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O pianista.

Havia uma moça no ponto de ônibus. Ao lado dela, ele encontrava-se. Só haviam os
dois naquele local. Ninguém mais.
Assim que o ônibus dela passou, trazendo o vácuo com sereno da noite fria, sua vista
ardia. No exato momento em que ela entrou no ônibus, ele pode sentir outra companhia.
Há tempos convivia, mas ainda não tinha caído na realidade de que aquilo estava
perseguindo-o. Ela reapareceu novamente. Impiedosa com seu perfume que só quem já
a conheceu poderia recordar-se. A vista ardia, a lágrima escorreu. A lágrima escorreu
somente por que a vista ardia com o bafo quente do ônibus misturado com a brisa fria
da noite. Ela estava lá, ele a sentiu. Tornou-se e começou a olhar ao seu redor. Não
havia ninguém. Mas ela estava lá e ele tinha absoluta certeza disso.
Distante, eu assistia seu olhar perdido procurando o que o sufocava. Ela estava só
brincando com mais um tolo. Eu já a conheci uma vez. Atormenta-me de vez em
quando, mas sei como desviar-me de seus pensamentos perturbadores. Não todos, só
alguns. O pior é quando ela deixa você livre, senta ao seu lado e começa a escutar tudo
o que pensa sobre tudo.
Atordoado, o rapaz com os olhos vermelhos encharcados, se deu conta que ela estava
atrás dele. Virou-se, mas ela estava ao lado. Virou-se novamente, ela estava atrás.
Desistiu e olhou pro lado. Ela estava ali, ela estava em todo lugar.
Começou a cantar e ela o acompanhou. Seu suspiro sereno acompanhava cada nota que
ele poderia alcançar, mesmo cantando baixo. E ele sabia que ela seguiria o mesmo tom,
qualquer que ele fosse.
Assim que ele avistou uma pessoa, ela saiu correndo. Mas mesmo assim ele a sentia
como se tampasse sua boca. Um outro rapaz chegou ao ponto de ônibus, apressado
pensando ter perdido seu transporte. O homem dos olhos rubicundos demorou a
responder. Ele ainda sentia a presença dela, mesmo ela não estando ali.
Outro ônibus passou. Não era o dele, mas era do rapaz que acabara de chegar. Assim
que ele subiu no ônibus, ela voltou. Deu um grande abraço nele, como se fosse alguém
que morresse de saudade a cada segundo longe de quem a própria atormenta. E ela
realmente morre, não literalmente, mas quando ela não está com alguém... é como se ela
não existisse. Alguns tentam fugir, mas caem na tentação de morrer por ela. Não se há
como fugir. Mais dia ou menos dia, ela fará companhia a todos. A única coisa que varia
é a sua intensidade.
Enfim, ela o abraçou e ele a tomou em seus braços. Lembro-me bem de como aquela
mesma cena já havia acontecido comigo. Eu estava com um amigo, conversando sobre a
vida. Eu havia terminado um relacionamento. As horas se passaram e ele teve que sair.
Eu estava em uma praça quando ela apareceu. Sem eu precisar dizer nenhuma palavra,
ela soube sobre tudo o que havia passado e com o toque doce, fez-me confortar.
Momento único, quando se há algo a abraçar e usar de escudo contra as lamentações do
cotidiano. Agora eu via o rapaz de olhos ardidos com ela em seus braços. As pessoas
que estavam comigo, ou melhor, os lunáticos que estavam comigo, estavam escondidos
debaixo de seus colchões beges e finos. Há melhor esconderijo na cidade do que um
colchão? Narrei para um deles o que estava acontecendo e na mesma hora, ele retrucou:
"Tolo! Ela o agrada e depois o traz para cá, largando-o em amargura! Sua visita torna-se
constante, mas não com a devida intensidade. É fria e transbordada em descaso. Pisa em
nossas mãos enquanto ri por não podermos nos levantar".
Todos devem ter reclamações contra ela. Impossível não se ter. E eu assistia os dois
dançando sem movimentar-se. Congelado, ele sorria freneticamente. Achava que a

