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Também “eu tive um sonho”…

Menino…
Ind’agora tu nasceste
E já estás tão crescidinho!
Que depressa aprendeste!
E já andas,
E já falas,
Já andas atrás de saias,
Já andas atrás de calças!
E dizes tantas tolices
Em que as meninas gostam de acreditar!
Menino…
Cresceste depressa demais!
Se tivesses esperado um pouco
Eu aceitaria aquele convite
Para ir contigo à praia!
Chamei-te má companhia
Porque tem que ser assim entre as pessoas crescidas!
Mas se tivesses esperado…
Iríamos os dois de calções,
Pás, baldes, ancinhos, enfim,
E a praia seria nossa!
Havíamos de dar-lhe volta!
A própria areia fugiria de nós
E iria juntar-se à areia de algum deserto,
Que ficaria menos deserto
Ou mais deserto!
Ah, mas o mar!
Esse havia de pagá-las!
Esse que nos chama e assusta,
Esse que nos bate no rabo,
Como se fosse nosso pai,
E nos atira à areia,
Fazendo dói-dóis nas pernas,
E às vezes no tu-tu!
Havíamos de tirar-lhe todos os peixes
De que ele é tão cioso!
Brandindo o peixe-espada
Andaríamos pela praia
Cortando as cabeças às pessoas crescidas:
Às que nada têm dentro delas,
Às que as encheram só de sabedoria
Que não dá para viver a vida,
Às que só pensam com sensatez,
Às demasiado normais,
Às que não se lembram que também foram crianças!
Com um grande peixe-agulha
Faríamos de Nosso Senhor
A picar a língua aos grandes,
Aos grandes frustrados
Que compensam a sua vida enchendo-a da alheia.
A esses poríamos linguado em vez de língua,
Ou uma solha, que é linguado de segunda,
Porque eles não merecem mais!
E o peixe-agulha serviria também
Para injectarmos gosto pela vida aos infelizes,
E veneno com sabor a groselha
Aos que impedem os outros de viver!
Enxertaríamos patas-roxas às patas-chocas,
Faríamos os caranguejos andar para a frente,
E poríamos alguns nas pernas das muito senhoras
Que se descomporiam pela praia como loucas que são!
Passaria o homem dos gelados
Que os daria às crianças sem dinheiro.
Nós apanhávamos conchas e búzios
De que faríamos colares
E tu punhas-me um ao pescoço.
Reconhecida oferecia-te pudim de gelatina,
Que receberias nas mãos gulosas
Onde te faria comichão,
Pois seria uma alforreca pequenina!
Como boa criança arrependida choraria
A pedir-te perdão,
Prometendo não voltar a fazer!
Extrairíamos dois barquinhos pequeninos
Do corpo de dois chocos,
Que ficariam mais moluscos, mais chocos,
E com as mãos a fazer de remos
Navegaríamos num mar de imaginação
Até àquela gruta fria e escura
Que provoca arrepios ao ser penetrada
E que só pombos frequentam.
São pombos brancos que lhe dão luz
E nos levam nas suas asas de sonho
Ao mundo da liberdade
Que fica numa ilha de sol
Banhada por um mar verde prenhe de esperança,
Só habitada por plantas e animais
E sobrevoada pelo Capelo Gaivota,
Da qual as crianças se aproximam curiosas
E os homens só avistam ao longe.
De regresso encalharíamos numa zona deserta
Onde brincaríamos com o Pricipezinho,
Aquela criança por quem me apaixonei um dia,
E que com a sua amiga Raposa cativada
Tanto teriam para nos ensinar!
Regressaríamos no avião d’Exupéry,
Um dos poucos homens que compreendem as crianças
E as suas amizades puras
E nos levaria ao País das Maravilhas
Onde a Alice menina
Nos emprestaria a chave de acesso ao jardim.
Voltaríamos à nossa praia
Aonde já tinha chegado a noite
Cujo manto escuro enfeitaríamos com estrelas-do-mar
Porque as outras já estão cansadas de piscar os olhos aos homens,
E peixes fosforescentes saltitando,
Que com pirilampos vindos da terra
Nos permitiriam que tivéssemos medo.
Cansados adormeceríamos contentes,
Ao som embalador da voz de uma sereia
Que vinda do mar com uma harpa
Encheria a praia de doces melodias
E nossos sonhos de suave voluptuosidade,
Que Freud mais tarde complicaria ao explicar.
Menino…
Foi bom que tivesses nascido…
Foi bom que te tivesse conhecido…
Foi pena que não tivesses esperado por mim…

Maria Lúcia
1981

(a minha irmã, quando leu este texto, de que gostou, perguntou-me se eu já tinha
reparado que na minha escrita há sempre mudança, vontade de alterar as coisas…)

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