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24 © Pato Mecanico e a Gléria da Franca Espirito do Mecani O Universo Mecanico: Determinismo ¢ Reducionismo © Robs {As Pessoas como Méquinas A Maquina Calculadora Os Primérdios da Ciéncia Moderna René Descartes (1596-1650) ‘As Contribuices de Descartes: 0 Mecanicismo ¢ 0 Problema Mente-corpo ANatureza do Corpo ‘AlInteragdo Mente-corpo ‘A Doutrina das idelas ‘As Bases Filoséficas da Nova Positivismo, ismo e Empirismo Auguste Comte (1798-1857) Johin Locke (1632-1704) Texto Original: Trecho sobre 0 Empirismo, Extraido de ‘An Essay Concerning Human Understanding (1690), de John Locke George Berkeley (1685-1753) David Hume (1711-1776) David Hartley (1705-1757) James Mill (1773-1836) John Stuart Mill (1806-1873) Contribuices do Empirismo a Psicologia smo CAPITULO DOT ae As Influéncias Filosdéficas na Psicologia 0 Pato Mecdinico e a Gléria da Franca Parecia um pato, grasnava como um pato, esticava as pernas para se levantar quando seu cuidador estendia as maos oferecendo graos de milho, esticava pescoco para pegar 0 milho com seu bico, e o engolia, como faz um pato. E depois, excretava numa travessa de prata - como um pato? 86 que nao era um pato, pelo menos nao de verdade. Era um pato mecdnico, uma maquina cheia de alavancas e dentes de engrenagem e molas que faziam com que se movimentasse, imitando o comportamento de um pato. SO uma das asas continha mais de 400 partes. Foi considerado uma das grandes maravilhas da época. © ano era 1739, € o lugar, Paris, Franca. O pato me- cAnico levou a Paris um grande numero de pessoas de muitos paises europeus. As pessoas se admiravam com 0 fato de que os inventores pudessem fabricar coisas como se fosse uma criacao natural. Elas 0 observavam moven- do-se, alimentando-se e engolindo os graos e defecando, maravilhados de que uma maquina gloriosa, miraculosa havia tornado isso possivel. Até o grande filésofo Voltaire notou 0 pato e escreveu: “Sem o pato cagao, nao haveria nada para nos lembrar da gloria da Franca” (Voltaire, apud Wood, 2002, p. 27). Bem, vocé pode perguntar, e dai? Por que esse brinque- do mecAnico foi considerado uma maravilha? Atualmente podemos ver coisas muito mais complicadas e semelhantes CAPITULO 2 AS INFLUENCIAS FILOSOFICAS NA PSICOLOGIA 25 4 realidade em qualquer parque de diversao. Mas lembre-se de que isso foi no século XVIII, | eal aparelho havia raramente sido visto. O interesse do public em geral pelo fantastico pato francés fazia parte de uma nova fascinacdo por todos os tipos de maquinas que esta- am sendo inventadas e aperfeicoadas para uso na ciéncia, industria e entretenimento. 0 Espirito do Mecanicismo Em toda a Inglaterra e na Europa ocidental, uma grande quantidade de maquinas era empregada nas tarefas diarias para complementar a forca muscular do homem. Bombas, slavancas, guindastes, rodas ¢ engrenagens moviam os moinhos de agua e de vento para smoer grdos, serrar toras de madeira, tecer fios e executar outros trabalhos manuais, liber- sendo a sociedade da dependéncia da forca humana. As maquinas tornaram-se familiares Bs pessoas de todos os niveis sociais, desde o mais humilde até o aristocrata, e logo foram gecitas como parte natural da vida cotidiana. Nos jardins reais, instrumentos mecanicos estavam sendo construidos para oferecer ‘Seemas extravagantes de entretenimento. A 4gua que percorria uma tubulacao subterranea ectonava as figuras mecAnicas, fazendo-as realizar varios movimentos inusitados, tocar Sstrumentos musicais e produzir sons que imitavam a fala humana. A medida que as pessoas passeavam pelos jardins, elas acidentalmente pisavam em placas de pressdo es- eeadidas, ativando os mecanismos, enviando Agua por meio da tubulacao para ativar as Suras. Entretanto, dentre todas as invengdes, 0 relégio mecinico foi a de maior impacto @© pensamento cientifico. Mas qual a relagao existente entre o desenvolvimento macigo da tecnologia ea histéria psicologia moderna? Afinal, referimo-nos a um periodo 200 anos anterior 4 fundagao ‘emal da psicologia