-
Daniel Galera
Fernando Silva e Silva risco dizer que a morte de David Foster menagear esse fenomenal escritor. “E gação de pensamento crítico e literário.
Gabriela Linck Wallace também trouxe coisas boas. É se”, eu pensei, “a partir dessa revista ini- Em O mal de Montano, o protagonista
Gustavo Faraon
José Carlos Silvestre graças a ela que inauguro essas páginas. cial eu criasse uma revista de verdade, de Vila-Matas sofre de excesso de lite-
Milton Colonetti Fiquei chocado, na manhã do dia periódica, para falar de literatura”? Afi- ratura e sua esposa o acusa de ter pas-
Pedro Silveira
Vivian Nickel 13, ao abrir meus e-mails e receber do nal, me considero sortudo, pois estou sado essa enfermidade ao filho deles,
Daniel Pellizzari a notícia de que Foster sempre cercado de pessoas inteligentes que agora só fala “em forma de livro”.
Conselho não-editorial
Antônio Xerxenesky Wallace havia se enforcado. Imagino com bons comentários a tecer. Convi- Ela pergunta para ele se ele sabe o que é
Guilherme Smee que a cena se repetiu em todo o globo. dei, então, o mestre Samir para elabo- falar desse jeito, e o narrador responde:
cadernos de não-ficção

cadernos de não-ficção
Luciana Thomé
Rafael Spinelli “Quer dizer que não vai ter um novo ro- rar o projeto gráfico e outros amigos e “Hablar en libro es leer el mundo como
Rodrigo Rosp mance para suceder o Infinite jest!”, eu conhecidos para escrever textos ou en- si fuera la continuación de un intermina-
Samir Machado de Machado
lamuriei egoisticamente. Depois, saben- saios sobre livros ou tópicos da literatura ble texto”.
Não Editora do detalhes de seu ano inteiro de luta contemporânea. A regra era a seguinte: Desejo aos leitores uma bela enfer-
Rua Felipe Camarão, 200/401
Porto Algre - RS - Brasil
contra a depressão, que culminaria no fugir da banalidade que impera em gran- midade literária.
 www.naoeditora.com.br enforcamento, passei a nutrir um inten- de parte das resenhas jornalísticas e de 
C A D E R N O S de

NÃO FICÇÃO
aNO I • NúMERO 1 • MMVIII

Nesta edição

9 | Da crônica ao mito: Narrativa literária e


história em Meridiano Sangrento, de Cormac
McCarthy
Pedro Silveira

14 | Um outro lado da história: Fools Crow, de


James Welch
Vivian Nickel

19 | A literatura sem papel e sem autor: uma


perspectiva distante
Gustavo Faraon

24 | Do limbo etc.
Fernando Silva e Silva

29 | Mãos de Cavalo, romance de classe


Milton Colonetti

ESPECIAL David Foster Wallace

48 | O Escritor Deprimido
Alexandre Rodrigues

54 | A dança de morte de David Foster Wallace


Gabriela Linck

58 | Algumas considerações sobre a obra e a


morte de David Foster Wallace
cadernos de não-ficção

cadernos de não-ficção
Breno Kümmel

44
66 | O Caso Wallace
ESPECIAL José Carlos Silvestre

David Foster Wallace 75 | O ouvido na fechadura


 Daniel Galera 
Da crônica ao

mito Narrativa literária e história em


Meridiano sangrento, de Cormac McCarthy
por pedro silveira

U ma das diversões
favoritas dos fãs de Cor-
mac McCarthy – um grupo recen-
mercenário a mando de governos e par-
ticulares. A brutalidade das ações, au-
mentada pela prosa seca de McCarthy,
temente aumentado pelo sucesso que e a existência de um personagem como
seus livros vêm alcançando – é a busca o Juiz Holden, um verdadeiro apóstolo
pela identificação dos elementos ver- da destruição, igualmente sábio e cruel,
dadeiros daquela que é saudada como torna o quadro todo que é narrado mais
sua maior obra, Meridiano sangrento ou incrível. É uma tentação, portanto, pro-
o anoitecer vermelho no Oeste. O livro, curar distinguir o que ocorreu do que
que segue um grupo de caçadores de McCarthy inventou.
escalpos no Oeste dos Estados Unidos Há alguns problemas, contudo, nes-
na década de 1850, foi inspirado pelo re- sa abordagem. A inexistência de regis-
cadernos de não-ficção

cadernos de não-ficção
lato de Samuel Chamberlain, intitulado tros além do livro de Chamberlain que
My confession. Chamberlain, ex-soldado atestem a veracidade do Juiz Holden, as-
americano, também pintor, juntou-se sim como a o tratamento que o próprio
ao grupo liderado por John Joel Glanton, Chamberlain dá a sua pessoa em seu re-
também ex-soldado, contratado como lato, gera uma suspeita de ficcionalida-
 
de. Os americanos, desde que começa- com as linguagens, a percepção dos có- de homens apta a dominar o Oeste. Da mesma forma, o narrador – nunca
ram a colonização e a conquista, eram digos que formam ou regem a realidade, A partir daí, afasta-se, contudo, a identificado – não se manifesta. Como
fascinados por relatos de pessoas – es- sem procurar – ou conseguir – escapar perspectiva revisionista ou desafiadora a middle voice grega, identificada por
pecialmente mulheres – capturadas por a eles, como afirma Linda Hutcheon, do romance pós-moderno. Nem sem- Hayden White e que Roland Barthes
indígenas (é de um desses relatos que então, Meridiano sangrento estabelece-se pre há algo a construir, uma verdade advogava como apropriada à história, a
surge a inspiração para um filme como firmemente nesse solo comum. Como a enunciar, por trás da metaficção, do narrativa de Meridiano sangrento, dedica-
Rastros de sangue, de John Ford). Não há um faroeste revisionista, a violência e a jogo com a linguagem. A interpretação da apenas à narração de eventos, não é
razão para que não tivessem admiração crueldade servem de meios através dos mitológica de Meridiano sangrento o co- ativa. Como não há introspecção, como
por um desses relatos às avessas, um em quais a linguagem de McCarthy cria loca como uma parábola da violência. os personagens sentem à flor da pele ou
que o objetivo é o extermínio do maior uma “metaficção historiográfica”. Todavia, a parábola tem um sentido à vista da narrativa, sem investigações
número possível de indígenas. Por outro Entretanto, é fácil extrapolar a partir determinado e um objeto preciso, um psicológicas, tampouco há voz passiva.
lado, os aspectos mais cruéis do livro são daí a leitura do livro. O Garoto, perso- tanto distante do objetivo pós-moder- Um meio-termo, próprio à natureza, às
justamente aqueles cuja existência é mais nagem que acompanha em sua integri- nista. Quando o aporte real da parábola coisas sagradas, é utilizado.
provável. Historicizada, a prática de es- dade a narrativa, sem que ela seja feita de McCarthy, contudo, torna-se menos Toda a narrativa de McCarthy é emi-
calpelação perde seu
exotismo e verifica-se
Como um faroeste sob seu ponto de vista,
torna-se a encarnação
sólido, o estabelecimento de uma inter-
pretação que atente ao meio e não só
nentemente um trabalho com o tempo.
O uso da conjunção “e” a todo momen-
que era corrente. revisionista, a violência de um princípio ma- ao conteúdo torna-se premente. Que os to e a recusa das vírgulas na narrativa das
Como todo ro- e a crueldade servem de ligno inerente ao ser personagens simbolizem algo é sempre ações apontam nesse sentido. A vivaci-
mance cujo material humano comum, sim- possível; porém, deve-se prestar aten- dade que as caracterizam e a brutalidade
é a história – que, meios através dos quais bolizado pela morte ção à linguagem de McCarthy, já que de sua violência são obtidas através des-
a grosso modo, é o a linguagem de McCarthy da própria mãe em seu os mesmos personagens não são cartas se trabalho com o tempo narrativo. To-
que é o romance de nascimento – a vinda marcadas, com valores e posições reco- davia, a ação de McCarthy, justamente
McCarthy –, o au-
cria uma “metaficção de Jesus ao contrário. nhecíveis à distância. por esses elementos, nunca é rápida ou
tor incluiu elemen- historiográfica”. Juiz Holden, o perso- O que mais choca em Meridiano san- frenética. A construção ininterrupta da
tos ficcionais dentro de uma estrutura nagem mais marcante, seria, por sua grento e o que torna sua leitura difícil cena de ação, assim como a enumera-
prévia de acontecimentos. O caráter vez, uma força da natureza que faz as não é apenas o que é narrado quando o ção de todos os elementos que a com-
da narrativa de McCarthy e o fascínio coisas tenderem à violência ou à des- modo como é narrado. O texto do livro põem – como se a fragmentasse –, dá
que personagens tão fortes inspiram é truição para, por fim, se libertarem, é um texto sem sujeito, não há ponto um caráter estático à narrativa de ação
o que torna sua possível existência algo como o urso na cena final do livro. O de vista, ninguém age pelo texto, ele do autor. A ação, por isso, não é objeto
tão aterrador quanto atrativo. Se o que movimento todo seria o esboço d e não é veículo de motivações ou causas propriamente de uma narrativa, passí-
caracteriza o romance uma narrativa mitológica dos personagens tampouco d e vel de divisão em início, meio e fim, ela
pós-moderno é o tra- mostrando o nascimen- injunções narrativas, já é sincrônica, em bloco,
balho autorreferencial to de uma nova raça que os personagens aproximando-se mais
cadernos de não-ficção

cadernos de não-ficção
agem no texto. das artes plásticas,
de uma na-

10 11
tureza-morta, do que de uma história. A casam perfeitamente com a linguagem
ação por si abole o tempo, tanto o inter- de McCarthy, enquanto este lhe atribui
no de sua ocorrência quanto o externo uma espécie de direção latente.
de suas causas. A ação é passiva, estática Os personagens de Meridiano san-
– daí vem sua violência. grento passam a simbolizar mais do que
O que McCarthy conseguiu em Me- aparentam sem que nada indique isso.
ridiano sangrento – e que o torna o livro A narrativa nunca perde seu caráter, a
mais aclamado de sua carreira, por ser o ação sempre é suprema. No entanto,
mais impactante – é estender essa carac- outro nível é alcançado, ela adquire res-
terística da ação a toda a narrativa. Lê-se sonâncias míticas sem a linguagem que
do início ao fim sem que nada realmen- normalmente as acompanha. É a partir
te ocorra, não há motivações, efeitos ou da crônica e não da construção historio-
causas. O que existe é uma enumeração gráfica que se atinge o mito; por isso, é
de todos os eventos de uma campanha sem sentido procurar o que é verdadei-
mercenária. Esse caráter passivo da nar- ro ou não. A crônica não distingue entre
ração ativa, contudo, é o que o aproxi- o falso e o verdadeiro, pois tudo aceita,
ma do mito, porque leva a um enqua- por outro lado, sua estruturação não
dramento de toda a ficção. permite a construção metaficcional de
Meridiano sangrento é narrado, logo, um mito, pois não há espaço para além
como uma crônica: em data X, o gru- do evento a ser narrado. A dificuldade,
po estava em Y fazendo Z. Atestam então, de pensar numa metaficção his-
essa disposição de atingir uma espécie toriográfica é que tudo é o que aparen-
de narrativa antiga – e, de certa forma, ta. Ao mesmo tempo, é mais. É por aí
ultrapassada – os sumários no início de que McCarthy cria a mórbida atração
cada capítulo, como um livro antigo. que cerca seus personagens. O mito que
Como numa crônica, também não há é construído acontece pela repetição,
seleção do que merece ou não ser mos- pela iteração de uma crueldade intrín-
trado, não há encadeamentos lógicos seca, transformando a ação em signo.
com exceção de retratarem – os even- Por sua vez, McCarthy consegue criar
tos – o mesmo grupo de pessoas. Ao um mito onde não há símbolos seguros,
mesmo tempo – e uma das brechas por tampouco papéis estabelecidos. A ori-
onde McCarthy inova –, o sumário an- gem e o fim de seu mito é a ação – uma
tes do início dos capítulos mostra uma ação sem causas ou heroicidade, cujo
cadernos de não-ficção

cadernos de não-ficção
espécie de quadro sincrônico dos even- veículo é a crônica.
tos, mostrando seu caráter estático. É
a partir dessa estrutura de crônica his-
tórica que McCarthy atinge o mito. A
impessoalidade e a insipidez da crônica
12 Pedro Silveira é estudante de História. 13
Ria Lemai-
re, “des-
qualificava,
isolava ou
excluía, como
marginais
ou inimigos,
indivíduos que,
por uma razão ou por
um outro lado da outra (ideias, raça, gênero, nacionali-

história
dade), não se adequassem ao sistema
construído” (1994, p. 59).
Nesse sentido, é notável a pe-
culiaridade do caso do cânone
literário norte-americano.
Fools Crow, de James Welch Conforme Richard H. Bro-
dhead, entre os séculos XIX
por Vivian nickel e XX, é possível notar uma
sensível mudança de nomes
que integravam o grupo de
escritores e obras tidas

H á não muito tempo atrás,


considerava-se um verdadeiro in-
sulto relacionar Literatura e História.
que melhor representassem a saga da
constituição de uma nação, as narrativas
literárias celebravam e ratificavam essas
como representativas
da nação. As primei-
ras histórias literárias
Hoje em dia, ainda há críticos que defen- representações. traziam, por exemplo,
dam a literatura como entidade autôno- Daí a conclusão de críticos como Longfellow no lugar de Di-
ma desvinculada do contexto em que se Antônio Cândido de que construir uma ckinson, Whittier no lugar
insere, regida por valores (simples e su- nação e uma literatura eram processos de Whitman, Lowell ao
postamente) estéticos. Entretanto, como simultâneos. Por isso que, quando fala- invés de Melville, e, pelo
teorias mais recentes sugerem, as frontei- mos em constituição de uma cultura na- menos até 1920, Poe jamais
ras entre narrativas literárias e históricas cional, não podemos desprezar o papel fora citado. Uma análise mais
são bem mais tênues do pressupunham da historiografia literária, uma vez que rigorosa das histórias da litera-
os filósofos positivistas há dois séculos esta operava como instância reguladora tura norte-americana revelaria
não-ficção

cadernos de não-ficção
caderno dedenão-ficção

atrás. E não é difícil entendermos se pen- das representações culturais, conferin- ainda pelo menos mais duas
sarmos no século XIX, período em que as do o status de representativos àqueles significativas mudanças no câ-
culturas nacionais estavam em processo textos em consonância com a narrativa none ao longo do século XX. Se
cadernos

de formação: enquanto a história se en- da história oficial de uma dada nação. considerarmos o fato de que o cânone
carregava de selecionar eventos e heróis Assim, o cânone literário, como afirma literário é uma tentativa de reconstruir
14
14 15
o passado cultural de uma dada nação,
então podemos inferir que a própria
concepção que a comunidade norte-
P ublicado em 1986, Fools Crow, é
o terceiro romance de James Welch,
escritor indígena norte-americano con-
dígena do século XIX e sua relação com
o mundo natural, explorando questões
como opressão, conflitos com imigran-
do religioso também é bastante relevante
para o desenvolvimento da narrativa. Da
mesma forma que não há separação en-
americana tem de si sofreu alterações. temporâneo amplamente celebrado pela tes e o governo americano, além de mu- tre o humano e o natural, também não o
Não obstante, é também notório o fato crítica. É contado a partir da perspectiva danças sociais e econômicas vividas pelos há em relação ao divino. Todos os níveis
de que, apesar das mudanças, o grupo dos Pikunis, uma das três nações que Blackfeet no período. estão em constante interação, refletindo
de escritores representativos da nação compõem os Blackfeet, e se desenrola no A nomeação do espaço é sempre apre- um ao outro. A queda de um representa
era composto majoritariamente por um estado de Montana, mais propriamente, sentada a partir do modo como a tradição a queda de todos. O destino dos Pikunis,
segmento branco e masculino da socie- na região da fronteira entre Canadá e Pikuni interpreta e lida com a realidade que culmina com o Massacre dos Marias,
dade. Estados Unidos durante a física. Nesse sentido, cabe é compreendido como uma
Apenas em meados da segunda metade do século destacar que o mundo natu- punição que a comunidade
década de 90 do século XX XIX. ral participa ativamente no sofre junto com sua entida-
que uma expansão mais Fools Crow narra a traje- enredo; todo elemento da de divina, Feather Woman,
heterogênea tem início tória de White Man’s Dog, paisagem torna-se, assim, que desrespeitara as ordens
na literatura norte-ameri- um jovem indígena, em um personagem potencial. de deuses superiores.
cana, incluindo-se aí mu- busca de sua identidade Diferentemente da tradição Ao término da leitura
lheres, afro-americanos, dentro de sua tribo. Inicial- ocidental cuja relação com do romance de James Wel-
Native Americans, entre mente apresentado como a natureza é mais frequen- ch, o leitor se surpreende
outros. Tal inclusão é ex- uma personagem tímida e temente de dominação, com a capacidade do autor
tremamente relevante, no quase covarde, bastante de- encontramos aqui uma ma- de, através do trabalho da
sentido em que represen- sacreditada, White Man’s neira de entender o rela- linguagem, reimaginar a
ta o reconhecimento des- Dog acaba tornando-se cionamento com o mundo comunidade dos Pikunis
ses sujeitos como forma-
“Se o cânone literário líder de sua comunidade natural que está pautada
“Encontramos aqui uma e representar a sociedade
dores da cultura nacional, é uma tentativa de após conduzir com sucesso numa visão mais integra- maneira de entender o indígena como um orga-
ao mesmo tempo em que reconstruir o passado seus companheiros numa dora, que não pactua com relacionamento com o nismo bastante complexo.
traz visibilidade a diferen- investida contra os Crows, a ideia de inseparabilidade Suas personagens desau-
tes perspectivas e inter-
cultural de uma dada tribo inimiga dos Pikunis. entre indivíduos e o espaço mundo natural que está torizam os estereótipos do
pretações desses sujeitos nação, A própria Esse evento marca, por- que ocupam; um é a con- pautada numa visão “bom selvagem”, do índio
sobre o passado da nação. concepção que a tanto, a transformação de tinuação do outro, e, por mais integradora”. como um indivíduo sub-
A partir da análise des- White Man’s Dog em Fo- isso mesmo, responsável misso e dócil. Sua repre-
ses textos, construídos às
comunidade norte- ols Crow, identificando-o pela continuidade um do outro. As per- sentação única das vidas, personalidades
margens da cultura, e do americana tem de si assim por sua capacidade sonagens Pikunis se veem também como e tradições dos Pikunis é transformada
diálogo que estabelecem sofreu alterações.” de encantar os Crows, re- responsáveis pelo desaparecimento das em uma obra de arte que nos força a
não-ficção

