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Conflitosnos
Austríacos

Collier’s Photog. Hist. of the European War (New York, 1916)


Projeto gráfico-
editorial, executam
#1

Bálcãs
redação, edição, espiões:
Florianópolis, 6 de novembro de 2008 diagramação e na Sérvia,
ilustração: “pagando 50
Jessé Torres dinares ao
governo, era
Impressão:
ColorSystem
Duplic
possível ter
um prisioneiro
Colaboração: austríaco
Elena
ElenaGivone,
Givone como
Thiago
Ricardo
Victorino,
Barreto empregado”,
Ricardo Barreto escreveu Reed

John Reed foi e escreveu o que viu


Em livro, o americano é testemunha e personagem das cenas da Primeira Guerra Mundial no leste da Europa

E
m Guerra dos Bálcãs, John
Reed questiona o próprio Jor-
Mãos, braços Culver Pictures

nalismo em sua tradição. Já


naquela época, parecia discutir a recor-
As estradas e pernas em
rência das fontes oficiais nos relatos jor- encontravam- decomposição
nalísticos. Cidadãos comuns, soldados
rasos, mendigos, mercadores, oficiais e se bloqueadas brotavam
embaixadores – ninguém escapa ao seu
olhar arguto e treinado, que enxerga no pela lama do solo sérvio
ar algo que ninguém mais havia visto
até então. E assim narra tristezas e des- e doenças que um cemitério a céu aberto, onde
muitos mortos da batalha haviam sido
venturas que presencia em uma região
devastada pelo conflito por territórios.
espalhavam- (muitas vezes parcialmente) enterrados
às pressas: mãos, braços e pernas em
Cerca de um ano após o em-
blemático assassinato do arquiduque
se como praga decomposição brotavam do solo. Era
impossível não pisar sobre os cadáve-
Francisco Ferdinando, o jornalista parte res, cujos ossos estalavam sob o peso
de Salônica, na Grécia, para uma via- do caminhar. O cheiro, insuportável.
gem não apenas física, mas histórica: Na Rússia, elogios à hospita-
na medida em que transita pela região, lidade e ao estilo de vida dos russos...
traz à tona o complexo e antigo pano de Uma tentativa de visitar o front contra
fundo das fragilizadas relações entre os alemães, entretanto, gera proble-
suas nações e povos. Desta maneira, mas: estrangeiro e acusado de pisar
constrói sua narrativa, extremamente em área restrita a militares, é preso com
humana, da miséria das doenças, espe- Robinson, acusado de espionagem.
cialmente do tifo (de que morreria anos Fica retido em um quarto minúsculo,
mais tarde), dos hospitais incapazes de num hotel barato de um bairro judeu.
atender a tanta gente, dos doentes que Posteriormente liberado, após quase
então se amontoavam em antros escu- causar um incidente diplomático, foge
ros e imundos... Relata o patriotismo da Rússia o mais rápido possível, a fim
e a hospitalidade dos sérvios, e como Reed frente ao pôster dos Provincetown Players, grupo teatral de que ele e Louise Bryant participaram de não arranjar mais complicações.
faziam dos prisioneiros austríacos es- Após a prisão, a narrativa as-

Vida dedicada às causas


cravos – que não fugiam, pois todas as sume outro tom, menos pormenorizado
estradas encontravam-se bloqueadas que antes. O texto parece concentrar-
pela lama e doenças espalhavam-se se mais na análise das relações geo-
como pragas por todo o país. políticas entre os envolvidos e os que
Não havia cigarros ou sequer John Silas Reed nasce em Por- Constantinopla, Salônica, Sofia, Louise, parte para a Finlândia e
tland, Oregon, em 22 de outubro Sérvia e Grécia. É com os apon- Petrogrado. A revolução avança- estavam prestes a entrar na Guerra.
comida suficiente em toda a Sérvia, Encontra Constantinopla do-
nem à venda, mas quando os sérvios de 1887. Aos 23 anos parte para tamentos desta segunda viagem va à sua volta, e Reed toma notas
Harvard, onde se gradua, e em que escreve Guerra dos Bálcãs. de tudo, reúne folhetos, pôsteres minada pelos alemães, que desrespei-
descobriam que Reed e Robinson (o tavam totalmente os orientais. Na Bul-
americano que viajava com ele) eram 1914 é designado para a cober- e declarações, e no início de 1918
estrangeiros, logo lhes davam maços tura de uma rebelião camponesa O “inimigo”, voltaria aos EUA para escrever gária, assiste à decisão sobre a entrada
do país na Guerra ou não. E de volta à
de cigarro, comida e chá bastantes. liderada no México por Pancho o seu relato da Revolução. Ao
No alto da montanha Gou- Villa, de quem logo se tornou para ele, era a chegar, entretanto, tudo lhe foi Sérvia, encerra o livro com a descrição
altamente dramática de um pelotão de
próximo. O jornalismo de Reed confiscado. Acusavam-no, junta-
tchevo, onde fora travada a “Batalha
Sobre as Nuvens” contra os austríacos, não era o que se poderia cha- concentração mente a outros editores do The novos soldados que se dirigem à bata-
mar de objetivo e isento. Walter Masses, de se opor à guerra. O lha, prontos para lutar. ■
Reed nos descreve com detalhes o “vale
dos cadáveres”, clareira onde o exército Lippmann, radical editor da New
de renda júri do caso, no entanto, não che-
(Jessé Torres)