Thiago Reinas – milcartasaovento.blogspot.com


companhia dela o bastava e nada mais era necessário. Pobre coitado. Logo estará sem
ela, reclamando de suas próprias ações com alguém e, quando esse alguém não estiver
por perto, ela estará lá. Ele não desprender-se-á.
Não o conhecia, mas era tão óbvio que ele jogaria tudo para o alto, só para estar com
ela.
No fundo dos olhos ainda atacados pela brisa e o sereno frio ele continha a expressão de
alguém que ansiava por um beijo de boa noite. Mal sabe ele que esta era a viúva-negra,
charmosa e fatal. Faz com que qualquer um se sinta uma fortaleza e faz com que
qualquer fortaleza se desmorone com um simples último suspiro.
Quanto a minha condição, eu era acomodado. Ela visitava-me ainda, periodicamente.
Cuspia verdades em minha face, enquanto eu balbuciava as mesmas palavras que ela
usava. Talvez eu só estivesse louco, depois de comer alguma comida estragada. Ela
afetou a minha mente assim como a de muitos outros e muito me admira que eu ainda
ache que isso tudo seja verdade. Talvez eu esteja imaginando coisas.
Mas o que importa é: Ela está dando o bote novamente. Se há quem gosta de sua
companhia, para escrever, compor ou se lamentar, também há quem não a quer perto.
Ela é a terceira pessoa admirada e temida. Ela admira a todos, mas não teme ninguém.
Influência sobre qualquer raça, cor, credo. Ela não tem pudor. Tudo o que ela puder
fazer para estar lá, ela fará. Inconscientemente, ela fará.
Eles estão de mãos dadas. Eles estão de mãos... bem, já imaginava isso. É o fim dele,
talvez. Nesse tempo todo eu achei que poderia ter feito alguma coisa. Mas o que um
velho poderia dizer a um casal que dispersará minhas palavras em alguns risos e olharão
para mim com apenas dois olhos?
Levantei-me. Vi que o outro senhor que me acompanhava estava dormindo. Ela estava
comigo agora. Mas ela estava com ele também. Elas são gêmeas ou é muita pinga.
Estou vendo coisas. Fui à direção dele, enquanto ela me puxava para trás. Ajeitei minha
roupa, dei uns tapinhas no ombro para tirar umas migalhas e a cada passo ela gritava
mais e mais.
Quando ele percebeu que eu estava chegando perto, não tão sujo a ponto de assustar
alguém, as duas viraram uma. Seus sussurros pareciam estar dentro de minha cabeça e
pela primeira vez eu a enfrentei. Furiosa, ela balançava a cabeça cada vez mais distante
de mim.
Eu estava louco ou alucinado. Lembrava-me cada vez de meu passado e das aulas de
piano que eu dava. Ela sumiu, desapareceu. Esvaeceu-se no ar da noite quando eu,
próximo dele disse:

"Oi."

Ele desconcentrou-se dela e prestou atenção em mim. Olhou em volta, mas não a
encontrou mais. Abobado ele respondeu.

"Opa."

Eu então, comecei um dialogo falando sobre o tempo (clichê eu sei, mas não encontrei
maneira melhor). No embalo eu disse: "Você tem um ar apaixonado, meu rapaz. Eu me
lembro quando tinha sua idade". Ele sorriu, não pode conter. Ele sabia do que eu
poderia estar falando.

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Continuando, empolgamo-nos enquanto eu contava sobre minhas aulas de piano. Nós
não sentíamos mais a companhia dela. Ele hesitou, mas acabou perguntando se eu havia
composto alguma música, arranjo, letra, melodia. Eu prontamente respondi:

"-Uma vez, moço, eu tive uma amada. Assim como você possui agora. Igual a que você
possui agora”.

Ele estranhou a resposta e perguntou qual era o nome da minha composição. Eu não
pude deixar de contar que o nome da minha mais bela música, possuía o nome da minha
mais ardente paixão.
Tremi os lábios, olhei fundo nos olhos já não mais banhados em lágrimas e disse:

"-Solidão"

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