não-ficção
caderno dedenão-ficção

cadernosdedenão-ficção
com as narrativas canôni- velada durante o ataque. manadas de búfalos, por quebrarem seu (re)examinar o modo como contamos
cas nacionais, desvelam-se outras histó- Através da narração da transformação de pacto com a natureza, de caçar apenas o nossas histórias e como nos relaciona-
rias da nacionalidade que perturbam a Fools Crow em um bravo líder, Welch suficiente para a alimentação (sem fazer mos com nosso mundo interior.
cadernos

caderno
lógica do “todos em um” que pauta o retrata, com grande habilidade estética, da caça uma atividade econômica).
discurso nacional. as inter-relações dessa comunidade in- A relação das personagens com o mun-
16
16 Vivian Nickel é estudante de Letras 17
a literatura sem papel e sem

autor Uma perspectiva distante


por gustavo faraon

H á um discurso corrente,
sobretudo entre aqueles entusias-
tas das inovações das comunicações e
mentos e condições históricas.
O surgimento de um novo medium
costuma trazer consigo o brotamento
seus efeitos nos diversos sistemas so- de discursos de caráter apocalíptico,
ciais, que a internet e o hipertexto trans- como se esse fosse necessariamente
formaram o campo literário em pelo ocasionar a substituição dos demais por
menos dois sentidos de maneira irrever- obsolescência. Entretanto, os exemplos
sível: primeiro, um câmbio definitivo que se apresentam no decorrer da histó-
do suporte da literatura, ou seja, a troca ria mostram que, na realidade, os media
do papel pelo meio digital; a partir des- já de fato consolidados e estabelecidos
sa mudança, acreditam também que foi nunca são descartados com o surgimen-
jogada uma última pá de terra sobre o to de um novo. Antes, há uma coexis-
cadernos de não-ficção

cadernos de não-ficção
caixão do autor1, essa entidade antiga tência entre eles. A fotografia não aca-
e, para muitos, ultrapassada. Nenhum bou com a palavra escrita, assim como
desses argumentos, entretanto, é novo. o cinema não acabou com a fotografia,
Ambos são versões remodeladas de pro- a televisão não aposentou o cinema e a
blemas já trazidos à baila em outros mo- internet, depois de mais de uma déca-
18 19
da de uso em larga escala, ainda não dá ção seria a diferenciação e agregação de Theodor Nelson, o sociólogo que, em A fonte, utilizaram o princípio do acaso
nenhum sinal de poder terminar com valor em um mercado cada vez mais 1963, cunhou o termo hipertexto, clas- para questionar fortemente a figura do
nenhum dos media que vieram antes centralizado e competitivo. Nem uma sificou as iniciativas de criar um papel autor-criador, do gênio-artista. Durante
dela. década se passou desde que os resulta- digital, que chama de “pranchetas ele- os anos 1960, a teoria literária, no traba-
A própria literatura é pródiga em dos do estudo foram divulgados e já se trônicas para ler”, como a coisa mais lho de pensadores como Roland Barthes
exemplos de que um medium não subs- pode desmentir sua tese central com da- idiota que já viu, e asseverou que a web e Michel Foucault, também buscou libe-
titui aqueles que o precedem no tempo, dos concretos. não passa de uma simulação do papel rar o texto da figura repressiva do autor
mas acaba por influenciá-los de maneira Nos Estados Unidos, país onde a in- enquanto forma4. Somente agora, com em prol de uma maior intertextualida-
inequívoca. A fotografia obrigou a lite- ternet está mais profundamente arrai- a popularização do Kindle, e-reader da de, indo de encontro à busca da herme-
ratura a repensar o olhar guiado unica- gada junto aos cidadãos e ao próprio Amazon, se poderá realmente verificar nêutica por uma intenção original.
mente pela perspectiva central, o cine- mercado, o balanço anual relativo ao o potencial de tais instrumentos. A tentativa de dar mais poder ao
ma trouxe novas possibilidades para as exercício 2006 divulgado pela Associa- Como dito anteriormente, o fato leitor por meio de um aumento das
estruturas narrativas tradicionais através tion of American Publishers registrou de a internet não estar – ao menos até possibilidades de escolha, navegação
de elementos como o corte e a utiliza- alta em todos os segmentos da indústria onde é possível mensurar – ameaçando entre trechos de um texto sem um
ção de perspectivas alternadas, e agora editorial daquele país. As vendas de pa- a manutenção do códice como veícu- ordenamento predefinido ou criação
o hipertexto permite que o continuum perbacks cresceram 8,5%, os livros de lo principal da literatura não a impede de bifurcações e caminhos paralelos
textual seja interrompido, oferecendo capa dura tiveram um incremento na de influenciar esse campo. O hipertex- é o cerne dos trabalhos considerados
uma estrutura não-linear na apresenta- ordem de 4,1% e os e-books venderam to, com a fragmentação proporcionada precursores da literatura hipertextual
ção de seus elementos. 24,1% mais do que no ano anterior. O pelo link, questiona a perspectiva do como Afternoon, a story, de Michael
Como se pode ver, é bastante mais fato de todos os tipos de livros terem texto como um produto único, indivi- Joyce, e Delirium, de Douglas Cooper,
razoável acreditar que a internet se aumentado suas vendas naquele país dual, com início, meio e fim. Há quem e em certa medida apenas retomam as
prestará a um tipo específico de em- pode também ser explicado por uma veja nisso a transformação do autor em ideias já apresentadas no campo artís-
prego por parte do campo literário e o outra pesquisa3, que revelou que 12,6% um agregado abstrato, já que todos que tico, mas agora por meio de um novo
tradicional códice continuará a ser uti- de todos os livros comercializados nos participam da rede também participam suporte técnico. O próprio romance
lizado para os demais fins do que aderir EUA em 2004 correspondem a títulos da interpretação e mutação do veio tex- O jogo da amarelinha, publicado por
de pronto a argumentos alarmistas. Em que venderam menos de mil exempla- tual. Entretanto, essa contestação for- Julio Cortázar em 1963, já refletia es-
2000, um estudo encomendado pela res por ano cada um, enquanto que os mal ao status autoritário do autor já foi sas ideias de fragmentação e múltipla
British Library Police Unit2, do Reino best-sellers com vendas anuais superio- vista em um sem-número de oportuni- escolha, mas não precisou sair do for-
Unido, tentou mensurar e fazer previ- res a 500 mil exemplares representaram dades e em diversos momentos históri- mato códice para implementá-las.
sões sobre os impactos do crescimento apenas 4,7% do bolo. O que tantos nú- cos. E não foi apenas na literatura que A literatura colaborativa é uma ten-
da web e suas diversas possibilidades no meros revelam não é outra coisa senão essa instância foi atacada, mas também tativa ainda mais recente de testar to-
mercado editorial. Entre outras coisas, que a internet está aumentando a circu- em outros campos das artes. dos esses limites. Conheço pelo menos
previu uma tendência irrefreável da di- lação do livro de papel no formato tradi- É conhecido, por exemplo, o caso das duas experiências realizadas nesse sen-
cadernos de não-ficção

cadernos de não-ficção
minuição da oferta de títulos em prol de cional à medida que facilita o acesso por máquinas aleatórias de poesia do Barro- tido, ambas com o intuito de explorar
uma concentração em poucos e gran- parte do leitor a toda sorte de títulos, co, que substituíam o autor por combi- e conhecer um pouco mais sobre esse
des lançamentos no estilo best-seller, independentemente de quem os lança. nações. Nos anos 1920, dadaístas como tipo de prática. Uma, de grande porte,
nos quais o nome do autor funcionaria Há ainda mais indicativos de que o Michel Duchamp, por meio de seu rea- é o projeto A million penguins5, wiki-
como uma espécie de marca cuja fun- códice não será preterido pela internet. dy-made implementado em obras como novel vinculada à editora Penguim e
20 21
à De Montfort University. A outra é a das de partes da trama. Mas será que o resultado ruim é que cada novo medium que se esta-
memistória (neologismo que junta as Já em Perseguindo Nisus, não se veri- fruto simplesmente da incompetência belece transforma tanto os media pre-
expressões memê e história) Perseguindo fica essa autoridade de um editor-che- dos autores em escrever ficção, já que cedentes quantos os diversos sistemas
Nisus6, iniciada pelo professor de comu- fe que impõe caminhos principais ou a maior parte do conteúdo é produzida sociais, entre eles a literatura. No entan-
nicação da UFRGS Alex Primo. secundários. Além disso, ao contrário por quem não é habituado (e treinado) to, é preciso estar atento às armadilhas
Em A million penguins – cuja intenção do que acontece em A million penguins, para tal? Provavelmente, não. Creio que, ciclicamente, se reapresentam com
declarada é verificar se a colaboração é nessa iniciativa é possível que qualquer que grande parte dos autores que parti- roupagens diversas, munidas de novos
tão possível e benéfica no campo das ar- leitor ramifique a história a partir de cipam dessas iniciativas não se sairia tão apoios técnicos. É bem possível que um
tes quanto na ciência, na produção de qualquer ponto e quantas vezes qui- mal se eles tentassem sozinhos. Mas me dia não existam mais os velhos livros
softwares, etc. –, chamam atenção algu- ser. Outro diferencial é que Perseguindo parece claro que é impossível produzir em formato códice, nem faça sentido
mas características que vão de encontro Nisus não tem um fim temporalmente qualquer texto coerente sem saber mi- falar em autoria. Mas ainda estamos um
às ideias de aniquilação da autoridade definido, sua produção pode potencial- nimamente desde o princípio aonde se tanto distantes desse dia.
imputada à autoria individual, de pos- mente continuar ad infinitum em todas quer chegar.
sibilidades irrestritas de desvio do fluxo as direções e a partir de cada uma das Para testar essa tese, resolvi eu mes-
textual e mesmo de participação coleti- ramificações. mo iniciar, em março de 2008, um
va. Primeiro, o romance teve um tempo Mas, se a experiência pode ser in- percurso paralelo ao proposto pelo
definido de produção, e desde que essa teressante pelo viés da forma como é professor Alex Primo, mas com uma
produção foi dada por encerrada, não é publicado, da multiplicidade autoral e diferença: ao invés de textos inventados
mais possível participar da escrita cole- da veiculação fragmentada (no caso da pelos blogueiros, só seriam acrescidos à Notas
tiva. Em segundo lugar, há no romance memistória), tanto a tentativa de acom- história trechos produzidos por autores
uma espécie de caminho principal a ser panhar A million penguins quanto Perse- de “reconhecida competência literária”, 1. Uma abordagem mais completa sobre os
ataques às várias intâncias do autor foi reali-
seguido, uma linha mestra que eviden- guindo Nisus se mostram absolutamente ou seja, autores publicados que passa-
zada em A rede digital e as configurações do autor,
cia uma autoridade que dá pesos dife- sofríveis do ponto de vista do leitor. No ram pelo crivo de grandes editoras. Pois de Michael Korfmann e Gustavo Faraon, ao
rentes aos caminhos textuais possíveis, segundo capítulo de Perseguindo Ni- A menina de um milhão de nomes7, mes- qual o presente ensaio é em grande medida
exercendo influência direta nas escolhas sus, já há um “acerto final”, revelador mo contando com a participação, ainda devedor.
do leitor. Ambas características revelam da vontade de cada participante de dar que não-consentida, quase secreta, de
2. The scale of future publishing and in digital and
a existência de uma entidade invisível termo ao que é contado. Parece que o escritores como Lewis Carroll, Clari-
conventional formats, produzido pela companhia
– uma vez que ela não é explicitamen- que está contido no texto não importa, ce Lispector, Milan Kundera e Samuel Mark Bide & Associates.
te apresentada – que edita, organiza e mas só o modo como é desenvolvido e Beckett, resultou em uma a leitura tão
3. Book Industry Study Group, 2005.
toma decisões verticais sobre a produ- entregue. Acontece que ninguém lê um aborrecida quanto A million penguins ou
ção coletiva, exercendo uma verdadeira romance ou o que quer que seja apenas Perseguindo Nisus. E, evidentemente, 4. Entrevista à revista Época de março de 2007.
função de chefia. Chama atenção tam- para sentir a textura das páginas (ou a não haveremos de culpar os escribas
5. http://www.amillionpenguins.com
bém que os links, elemento central nes- falta dela), embora isso faça parte da ex- de quem furtamos alguns excertos pelo
cadernos de não-ficção

cadernos de não-ficção
sa nova maneira de exploração literária, periência como um todo. O que impor- fracasso daquilo que foi proporcionado 6. http://alexprimo.com/2008/03/10/
sejam raríssimos, e levem o leitor para ta é a promessa ligada diretamente ao aos leitores. memistoria-perseguindo-nisus-episodio-1/
sítios que misturam explicação de ver- conteúdo: vou encontrar aqui conheci- É claro que a internet e o hipertex- 7. http://idoso.blogsome.com/2008/03/12/
betes, lugares ou personagens (no estilo mento, medo, sentimento de nostalgia, to podem influenciar e sem dúvida in- p216/
Wikipédia) a continuações constrangi- surpresa, humor, etc. fluenciam o campo literário. É certo
22 Gustavo Faron é jornalista 23
“Her face is wrapped in a grey
woolen scarf, I begin to unwrap
it, but the scarf is endless”
John Maxwell Coetzee, Foe

do

limbo etc.
por fernando silva e silva

F oe (1986), de J. M. Coetzee, é um
livro político, diz o senso comum
e um que outro teóri-
dadeira”. O que ocorre é que ele, final-
mente, apagaria-a da história, ao alterar
o seu relato, excluindo-
1
co . Em sua obra, Co-
Temos aqui a “intenção a. Temos aqui a “inten-
etzee cria um cenário política” expressa: ção política” expressa:
de “what if?”, em que a evidenciar a marginalização evidenciar a marginali-
história da ilha de Robin- zação da mulher na His-
2
son Crusoé (1719) teria
da mulher na História, tanto tória, tanto durante o
sido, primeiramente, es- durante o período em que período em que se passa
crita por uma mulher, se passa Robinson Crusoé, Robinson Crusoé, o século
Susan Barton, que teria XVIII, como nos tempos
também naufragado na
como nos tempos modernos. modernos. Por mais in-
cadernos de não-ficção

cadernos de não-ficção
ilha e convivido com Crusoé (em Foe, teressante que sejam as leituras possíveis
Cruso). Ao retornar a Inglaterra, Susan desses aspectos de Foe, dessa vez, atenho-
pede a (De)Foe, escritor conhecido, que me a outro, o “como”, digamos assim,
(re)escreva a história de seus tempos na os jogos de força discursivos entre Susan
ilha de forma “interessante, porém ver- e Foe, entre a verdade e a ficção.
24 25
e como lhe pareciam Cruso e Friday. A literatura suspensa, ou de (não-)lugar de
segunda parte são cartas que a protago- não-ditos, é brevíssima, mas a mais insti-
nista escreve a Foe, reivindicando sua gante de todo o livro. O questionamen-
história, tentando impedir a ele de “dar to que suscita é: agora que Susan Barton
cor” ao seu relato, porém ele nunca as foi “apagada”, seu passado reescrito, seu
responde. Nas duas primeiras partes, os futuro subjugado, onde ela existe, onde
índices de “presença” de Robison Crusoé ela é? Onde existem os não-ditos, aquilo
são mais aparentes do que nas partes que foi velado? Nas margens, sua signi-
que seguem. Constantes ecos deste em ficação suspensa. Susan está na ilha de
Foe, até Susan, em suas cartas, tentando Crusoé em sua não-presença, O que foi
impedir Foe de ficcionalizar sua história, reescrito persiste de alguma forma. O
escreve que na ilha “não vira canibal ne- não-dito é espectral, existe como rastro
nhum, nem uma pegada”, talvez assim, naquilo que foi dito, uma marca, um
sugerindo-lhe como se daria o primeiro resíduo daquilo que já passou. Tudo o
contato com os canibais na obra de De- que é escrito transborda em não-escri-
foe, uma inexplicável pe- tos. O narrador dessa úl-
gada que o protagonista, Onde existem os não- tima parte – que é quem?
Crusoé, encontra na areia – perde-se caminhando
ditos, aquilo que foi
da praia. Na terceira par- através dos fragmentos
Além de Susan e Foe, os outros incerta, pois Cruso nunca a explica exa- te, Susan finalmente des- velado? Nas margens, sua de histórias, da casa en-
dois personagens de grande importância tamente para Susan. Sua língua foi cor- cobre o paradeiro de Foe, significação suspensa. tra na casa e escorrega
porém, de alguma forma, do barco, caindo no mar
nesse livro são Cruso e Friday. O primei- tada, algo que também nunca é esclare-
sua realidade começa a
Susan está na ilha de e indo às profundezas,
ro ainda é o rei da ilha, mas é diferente cido, e ele é incapaz de falar, a imagem
do Crusoé de Defoe – aqui, ele não foi do pedaço de língua movendo-se dentro ser ficcionalizada pelo au- Crusoé em sua não- onde nenhuma palavra
capaz de salvar nada dos da boca de Friday é uma tor. A filha que lhe havia presença, pode ser dita, o lar de Fri-
restos do navio e não A imagem do pedaço de imagem que atormenta sido tomada anos atrás, day. Lá, no fundo do mar,
construiu nada louvável, língua movendo-se dentro Susan através de toda a antes de sua chegada na ilha, aparece na só os corpos têm significado, mas o que
sua única ocupação é narrativa, assim como a forma de uma garotinha que ela nunca são eles – escritos – se não o negativo da
construir e preparar es-
da boca de Friday é uma completa incapacidade havia visto e, num toque de humor ne- escritura de Defoe, aquilo que foi vela-
paços para plantações, os imagem que atormenta de comunicar-se com gro, seu nome é, também, Susan Barton. do, violentado?
quais ele não tem como Susan através de toda a aquele que, no final das Aqui já pouco lhe resta “de si”, sentimo-
1. Por exemplo, Linda Hutcheon em seu livro
semear, esperando que contas, é o ser humano na apagando-se pouco a pouco no virar
narrativa. de páginas, e, ao entregar seu corpo ao
Poetics of postmodernism, apesar dos pesares.
cadernos de não-ficção

cadernos de não-ficção
um dia esse trabalho te- com quem ela convive a
nha significado para os próximos que maior parte de seu tempo. seu “inimigo”3, ela torna-se um algo 2. Na primeira edição, foi publicado sem o nome
do autor, sendo supostamente a reprodução do
chegarem à ilha. Friday é o personagem O livro é dividido em quatro partes. quase etéreo, a Musa de Foe.
diário de Robinson Crusoé.
que tem a mudança mais drástica dos A primeira é a “história real”, o relato es- A última parte, e é ela que sugere
toda a minha leitura de Foe, se passa 3. Foe, em inglês, significa inimigo.
dois, em Foe ele é um negro, em vez crito por Susan Barton sobre seu tempo
de um nativo da região, e sua origem é na ilha, como chegou lá, o que lá havia numa espécie de limbo da escrita, ou de
26 Fernando Silva e Silva é estudante de Letras 27
Mãos de cavalo,
romance de
classe por milton colonetti

