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Notável

Mário , Crespo, Jornalista

Uma das mais brilhantes e intensas jovens jornalistas


que conheço (a ordem de adjectivos é aqui aleatória) é
a Joana Latino da SIC Notícias. Certamente que há
mais na sua geração com predicados igualmente
assinaláveis, mas esta, eu conheço e sigo de perto o
seu trabalho. Há uns cinco anos foi a Lanzarote
entrevistar Saramago. O Nobel da literatura
mostrava-se ainda profundamente magoado com o
disparate censório de Sousa Lara que Santana Lopes
e Cavaco Silva sancionaram em 1992. José Saramago
devia estar no estado de espírito do seu "anjo das
condenações", como ele aparece descrito nessa obra
maior da literatura mundial que é o Evangelho
Segundo Jesus Cristo. A conversa foi muito na linha
daquilo que Saramago pôs o anjo a dizer "Perdoar, eu,
que ideia estúpida, eu não perdoo, castigo." No fim da
entrevista a Joana perguntou-lhe porque é que ele não
vinha viver para Portugal. Saramago disparou-lhe uma
ríspida pergunta. 'Para quê?' 'Porque gostava de ir na
rua e de vez em quando encontrá-lo!', disse ela. Foi
esse privilégio da proximidade humana que o instinto
jornalístico da Joana detectou que tínhamos perdido.
Foi isso que António de Sousa Lara, Pedro Santana
Lopes e Aníbal Cavaco Silva nos retiraram quando
proibiram a participação do Evangelho Segundo Jesus
Cristo num concurso ao Prémio Literário Europeu
porque o livro descrevia crenças fora dos cânones da
trindade governativa de então. José Sócrates
restituiu-nos agora esse privilégio do contacto com a
promessa do regresso da intimidade desinibida
connosco, as gentes de Saramago. Foi notável a
iniciativa de honrar a sua vida e obra trazendo a Lisboa
A Consistência dos Sonhos, a exposição biográfica do
único Prémio Nobel da literatura que escreve em
Português. O que Saramago conseguiu com o dom da
sua prodigiosa criatividade foi dar aos que falam
português, e necessariamente aos portugueses,
aquela gloriosa sensação de "nos sentirmos três
centímetros mais altos" como alguém lhe disse na
viagem pela sua terra que decidiu fazer depois de ter
recebido o Nobel. Isto porque a distinção de
Estocolmo, que veio seis anos depois do escritor ter
sido incluído no Índex do cavaco-santânico-larismo, foi
a primeira atribuída a criatividade literária expressa em
língua portuguesa. Este assinalável feito, só agora,
uma década passada, é que foi realmente reconhecido
por um governo da República. O Primeiro-ministro
manifestou na inauguração da exposição no Palácio da
Ajuda a gratidão de Portugal por tudo aquilo que o
Nobel da literatura faz em prol do prestígio da Língua
Portuguesa e de Portugal. Sócrates fica com o enorme
mérito de ter, finalmente, feito a reparação concreta do
mal incomensurável que o Estado português, numa
das suas traduções executivas mais infelizes, infligiu à
criatividade artística de alguém que já na altura era
reconhecido internacionalmente. A iniciativa de trazer
A Consistência dos Sonhos para Portugal e de a
inaugurar acompanhado de grande parte do seu
governo, restitui-nos a respeitabilidade no próprio
Palácio da Ajuda, a tradicional sede da cultura dos
governos onde, em tempos, o disparate de Lara, a
irresponsabilidade de Santana e as ausências de
dúvidas de Cavaco se tinham conjurado para cobrir de

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ridículo todo um país. Por isso, a exposição a


Saramago está agora onde deve estar, organizada
com a eficácia, descrição e elegância de, finalmente,
uma verdadeira política de cultura. Sem cilícios
penitenciais, com actos significativos e claros, a obra
de José Saramago está a ser honrada como sempre
devia ter sido.

Analisar uma obra que mereceu um Prémio Nobel por


reflexões feitas sobre a humanidade, o Estado, a
religião, a democracia excede uma curta descrição de
episódios. Mas este registo jornalístico permite que
diga que me sinto "três centímetros mais alto" quando
leio na New Yorker ensaios sobre a obra de Saramago
onde o constante interpelar dos sistemas normativos
de crenças do seu espírito é estudado por académicos
e é admirado pela lucidez de um pensador empenhado
na descrição do que o rodeia e de si próprio. Enquanto
Lara, o repetente, diz que "voltaria hoje a fazer o
mesmo" e a certeza de Cavaco descarta como
"absurda" a exploração filosófica de um Prémio Nobel,
eu, por mim, tal como a Joana Latino, do que eu
gostava era de andar pelas ruas de Lisboa ou do Porto
e de vez em quando encontrar José Saramago. Depois
do que José Sócrates e António Pinto Ribeiro fizeram
espero que, agora, isso vá acontecendo.

Mário Crespo escreve no JN, semanalmente, às


segundas-feiras

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