como ciéncia, bem como 4 fisica e a mecanica, disciplinas ha muito =xcluidas do estudo da natureza humana. No entanto, a relacdo é inevitavel e direta, ja ‘=e 0s principios incorporados nas movimentadas e ruidosas maquinas, nas figuras e nos selogios mecanicos do século XVII exerceram grande influéncia na direc4o tomada pela mova psicologia. O Zeitgeist dos séculos XVII ao X1X consistiu na base que nutriu a nova psicologia. O =spirito do mecanicismo, que enxerga 0 universo como uma grande maquina, foi o fun- éamento filos6fico do século XVII, ou seja, a sua forca contextual basica. Essa doutrina sSrmava serem os processos naturais mecanicos e passiveis de explicagao por meio das eis da fisica e da quimica. Mecanicismo: doutrina para a qual os processos naturais sdo determinados mecanicamente e passiveis explicagao pelas leis da fisica e da quimica A ideia do mecanicismo originou-se na fisica, chamada na época de filosofia naturalista, como resultado do trabalho do fisico italiano Galileu Galilei (1564-1642) ¢ do matematico © fisico inglés Isaac Newton (1642-1727), que possuia alguma experiéncia como relojociro. 4 teoria afirmava que qualquer objeto existente no universo era composto de particulas de matéria em movimento. De acordo com Galileu, a matéria formava-se de discretos corpuscu- es ou dtomos que afetavam uns aos outros mediante o contato direto. Mais tarde, Newton 26 HISTORIA DA PsICOLOGIA MoDERNA aperfeigoou a visdo mecanicista de Galileu, postulando que o movimento nao resultava do contato fisico direto, mas das forcas de atragao e repulsao que atuavam sobre os étomos. A ideia de Newton, embora importante para a fisica, nao mudou radicalmente o conceito basico mecanicista nem a forma como fora aplicado nos problemas de origem psicol6gica. Se o uni- verso 6 constituido de atomos em movimento, entao qualquer efeito fisico (movimento de cada dtomo) resulta de uma causa direta (movimento do 4tomo que 0 atinge). Como 0 efeito esta sujeito as leis da medi¢ao, deveria ser previsivel. © funcionamento do universo fisico era comparado ao do relégio ou ao de qualquer boa maquina, ou seja, era organizado e preciso. No século XVII, os cientistas atribufam a “causa” ea “perfeicao” a Deus - que projetou 0 uni- verso com perfeigd0 —e acreditavam que, se conseguissem dominar as leis de funcionamento do universo, seriam capazes de prever seu comportamento futuro. Nesse periodo, os métodos e as descobertas da ciéncia avancavam a passos largos com a tecnologia, e a combinacao entre eles foi perfeita. A observacgao e a experimentagao tornaram-se 0s diferenciais da ciéncia, seguidas de perto pela medic&o. Os especialistas tentavam definir e descrever os fendmenos, atribuindo-Ihes um valor numérico, processo vital para o estudo do funcionamento do universo como uma maquina. Os termémetros, os barémetros, as réguas de calculo, 0s micrometros, os relégios de péndulo ¢ outros dispo- sitivos de medicao eram aperfeicoados e reforcavam a ideia da possibilidade de se medir qualquer aspecto do universo natural. Até mesmo 0 tempo, considerado impossivel de ser reduzido em unidades menores, j4 podia set medido com precisdo. ‘A mediciio exata do tempo teve consequéncias tanto praticas como cientificas. “Sem 0s instrumentos precisos para o acompanhamento do tempo nao seria possivel medir os pequenos incrementos no intervalo decorrido entre as observacées e, portanto, a conso- lidacdo dos avancos no conhecimento cientifico nao comegou apenas com a ajuda do telescépio ou do microscépio” (Jardine, 1999, p. 133-134). Além disso, os astrnomos ¢ os navegadores necessitavam de aparelhos precisos de medi¢ao do tempo para registrar com exatidao os movimentos dos astros. Essas informacoes eram vitais para a localizagao dos navios em alto-mar. 0 Universo Mecanico O relégio mecanico foi a metafora perfeita para 0 espirito do mecanicismo do século XVII. O historiador Daniel Boorstin referia-se ao relogio como a “mae das méquinas” (Boorstin, 1983, p. 71). O rel6gio foi a sensagao tecnolégica do século XVII, assim como o computa- dor no século XX. Nenhum dispositivo mec4nico provocou tanto impacto no pensamento humano e em todos os niveis da sociedade. Na Europa, os relégios eram produzidos em grande quantidade e variedade.! Alguns eram suficientemente pequenos, podendo ser colocados em cima da mesa, ou até mesmo carregados por uma pessoa. Com 0 avanco tecnologico, foram desenvolvidos telégios portateis, pequenos o suficiente para serem carregados por toda a parte. No inicio, eles eram colocados em uma corrente em volta do pescoco, como simbolo de riqueza. 