“H ermano ainda ficou


um momentinho agachado na
frente do fogo recuperando um pouco a
O romance em questão tem como
protagonista, em um dos planos narrati-
vos, Hermano: um cirurgião plástico de
calma, reavaliando todos os detalhes da trinta anos, entusiasta de montanhismo,
história que tinha acabado de contar e casado com a ex-artista plástica Adri, pai
revisando tudo aquilo que havia modi- de uma filha de dois anos e meio. No
ficado ou omitido, pois na verdade ele outro plano narrativo, o protagonista é
não tinha voltado para ajudar o Bonobo, Mãos de Cavalo, ou melhor posto, Her-
tinha ficado covardemente escondido mano em sua juventude, primeiro com
dentro do mato enquanto um espanca- dez anos e depois com quinze. Estes dois
mento acontecia a poucos metros de dis- planos narrativos estão nitidamente e
tância” racionalmente separados pela divisão
cadernos de não-ficção

cadernos de não-ficção
O trecho transcrito é parte do último ordenadora dos capítulos, sendo que os
parágrafo do antepenúltimo capítulo do episódios do passado relembrado abrem
romance1 Mãos de cavalo, do escritor gaú- a narrativa, seguidos de um capítulo que
cho Daniel Galera, editado pela Compa- descreve ações de um presente proposto,
nhia das Letras em 2006. e assim alternadamente até o desfecho
28 29
duplo (primeiro da linha narrativa no tou a donzela do assédio. líbrio ideal entre o perigo da exploração tírio. Novamente, seu ato de exploração
presente e depois no passado). O trauma de Hermano, que cria no e a consequência da queda. Enquanto se e coragem frente ao perigo físico deixa
O que separa e une a trama das duas plano narrativo do presente um desvio delicia com a sensação de liberdade desta heroicas cicatrizes.
linhas narrativas é o trauma vivenciado em sua rota rumo ao Cerro Bonette, e o exploração, perde o equilíbrio e leva um O pervertido da coisa está em que,
pelo menino Mãos de Cavalo, e de como leva até a porta da casa de Naiara – que é tombo. O dado importante desse tombo nas duas passagens exemplares, o co-
essa vivência determinou as escolhas e os irmã daquele seu amigo de infância assas- é a reação à queda: seus machucados são mando e o controle, a escolha do modo
valores do cirurgião Hermano – princi- sinado, e também é paixão mal resolvida interpretados, pelo menino (com ajuda e da forma deste perigo físico, bem como
palmente sua escolha de, aos trinta anos, (nunca completamente realizada) de sua de uma auspiciosa velhinha intrometida as consequências e a interpretação dos
abandonar mulher e filha para, junto juventude – o trauma é decorrente de pelo narrador2), como marcas indeléveis atos, são monopólio de Hermano. É ele
com um amigo amalucado e solteirão, um traço definidor do caráter de Herma- do perigo que corria, da coragem de sua quem escolhe os descaminhos em seus
empreender uma viagem até os grotões no, e que é representado no romance em exploração perto de regiões tão avessas à ciclismo urbano, buscando na possibili-
esquecidos da Argentina central para vários níveis, inclusive em seu apelido vida que são capazes de tirar sangue de dade da queda uma queda de fato, que
escalar até o topo o Cerro Bonette, um juvenil de mãos de cavalo. Bueno, este quem se aproxima. deixe calculadas3 cicatrizes, que serão
pobre ponto turístico, jamais explorada traço é a covardia. E não qualquer covar- Segundo momento sintomático. A as festejadas marcas de um embate com
completamente. dia, mas uma covardia muito específica, gurizada do bairro se reúne em torno a realidade adversa e agora dominada.
A representação do
O trauma é decorrente que está baseada na ne- de uma disputa chamada downhill, que A questão que está colocada é que este
ápice traumático está ex- gação da possibilidade consiste na descida de bicicleta por um embate só pode acontecer, dentro da
posta, por completo, no de um traço definidor do de ação modificadora da morrinho que liga duas ruas em desní- estrutura de valores de Hermano, em
parágrafo de onde saiu caráter de Hermano, e que realidade, o que signifi- vel, numa parte do bairro. O objetivo uma situação controlada (como é o caso
essa primeira citação. Na ca dizer – segundo as co- deste jogo era avaliar quem descia com do ciclista urbano ou do campeonato de
longa passagem – sem
é representado no romance ordenadas do romance maior velocidade, em situação mais pe- downhill) ou como simulação. Seguindo
pontos – é descrito, com em vários níveis. Este traço – a negação da violência rigosa, colocando ao limite suas habilida- na conversa, é possível reduzir essa tipo-
abundante uso do discur- é a covardia. contra o meio opressor, des de ciclista e sua coragem de menino. logia estabelecendo um paralelo entre o
so indireto livre, o mo- contra uma realidade Quem mostrasse mais decisão, habilida- caráter de experiência controlada e ex-
mento em que Bonobo é espancado até que seja individuada e adversa. de e classe – o perigo e a glória estavam periência simulada selecionando o traço
a morte por Uruguaio, vizinho de bairro Começando do início, o capítulo que na queda espetacular – era declarado, por de controle: tanto na simulação quanto
e amigo de brincadeiras tanto de Bonobo abre o romance expõe parte dos sinto- aclamação, vencedor. Tudo isso é narra- na experimentação, o controle das con-
quanto de Hermano. Este espancamento mas pelos quais a tensão irresoluta da do no capítulo “Downhill”. Pois Herma- dições iniciais e do modo como serão
ocorre como vingança de Uruguaio, que covardia pode ser compensada. Herma- no Mãos-de-Cavalo decide, sob o olhar performadas as ações se mantém todo o
levou uma surra do Bonobo na frente de no é apresentado na figura do ciclista ur- avaliador de seu amigo Bonobo, entrar tempo sob o domínio, mesmo que ima-
todo o mundo, bem no aniversário da bano, um explorador das possibilidades para a história do downhill do bairro, e ginário, de Hermano.
Isabela – namoradinha do Uruguaio, que de desafio da geografia da cidade, que se toma o maior impulso que qualquer um A perversão que esse controle gera
durante a dança lenta dos casais ficou constrói pelas ruas com calçamentos de- já tinha tomado, e desce com decisão e começa a se mostrar no capítulo “O Bo-
cadernos de não-ficção

cadernos de não-ficção
desrespeitando a menina. Bonobo não siguais, calçadas ruídas pelo descuido ou firmeza até perder o controle, e ser ca- nobo”, no qual são apresentadas todas as
teve dúvidas em sua simples mente, foi escorregadias de zelo, cruzamentos mo- tapultado ao ar por seu desejo de distin- figuras da turminha do bairro, durante
lá e interveio, entrou de cabeça – literal- vimentados e limites de arame farpado. ção, e se espatifar gloriosamente frente à um jogo de futebol no campinho. Todos
mente – na situação: com uma cabeçada Hermano, no momento com dez anos, audiência extasiada, mostrando de uma os amigos de Hermano são referidos por
precisa desequilibrou o Uruguaio e liber- é narrado em ação na busca pelo equi- vez por todas quem era o mestre no mar- seus apelidos, os quais são adequada-
30 31
mente explicados pelo narrador, de acor- aniversário esquecido há dois anos – uma maior do que seu próprio atarracamen- para valer com ninguém”. A questão
do com o contexto de surgimento e pro- caixa de lápis aquarelável importado – se to juvenil, encarna e performa a prática não colocada, e que ajuda na construção
váveis interpretações. Dentre os amigos, tranca no banheiro, e ao mesmo tempo e moral de um outro nobre, a dignida- do romance e desta leitura crítica, pode
apresentados nesse primeiro momento que reproduz em simulação, pela ima- de que distingue o guerreiro herói. O ser expressa numa paráfrase aumentada
numa ciranda divertida, a imagem que ginação e com pantomimas, a surra que segundo desvio decorre deste, e se dá da passagem citada: “Hermano nunca
se destaca e fecha a apresentação é a de levaria de Bonobo, desenha com o giz em relação ao referencial heroico dessa tinha brigado para valer por ninguém”
Bonobo: o rapaz truculento “como uma de cera molhado os hematomas e fios de violência física, pois essa violência – para (comunidade, oprimidos, moral) e pode
criatura do dobro de seu peso e tama- sangue que seriam as cicatrizes das con- Hermano – não tem como base a defe- ser continuada como “Hermano nunca
nho” para quem “os demais seres hu- sequências de sua ação. sa do mais fraco (como no Taxi driver de tinha brigado para valer por nada” – o
manos eram obstáculos insignificantes” A simulação aí posta, devidamente Niro defende a prostituta) ou sequer a que equivale dizer, em última instância,
e que acabará massacrado por Uruguaio mediada pelos índices de uma indústria defesa da moral e das práticas de uma co- que Hermano nunca precisou brigar por
algum tempo depois. Na partida de fute- cultural que reacentua e glorifica o herói munidade (Mel Gibson no segundo Mad nada, já que sempre teve tudo. Mas va-
bol, numa bola dividia pela ousadia, Her- pelas marcas de suas batalhas4, é confi- Max, colocando o seu coupé na reta para mos com calma.
mano desafia corporalmente Bonobo gurada por um duplo desvio de seu nexo defender uma comuna idílica no meio Para o cálculo da análise ficar visível,
com um calço maldoso, acabam os dois prático. O primeiro desvio acontece em do deserto – último bastião de civilidade é preciso uma melhor caracterização de
no chão, Bonobo se levanta e Hermano relação à possibilidade de performance insistentemente assediada pelos avanços Bonobo: o primogênito de uma família
– ainda no chão – tem vontade de levan- da valentia autossuficiente: Hermano dos bárbaros5). Neste primeiro momen- composta de uma mãe e dois filhos (a
tar o olhar em desafio completo contra deseja o combate contra Bonobo na ten- to, o desejo de Hermano é representado irmã de Bonobo é Naiara, um dos quase
Bonobo, imagina como seria se levan- tativa de equalizar a diferença de poder como decorrência da egolatria infantil, desejo quase realizado de Hermano), é
tasse o olhar, imagina como Bonobo de agência que os distancia. Bonobo é pois surge de uma curiosidade individual, o único que não cresceu no bairro, que
responderia, como seria a provável briga um adversário digno – e até certo ponto do ato de esmiuçar umbiguismos. É ten- não ocupa aquele lugar do desde sempre
cadernos de não-ficção

cadernos de não-ficção
de socos e pontapés. Os amigos sentem a possível – por que possui uma valentia fí- tativa de resposta a uma questão que não da memória das crianças. Ele e sua famí-
tensão, tentam amenizar no deixa disso, sica (physis aretéica) que é desconhecida está colocada no romance ou nos ques- lia representam, na economia de identi-
e Hermano desiste de agir. E como eu ia de Hermano: seus amigos mais antigos tionamentos das personagens, e que vejo dades do romance, um índice de dese-
dizendo, a perversão está no fato que se não se comportam assim, seus pais não claramente formulada nas entrelinhas quilíbrio inserido no cotidiano pequeno
segue: Hermano depois disso volta para se comportam assim, seus vizinhos não da afirmação do narrador quando escre- burguês suburbano que buscava orga-
32
casa, desenterra um velho presente de se comportam assim – apenas Bonobo, ve que “Hermano nunca tinha brigado nizar aquele loteamento da zona sul de 33
Porto Alegre que ia assumindo feições de geral uma coleção de diplomas e bens do texto literário quanto nas práticas so- cavalo reproduz, em vários níveis, o ide-
bairro. Bonobo é representado como um culturais que os distinguem frente às ciais dos sujeitos que estão submetidos ologema pequeno-burguês brasileiro da
indivíduo com potência de ação, e que outras classes. Uma classe que se carac- à ideologia em questão. Segundo Jame- geração Collor7, e através dessa reprodu-
mesmo “apesar da aparência que beirava teriza historicamente no Brasil do século son6, o ideologema pode se manifestar ção gera tanto o efeito de representação
a deformidade e de um comportamento XX por descender em parte dos grandes como “uma opinião ou um preconceito da realidade histórica como o efeito de
terrorista, era impossível não simpatizar”. senhores de escravos que mantiveram – ou como uma protonarrativa, uma es- representação da realidade moral para os
Seus atos, apesar de negarem o decoro certa distinção e fortuna mediante inten- pécie de fantasia de classe essencial com leitores que estiverem alinhados a essa
burguês, obedecem uma misteriosa mo- sas transações simbólicas durante o final relação aos ‘personagens coletivos’ que ideologia.
ral, desejada por Hermano e reconhecida do império escravocrata que marcou o são as classes em oposição”. Para facilitar E mais. O duplo realismo em questão
(inclusive pelo narrador) como elevada, terceiro quarto do século XIX; em par- o andamento, vou aproveitar o momen- expõe a ordem desse mundo pequeno-
e que pode ser descrita como derivando te de ex-escravos e homens-livres que to e definir ideologia como naturalização burguês através de uma representação
de uma incisiva autodeterminação que concentram e acumulam capital simbó- de um sistema de valores, ou seja, quan- que é séria, ou seja, não é infantilizada ou
respeita as distinções adequadas do cava- lico e monetário desde a estabilização do uma parcela da sociedade convencio- cômica. O narrador valoriza os atos das
lheiresco: respeito pelas mulheres conju- e legalização das condições de trabalho na por meio de suas práticas o sentido personagens com julgamentos solenes,
gado à coragem e potência física. assalariado impostos pela revolução de de conceitos como coragem, liberdade, misturado a valorizações humorísticas,
Um conceito que a partir deste mo- trinta; em parte de imigrantes europeus escolha, e de outros e construções dramáti-
mento vai coordenar a análise aparece e asiáticos que serviram à primeira fase conceitos que sejam im-
A forma da narrativa do cas. O estilo misturado
em negativo nessa caracterização que da industrialização brasileira no final do portantes para aquela romance Mãos de cavalo do narrador é similar
montei de Bonobo. É a burguesia. Co- século XIX e desempenharam parte da parcela da sociedade – e reproduz, em vários níveis, àquele identificado por
meçando em abstrato, podemos dizer colonização do centro-sul do país – em por extensão, a impor- o ideologema pequeno- Erich Auerbach como
que burguesia é uma das classes sociais maior escala a partir do início do século tância que é atribuída marca do homem co-
determinadas pelo sistema capitalista de XX; e em parte dos grandes patriarcados a cada conceito, o peso
burguês brasileiro da mum, e que representa
produção, ou seja, em uma sociedade rurais decaídos depois das progressivas geral das ideias na vida geração Collor. um mundo de valores
na qual o nexo valorativo principal é o ondas de industrialização e centraliza- cotidiana das pessoas pertencentes àquela que não procura a distinção na escolha
dinheiro. Em uma sociedade de ideolo- ção urbana do poder. Essa última ca- parcela da sociedade, o lugar-comum do excepcional do herói, e incide portanto
gia hegemônica capitalista, a burguesia racterística é extensiva a todas os outros qual depende a coordenação das ações, no tipo médio, que será ao mesmo tem-
ocupará – dentro da economia de iden- contingentes: a burguesia é uma classe aquelas coisas que “todo mundo sabe” po sublime e simplório, e permite que
tidades sociais e culturais – uma larga tipicamente citadina, e ocupa os princi- serem verdade, serem de verdade, serem do traço cotidiano se consiga uma avalia-
faixa de afazeres e posições, que incluem pais núcleos urbanos dos vários estados reais, a interpretação que normalmente ção de toda a estrutura de valores de sua
o pequeno empresariado, profissionais brasileiros, com maior concentração nas se dá para os acontecimentos na vida das visão-de-mundo8 – marca do realismo
autônomos, gerentes e chefes de depar- grandes metrópoles. pessoas: o que significa ter um emprego, que vai do Pentateuco a Virgínia Woolf.
tamento, professores e acadêmicos em Para continuar a conversa, vou intro- vestir sapatos, andar de bicicleta, brigar Para Ian Watt, a origem do conceito e
geral, engenheiros e artistas profissionali- duzir outro conceito analítico que será útil no baile, ter um filho, fazer artes-plásti- da representação – do ideologema – de
cadernos de não-ficção

