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O José Pássaro era aquele homem que, de bordão em punho, e aparentando mais velhice

que a verdadeira, subia de monte em monte, dando dois dedos de conversa, notícias dos
montes vizinhos, relatos de histórias passadas, vividas, verdadeiras, imaginadas, ou em que
a verdade se confundia com a imaginação, ou com a sua imaginação, ou com a imaginação
trazida pelo esquecimento dos tempos. O que ele buscava, afinal, era a companhia dos
outros, um pouco de calor humano, muitas vezes transmitido através de uma tigela de
caldo quente, que esmolava, que já nem precisava esmolar, que por hábito lhe era dada,
pouco depois de ter chegado. E ele não era o mendigo importuno, nem a tigela da sopa tão
gratuita como poderia à primeira vista aparentar: a sua vinda era desejada, as suas histórias
escutadas com agrado, os relatos do que se passava da outra banda do arredondado
horizonte eram aquela comunicação necessária ao homem que nasceu para se diferenciar
do bicho, bicho da terra, amarrado a ela, dependendo dela, seu escravo e seu senhor,
revoltado, mas desejando-a. E enquanto o Zé Pássaro, falador profissional, por sua
necessidade e dos outros, enrolando e chupando o cigarro, se perdia na lenga-lenga do seu
palavreado, era escutado por todos sem uma palavra, que não sabiam que lhe dizer, apenas
a saudação da chegada e da abalada, os “salve-o Deus” e “o Senhor o acompanhe”,
costumeiros. A sua presença era um hábito periódico e necessário, mas nunca ninguém lhe
perguntou, ou se perguntou, quem ele era, quem ele seria.
Homem sem lar, sem família, dormindo naquele casarão abandonado, que perdera já a
conta dos anos, quase completamente destelhado, mas que não era o mesmo que dormir na
rua, contando as estrela no Verão, quando o calor apertava, quando a solidão doía, quando
o desejo ainda o atormentava, quando a chuva o molhava, quando o frio o enregelava. Mal
nascia o dia ele já estava a pé, fugindo do isolamento, procurando os outros, que sem
falarem e sem saberem, eram o seu refúgio, a sua companhia, lhe davam mais que a
comida, aquelas migalhas humanas de que todos necessitamos, mesmo o mais
insignificante José.
José Pássaro: não devia ser esse o seu verdadeiro nome. Nunca o terá tido? Nunca lho
terão dado? José, nome vulgar, o primeiro que ocorre à gente simples, como poderia ter
sido Maria, se fosse mulher. José, nome bíblico, José, filho de José, que o foi de José, que
o terá sido de José, que o teria sido de José, que o poderia ter sido de José, ou de António,
ou de Joaquim, ou de Manuel. Pássaro – andanças, andarilho, cruzador de horizontes,
portador de novas, errante, aquele a quem não se deseja fazer mal, aquele cujo voar e canto
são necessários ao homem, como quebra solidão, pasmaceira, horizontes fechados,
cansados, deleite para o ouvido, ajuda doce para o cansativo e estupidificante trabalho.
Também os pássaros têm as suas preferências, e de todos aqueles montes, o de que o José
mais gostava, era do da senhora Maria:
- Santas tardes, senhora Maria. Não tem daquelas papinhas tão boas que me deu no outro
dia?
- As papas hoje estão de talhada, José; foram feitas há muitas horas, as que sobraram já
estão frias! Eram o quinhão do meu homem…
- Não faz mal, senhora Maria. É assim mesmo que eu gosto delas.
E se a resposta fosse:
- As papas ainda estão ao lume, José. Estão de escalda-goela.
Ele diria:
- Não faz mal, senhora Maria. É assim mesmo que eu gosto delas.
E se ela dissesse:
- José, hoje nem as raspaduras escaparam. Os moços devoraram tudo. Só ficou o tacho…
qualquer dia devoram-me a mim…
Ele sorriria:

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- Não faz mal, senhora Maria. Sempre há-de haver uma mão cheia de figos torrados para o
José chupar. Os seus figos são tão bons!...
Para essa não tinha relatos. Ficava comendo silenciosamente, vendo-a movimentar-se,
sempre triste, na sua tosca e tisnada cozinha, tisnada do fogo de lenha, do uso de anos, da
falta de cal, da falta de gosto pela vida. Não necessitava gastar palavras: a ela não
interessava o que ia pelo mundo, o mundo da sua casa lhe chegava e sobrava, o seu
desgosto a minava, a consumia. O José conhecera-a ainda moça, viçosa, quando ele já
parecia um velho; ela diria, se falasse, que o conhecera sempre velho, sempre com o
mesmo aspecto.
Casara, começaram os trabalhos: o marido sempre bêbado, todo o dia na taberna, os
rendimentos escassos, mal chegando para as papas, que os moços atamancavam com
alfarroba ou figo, que os mandava Nosso Senhor quando o ano ia bom e os torrava a Maria
para ajudar aquela gente a matar a fome, que se viam obrigados, por vezes, a roubar a
bolota aos porcos que guardavam. Quando o marido ia à cidade trazia uma cestinha de
sardinhas, daquelas da boa-morte, apanhadas na época adequada, e conservadas em sal,
mas quanto tempo duravam? Os moços tragavam-nas assadas, comidas em cima do pão,
com azeite, muito pão, que o trigo ia chegando, bastante azeite, que a chuva tinha
engradecido a azeitona. O José Pássaro contemplava-a ainda: não precisava falar. Ela não o
ouviria, embrenhada nos seus pensamentos, na sua lida. Consolavam-se um com a
presença do outro, presença alheada, mas sentida, mas desejada, mas suficiente. Como ele
gostava dela! Infeliz como ele, como ele sozinha e triste. Ela tinha a família que a ele
faltava – mas era uma sombra entre eles, apagada, resignada, ou revoltada, isso era
segredo, que a voz não se lhe ouvia. Não precisavam de palavras, absorvidos nos seus
pensamentos, em pensamentos semelhantes, eles próprios se identificando. Depois de
umas horas de muda contemplação, os moços chegavam com os porcos, quando a noite se
aproximava, o José Pássaro levantava-se, despedia-se e partia. Ela ficava a vê-lo afastar-se,
pensando como seria bom poder um dia fazê-lo também. Ele arrastava-se a caminho
daquelas ruínas, da sua ruína, sonhando com uma família, a sua família, de que a senhora
Maria faria parte. E sonharia pela noite fora com coisas agradáveis, se o sono chegasse, se
o tempo, as dores, o fantasma da velhice ou da solidão o permitissem, até nascer novo dia
e mais uma vez iniciar a fuga até à ilusória companhia dos outros.

O Zé Pássaro foi uma figura real, de quem o meu pai me falou, e gostava das papas feitas
pela minha avó, estivessem elas escaldantes, mornas ou frias. Ele era um pobre delicado,
reconhecido, e a fome apertava. A vida dela penso que só pode ter sido infeliz, e o resto é
imaginação.

Julho de 1980
Maria Lúcia

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