1 Jé no século X, os chineses haviam inventado enormes reldgios mecanicos. Talvez a noticia dessa invencao tena incenti- vyado o desenvolvimento de relégios no oeste europeu. Entretanto, o requinte do mecanismo dos religios europeus, bem ‘como seu entusiasmo na sua elaboracao, criando até mesmo madelos extravagantes, foram inigualaveis (Crosby, 1997). CAPITULO 2 AS INFLUIENCIAS FILOSOFICAS NA PSICOLOGIA. 27 Eles tornaram-se tal simbolo de status que membros das seitas calvinistas e puritanos, “opondo-se a tal ostentagao, comecaram a carregd-los em seus bolsos. Assim, nasceu 0 relogio de bolso, popular até mesmo no século XX” (Newton, 2004, p. 62). Os relégios maiores, instalados nas torres das igrejas e nos edificios publicos, podiam ser vistos e ouvidos a quilémetros de distancia. Desse modo, relégios tornaram-se acessiveis 2 todos, independente da classe social ou situagao econémica. Em virtude da regularidade, previsibilidade e exatidao dos relégios, os cientistas e 16sofos comegaram a enxergé-los como modelos pata o universo fisico. Talvez o proprio sniverso fosse um imenso reldgio fabricado ¢ colocado em operagao pelo Criador. Os cientistas, como 0 fisico britanico Robert Boyle, o astr6nomo alemao Johannes Kepler e 0 Sldsofo francés René Descartes, acreditavam nessa ideia e aceitavam a explicagaio da har- sonia e da ordem do universo baseada na regularidade do relégio, ou seja, o mecanismo € fabricado cuidadosamente pelo relojoeiro, assim como 0 universo foi arquitetado por Deus para funcionar com regularidade. : © filésofo alemao Christian von Wolff declarou: “O comportamento do universo 30 € diferente do funcionamento do mecanismo do rel6gio”. Seu aluno Johann Cristoph Gottsched ainda acrescentou: “Como o universo é uma maquina, ele é semelhante ao s=légio; e, assim, o relégio permite-nos compreender em pequena escala o funcionamento em grande escala do universo” (Gottsched, apud Maurice e Mayr, 1980, p. 290). Determinismo e Reducionismo Comparado com o mecanismo do reldgio, o universo funcionava perfeitamente sem qual- quer interferéncia externa, j4 que fora criado e colocado em funcionamento por Deus. Desse modo, a comparagao do universo com 0 relégio abrange a ideia do determinismo, mais especificamente, a crenga de que qualquer agao é determinada pelos eventos do passado. Em outras palavras, é possivel prever as mudangas que ocorrem na operacao do Ada Lovelace era filha do poeta Lord Byron (George Noel Gordon), cujos memoraveis escritos incluem: “Tis strange, but true; for truth is always strange, ~ Stranger than fiction” (Traducao livre: “E estranho, mas verdadeiro, porque a ver dade é sempre estranha — Mais estranha do que a ficgdo”). Em 1980, o Departamento de Deiesa dos Estados Unidos batizou de “Ada” a linguagem de programacao do sistema de controle do computador do exército. 32 HISTORIA DA PSICOLOGIA MODERNA “refazer” ou “substituir” determinados tipos de atividades mentais, por exemplo, desem- penhar cAlculos matematicos mais rapidamente do que humanos (veja Green, 2005). Babbage perdeu a motivacao quando nao conseguiu mais obter financiamento para o seu trabalho. E apés a morte prematura de Ada, com pouco mais de 30 anos, tornou-se amargurado e ressentido. Repetidamente dizia que jamais havia vivido um dia feliz em toda a sua vida. Ble “odiava a humanidade de um modo geral, 0s ingleses em especial, 0 governo inglés e 0s tocadores de 6rgaos de rua ainda mais” (Morrison e Morrison, 1961, p. 13). Sua luta contra