cadernos de não-ficção
zados ou semiprofissionalizados, funcio- deste momento em diante. É a noção de cas, etc. Um ideologema, portanto, vai homem comum da burguesia moderna
nários públicos de médio e baixo escalão, ideologema. O ideologema é uma ideia- ser uma forma que sintetiza os valores pode ser identificada como tendo sua
médicos e veterinários. Como regra e resumo, uma síntese abstrata que resume que organizam nossas identidades. origem numa espécie de síntese huma-
como régua indivíduos com muitos anos os valores de uma ideologia. Esta síntese Pois então, o argumento é que a for- nística e racionalizada do capitalismo
de escolarização, letrados, possuindo em abstrata se manifesta tanto na construção ma da narrativa do romance Mãos de mercantil imperialista, expressa pelo in-
34 35
dividualismo pragmático do protestantismo anglo- lica do bairro, e o torna mais hospitaleiro disfuncionalidade da família de Bonobo
saxão da virada do século XVIII, e representado pela por este plantio de árvores, é uma proje- que faz dele um elemento pleno de au-
ficção de autonomia total do homo economicus que ção benfazeja do zelo burguês que orga- todeterminação: ele é o primogênito, o
é o Robinson Crusoe9. niza a comunidade dos primeiros mora- filho que deve assumir o lugar vago do
Voltemos ao texto. A escolha da passagem que dores do bairro – e a amoreira carregada, pai, e neste caso precocemente. É este
possibilita a identificação deste ideologema em toda símbolo inequívoco da abundância exu- pater-familias com idade de menino que
a sua tensão é tarefa fácil, pois o narrador racional- berante que advém deste zelo. O novo confronta os valores da comunidade to-
mente anuncia que o “mito fundador da imagem de morador é rápida e naturalmente iden- mando para si um privilégio que ainda
Bonobo” era o seguinte: tificado como marginal a essa ordem, e não deveria possuir, segundo a ordem
“[...] havia uma pequena amoreira na praça do sua presença se faz em ato de conflito. das coisas daquela comunidade – ordem
bairro. Tinha sido plantada pelo Seu Ijuí, um dos pri- Sem interpretar muito, o que Bonobo e coerência similar à fumaça do churrasco
meiros moradores. [...] Naquele ano, sua tímida copa está fazendo é tomando para si o privi- de domingo, na qual o bairro amanhece
de folhas miúdas ficou pela primeira vez carregada de légio que os vizinhos burgueses tinham imerso numa das cenas, e que estabele-
amoras. A pedido de Seu Ijuí, que era um tiozinho como seu, de colher ce convencionalmente
muito querido que plantava árvores por toda parte, aquelas amoras. Afinal, E é exatamente esta a prática familiar e pa-
todas as crianças concordaram em esperar as amoras foram os fundadores disfuncionalidade da triarcalista de sentar
ficarem maduras.” daquela comunidade, e ao redor do fogo e par-
Amadurecem as amoras, e quando as crianças che- a fundaram de acordo
família de Bonobo que faz tilhar comida: outros
gam para o esperado dia da colheita, de cumbucas nas com o código de regras dele um elemento pleno privilégios negados a
10
mãos. e práticas civilizadas , de autodeterminação: ele Bonobo, afinal ele não
“[...] tudo o que encontraram no lugar da amo- que davam coerência tem pai e ele é o pai.
reira foi um toco de árvore serrado a meio metro da interna àquela comuni-
é o primogênito, o filho Vou aproveitar o
raiz. [...] O pai da Ingrid passou de carro, notou a co- dade, ou seja, harmo- que deve assumir o lugar ímpeto e fazer o salto,
moção e parou para dizer que ao sair mais cedo na- nizavam e conciliavam vago do pai, e neste caso firmando o pé lá no
quela manhã para comprar pão tinha visto o filho dos as tensões e permitiam, quarto parágrafo quan-
novos moradores, um marginalzinho que chamavam por exemplo, a celebra-
precocemente. do descrevo a paixão
de Bonobo, serrando a amoreira com um serrote e ção do esforço gratuito representado por e morte de Bonobo, para dizer que ele
voltando para a casa a pé com a árvore apoiada em um pé de amoras bem cuidado e carrega- é mais uma encarnação do pobre heroi-
seus estreitíssimos ombros, as amoras pretinhas ba- do de frutos. É importante lembrar que a co, do sublime humilde, neste caso sem
lançando alegremente nos ramos. Os pais das crianças família de Bonobo não está ali por acaso, muitas luzes – o que equivale dizer: sem
foram à casa da família do Bonobo. Quem atendeu foi mas porque as condições materiais per- acesso aos bens culturais – mas portador
o próprio Bonobo, que disse que tinha levado a amo- mitem. de uma arete de physis12, uma corporali-
reira para casa sim, e daí, árvore na rua não tem dono, O idílio deste éden burguês dura pou- dade em violência que é enobrecida pela
não-ficção

cadernos de não-ficção
caderno dedenão-ficção

que não gostar pode tentar pegar de volta, mas vai 11


co , pois esta organização familiar atrai moral. Moral essa que na economia sim-
sair machucado etc. A intimidação surtiu efeito, e os para si a outra família, que nada mais é bólica da narrativa e – mutatis mutantis
pais se conformaram, voltaram para casa e passaram do que uma face abjeta e recalcada deste via ideologema – em um estrato especí-
cadernos

o resto do dia consolando os filhos”. próprio código burguês, figurada como fico da sociedade brasileira estão ligados
O tiozinho querido que auxilia na fundação simbó- família disfuncional. E é exatamente esta à constituição da distinção positiva, e se
36
36 37
manifestam, entre outras, das seguintes travasamento do ideal em ação violenta, rio. Neste momento Hermano percebe sa, utilizando como coordenadas o que
maneiras: respeito e proteção da mulher; acaba se tornando o objeto do desejo de claramente que sua condição de covarde ele considera como os melhores valores
manutenção de sua posição pela aplica- identidade de Hermano, já que sua reali- é o que permite o martírio daquele gu- dessa estrutura de organização prático-
ção punitiva da força; determinação fren- zação é negada por sua posição de classe. rizinho que está apanhando até morrer. simbólica da realidade e do imaginário
te a qualquer obstáculo (especialmente Afinal, Hermano está dentro do molde Espancamento este que Hermano deseja – a viagem que deveria levar ao Cerro
frente àqueles que oferecem perigo à in- do aluno aplicado, aquele que mediante para si por não se permitr performar sua Bonette, em última instância – começa
tegridade física). O seu privilégio é a luta, concentração e esforço mental solitário moral, performance essa que redundou no dia do enterro do Bonobo (tecnica-
a vitória do forte e – devido aos nobres equaciona as variáveis sociais e simbóli- na morte de Bonobo. A morte de Bono- mente, o momento corresponde às duas
ideais – a vitória do justo. Essa síntese cas que são apresentadas. É, em medida bo, este momento extremo de fraqueza, últimas frases do romance).
exerce um magnetismo identificatório inversa, uma reencenação da ideia sem fixa a autoimagem de Hermano como É de lá que vem a construção deste
em Hermano, que procura se conjugar braços do jovem Bentinho14 – como as projeção de sua própria fraqueza, de sua Robinson Crusoe (com pacotilha e tudo)
nos mesmo termos que Bonobo, mas mãos de cavalo, inábeis no agenciamento covardia burguesa. que cruza as ruas daquele bairro da in-
sabe que suas mãos não estão a serviço dos nobres ideais, recalcadas na ação que E daí, a questão é o seguinte. Her- fância no seu confortável automóvel.
dessa força nobilizada. não seja mediada pela intelecção e de- mano vê performada as consequências Hermano estava se lançando na ilha
A perversão específica que expõe o senvolvida pela racionalidade; inábeis na de sua covardia burguesa, e decide não deserta18, depois do naufrágio de sua
ideologema é o fato de que a violência ação que não seja, portanto, sanitarizada ser mais um covarde. moral, para refundar
(autoviolência) de Hermano é também, de qualquer traço de valentia corporal15. Porém, suas escolhas e A morte de Bonobo, este a si mesmo em sua re-
ela mesma, um exemplo da expropria- E vou ressaltar novamente o ponto: decisões possíveis são momento extremo de lação com o mundo
ção, pois mesmo a única agentividade Bonobo morre por causa da performan- limitadas pela classe
fraqueza, fixa a auto- (o que equivale, em
que resta a Bonobo – a violência corpo- ce agentiva de seu código moral que – Hermano nunca será um plano desejado, ir
ral, a preeminência da força brutal – é submeteu pela força o transgressor deste 16
Bonobo – o tipo de imagem de Hermano como até o Cerro Bonete),
raptada de sua esfera simbólica: é Her- código. Bonobo morre porque foi nobre ação que é permitido projeção de sua própria e como um bom Ro-
mano quem se violenta, que se oferece e ativo em sua nobreza. só estende sua covardia
fraqueza, de sua covardia binson Crusoe ele não
em sacrifício para escapar do sacrifício. E enquanto Bonobo era espancado, em razão instrumenta- poderia abrir mão de
Seu egoísmo individualista é tão intensi- o que Hermano estava fazendo? Estava lizada, e inverte o sen- burguesa . colher deste naufrágio
ficado que nada sobra – nenhuma ação escondido no meio do mato se cagando, tido: de introspecção masoquista para moral a sua pacotilha , os valores, práti-
simbólica de valor – para a vontade de como um típico covarde. Este é outro intervenção sádica. O ideologema em cas e artefatos culturais que permitiriam
ação de Bonobo13. momento da fundamentação da diferen- nenhum momento é perturbado. Seu re- sua sobrevivência falsamente autôno-
O recalque de ação em Hermano, que ciação de classes e de papéis sociais, e das tiro interior o transforma num esteta (o ma. E essa é uma pacotilha muito mais
resultará na morte de Bonobo, é o recal- estruturas simbólicas significantes que caminho burguês elevado) com direito estratégica, racionalmente determinada,
que de sublimação, de civilização, que organizam o romance, outra manifesta- a requintes sádicos, e Hermano acabará não pelo desespero e a precariedade das
torna o impulso-arete da industriosidade ção do ideologema. E é neste momento 17
agindo sobre a carne das mulheres em condições, mas em um momento que é
manual em introspecção intelectual, em que Hermano consegue olhar para o es- nome da racionalização formal, ao mes- deliberado, planejado e controlado – ou-
cadernos de não-ficção

cadernos de não-ficção
aplicação às ciências do espírito – para pelho. Se vê inteiro refletido na imagem mo tempo que se deleitará em explicitar tro dos valores que Hermano pretende
usar uma síntese grosseira e arcaica (mas da morte de Bonobo, nesta morte de co- todos os riscos de vida e morte que estão salvarguadar do naufrágio: a racionalida-
homóloga à ideologia do romance), às ar- varde – a total submissão que é a morte envolvidos no processo. de técnico-instrumental20, que permite
tes liberais. O trabalho manual grosseiro, por espancamento, que é a morte dese- A profunda dedicação de Hermano a extensão do domínio da luta de classe.
aquele que permite e ressoa com o ex- jada para si em seu delírio compensató- à autofundação e à autonomia burgue- O cientificismo presente no narrador é
38 39
um reflexo deste ethos burguês, e assim intervindo de uma forma da qual nun- se transforma, por uma modificação de- age quando tem garantido que não está
mimetiza no entrecho um traço estrutu- ca se julgaria capaz”. E da forma como liberada26 de seu uso, em uma manifes- pondo em risco sua situação, e continua
ral que conforma a matriz sócio-históri- está narrado – com julgamento explícito tação sensível da diferença de classe. a fingir, a se esconder encagaçado den-
ca contemporânea, traço este presente e tudo – fica indicado que Hermano se Não é um pedaço de pau, ele não está tro do mato, atrás do Pajero e do piolet.
desde a primeira revolução industrial, e tornou capaz de atravessar o abismo que de bicicleta ou a pé. E mais. Ele tem trin- Depois, quando voltar para casa e inven-
progressivamente ampliado, e do qual separava a moral da prática, o abismo ta anos e os garotos tem dezesseis. Toda tar uma história de como ele se sentiu o
depende tanto a dialética do esclareci- fundacional do ideologema: viu uma si- a cena é construída sobre a desigualdade: Mad Max quando deu um corridão em
mento quanto a indústria cultural. tuação clara de oprimido e opressor (oito os oito meninos contra um só, Herma- uns moleques, vai poder exibir mais uma
Trata-se do ideologema tecnocrático meninos batendo em outro) e interveio no motorizado e brandindo um piolet cicatriz de covarde e ficar “um momen-
que representa o suprassumo, a síntese em favor do oprimido23. comprado27. Se a narrativa for enqua- tinho agachado frente ao fogo” racionali-
formal elevada da burguesia pós-indus- Porém, uma vez mais o ideologema drada de outro ângulo, dá pra descrever zando sua recém descoberta capacidade
trial informaníaca. Que passa necessaria- não se rompe. Hermano é o Crusoe com – sem nenhum problema – que Herma- de intervir em favor do mais fraco, em
mente por Metroid e pelo 386 DX22, pelo pacotilha, ele não se mostra corajoso no termina28 sua busca completamente afugentar os favorecidos, aqueles que
iPod e GPS, pela especialização minucio- frente à realidade adversa por sua valen- transtornado, delirando que é um tipo querem se impor por sua valentia física,
sa da instrumentalização racional (piolet tia física, mas por causa de sua posição de vingador cinematográfico, baixando cada um daqueles que desestabilizam
etc.) e deságua no delirante sonho reali- de classe, sua vantagem dentro da eco- o piolet em uns guris que tem metade da o ordenamento adequado e moral do
zado que é a projeção panóptico-aléfica nomia simbólica e monetária do capita- sua idade. mundo, que roubam amoras das crian-
do Google Earth. É este ideologema que lismo pós-industrial informaníaca24. O Essa é a resposta que o romance ças. E vai concluir, sem espaço para dú-
cadernos de não-ficção

cadernos de não-ficção
faz com que Hermano, no caminho para arroubo final de Hermano, sua arremeti- propõe para atravessar os “abismos in- vida, que sabe “exatamente o que fazer”:
o Cerro Bonette, “movido por uma espé- da com o Pajero25 para cima dos agresso- transponíveis entre conhecer e fazer, para cada Bonobo um único golpe cirúr-
cie de reflexo condicionado , desviou do res do menino, nada mais é do que outra entre alma e estrutura, entre eu e mun- gico de piolet.
caminho até o bairro onde nasceu, cres- manifestação da intervenção sádica de do”29. Acredito que boa parte do rendi- Milton Colonetti é mestrando em Letras. Este
ceu e se tornou adulto, onde foi surpre- uma razão instrumentalizada e mediada mento estético vem das características ensaio é uma versão parcial e condensada de um
40 endido por uma agressão em que acabou por uma mercadoria-produto-coisa que aberrantes dessa resposta. Hermano só artigo tamanho king- size que está no prelo. 41
tabelece o eixo em torno do qual estão orde- 8. Mimesis, passim. violência mediante a segregação e o rebaix-
NOTAS nados as esferas hermenêuticas propostas, amento simbólico-monetário (e, nos casos
9. No A ascensão do romance, capítulos
1.É sua segunda narrativa longa, sendo que ou seja, a racionalidade calculada organiza histéricos, compensa a disparidade entre
introdutórios e o capítulo sobre Robinson
a primeira é uma novela intitulada Até o dia em estrutura a narrativa, e se superficializa moral e prática mediante a distenção maso-
Crusoe. Sobre a parte de ficção de autono-
em que o cão morreu, editada pela Livros nos eventos relevantes, nos valores do nar- quista da violência auto-infligida).
mia total, é menção ao capítulo sobre o
do Mal em 2003, adaptada em 2007 para rador, nas escolhas terminológicas, na dis-
Crusoe que está no Mitos do individualismo 13. Adorno explica: “A anti-razão do capi-
o cinema sob o título Cão sem dono, com tribuição dos episódios e até na divisão dos
moderno, também do Watt. Neste capítulo talismo totalitário, cuja técnica de satisfazer
direção de Beto Brant e roteiro de Brant e capítulos.
é discutido a construção do mito de Crusoe, necessidades, em sua forma objetualizada,
Marçal Aquino. 4. “O efeito [...] trazia à mente um clipe principalmente pela interpretação idealista determinada pela dominação, torna impos-
2. No teatro realista francês do século XIX a frenético de imagens de filmes e histórias e individualista de Rousseau no Emílio: sível a satisfação de necessidades e impele
personagem que servia de porta-voz ao au- em quadrinhos, uma montagem feita de Robinson Crusoe, no texto de Defoe, não ao extermínio dos homens – essa anti-razão
tor era chamado de raisonneur, ou a razão heróis feridos – Elektra golpeada por ci- é uma representação de autonomia total do está desenvolvida de maneira prototípica no
social encarnada em um homem (como bogues sádicos, o jovem Veto Skreemer indivíduo – tanto que Rousseau propõe ex- herói que se furta ao sacrifício sacrificando-
definiu – veja só – José de Alencar, cf. lá o com o rosto talhado a navalha, Robert de tirpar tudo o que é penduricalho, ou seja, se. A história da civilização é a história da
Décio de Almeida Prado, no Teatro de An- Niro com um tiro no pescoço, Mad Max todas as peripécias do livro que não sejam introversão do sacrifício.”
chieta a Alencar, acredito que na página 335, ensangüentado se arrastando para fora do especificamente aqueles (poucos) meses
14. Isso mesmo, o senhorinho que vira o D.
segundo parágrafo). A velhinha em questão Ford Falcon GT coupé preto após uma ca- em que Crusoe está completamente só na
Casmurro.
não remete ao autor, mas sim ao narrador potagem espetacular, samurais, gângsteres ilha, assim como toda a narrativa que leva
– é um instrumento narrativo que serve de e vingadores das telas de televisão e pági- até o naufrágio e que continua depois do 15. Valentia corporal equivale aqui à que-
emissor de um dos julgamentos de valor nas de graphic novels que não apenas san- resgate. Como esta questão pode ser for- bra da racionalidade, igual àquela promov-
que vai organizar o romance: a divisão en- gravam, mas deixavam o sangue vesti-los mulada frente ao Mãos de cavalo será ex- ida pelos gestos corporais em Kafka. Tem
tre sangue bom e sangue ruim. Esta divisão como uma pintura de guerra, imprimindo plorado em seguida. uma seção inteira das Notas sobre Kafka do
determina que certos ações fazem o sangue uma dimensão sagrada a seu estoicismo.” Adorno dedicadas a esse tema. E já que falei
10. O que, sob as coordenadas ideológicas
ruim ser expelido, o que abre espaço para de quebra de racionalidade, entra então o
5. E seguindo na argumentação, o drama postas, equivale dizer: burguesas.
a renovação do sangue bom. A questão é dionisíaco do Nietzsche no Nascimento da
do gângster cinematográfico sempre en-
que este juízo fundamenta e dá razão (ra- 11. Se entendi bem, o tempo exato que leva tragédia: a ressalva é que Bonobo não é um
volve uma famiglia, uma comunidade de
cionaliza) a auto-violência praticada por uma amoreira até mostrar seus primeiros coro ditirâmbico. E, bem, já que está aí, so-
práticas que se mantém por um código
Hermano durante o primeiro arco do livro. frutos. bra pra Hermano o apolíneo racionalista.
moral estrito.
E como veremos, a racionalidade é tecni- O drama é o da impossibilidade de concili-
12. Seus valores remetem diretamente a
camente a dominante narrativa, um traço 6. Confere lá, página 80 do Inconsciente ação. Mas prefiro não seguir por este Ni-
uma valentia mercurial da burguesia, que
estruturante. O traço é muito claramente político, do final da segunda linha em di- etzsche, pois é no romance em questão não
sobrevive graças (exatamente) a esta subli-
uma manifestação daquilo que Adorno e ante, edição da Ática de 1992. me permitiria ver além do ideologema.
mação da violência física – cujo centro li-
cadernos de não-ficção