inimigo se entrincheirara, e que àquela Republic, escreveu sobre ele um


ensaio, O Legendário John Reed,
nos Estados gou a conclusões concretas e as
acusações foram retiradas. GUERRA DOS BÁLCÃS
altura transformara-se em nada menos
em que afirmava que “por tem- Unidos da Novamente em pos- John Reed
280 páginas
peramento, ele [Reed] não é um se de suas anotações, em dois
Liberty’s Victorious Conflict: A Photographic History of the World War, (Woman’s Weekly, Chicago, 1918)

escritor profissional ou repórter. América meses escreve Os Dez Dias que


R$ 35,00

Ele é uma pessoa que gosta de si Abalaram o Mundo que se tornou


Arte da capa: Marcelo Ramos

mesmo. [...] Reed não é imparcial Novamente nos EUA, o relatório clássico de testemu-
e tem orgulho disso”. sobre os discursos dos prepa- nha ocular da Revolução Russa.
Com a cobertura desta rativos militares contra “o ini- Em 1919 a guerra aca-
revolução, ganha notoriedade, e migo,” escreveu em The Masses bara, mas os aliados tinham in-
periódicos nova-iorquinos que- que o inimigo para o trabalhador vadido a Rússia e a histeria con-
rem que cubra a iminente guerra estadunidense era a grande con- tinuou nos EUA. Greves, prisão
européia. Acaba indo pela revista centração de renda no país. de estrangeiros e choques com
The Metropolitan, simultanea- Em 1916, ele conhece a polícia aconteciam por todo o
mente escrevendo para The Mas- em Portland Louise Bryant, es- país, para onde mais uma vez
ses. Em quatro meses, passa pela critora feminista e anarquista por Reed viajou. Desgastando-se em
Inglaterra, Países Baixos, Alema- quem se apaixona profundamen- viagens, contrai tifo, e em 1920
nha e França, indignando-se com te. Passam então a morar juntos morre em um hospital moscovi-
o patriotismo exacerbado. em Nova Iorque. ta. O corpo foi sepultado perto
Volta à Europa em 1915, Em 1917, chegavam da do Kremlin, na Praça Vermelha,
desta vez ao leste: Rússia, vila- Rússia notícias de que o czar com honras nunca concedidas
rejos queimados e saqueados, fora deposto, e de que uma re- antes a um americano. ■
massacre de judeus, Bucareste, volução estava em marcha. Com (Jessé Torres)
Crueldades austríacas com sérvios Livro é editado no país pela Conrad

“[...] Por temperamento, ele não é escritor profissional ou repórter. [...] Reed não é imparcial”
Walter Lippmann, editor da New Republic, sobre John Reed.
“A questão era Åsne Seierstad, em De costas
Projeto gráfico-
editorial,
#1
Conflitos 2
Bálcãs
para o Mundo, sobre Bojana Lekic, redação, edição,
diagramação e Florianópolis, 6 de novembro de 2008
um jornalista repórter que aceitou um prêmio

poder receber
ofertado por Bogoljub Karic, dono
de uma emissora de TV e amigo de
Slobodan Milosevic.
ilustração:
Jessé Torres

Impressão:
nos
um prêmio em ColorSystem

dinheiro de Colaboração:
Elena Givone
Ricardo Barreto
um homem de
negócios [...]”

Lt. Stacey Wyzkowski


Elena Givone
Ruínas em Grbavica, subúrbio de Sarajevo (1996): acordo de Dayton permitiu cessar-fogo e definição de fronteiras