cadernos de não-ficção
Horkheimer definiram como esclarecimen-
7. A minúcia informaníaca do narrador per- bidinal é deslocado para um logocentrismo 16. A piada pode ser estendida também:
to, no (sic) Dialética do Esclarecimento etc
mitiria que o predicado fosse estendido até autoteleológico. Liberdade e autarquia indi- Hermano, do grupo dos iguais, jamais será
como está explicitado na nota abaixo.
o pequeno-burguês porto alegrense inter- vidualista, factíveis e permitidas pelo supri- Bonobo, do grupo dos animais. O que deixa
3. Dizem eles sobre o Fichte: “O procedi- nauta universitário branco adolescente na mento das necessidades básicas (equivalente em suspenso a questão: irmão de quem?
mento matemático tornou-se, por assim era Collor. à reinstituição do realismo) e supressão do
17. Sempre é bom ressaltar: Bonobo mor-
42 dizer, o ritual do pensamento”. O traço es- ímpeto destrutivo: a burguesia exerce sua 43
reu por defender a integridade física de uma país, paraíso particular do contrabando in- 26. A palavra é do narrador: “Sabe o que
mulher. ternacional, que tem em sua história uma precisa fazer. Pula para o banco traseiro,
gloriosa derrota em uma guerra contra que foi rebaixado para se tornar uma exten-
18. A leitura romântica de Rousseau da
Brasil, Argentina e Uruguai, guerra esta são do bagageiro, solta algumas presilhas
nota 10.
vencida com orgulho nacional pelos bra- e correias da mochila grande e pega o pio-
19. Robinson Crusoe depende da salvata- sileiros, que aproveitaram o momento e let novinho em folha, comprado especial-
gem dos restos da carga do navio, que são mataram boa parte da força de trabalho do mente para a expedição. Usado pra escalar
índices e produtos da civilização. Vale a pena país, e já que estavam na farra destruíram no gelo, o instrumento tem o formato de
comparar uma passagem antes e depois que o belo parque fabril que os paraguaios tin- uma pequena picareta e é incrivelmente
Crusoe consegue reaver parte da carga do ham montado para a guerra. Aliás, foram leve pro seu tamanho. Agarra a haste de
navio: ele vai de “Numa palavra, não tinha os paraguaios que começaram a guerra: o cerca de meio metro de comprimento e fixa
nada além de uma faca, um cachimbo e um objetivo era tomar parte de Santa Catarina brevemente o olhar na lâmina penetrante
pouco de tabaco numa caixa: eram todas as e do Paraná, ir lutando em direção à costa de aço inoxidável, que lembra o bico de
minhas provisões, e isso me deixou tão ter- até conseguir uma saída para o oceano que uma garça.”
rivelmente angustiado que durante algum possibilitasse a inserção no mercado mun-
27. O Deleuze e o Guattari falam, quando
tempo me pus a corre como um demente” dial. Mas felizmente o passado é passado, e
falam de Kafka, em agenciamento maquíni-
para “Só levei o indispensável para o mo- atualmente temos em cada cidade brasileira
co. Eu digo que esse híbrido centáurico
mento, pois havia outras coisas que me at- uma colorida e alegre embaixada paraguaia,
Hermano-Pajero-piolet é sim um agen-
raíam mais os olhos, sobretudo ferramentas na qual podemos adquirir os mais avança-
ciamento maquínico, e de tal tipo que faz
para trabalhar em terra, e foi após uma lon- dos subprodutos do capitalismo pós-indus-
dele uma versão histérica do Odradeck do
ga busca que descobri a arca do carpinteiro, trial informaníaco.
adequadamente intitulado “Tribulações de
realmente um achado de muita utilidade
22. Moretti em “A Alma e a Harpia” (pri- um pai de família”.
– e muito mais valioso do que teria sido um
meiro capítulo de Signos e estilos da mod-
barco abarrotado de ouro nessa ocasião.” 28. Dá pra dizer também que a busca ter-
ernidade): “As figuras de retórica e as
mina com a distinção de classe final, que
20. Adorno na cabeça. combinações maiores que organizam as
é homóloga a essa, na cozinha da casa de
narrativas longas são, assim, semelhantes
21. Outro traço brasileiro e faceiro: o pai do Naiara. Essa dimensão erótico emocional
aos pressupostos profundos, encobertos
guri que tem o computador antes de todo do romance é analisada na versão king-size
e invisíveis de todas as visões de mundo.
mundo é um contrabandista. O desenvolvi- deste ensaio.
[...] Sua eficácia duradoura e impercebida
mento desigual e combinado (Trotsky apud aponta para o amplo campo de estudos da 29. Cortesia de Lukács (Teoria do romance),
Schwarz) do capitalismo mercantil pós-in- cultura inconsciente, o conhecimento im- lembrança de Antônio Sanseverino (A força
dustrial informacional fez com que, du- plícito de toda a civilização.” messiânica e a Teoria do romance). Esta-
rante a abertura de 80 a 90 do mercado bra-
cadernos de não-ficção

cadernos de não-ficção
mos falando aqui do homem burguês.
sileiro aos influxos de capital e tecnologia 23. Com direito a se sentir Mad Max e
estrangeira, a grande porta de entrada dos tudo.
produtos da incipiente era informaníaca
24. Preciso urgentemente de uma sigla.
fosse a Ponte da Amizade, que liga Foz do
Iguaçu aos nossos hermanos de Ciudad Del 25. Para os arqueólogos: Pajero é um mod-
44 Este, no Paraguai – simpático e miserável elo de carro. 45
46
cadernos não-ficção

46
caderno dedenão-ficção

1962-2008
wallace
foster
David

47

cadernos de não-ficção
o escritor

deprimido
por alexandre rodrigues

D e acordo com o laudo


da polícia1, ele pregou o cinto
de cor negra em um suporte
de madeira do telhado de um alpendre
no pátio dos fundos do quintal da casa
a qual estava escrito um nome: Karen.
A morte foi declarada às 21h23 do dia
12 de setembro, cerca de quatro horas
depois que a esposa saiu de casa e viu-o
vivo pela última vez. Tudo ocorreu em
e preparou uma forca. Depois, amarrou Claremont, nos Estados Unidos.
os próprios punhos com fita adesiva para Claremont fica na Califórnia, porém
evitar que pudesse desistir. Seu método a cidade mais conhecida das redonde-
escolhido foi morrer lentamente sufoca- zas é Las Vegas, a 13 quilômetros, no
do. Era uma noite de chuva. Usava uma estado de Nevada. Também faz parte
bermuda cinza e uma camiseta azul. Os do Condado de Los Angeles, distante
cabelos, crescidos até a altura do pesco- a 45 quilômetros, do lado californiano.
ço, estavam soltos. No rosto, a barba É uma cidade pequena, com apenas
cadernos de não-ficção

cadernos de não-ficção
por fazer. Tinha à mostra no braço di- 37.242 habitantes – população oficial
reito a tatuagem de um coração, sobre de 2008. As ruas são estreitas e tomadas

1. O laudo foi publicado pelo site The Smoking Gun e revela uma curiosidade adicional: como os poli-
ciais não sabiam quem era David Foster Wallace, foram juntados ao inquérito alguns textos seus e uma
48 biografia encontrada na internet. 49
dos dois lados por grandes e densas ár- cada por árvores e parques e conforma- comentar sobre seus óculos, a revista “A pessoa deprimida estava com uma dor
vores, cujos troncos não raro são mais da com certa irrelevância até o dia 12 de Rolling Stone notou que eram óculos terrível e incessante e a impossibilidade de
largos do que um adulto consegue abra- setembro. Foi em Claremont que David de velhinha. Era alto e corpulento, mas repartir ou articular essa dor era em si um
çar. Tão arborizadas que a cidade é co- Foster Wallace se suicidou. com uma aparência amigável. componente da dor e fato de contribuição
nhecida por suas árvores. Mas não é só O jornal mais antigo de Claremont, o A morte de David Foster provocou para seu horror essencial”5.
isso. Também há grandes e arborizados Courier, está na ativa desde 1908 e, cen- uma onda de choque e reconhecimen- É mais ou menos fácil encontrar,
parques públicos muito frequentados tenário, tem uma edição online. O obi- to, mas também de curiosidade. Na agora, os traços autobiográficos. Nardol
pelos locais. A grande presença de árvo- tuário de DFW no jornal registra alguns sua edição de outubro, a Rolling Sto- – o antidepressivo que tomou por mais
res atraiu uma considerável parcela da dos hábitos que o tornaram conhecido ne2 finalmente revelou que em Clare- tempo – é um dos remédios com o qual
população com o título de doutorado, no lugar como um sujeito excêntrico. mont ele viveu seu último ano de vida a pessoa deprimida é medicada. A ine-
quase todos os professores das sete uni- Foi escrito por alguém que evidente- em um inferno pessoal. Depois de duas ficácia de todos os medicamentos con-
versidades instaladas na cidade. Então, mente conheceu David Foster Wallace décadas de luta contra a depressão, foi tra o sentimento de isolamento, “que
por completo, passou a ser chamada de para outras pessoas que também o co- vencido. Não escrevia mais e havia tornava cada hora desperta (...) um in-
“A cidade das árvores e dos PHDs”. Ape- nheceram ou podem tê-lo conhecido. abandonado as aulas em Pomona Col- descritível inferno na terra”, e seus efei-
sar do título horrendo, é Uma intimidade subja- lege para se isolar em casa, mantendo tos colaterais intoleráveis são outros. A
um lugar que os locais Em sala de aula tinha o cente permite que seja longe a família e vivendo apenas com personagem, assim como o autor, acaba
consideram agradável estranho hábito de mascar chamado de “adoravel- a mulher e dois cães. Karen contou à submetida a uma temporada de sessões
para viver. Uma matéria mente estranho”. polícia sobre duas tentativas anteriores de eletrochoque, cujo efeito foi o mes-
da CNN disse a mesma fumo e o cuspir numa Entre 2002 e 2006, de suicídio e que ele vinha se tratando mo fracasso dos outros tratamentos.
coisa, escolhendo-a uma escarradeira. Colocava DFW foi professor em com três antidepressivos. Em 2007, se É de se intuir que falava de si mesmo
das melhores cidades do
castanhas sobre as mesas Pomona College, uma submeteu a doze sessões de eletrocho- quando descrevia o inferno da persona-
país. das universidades da que, sem resultado3. gem em seguir uma vida comum: acor-
Uma lista de célebres de alguns estudantes. Se cidade. Mudou-se para DFW fez da depressão tema de um dar, trabalhar, ir ao supermercado, etc.
moradores e ex-morado- fossem comidas, costumava a cidade, onde viria a de seus melhores contos4, A pessoa de- Kay Redfield Jamison, da Universida-
res começa com Tony conhecer a mulher (a primida. de John Hopkins, médica especializada
Beltran, de quem eu ja-
repô-las. Karen da tatuagem) de-
mais ouvi falar até encontrá-lo na Wi- pois de receber uma oferta de emprego. 2. The lost years & last days of David Foster Wallace. http://www.rollingstone.com/news/story/23638511/
kipédia – jogou na seleção americana Em sala de aula, registrou o jornal, ti- the_lost_years__last_days_of_david_foster_wallace
sub-20 em 2007 – e alguns ex-jogadores nha o estranho hábito de mascar fumo 3. O tratamento com eletrochoque se baseia na ideia de que convulsões em epiléticos afastavam o risco
de beisebol. O nome mais engraçado e o cuspir numa escarradeira. Colocava de surtos de psicose. Von Meduna, médico húngaro, começou a injetar cânfora nos pacientes nos anos
na relação de moradores ilustres é o de castanhas sobre as mesas de alguns estu- 30, induzindo convulsões e constatando que, de fato, ocorriam melhoras. A partir de 1938, dois ital-
Jonathan Petropoulos, um historiador dantes. Se fossem comidas, costumava ianos, Ciarleti e Bini, resolveram aplicar choques elétricos no cérebro de um conhecido doente mental
que escreveu sobre nacional socialis- repô-las. Era visto no campus com lon- de Roma, internado várias vezes durante surtos e que vivia perambulando nas ruas em um mundo de
cadernos de não-ficção

cadernos de não-ficção
fantasia. Os bons resultados estimularam que o eletrochoque fosse utilizado largamente nas décadas
mo e o uso da arte como política pelos gas meias brancas de ginástica até os jo-
seguintes, mas, a partir de certo ponto, começou a servir menos aos doentes do que ao sadismo de
nazistas. Ben Harper nasceu na cidade, elhos, bermuda e tênis. Os cabelos com- médicos, que o aplicavam como forma de punição. Esse aspecto cruel acabou levando o tratamento a
onde funcionava a loja de discos de seus pridos em geral estavam presos em um ser abandonado.
avôs que lhe serviu de formação musi- rabo-de-cavalo. Entre os alunos, tinha a 4. O meu favorito.
cal. Uma cidade orgulhosamente obce- reputação de usar roupas horríveis. Ao
50 5. A pessoa deprimida. Breves entrevistas com homens hediondos. 51
na depressão e também paciente, sofre balho, mas não o justifica. Morto, David poimentos depois de sua morte (o que va em provocar os alunos.
de bipolaridade. Em alguns ataques de Foster Wallace não se tornou um escri- poderia trair alguma condescendência) O mais valioso dessas aulas, agora
depressão, uma de suas características, a tor melhor. A qualidade da literatura e, principalmente, nas avaliações de alu- das lembranças dos alunos, é descobrir
doença quase a matou. “A doença que, que produziu é mais importante do que nos e ex-alunos na sua ficha de professor suas ideias sobre literatura que a de-
em algumas ocasiões, quase me ma- sua morte. quando ainda dava aulas, as lembranças pressão, o isolamento e o hábito de dar
tou”, escreve, “acaba matando milhares A pessoa deprimida, o personagem, são de alguém hilariante e acessível, que poucas entrevistas haviam escondido. A
de pessoas a cada ano. A maioria é jo- aterroriza a si mesma com a consta- gostava de passar horas em conversas sala de aula não comporta afetação, mas
vem; a maioria morre sem necessidade, tação, ao olhar dentro de si, de sua sobre literatura. sinceridade. Não permite a escolha me-
e muitos estão entre os membros mais completa incapacidade de sentir algo a Claremont, apesar da proximida- ticulosa de palavras sem que soem fal-
talentosos e criativos que nós, enquanto respeito de qualquer pessoa, mesmo a de, curiosamente não o viu desabar. O sas. Algumas delas: como lidou com as
sociedade, temos” . 6 mais próxima, encontrando-se isolada choque da morte se desdobrou numa dúvidas de qualquer escritor iniciante?
Os chineses têm um ditado a respei- da maneira terrível do resto do mundo. dimensão diferente da avalanche de ho- Em vez da imitação, buscou o autoco-
to: para vencer uma fera é preciso an- A depressão, embora seja uma doença menagens literárias que logo tornou um nhecimento. O bom escritor – explicou
tes embelezá-la. É um Havia emagrecido 40 física, tem uma carga clichê a afirmação de que se tratava do a um aluno com a mesma insegurança –
ditado absolutamente psíquica dada a opres- mais brilhante e criativo escritor de sua não apenas é bom com as palavras, mas,
sem graça, mas que cabe
quilos – tinha agora 60. são emocional que exer- geração. Em sua chegada ao campus, fundamentalmente, conhece a si mes-
bem à ocasião. Não é Em contraste com a figura ce. Seus efeitos acabam seis anos atrás, os poucos alunos que ha- mo. Que tipo de livros achava impor-
incomum que doenças meio gorducha das fotos e debilitando o doente de viam lido Infinite jest esperavam por um tantes? Indicou aos pupilos J. M. Coet-
mentais estejam associa- mais de uma maneira. ícone literário. Em vez disso, apareceu ze, mas também Thomas Harris. Jamais
das à criatividade. Não é
vídeos, o relatório do legista A pessoa deprimida, o um sujeito de bandana e camiseta pre- falou do próprio trabalho ou quis que o
um pensamento novo de o descreve como uma escritor, havia emagre- ta de Star Wars que, pela impressão de lessem. Um escritor deve ser obcecado
fato. Erasmo de Roterdã pessoa magra. cido 40 quilos – tinha uma aluna, parecia um transeunte que com as palavras. Escrever é um gesto de
considerava a loucura, agora 60. Em contraste por acaso fora parar na sala de aula. generosidade do escritor. Há três coisas
apesar de bizarra, absolutamente neces- com a figura meio gorducha das fotos e Sem nunca falhar, todas as semanas para se ter sempre em mente: como
sária, e defendeu-a em um livro inteiro, vídeos, o relatório do legista o descreve devolvia os trabalhos dos estudantes identificar um ponto de vista, a diferen-
seu Elogio da loucura, escrito como um como uma pessoa magra. com anotações em caneta vermelha ça entre cumprimento e complemento
presente a Thomas Morus. No entanto, Claremont foi onde o escritor tentou meticulosamente organizadas. Um e o uso apropriado da pontuação.
mesmo sendo parte essencial do traba- se curar e, exceto pelo último, deu cer- caso bastante conhecido entre os fãs Como professor, assim como nos li-
lho de DFW, a depressão não é a razão to durante anos. Os alunos não se lem- já antes de sua morte: uma história de vros, tinha obsessão por gramática.
de seu brilhantismo. Uma das maneiras bram dele como alguém que, como o cinco páginas recebeu seis páginas de
de desperdiçá-lo é deixá-lo ser consumi- descreveu o amigo Jonathan Frenzen, notas. Após entregar um ensaio na aula
do como uma espécie de Kurt Cobain , 7 ainda que equilibrasse essa condição: de criação literária, outro recebeu dele
cuja morte se complementa de maneira sendo também extremamente adorá- o seguinte comentário por escrito: “Há
cadernos de não-ficção

cadernos de não-ficção
inexorável com o trabalho em vida. A vel, mais se tornava sombrio aos olhos uma grande variedade de temas interes-
vida de um escritor está ligada a seu tra- de quem dele se aproximava. Nos de- santes que você tocou... mas discuti-lo
seria como conversar sobre o tempo so-
6. Uma mente inquieta. Kay Redfield Jamison. bre um corpo mutilado se esvaindo em
7. Focus on the work, not the writer’s life. http://www.guardian.co.uk/books/booksblog/2008/sep/22/ sangue”. O professor não se incomoda-
52 greatwriters.suicide Alexandre Rodrigues é escritor. 53
são do tempo; o garoto está na margem, O caubói de Leone poderia sim-
A dança de morte de o problema está na travessia, a emoção plesmente matar a mosca; o garoto no

David Foster Wallace


do objetivo não o entusiasma. O garoto trampolim de Wallace poderia simples-
não consegue “aproveitar o momento”, mente saltar. Mas não. Eles não apres-
ele está por demais afetado pelos “arre- sam o momento, e é a lenta passagem
por Gabriela W. Linck dores” do momento, e poderíamos ver até ele que gera o desconforto. É um
aqui, quem sabe, mais uma literatura movimento inconsciente, preguiçoso,

A famosa cena da mosca


passeando nas barbas por fazer
do caubói no filme Era uma vez
no Oeste, do diretor Sérgio Leone, me
remete à mesma sensa-
No conto Para sempre em cima, por
exemplo, há a figura de menino em dire-
ção ao trampolim e há o congelamento
da situação toda; enquanto o garoto se
dirige até o salto, ele, ao
dos personagens na margem dos pa-
drões sociais: como os criminosos, no
caso de Leone, vemos em Wallace os
adolescentes perturbados e escritores
na margem da piscina.
que gera reflexão e paralisia.
É o mesmo desconforto provocado
pelo pesadelo de notas de rodapé no
conto A pessoa deprimida. Para retratar
uma pessoa deprimida,
ção deixada pelo livro Os personagens de mesmo tempo, se afun- Vítimas, em geral. So- Para retratar uma pessoa Wallace constrói um
Breves entrevisas com David Foster Wallace não da em descrições, qua- bre Era uma vez no Oeste, deprimida, Wallace constrói texto propositalmente
homens hediondos, de
conseguem deixar de ver o se obsessivas, da escada o diretor Sérgio Leone um texto propositalmente entediante, que causa
David Foster Wallace. que leva ao trampolim, disse que rasgos de depressão,
Sergio Leone e David tempo correr. Não estão na ou das pernas de quem entediante, que causa não só no livro, como
Foster Wallace sempre dimensão do divertimento, o antecede na fila; ao in- “O ritmo do filme pre- rasgos de depressão, não no leitor. É a dança da
deixam um bafo de res- vés de estar anestesiado
saca no ar. Os persona-
mas da ressaca. tendeu criar a sensação dos
só no livro, como no leitor. morte de David Foster
pela adrenalina otimista, últimos suspiros que uma Wallace. A provocação
cadernos de não-ficção

cadernos de não-ficção
gens de David Foster Wallace não con- como nos mostram que devem ser os pessoa exala antes de morrer. Era uma vez por meio do exaustivo.
seguem deixar de ver o tempo correr. jovens de 13 anos nas montanhas-rus- no Oeste é, do começo ao fim, uma dan- Todos os personagens de uma obra
Não estão na dimensão do divertimen- sas, nas propagandas de creme dental. ça da morte. Todos os personagens do filme, de arte vivem para morrer ao final, este
to, mas da ressaca. Não suportam um Tudo isso remete a uma impossibilida- exceto Claudia (Cardinale), têm consciência nem sempre pontuado onde se pressu-
“passatempo”. de dos personagens de esquecer a pres- de que não chegarão vivos ao final”1 põe; como, por exemplo, quando des-
54 55
ligamos a televisão ou nos levantamos interrupções: a da vida do filho, e a da comunicação.
do cinema, no meio de um filme, ou liberdade de expressão da mãe. Esse é O texto de Wallace é esse pesadelo Assim como Leone, Wallace não se
quando fechamos o livro, antes do final, um conto que fala explicitamente so- de símbolos e rótulos onde tudo é sis- comunica com seu público, ele, como
fazendo desse momento de interrupção bre a morte como final, embora desde tematizado o tempo inteiro, inclusive diria Jean Baudrillard, se “transcomu-
um encerramento. Obras como Era uma o início fique nítida a sensação de que o passatempo e a linguagem. E, na me- nica”; ele o arrebata com essa sensação
vez no Oeste e Breves entrevistas com ho- ela sempre esteve ali. Havia um grande dida em que os passatempos e as lin- de ressaca da impossibilidade, deixando
mens hediondos não só não são prejudi- vazio entre a mãe e o filho, assim como guagens não satisfazem mais a pessoa um sentimento circular abafado e an-
cadas por essas interrupções como, in- havia outro entre o menino e o salto do deprimida, mais a pessoa se deprime. gustiante como o de uma estrada perdi-
clusive, apelam para elas. Em ambas as trampolim, entre a pessoa deprimida e A solução, entretanto, seria enfrentar a da no meio do lugar que algum dia foi o
obras, a morte também não é um final seu “sistema de apoio”. depressão e a dura passagem do tempo Velho Oeste. Ele nos deixa, nos deixou,
pontuado, mas um longo caminho que Sobre o conto A pessoa deprimida, a ao invés da entrega aos prazeres vulga- no meio do que já foi.
os personagens percorrem sem comple- questão dos rótulos é aparente; o fato res, pois já se sabe que são ineficazes. A
tar e sem preencher seus vazios e ausên- de a terapeuta rotular o mundo da pa- sensação que tenho com Breves entrevis-
cias. Os personagens morrem por falta ciente com títulos engraçados, na medi- tas com homens hediondos é que o proble- Notas
de um final. da do patético, como chamar os amigos ma de relacionamento entre as persona- 1. Leone, Sérgio. Dicionário de cinema
Suicídio como uma es- da pessoa deprimida de gens está intimamente - Os diretores. Porto Ale-
pécie de presente, um dos A obra de David Foster “sistema de apoio”, ou o ligado à sistematização
Não há mais gre. L&PM, 1996. Pági-
últimos contos do livro
Wallace é uma grande fato do relato estar per- louca do mundo atual. comunicação possível, na 235.
de Wallace, fala da au- meado por notas de ro- As personagens estão pois a comunicação mais * O título original
sência dos sentimentos interlocução interrompida dapé, dando a sensação sempre sendo podadas do filme, em italiano, é
não-expressos; revela sempre por algum tipo de de que uma coisa sem- pelas regras, sejam elas profunda, a comunicação da C’era una volta il West,
os sentimentos de uma pre pode ser outra coi- de comportamento (em alma e da arte, foi podada ou seja, era uma vez “o”
rótulo ou sistematização.
mãe em relação ao filho sa que explica melhor a Suicídio como uma espécie pelas especializações. Oeste (destacando ainda
que odeia, mas jamais coisa “original”. As en- de presente e Para sempre mais a ideia de morte) e
demonstrou que odeia, pois afinal uma trevistas, no título, por si só já dividem, em cima – do trampolim) ou de lingua- não “no” Oeste.
mãe não pode demonstrar esse tipo de de início, os personagens entre “entre- gem (Datum centurio). 2. Walalce, David Foster. Breves en-
sentimento. Pode sentir, mas não pode vistados” e “entrevistadores”. A obra de Não há mais comunicação possível, trevistas com homens hediondos. São Pau-
demonstrar: David Foster Wallace é uma grande in- pois a comunicação mais profunda, a co- lo. Cia das Letras, 2005. Página 332.
terlocução interrompida, sempre por al- municação da alma e da arte, foi podada 3. Walalce, David Foster. Breves en-
Ela não podia, é claro, expressar nada gum tipo de rótulo ou sistematização. pelas especializações. E aqui volto à re- trevistas com homens hediondos. São Pau-
disso. E então o filho – desesperado, como Um bom exemplo é o conto Datum lação explícita entre Era uma vez no Oeste lo. Cia das Letras, 2005. Página 153.
todos os filhos, para retribuir o amor perfei- centurio, um texto que “exige hardware e Breves entrevistas com homens hediondos:
to que só podemos esperar das mães – ex- compatível”, envolvendo linguagem se a hipótese é que a comunicação não
cadernos de não-ficção

cadernos de não-ficção
2
pressou isso tudo a ela . html e outros símbolos, estabelecendo é possível, Wallace mostra, mesmo que
relações do tipo: não soubesse disso, que sim, ela é, atra-
Ou seja, o filho se suicidou, como vés da sensação; assim como Leone, que
“uma espécie de presente”, no meio do Date³ (link com SENTIMENTOS, SU- pressupõe uma “sensação” de morte e
que já foi (sua própria vida). Há duas AVES)3 não uma obra “sobre” a morte como
56 Gabriela Linck é estudante de Letras. 57
Algumas considerações
ela era a mulher da vida dele. Apesar de via qualquer ideia de se esconder atrás
todo maluco achar que seu caso é dife- dos escritos (mesmo porque me parece

sobre a obra e a morte de rente, acho que o meu caso é diferente.


Não era só a forma como ele escrevia
difícil inventar um personagem osten-
sivamente superinteligente sem que o

David Foster Wallace que era única: o conteúdo também era.


Ele poderia estar falando de qualquer
autor seja superinteligente, acabando,
assim, com qualquer pretensão de al-
coisa, Dostoievski, televisão, tênis, cru- teridade). O que lemos é de fato quem
por BRENO KÜMMEL zeiros marítimos, antes de ser um texto ele foi. É por isso que sentimos falta não
sobre tal assunto era um texto do David só de seus futuros textos, mas também

G rande infâmia, fiquei sa- Puta que o pariu. Foster Wallace sobre o dele como pessoa, mes-
bendo da morte do Dave pelo E o próximo Infinite jest? E o próximo assunto. As sacadas, as Não era só a forma como mo sem ter conhecido
Orkut, aquele antro supremo Supposedly fun thing? Nesse momento, piadas (o maravilhoso ele escrevia que era única: o cara pessoalmente.
de baboseiras risíveis. Na listinha de todo leitor é egoísta. Cada morte dessas sic²), as reflexões, tudo Era simplesmente legal
tinha o mesmo jeitão
o conteúdo também era. Ele saber que existia um
atualizações de perfis, entre gestos de nos rouba horas de leitura iluminada,
Buddypoke, fotos extremamente sor- música incrível ou quadros maravilho- inconfundível, o mesmo poderia estar falando de cara como David Foster
ridentes de viagens turísticas e videos sos. Mas com o Dave era diferente. Não detalhismo profundo, qualquer coisa, Antes de ser Wallace em algum lugar
nem sempre engraçados e nem sempre só seus textos futuros seriam insubstituí- o mesmo encadeamen- no mundo.
interessantes do Youtube, o Daniel Ga- veis, mas parecia que era a figura dele to incomum de ideias. um texto sobre tal assunto, Mesmo com tudo
lera tinha colocado WHY, GOOD OLD como um todo que era única. Eu tinha Não é de se surpreen- era um texto do David Foster isso dito, não acho que
NEON, WHY na “fala” do perfil. No a sensação de que conhecia o cara pesso- der que todos os relatos Wallace sobre o assunto. a obra dele seja autobio-
scrapbook do próprio Galera (já que vi- almente, como se, de alguma forma, ele que podemos encontrar gráfica, pelo menos no
vemos em tempos de bisbilhotice gene- fosse meu amigo. na internet de quem conheceu o cara sentido tradicional da palavra. Sei que
cadernos de não-ficção

cadernos de não-ficção
ralizada), havia um recado em inglês de Provavelmente, se ouve muito disso pessoalmente falam que ele é exata- metade da jovem geração literária bra-
uma amiga dele, o texto provavelmente no mundo das celebridades, de malucos mente da forma como o leitor imagina: sileira (sim, todos os 12 fulanos e fula-
vindo de um control+c control+v de de tênis desamarrados surtando e acam- superinteligente, engraçado, inquieto, nas) vai torcer o nariz ao ouvir isto, mas
um site de notícias, falando que David pando em frente a mansões gigantescas desajeitado, generoso. Não havia uma eu nunca entendi o apelo da literatura
Foster Wallace tinha se enforcado. querendo casar com a Madonna, que personalidade literária criada, não ha- excessivamente autobiográfica. Acho
58 59
Bukowski no geral meio sem graça (al- seja na escrita ou na leitura. As marcas Para expressar essa tristeza, é preciso conseguiram traduzir Jabberwocky?
guns trechos inspirados, claro); as cópias do indivíduo sempre aparecem, como mimetizar tamanha saturação, enfileirar Como morei dois anos da minha
então, nem se fale. Se cair de beber e fa- cicatrizes que nenhuma maquiagem fatos frios e técnicos sobre um determi- adolescência nos EUA, vi de cara como
lar das bebedeiras fosse em si só arte, a consegue esconder. São as tais “carac- nado assunto, demonstrar conhecimen- os americanos realmente são. Quando
tal Lei Seca precisaria da aprovação do terísticas da obra”, que todo autor que to enciclopédico que de nada adianta se falo disso, dou só um exemplo que eu
Ministério da Cultura (já que nós subde- se preza acaba criando no decorrer de as pessoas estão se tornando cada vez acho que deixa tudo bem claro. Lá, eles
senvolvidos não podemos abrir mão do sua obra. As coisas não se excluem: nes- mais distantes e babacas. tem um ditado bastante corrente: para
Estado para nossa produção, nem mes- se próprio entendimento de como é ser Acho que parte dessa experiência é conhecer uma pessoa, basta olhar os li-
mo artística). uma outra pessoa, fica intrínseco algo de generalizada no mundo ocidental (pelo vros em sua estante e os remédios em
Acho que todo esse egocentrismo sua própria experiência pessoal. menos na classe média, mais america- sua medicine cabinet (o que seria a cesta
meio que destrói por dentro o que eu O David conseguiu caminhar nesse nizada), mas, nos Estados Unidos, ela é de remédios).
acredito ser a principal força da litera- paradoxo como nenhum outro. A ideia muito mais brutal, onde o capitalismo é Sim, um povo em geral instruído e
tura: possibilitar uma viagem dentro de é que, apesar das aparências, no fundo praticamente um modo meio drogado. O ato de
um outro. Cinema, teatro, videogame e somos os mesmos (sim, ele sabia que de existir, a competição O mais provável era complementar seu dia-a-
até publicidade veiculam isso era um clichê). Não é a forma básica de inte- que ele de fato tivesse dia com pílulas é tão ge-
narrativas, historinhas; é O que muitos não é difícil mostrar que o ração entre pessoas e o
depressão, mas seu esforço neralizado quanto o de
algo comum e universal. conseguem enxergar é cara foi dotado de uma lucro sinal incontestável
de “entender o outro” me
ler um livro, chegando a
Mas só a literatura con- inteligência que pare- do sucesso, que é o ob- ser um bom parâmetro
segue entrar na cabeça que além dos detalhes ce coisa de história em jetivo fundamental de deixava com um resto de para se conhecer uma
do personagem e ficar bizarros amontoados de quadrinhos, até mesmo todo red-blooded ame-
esperança de que não era pessoa.
lá dentro pela viagem forma aparentemente quem não gostava de sua rican. É claro que o texto
toda, mesmo quando se obra era forçado a admi- Talvez seja essa a o caso, que ele só era meio dele é rico em nomes de
trata de um texto na ter- desorganizada há uma tir. O que ele fez com principal dificuldade em desajeitado e neurótico remédios (nome quími-
ceira pessoa. Essa inva- profundidade gigantesca. isso, além de escrever traduzir Foster Wallace: co, claro, com todas as
são na mente do outro é com a técnica e erudição a dele simplesmente não
e excessivamente auto- sílabas) e cheio de pes-
tão comum na literatura que a maioria natural que só ele alcançava, foi desco- ser entendido por essas consciente mesmo. soas deprimidas, mas
dos leitores não dá muita bola para isso, brir que não interessa o quão fodástico partes. Não por falta de também não faltavam
mas é só parar para pensar que podemos você é, se você não consegue sair do seu capacidade nossa, mas por um abismo figuras criminosas, deformadas, decla-
dar conta de que se trata de algo real- próprio mundo, de nada adianta. cultural que ainda separa os americanos radamente insanas, etc., coisas que cer-
mente extraordinário. Uma vida toda O que muitos não conseguem en- de nós. Sim, o estilo dele é tortuoso, ma- tamente aquele nerd de erudição e lin-
dentro dos mesmos pensamentos e da xergar é que, além dos detalhes bizarros luco, simultaneamente chulo e preciosis- guagem não era. O mais provável era
mesma situação social de repente é pau- amontoados de forma aparentemente ta, muitas vezes até mesmo insondável que ele de fato tivesse depressão, mas
sada para uma pequena viagem turística desorganizada, há uma profundidade gi- (demorei 300 páginas de Infinite jest para seu esforço de “entender o outro” me
cadernos de não-ficção