Åsne Seierstad nos revela a


Sérvia que ninguém enxerga
Ex-correspondente de guerra nos Bálcãs, autora de O livreiro de Elena buscou
explorar em
Cabul retorna com reportagem intimista repleta de depoimentos seu trabalho
a questão da
A norueguesa Åsne Seierstad tornou-se tes, agricultores, jornalistas, naciona-
Cappelen

construção
mundialmente famosa pelo best-seller listas – serviu-lhe de subsídio para um da identidade
O livreiro de Cabul. Em De costas para relato maior das conseqüências de uma em um
o Mundo, retorna com um relato delica- guerra na vida cotidiana das pessoas. local onde
do e vivo das desilusões e tristezas da Hábil, consegue ser simultaneamente as minas
Guerra da Bósnia, conflito que culmi- isenta e muito humana, o que deu ao terrestres são
realidade:
nou na dissolução da antiga Iugoslávia livro feições de reportagem intimista.
a paisagem
considerado o mais sangrento desde a Retoma a história da Sérvia, verde do
Segunda Guerra Mundial. o domínio otomano, a ditadura de Tito Monte
Antes de cobrir a guerra no (da antiga Iugoslávia) e de Slobodan Trebevic, por
Afeganistão, ocasião em que viven- Milosevic, e nos revela um país mar- exemplo, está
ciou os acontecimentos narrados em cado pela extrema diversidade cultural. pontuada
O livreiro de Cabul, Åsne foi correspon- Em 2000, após a queda de Milosevic, a pelo aviso,
dente na Sérvia, nos anos 90. Cobriu jornalista retorna à Sérvia para descre- “Pazi Mine”
a guerra e os ataques aéreos da Otan ver que nem todas as mudanças espe-
contra o país. Uma série de conversas
com gente comum – músicos, estudan-
radas após a queda do ditador de fato
concretizam-se. ■ (Jessé Torres) Åsne foi correspondente na Sérvia Herdeiros dos conflitos
O verdadeiro livreiro, no tribunal A fotógrafa italiana Elena Gi-
vone, vencedora do prêmio
Attenzione Talento Fotografi-
rasados por conflitos e ainda
hoje perigosos.
“Explorei o significa-
Em 2002, durante três meses Seierstad da. Como Seierstad identifica o afegão co FNAC em 2006, esteve em do de crescer no meio do caos
Musadeq Sadeq - AP Photo

viveu dentro da casa de Sultan Khan, como o maior livreiro daquele país, logo março em Florianópolis, onde de uma sociedade que tem
nome fictício de Shah Muhammad Rais tornou-se óbvio tratar-se de Rais. Em expôs seu trabalho Pazi Mine sido devastada, mas também
– principal livreiro do Afeganistão que, a 2006, ele publicou sua versão da his- – Sarajevo 2006, sobre a reali- reconstruída. Nascer após o
despeito da repressão do regime talibã, tória, editado aqui pela editora Bertrand dade de crianças nascidas no fim de uma guerra, onde ne-
não largou a profissão, por acreditar na Brasil sob o título Eu sou o livreiro de pós-Guerra na Bósnia-Herze- nhum dos pais consegue jus-
liberdade de expressão e no poder de Cabul. govina. tificar, nos dias de hoje, aos
transformação que tem a leitura. “Não me arrependo de ter O projeto, segundo seus filhos, o perigo que é
No livro, entretanto, Sultan escrito o livro, mas poderia ter sido um a fotógrafa, surgiu da neces- conviver diariamente com as
Khan revela-se, dentro de sua casa, um pouco mais cuidadosa. Posso entender
Rais: em 2006, livro com sua versão sidade de tornar público um minas terrestres”, explica.
tirano. O olhar ocidental de Åsne enxer- que ele não tenha gostado de ter a vida problema de importância glo- Elena atualmente tra-
de Oslo, a jornalista propôs a doação de
gou na segregação entre os sexos e na projetada para o mundo. Mas, quando bal: as minas terrestres e o so- balha e vive entre sua cidade
500 mil coroas norueguesas a uma fun-
opressão da religião muçulmana uma me abriu sua casa, ele esperava que frimento contínuo pós-Guerra natal e Amsterdã. Graduou-se
dação de apoio à literatura afegã. Rais
história a ser contada. Escondida sob a eu não escrevesse sobre o que vi?”, naquele país. Assim, decidiu em Fotografia em Turim em
recusou a proposta, e afirmou que a
burca, escreveu o que viu. questionou a jornalista, em entrevista à por fotografar crianças no lu- 2006, e entre 2005 e 2007 tam-
obra lhe trouxe graves problemas (como
O livro lançado em 2002 virou revista Istoé Gente. gar onde vivem, retratando a bém estudou na Rietveld Aca-
a fuga de suas mulheres com seus filhos
best-seller, mas Rais quis processar a Em negociações ocorridas no maneira como constroem sua demie de Amsterdã. ■
para o Canadá e para a Noruega), e que
norueguesa por violação da vida priva- ano passado no Tribunal de Conciliação identidade nestes lugares ar- (Jessé Torres)
levaria a questão adiante. ■ (J. T.)

“[...] Mas, quando me abriu sua casa, ele esperava que eu não escrevesse sobre o que vi?”
Åsne Seierstad, sobre a reação de Shah Muhammad Rais, o verdadeiro “livreiro de Cabul”, ao seu livro.

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