cadernos de não-ficção
dentro da cabeça de outra pessoa. gantesca. Há alma por trás das marcas entender o que era o tal do w/r/t que deixava com um resto de esperança de
Como a literatura é uma atividade es- e das referências enfileiradas, uma alma ele usava o tempo todo), mas, para isso, que não era o caso, que ele só era meio
sencialmente solitária tanto na sua pro- marcada por uma tristeza devastadora, existem tradutores natos que adorariam desajeitado e neurótico e excessivamen-
dução quanto na sua fruição, essas via- uma busca por algo que vai além das encarar monstruosidades desse tama- te autoconsciente mesmo.
gens são feitas por uma pessoa apenas, imagens num mundo saturado delas. nho. É só achar e contratar; afinal, não Outro conceito que seria complica-
60 61
levisão nos EUA tem plena consciência Tínhamos outros problemas em mente
de sua má fama e do baixo conteúdo (pessoas sendo torturadas e tudo mais)
intelectual/cultural de sua programa- na hora de escrever nossa poesia e prosa
ção, constantemente fazendo piada dis- nesse período.
so nos seus sitcoms e nas propagandas. O David é, portanto, a segunda gera-
Tais piadas, além do objetivo imediato ção de uma onda que não chegou aqui
de fazer as pessoas rirem, servem tam- nem em tradução. Sua meta era incorpo-
bém de mecanismo de defesa, da mesma rar todas as novas técnicas e a erudição
forma como um gordo que faz piada de monstruosa que havia adquirido, mas
sua própria condição fica mais seguro também buscar algo que fosse mais do
do de traduzir: self-awareness. Aqui, no sadelo da natureza. É o oposto de es- contra gozações alheias. Nossa tevê, em que a brincadeira erudita, mostrar como
Brasil, quando se fala em consciência ge- pontâneo, a morte do que é genuíno e comparação a de lá, ainda está nos anos isso não era algo só dos livros (como al-
ralmente o que se quer dizer é ter uma real. É aquilo que é produzido de uma 50, e, acredite em mim, é guns acreditavam, como
noção de que somos um país essencial- determinada forma não por necessidade melhor que fique assim, Em uma de suas se não houvesse mais
mente pobre, apesar da classe média não ou desejo pessoal, e sim com o objetivo pois das duas alternativas interpretações mais relação entre literatura e
querer que isso seja verdade. Sempre es- de passar uma certa imagem para causar é sem dúvida a menos
inspiradas, ele afirma que sociedade) e sim da vida
cuto pessoas reclamando da imagem que um certo efeito nos outros. terrível. como um todo, mostran-
o Brasil tem no exterior, ou do conteúdo Imagine um cara numa festa conver- Esse é o essencial do a onda metalinguística do também que isso gera
de alguns filmes nossos de mais sucesso sando com uma pessoa que ele não co- pós-modernismo (sim, da literatura americana muito mais tormento do
essa palavra detestável e que qualquer sabedoria
(Cidade de Deus, Central do Brasil), falan- nhece. A pergunta “será que essa pessoa
frequentemente vazia de
a partir dos anos 70 era relevante.
do que parece que somos todos pobres, está me achando um cara legal” que fica
mas que coisa, etc., sendo que estatisti- na cabeça desse cara é a autoconsciência. conteúdo) na obra do Da- apenas reflexo de uma Trata-se de uma cons-
camente falando o que predomina aqui Em David Foster Wallace, essa pergunta vid Foster Wallace. Em sociedade que se tornava tatação bastante cruel,
uma de suas interpreta- porém necessária. Co-
de fato é a pobreza e a miséria, é maioria (entre outras aparentadas) martela cons-
ções mais inspiradas, ele
cada vez mais self-aware. nhecimento é uma coisa
a classe que muitos chamam com aquele tantemente, a ponto do cara quase se
tom meio nojentinho de “gente simples” desesperar e começar a perguntar para afirma que a onda me- viciante (por mais que
ou “gente humilde”. Isso é outra coisa. os outros no meio da festa se eles estão talinguística da literatura americana a um olhar ao nosso redor possa indicar
Nos Estados Unidos, onde a chan- gostando dele, se ele parece ser um cara partir dos anos 70 era apenas reflexo de o contrário) e necessária (vide parênte-
ce de ascensão social é maior e onde se legal, engraçado, inteligente, bem infor- uma sociedade que se tornava cada vez ses anterior), mas por não é sozinho su-
acredita que todo pobre é preguiçoso, mado, desmontando definitivamente mais self-aware. A forma literária disso ficiente. Que não é só por reflexão que
essa ideia de consciência praticamente todo o teatro inconsciente que é uma era a paródia, a citação explícita, as brin- nossos problemas somem... Ou será que
não existe. Mortos de fome é coisa que festa cheia de pessoas que não se conhe- cadeiras formais, metalinguagem escan- simplesmente não pensamos o suficien-
carada... Esse é outro bom argumento te para que o pensamento sozinho resol-
cadernos de não-ficção

cadernos de não-ficção
existe só na África, we are the world/ cem.
children, etc. Sentir-se autoconsciente É claro que o self-awareness não é para falar da distância cultural que há va os problemas?
não é um estado de esclarecimento su- exclusividade dos americanos, mas lá entre o Brasil e os EUA: essa literatura Paradoxos assim foram matéria-pri-
perior, de ter superado uma alienação a coisa é generalizada. Para se ter um nunca deu as caras por aqui da forma ma essencial do David Foster Wallace.
de classe. É algo terrível. exemplo claro disso, basta ler o ensaio como fez lá, a ponto de formar uma ge- Como ter certeza sobre uma coisa sem
Para Dave, a consciência era o pe- do DFW sobre ironia e televisão. A te- ração, com Barth, Coover, Barthelme. saber tudo sobre essa coisa, mesmo sa-
62 63
bendo que, até agora, esse aprofunda- como “aquele livro daquele cara que se (mesmo que longo demais) e de ideias pedi no e-mail.
mento não tem dado indícios de chegar matou”. Meu único consolo é que eu ti- desorganizadas (sem nem se salvar pelo Aqui na província, não são muitas as
a uma solução? Outro paradoxo bastan- nha certeza que ele havia pensado nisso estilo) com uma anedota ao mesmo pessoas que fazem parte do tal “meio lite-
te caro ao Dave, e esse eu creio que seja um milhão de vezes antes de dar o nó na tempo engraçada e deprimente, como rário” (ou devo dizer, são menos do que
uma preocupação universal de todos corda. Até saí correndo e fiz um pedido são em grande parte os livros do David. são em São Paulo, Rio, etc., certamente).
escritores sérios, é o conflito na busca dos livros dele que eu ainda não tinha Talvez sirva de recompensa aos que ti- Meu livro de contos, Estrada de espelhos,
simultânea pela Originalidade e pela comprado para evitar aquela última fra- veram que ler explicações daquilo que já já tinha sido resenhado, ainda que de
Verdade. se no parágrafo biográfico do autor (“ele sabiam (sério que o David era pós-mo- forma ambígua, pelo caderno literário
É claro que ser completamente ori- se matou com 46 anos”, ou “em 2008”, derno? Puxa!) e elaborações estapafúr- no ano em que foi lançado. Quando saiu
ginal é impossível, mas pelo menos se ou algo assim). Sempre tive raiva dessa dias e ridículas. um conto meu no site Mojobooks, tam-
almeja uma fuga do lugar-comum, dos obsessão meio adolescente com litera- (Se soo por vezes apressado, é por bém teve uma pequena nota, dessa vez
estereótipos, do clichê. No entanto, nos tura e suicídio, não se consegue escre- que de fato estou, já que tive um mês na coluna literária, dessa vez claramente
clichês podemos encontrar em síntese ver um parágrafo sobre o Mishima ou a para escrever alguma coisa para essa positiva. Pequenas aparições assim, que
diversas verdades valio- Plath sem falar “ó, ele se coletânea e deixei para logo os últimos parece que muitas pessoas valorizam
sas, frases que foram re- Nos clichês podemos matou, ó, ó”. Brinco com dias. Ia mandar um conto que já tinha muito; até recebi alguns “parabéns” por
petidas justamente por meus amigos falando que quase pronto, mas sua conexão com a essas coisas, algo que sempre me deixou
seu conteúdo relevante
encontrar em síntese a literatura é uma coi- obra do David era apenas nas entrelinhas meio confuso.
e até mesmo profundo diversas verdades sa tão filha-da-puta que – autotortura moral, eu-e-o-outro, etc. –, O jornalista responsável pela coluna
até suas formas tornarem valiosas, frases que foram deve ser o único meio então, resolvi rapidamente juntar meus gentilmente acatou ao meu pedido, mas,
chatas e óbvias. E não há em que o suicídio é bom pensamentos nesse texto que você agora talvez por não ter lido ainda o DFW,
defeito nosso mais cruel
repetidas justamente por pra sua carreira; melhor, lê e finalmente está para terminar). usou o meu e-mail extensivamente para
do que esta capacidade/ seu conteúdo relevante e só ser torturado por um (A primeira vez que contei essa histó- dar a notícia. O jornalista, que é um cara
tendência de ignorar res- até mesmo profundo até regime ditatorial. ria, os ouvintes acharam que se tratava legal e que vai com a minha cara (coi-
postas que estão na nossa Agora, uns dois me- de uma reclamação de plágio do meu sas que não são necessariamente interli-
frente.
suas formas tornarem ses e algumas releituras e-mail. Espero não ser mal-entendido gadas), botou meu nome-de-escritor na
Será difícil encontrar chatas e óbvias. depois, vejo que não é de agora, por escrito. Não é uma reclama- hora de fazer a referência, chegando até
na obra ensaística de Da- todo mau. Os seus textos ção de plágio, não é uma reclamação de a, naquela prática padrão de jornal, subs-
vid Foster Wallace explícita constatação já tinham em si algo de deprimente, até nenhum tipo). tituí-lo algumas linhas abaixo por “o-au-
mais frequente que “eu sei que isso é um mesmo nos trechos mais comédia-paste- Profundamente entristecido pela no- tor-de-estrada-de-espelhos”.
clichê, mas...”. Na ficção, está muitas lão, e, se meu medo era de que a leitura tícia de seu suicídio, resolvi entrar em Ganhei publicidade de graça porque
vezes nas entrelinhas, não menos forte. dos textos seria excessivamente modi- contato com o jornalista que faz uma o David Foster Wallace se enforcou.
Se artistas e intelectuais ficam famosos ficada com os eventos recentes (“olha, coluna literária nos sábados do Correio Até a morte do cara consegue criar
justamente naquilo que trazem de novo, Good old neon é como um prenúncio do Braziliense aqui. Se já era horrível a mor- situações de autotortura moral.
cadernos de não-ficção

cadernos de não-ficção
que valor tem aquela frase-feita que você que aconteceria pouco tempo depois”... te prematura de um gênio da literatura,
já ouviu centenas de vezes? argh, detesto prenúncios literários), o gi- achei que, se passasse sem ser noticiada
Quando fiquei sabendo da notícia, gantismo estilístico e intelectual ainda se por aqui por causa do desconhecimento
logo fiquei meio puto por saber que, de sobressaem. Facilmente. do autor nessas bandas, seria ainda mais
agora em diante, toda obra dele seria lida Chego ao fim desse ensaio rasteiro deprimente. Pelo menos uma notinha,
64 Breno Kümmel é escritor. 65
O Caso
Wallace
por José C arlos Silvestre

Eu li algum Baudrillard na adoles- O mundo imaginário do espelho: a


cência. Era o final dos anos 90 e todos duplicidade entre quem se sente que se
os meninos legais estavam lendo – e eu é, interiormente, e quem se manifesta
sou, é sabido, uma vítima da moda. Por exteriormente. O palco, onde todo ges-
agora eu já esqueci quase tudo daquelas to, por mais espontânea sua aparência, é
teorias vagas todas, mas algumas linhas, cuidadosamente deliberado. Ou, como
alguns insights ficaram comigo. Um de- diz a médica para a atriz em Persona:
les lê: “Tudo bem, eu entendo. O sonho
“Nós vivíamos no mundo imagi- sem esperanças de ser - não de parecer,
nário do espelho, do self dividido e do mas de ser. A cada momento desperto,
palco, da alteridade e da alienação in- alerta. O abismo entre quem se é com os
terior. Hoje nós vivemos no mundo outros e quem se é sozinho. A vertigem
imaginário da tela, da interface interna e a ânsia constantes de ser exposto, visto
cadernos de não-ficção

cadernos de não-ficção
e da duplicação de contiguidade e redes através, talvez mesmo eliminado. Cada
internas. Todas as nossas máquinas são inflexão e cada gesto uma mentira, cada
telas. Nós também nos tornamos telas, sorriso uma careta. Suicídio? Não, dema-
e a interatividade do homem tornou-se siado vulgar. Mas você pode se recusar
uma interatividade de telas.” a se mover, se recusar a falar, para não
66 67
ter que mentir. Você pode se fechar em e dos demais pós-modernistas, ao argu- Oblivion, entre alguns outros. Telas são dor está vindo); eles não têm maturida-
si mesma. Assim você não precisa fazer mentar que a tela ainda é um mundo de mencionadas en passant várias vezes, e de, de fato, sequer para reconhecê-la, até
nenhum papel ou gestos incorretos. Ou alteridade e alienação interior. O conte- relações de personagens com a televisão que esta dor venha a sobrepujá-los com-
isso é o que você pensa. Mas a realidade údo da tela é por definição derivativo e – uma sinédoque para tela no começo pletamente – uma situação que Wallace
é diabólica. Seu esconderijo não é im- artificial, mais que o do espelho e do pal- dos anos 90 – são escrutinadas repetida- denomina incorretamente de “Depres-
permeável. A vida goteja de fora, e você co; a grande diferença reside em que no mente. Outras vezes não são telas, mas são Psicótica”. Sua rota de escape é lidar
é forçada a reagir. Ninguém pergunta se mundo da tela não se estabelece, como imagens equivalentes, remetendo à mes- com a dor abaixo da linguagem e da arti-
é verdadeiro ou falso, se é genuíno ou nos outros dois, uma tensão ostensiva ma lógica insistentemente. (Quanto ao culação, caindo no vício – normalmente
um embuste. Tais coisas importam ape- entre o autêntico e o artificial, a fonte e ensaio em si, não sejamos injustos: ele a substâncias químicas, mas Wallace ca-
nas no teatro, e dificilmente lá, também. a derivação. Uma fonte é ainda pressu- nos soa tão ultrapassado e ingênuo hoje taloga o vasto leque de possibilidades.
Eu entendo por que você não fala, por posta, mas ela não está mais diante do quanto qualquer outro texto sobre tele- Não que seus personagens nunca
que não se move, por que criou um pa- espelho ou atrás da máscara: a imagem visão que date de quinze anos atrás.) saiam em busca de sinceridade e autenti-
pel para si a partir da apatia. Eu entendo. na tela é de origem remota, desconhe- Os personagens de Wallace são to- cidade. Em Good Old Neon, o protagonis-
Eu admiro. Você deveria cida, talvez impossível de dos, em suas próprias palavras, “emocio- ta sente que cada gesto seu é uma impos-
continuar com este pa- Quando o sujeito se conhecer ou de rastrear; nalmente retardados”. São, muitas ve- tação, uma performance para os outros;
pel até que ele se esgote, se temos um rastro, já zes, pessoas muito inteligentes: astutas incapaz de descobrir qualquer gesto au-
até que perca interesse
identifica com a tela e temos muito. Quando o o bastante para aprender têntico, que reporte a si
para você. Então você com a lógica da tela, o sujeito se identifica com as normas e expectativas Os personagens de mesmo, ele acaba por se
pode abandoná-lo, como conhecimento de um eu a tela e com a lógica da do mundo a seu redor, Wallace são todos, em suicidar (Wallace no fe-
abandonou todos os seus tela, o conhecimento de desenvolver um senti- chamento do conto expli-
papéis, um a um.”
interior, o estabelecimento um eu interior, o estabe- do aguçado de o que é
suas próprias palavras, ca que a história consiste
Mas, para Baudrillard, de uma vida interior, lecimento de uma vida o comportamento apro- “emocionalmente em projeções do autor
isso é coisa do passado. estão impedidos desde o interior, estão impedidos priado para cada situação, retardados”. – que ele diz com todas as
A Teoria Critíca (e, na desde o começo. O self descobrir o que precisam letras que é ele mesmo, e
verdade, o pensamento
começo. verdadeiro está em algum dizer ou fazer para obter as respostas de- não um autor fictício – ao ler a notícia
do século XX como um lugar; mas se a sua missão sejadas. O que eles não fizeram foi atri- de um suicídio semelhante nos jornais.)
todo) nos deixou desconfiados de tais é encontrá-lo, azar o seu. buir significado a tudo isso, a construir Good Old Neon move-se para fora: The
“faces verdadeiras”, imanentes e prece- A metáfora da tela está em toda par- uma identidade para si, cultivar uma Depressed Person dirige-se para dentro,
dendo qualquer representação, fora do te nos livros de Foster Wallace, e seus vida interior, “to thine ownself be true”. em uma espiral de auto-denúncia de ar-
alcance da linguagem. Esta desconfiança primeiros críticos já perceberam que Eles nunca tomaram sequer o primeiro tifício que nunca se aproxima verdadei-
espalhou-se para o mainstream, ou pelo seu ensaio sobre a televisão, E Unibus passo naquela mais alemã das jornadas, ramente da sinceridade que busca, mas
menos é o que parece olhando daqui. O Pluram, servia como uma chave inter- a formação do caráter. replica o exato mesmo artifício intermi-
que não quer dizer, contudo, que a maio- pretativa para muito em sua obra. Em Mas é ainda pior: no mundo de navelmente.
cadernos de não-ficção

cadernos de não-ficção
ria de nós se tornou contentes telas bu- alguns momentos, a alegoria é elabora- Wallace, este primeiro passo é impen- Mas o caso de Hal, em Infinite Jest, é
distas sem ego, ou aprendeu a lidar com da de maneira bastante explícita – um sável. Seus personagens estão todos so- mais exemplar de sua ficção. Hal, então
a noção de que tais coisas “importam longo fragmento sobre o fracasso de um frendo, mas de uma dor difusa que não com 14 anos, é o primeiro a se deparar
apenas no teatro, e dificilmente lá, tam- vídeofone em Infinite Jest, um conto so- conseguem articular (mesmo nos casos com o suicídio de seu pai, que explodiu
bém.” E aqui eu me afasto de Baudrillard bre canais de programação obscena em em que é óbvio para o leitor de onde a sua cabeça com um forno de microon-
68 69
das. A mãe e o tio de Hal decidem que nas depois que sua angústia se tornou mada e retardada, repulsiva e indefesa, identidade tornou-se frouxa, indistinta
Hal precisa de terapia para superar o evidente para o leitor. mal-formado e não-desenvolvido. É esta e fragmentária. No começo da história,
trauma; as sessões de terapia são apenas A dissolução completa da mente de exata percepção a que todos os seus per- Tyler experimenta os grupos de apoio
um embaraço para Hal, que quer se li- Hal, no começo do livro / fim da his- sonagens chegam, se ousam finalmente que Wallace elogia tão veemente; ele
vrar delas o mais cedo possível – o com- tória, é uma alegoria provocadora se um olhar interior. A estratégia dos Al- logo percebe, contudo, que estes gru-
promisso está atrapalhando sua carreira comparada com a patologia de Hal no coólatras Anônimos de Wallace é uma pos são uma farsa ainda maior que tudo
no tênis juvenil. Hal estuda manuais so- restante do livro; neste estágio extre- estratégia de infantilização, de fazer as o mais que havia tentado, e uma farsa
bre como lidar com o luto, e tenta cada mo, Hal tornou-se incapaz de comuni- pazes consigo próprio ao reduzir-se ao auto-degradante além de tudo. Tyler
uma das reações listadas, para ver se car (um delírio que seu pai já tinha tido seu modo mais baixo de funcionamento: encontra afinal sua solução em uma re-
convence seu terapeuta de que passou anos antes, na cena do Conversaciona- ao abandonar o orgulho e se tornar esta volta agressiva contra o mundo, direcio-
pelo estágio de luto e pode receber alta; lista Profissional; um delírio nascido sem criança deformada que eles reconhecem nada tão difusamente quanto é difuso
finalmente, ao ler manuais direciona- dúvida do isolamento emocional de Hal, que no fim das contas é seu estado atu- seu descontentamento – o que, sim, não
dos aos terapeutas, e não aos pacientes, da percepção de seu pai da aparente in- al. No mundo de Wallace, a alternativa é lá a mais madura das soluções. Mas
Hal consegue preparar uma encenação capacidade de seu filho de realmente se à indulgência no vício é simplesmente a há mais esperança no mundo de Fight
dramática que finalmente convence seu comunicar, de realmente se conectar auto-indulgência. Club do que no de Infinite Jest, pois em
terapeuta. Ao sair da sala, Hal tem uma com os outros). Hal, no fim da história, Wallace é frequentemente contrasta- Fight Club, por desastrosos que sejam os
crise de riso – supostamente, por causa não controla mais seu exterior: acredita do com escritores como resultados disto, uma no-
das mãos muito pequenas do terapeuta. que discursa articuladamente quando na Palahniuk; o próprio No mundo de Wallace, ção de dignidade humana
Isto é o que sabemos sobre como Hal verdade rosna - uma inversão simples Wallace, na verdade, gos- sobrevive. Há aqui um
agiu para os outros. Mas o que Hal sentiu de seu estado anterior. E sua percepção tava de se opôr à geração
a alternativa à indulgência pouquinho mais de auto-
com o suicídio do pai, como lidou com está mudada, o romance começa: “I see de autores como Palah- no vício é simplesmente a conhecimento também,
isso – não quanto às expectativas dos ou- heads and bodies” - cabeças e corpos. Não niuk e Easton Ellis, ce- autoindulgência. mas um pouquinho que
tros, mas quanto ao que o choque repre- pessoas. Novamente, uma extensão de dendo a eles uma impor- é crucial.
sentou para ele? Aparentemente, de for- seu estado anterior: Hal vê as coisas ana- tância na história das letras americanas Há um tipo incomum de romance
ma alguma. No pouco de vida interior liticamente muito bem, mas vê somente dificilmente concedida em outras partes. que é chamado às vezes de “negativer
que Hal tem, nenhum sentimento sobre cabeças e corpos e não pessoas, não en- É claro que Wallace é um escritor mais Bildungsroman”: o romance da forma-
a morte do pai foi reconhecido. Mas Hal tende aquilo que vê. A grande obsessão habilidoso que Palahniuk; mas quando ção fracassada do caráter. Assume-se
está sendo carcomido lentamente pela de Hal são os dicionários: sua paixão contrastamos Fight Club a Infinite Jest, as convenções do Bildungsroman, mas
depressão, por uma incapacidade cres- são as palavras, e as relações de palavras vemos que o primeiro parte de onde o toma-se como objeto o homem defei-
cente de sentir prazer e de se importar entre palavras. Ele conhece muito bem segundo termina: Tyler Durden, o pro- tuoso; não se investiga como alguém se
com o que quer que seja, e se entregan- essas palavras, mas não as coisas, não as tagonista de Fight Club, é mais um retar- torna aquilo que é, na jornada do ima-
do gradualmente ao vício. E bastaria ob- experiências que elas denotam. dado emocional bastante bem-sucedido, turo ao maduro, mas o que no caminho
servar a insistência no assunto, que toma Uma alternativa é oferecida ao vício: sofrendo de um descontentamento ex- que pode dar errado. Note-se que todo
cadernos de não-ficção

cadernos de não-ficção
boa parte do livro, para concluir que sua a estratégia dos Alcoólatras Anônimos tremo que não é capaz de sequer come- Bildungsroman, é claro, partirá do ca-
relação de Hal com o pai e seu suicídio e grupos semelhantes. Em Wallace, o çar a articular. Seu caso é menos grave ráter mal-formado: não podemos saber
estão entre as raízes mais profundas de eu interior é sempre alegorizado pelo que o do típico personagem de Walla- como algo se forma se já partimos do
seu mal-estar – mal-estar que Hal só re- defeituoso; em Infinite Jest, este papel é ce – tomemos Hal como exemplo – em exemplo terminado, e todas as tensões
conhecerá para si umas setecentas pági- assumido por Mario, uma criança defor- que Tyler ao menos percebe como sua são mais evidentes no exemplo deficien-
70 71
te, não na transparência cristalina das vívidos, demasiado precisos, e demasia- estado deplorável; ridicularizamos isso, te em seus livros – como se eu mesmo
tensões resolvidas. do insistentes para não partirem da ex- aí vemos a perspectiva se inverter na tivesse as respostas prontas, soubesse
Wallace escreve negativen Bildungsro- periência: e não são relatos de estados mesma cena. Seus personagens falam de expulsar os fantasmas que assombram
mane? Em seu diagnóstico sobre as afli- transientes de melancolia, mas de esta- uma “auto-consciência” para se referir a seus personagens. Mas a verdade é que
ções do homem de hoje, ele escolhe jus- dos patológicos, às vezes de uma gravi- uma sensação que é a mais clara evidên- eu não tenho. Eu acho que os abismos
tamente os casos mais graves – seu rol dade rara de se ver retratada. Wallace cia da ausência de uma vida interior e de estão todos realmente lá.
de “homens hediondos” - para tornar o não olha a miséria de seus personagens auto-consciência: a ansiedade de quando É terrível que nós o perdemos. Já há
problema mais evidente, e sua possível de cima, um Goethe estudando as peri- a tela é acusada de ser uma tela mas não alguns anos que eu falava mal dele, de
etiologia? pécias de seu Wilhelm Schüler: há pers- há nada a se remeter senão à tela, e o como ele estava piorando ao invés de
É difícil escrever sobre essas questões pectiva, sim, mas há também participa- personagem preferiria se agarrar à ilusão melhorar com o passar do tempo; de
e resistir à tentação de especular sobre o ção. da tela a sondar o abismo que se revela como ele já estava começando a perder
homem por trás dos livros – sobre quem E as vozes narrativas do Wallace são ali. Quando não é possível esconder que contato com o Zeitgeist, como Infinite
afinal sabe-se muito pouco – o que, nas bastante suspeitas; seus livros, oscilando se está fingindo, e que não há nada sóli- Jest já era claramente “um livro dos 90s”,
circunstâncias que geraram este texto, é entre a perspectiva e a participação, osci- do por trás do fingimento. Quanto mais e sua produção recente continuava na
um tanto desrespeitoso. lam entre a crítica e a va- desconectado de si mesmo, quanto me- mesma época. De como eram irritantes
Mas, dadas essas mesmas As vozes narrativas do lidação dos mecanismos nos consciente de si, mais o personagem suas tentativas de parecer um polímata,
circunstâncias, é ainda Wallace são bastante sus- de defesa de seus perso- de Wallace sente a tal “auto-consciên- trocando os pés pelas mãos em todas as
mais difícil evitar esta es- nagens. É esta oscilação, cia”; uma forma vaidosa de transformar áreas do conhecimento. Mas eu estava
peculação.
peitas; seus livros, oscilan- esta ambiguidade que não uma deficiência em uma qualidade. Mas animado para ler seu próximo roman-
Nós todos acreditáva- do entre a perspectiva e a se resolve – que não po- a ridicularização desta auto-consciência ce. Wallace era um de nossos escritores
mos na existência de mais participação, oscilam entre deria se resolver -, que dá não é constante, e em alguns momentos mais inventivos, um mestre - ironica-
um romance monumen- à obra de Wallace o que a voz narrativa toma o lado dos persona- mente, um mestre da miniatura - cujo
tal sendo escrito nos úl-
a crítica e a validação dos ela tem de complexidade gens. Se damos um passo para trás, a ilu- tours de force eram francamente humi-
timos anos. Era o que se mecanismos de defesa de (ao contrário do que diz são da “auto-consciência” é óbvia; mas lhantes. São poucos os escritores em ati-
podia imaginar depois de seus personagens. o folclore, Wallace é no chega-se inclusive a ver fãs do Wallace vidade hoje de quem eu goste mais do
um longo período tendo geral um autor de livros macaqueando a queixa de auto-consci- que de Wallace.
publicado apenas artigos para revistas e muito simples.). Em um momento, ve- ência por aí, sem a menor consciência Ademais, eu descobri Infinite Jest em
uma coletânea de contos decididamen- mos um elogio entusiasmado, desones- do que estão realmente dizendo com tempos difíceis, e lá encontrei coisas que
te irregular. Imaginávamos um Andrew to em seu entusiasmo, dos Alcoólatras isso... eu não estava ouvindo exatamente de
Wiles, publicando um punhado de arti- Anônimos; umas cem ou duzentas pá- “Wagner foi apenas uma de minha doen- nenhuma outra parte. Tornar-me um fã
gos medíocres para disfarçar enquanto ginas adiante, somos confrontados com ças. Não que eu queira ser ingrato com esta de Wallace foi importante para mim, e
trabalhava na prova do Último Teorema. a realidade – de seus membros mais ve- doença.” superar o que tinha encontrado nele e
A verdade é que Wallace estava sendo lhos, homens destruídos que nunca po- Este texto pode soar arrogante, apon- abandoná-lo foi uma continuação natu-
cadernos de não-ficção

cadernos de não-ficção
submetido à eletroconvulsoterapia nes- derão sair daquele mundo; vemos como tando o fracasso de Wallace em lidar com ral e inevitável. Através de seus livros,
ta época – um último recurso para sua seu AA infantilizador não pode ser uma o problema do caráter, a impossibilidade DFW foi um amigo, de certa forma. E é
depressão crônica e severa – e por isso solução satisfatória. Vemos seus perso- de crescer nos mundos que ele descre- triste quando um amigo se vai.
estava fisicamente incapacitado a escre- nagens se envaidecendo com sua educa- veu, a ingenuidade e a, vamos dizê-lo,
ver. Os relatos nos livros são demasiado ção e inteligência para se esquivar de seu desonestidade que estão por toda par-
72 José Carlos Silvestre é engenheiro. 73
O OUVIDO NA
FECHADURA
por Daniel galera

“E ste é mais um paradoxo,


que a maioria das impressões e
pensamentos mais importan-
tes na vida de uma pessoa são os que passam
pela cabeça tão rápido que rápido não chega
o que estamos pensando e descobrir o que eles
estão pensando, quando bem no fundo todo
mundo sabe que é uma piada e que faz tudo
parte de uma encenação.”
[David Foster Wallace, “Good Old
nem a ser a palavra exata, eles parecem ser Neon”]
tão diferentes ou alheios ao tempo normal e
seqüencial do relógio que rege nossas vidas e O trechinho acima faz parte de um
possuem tão pouco em comum com o inglês dos melhores contos do David Foster
meio linear, de uma- palavra- depois- da- ou- Wallace que li até hoje, Good Old Neon,
tra, com o qual todos nos comunicamos que publicado em Oblivion. Claro que o tre-
poderia levar uma vida inteira, fácil, só para cho não dá conta da complexidade do
expôr em detalhes um segundo do conteúdo conto, com seus três níveis narrativos
cadernos de não-ficção

cadernos de não-ficção
de um clarão de pensamentos e conexões etc. diferentes e todos os requintes típicos
- e apesar disso parece que continuamos ten- do DFW, que poderiam ser taxados de
tando usar o inglês por aí (ou seja qual for a exibicionismo se ele não fosse de fato
língua nativa usada em seu país, não precisa um escritor brilhante que pode se dar ao
nem dizer) para tentar transmitir aos outros luxo de fazer o que quiser. Uma das ca-
74 75
madas do conto lida justamente com a transformar aquela idéia abstrata em possível. Escrever é como sussurrar uma cie de estado de graça, e buscar esse efei-
desproporção entre o universo interior palavras, imagens, sons quando chega história pelo buraco. Um filme é como to em parágrafos e páginas às vezes me
de cada indivíduo e os meios limitados a hora de botar a mão na massa. Quan- mostrar uma seqüência de imagens pelo parece uma tarefa tão imensa que quase
que possuímos pra expressar o que se do se sobrevive ao processo, mesmo o buraco, e por aí vai. (Ok, agora estou acredito, por um instante, que escrever
passa nesse universo, não somente pros resultado bom é somente a ponta do desenvolvendo a analogia ao meu gos- é coisa de louco (não é).
outros mas também pra nós mesmos. A iceberg da idéia original, e no máximo to, como já devem ter percebido). E É nesse sentido que o estilo prolixo
reflexão é conduzida por um persona- se pode ter a expectativa de que a obra raramente, muito raramente, bem na e ultradescritivo e a atordoante variação
gem que se suicidou depois de perceber resultante tenha a capacidade de apertar hora que a gente bota o olho no buraco, lexical do DFW resultam em uma expe-
que estava condenado a ser uma fraude, os botões certos nos leitores/ ouvintes/ tem alguém espiando exatamente ali no riência de leitura única. Ele tenta trans-
pois não suporta a constatação de que espectadores para que, com alguma sor- mesmo instante. É claro que o quarto é formar o mais pessoal monólogo inte-
todos seus atos desde os quatro anos de te, reflitam em seu inconsciente uma ilusório. No fundo não existem paredes. rior e seus mecanismos subconscientes
idade tiveram o objetivo de moldar uma parte daquilo que nos moveu a buscar Mas saber disso não ajuda muito, não é em frases, sem perder nada, sem elipses,
imagem de felicidade e sucesso diante um meio de expressão pra começo de mesmo? sem atalhos. Transforma a epifania mo-
do olhar dos outros. As páginas finais conversa. É como se todos vivêssemos Arrisco dizer que escrever é a forma mentânea de um personagem em duas
são arrepiantes, inclusive porque o autor dentro de quartos fechados (e essa ana- mais mentalmente extenuante de tentar horas de leitura pausada. É como se ele
liga o limite da capacidade de comunica- logia é emprestada do conto do DFW, já transmitir nosso fluxo interior de pen- quisesse que de fato tudo estivesse ali
ção do universo interior de qualquer ser vou avisando), ligados a todos os demais samentos e impressões. As palavras são em palavras. É como montar um porta-
humano com a incapacidade de expres- quartos somente por buracos de fecha- pecinhas muito pequenas, com regras aviões em tamanho real com pecinhas
são de um artista, como por exemplo um dura. É muito pouco para transmitirmos de encaixe manhosas, chatinhas. Ten- de Lego. E o que ele freqüentemente de-
escritor, como por exemplo ele mesmo, o que se passa dentro de nosso quarto. tar transformar um clarão intuitivo em monstra com isso é que a compreensão
e tudo se fecha com um clique perfeito, Tentamos encontrar truques para des- uma seqüência linear de palavras pode minuciosa do funcionamento de nossa
o clique de um conto magistral. crever nossa estante de livros, o papel de ser bem complicado. Mas é possível, e mente, de nossas neuroses e de boa parte
Quem já tentou escrever ou filmar parede que escolhemos, o modo como a bons livros estão cheios de momentos da filosofia séria que já foi transformada
ou desenhar ou compor alguma coisa lua cheia ilumina a cama em determina- “pára tudo”, porque um conjunto de em senso comum em nossa época não
cadernos de não-ficção

cadernos de não-ficção
certamente passou pela experiência de das noites. Tocamos nosso som favorito páginas triunfante consegue transmitir muda muito nossa condição. A porta do
elaborar uma idéia imensa, complexa, no volume máximo, torcendo pra que algo da mesma forma que três segundos quarto segue trancada.
perfeita em sua forma e suas interco- alguém do outro lado da porta escute e de alguns filmes ou algumas músicas. O
nexões, uma condensação abstrata de goste também. Mas é sempre tão pouco. poder ocasional de um olhar de um ator Daniel Galera é escritor. Este texto foi
inúmeras opiniões e sentimentos, só Então o negócio é aproveitar o buraqui- em um filme ou de um refrão de uma publicado originalmente em 26/10/2005 no finado
76 pra sentir a quase total incapacidade de nho da fechadura da melhor maneira música às vezes me deixa em uma espé- blog Ranchocarne 77
78
cadernos de não-ficção

Você também pode gostar