os tocadores de 6rgao e outros mtisicos de rua Ihe deram notorie- dade consideravel entre os moradores de Londres, muitos dos quais o consideravam um “Jouco”. Frequentemente ele escrevia cartas de protesto aos jornais, queixando-se de que © barulho vindo da rua reprimia seus poderes mentais e interferia no seu trabalho. De modo geral, acreditava que os esforcos para desenvolver a maquina calculadora haviam sido em vao e que nunca seria reconhecido pela sua contribuicao. No entanto, Babbage recebeu amplo reconhecimento pelo seu trabalho. Em 1946, quando o primeiro computador totalmente automatico foi desenvolvido na Harvard University, um pioneiro do computador referiu-se ao acontecimento como a concretizagéo do sonho de Babbage. Em 1991, para comemorar 0 bicentendrio de seu nascimento, um grupo de cientistas britanicos construiu a réplica de uma das sonhadas maquinas de Babbage, com base nos seus desenhos originais. © aparelho consiste de 4 mil pecas, pesa 3 toneladas e realiza cAlculos com perfeicao (Dyson, 1997). Charles Babbage, que personificou no século XIX a nogao do funcionamento do homem como uma maquina, estava evidentemente muito a frente da sua época. Sua calculadora, precursora dos modernos computadores, representou a primeira tentativa de sucesso na reproducao do processo cognitivo humano e no desenvolvimento de uma forma de inteligéncia artificial. Os cientistas e os inventores da sua época previram que 0s usos das maquinas seriam ilimitados, assim como as fungées humanas que seriam capazes de executar. Os Primérdios da Ciéncia Moderna Observamos que 0 século XVII testemunhou uma evolugao extremamente abrangente ¢ diversificada na ciéncia. Até entao, os filésofos buscavam as respostas no passado, nos trabalhos de Aristételes e de outros pensadores da Antiguidade, e na Biblia. As forgas que regiam a investigacao consistiam no dogma (na doutrina imposta pela igreja estabelecida) ¢ na autoridade. No século XVII, nova forca ganhava importancia: 0 empirismo, a busca do conhecimento por meio da observacao e da experimentagao. O conhecimento extraido do passado tornara-se suspeito, dando lugar aos anos dourados iluminados pelas descobertas e percepcées cientificas que refletiam a mudanga na natureza da investigacdo cientffica. Empirismo: busca do conhecimento mediante a observagaio da natureza e a atribuicdo de todo conhecimento a experiéncia Entre os varios estudiosos que marcaram o periodo, destaca-se 0 matematico francés René Descartes, que contribuiu diretamente para a histéria da psicologia moderna. Seu Cariruto 2. AS INFLUENCIAS FILOSOFICAS NA PsicoLocia 33 scabalho ajudou a libertar a investigacao cientifica do controle rigido das crengas intelec- cuais e teol6gicas dos séculos passados. Descartes simbolizou a transicdo cientifica para = cra moderna e aplicou a nocao do mecanismo do relégio ao corpo humano. Por esse motivo, muitos afirmam ter ele inaugurado a era da psicologia moderna. René Descartes (1596-1650) Descartes nasceu na Franga, em 31 de marco de 1596, € herdou do pai recursos suficientes para manter uma vida confortavel, com busca no conhecimento intelectual e viagens. De 1604 a 1612, frequentou uma escola jesuita, onde estudou matemiatica e ciéncias humanas. Demonstrava também grande talento para a filosofia, fisica e fisiologia. Em virtude da sragilidade da sua satide, Descartes era dispensado das missas matutinas e Ihe era permi- sido dormit até a hora do almoo, habito que manteve por toda a vida. Foi durante essas sranquilas manhas que desenyolveu suas ideias mais criativas. ‘Ao completar a educaciio formal, decidiu experimentar os prazeres da vida parisiense. Com o tempo, acabou entediado e decidiu levar uma vida mais calma, dedicando-se ao estudo da matematica. Aos 21 anos, serviu como voluntario nos exércitos da Holanda, da Bavaria e da Hungria e ficou conhecido como um espadachim ousado e habilidoso. Adorava dangar sogar e provou ser um talentoso jogador por causa de sua habilidade matematica. Descartes tinha atrac4o por mulheres estrébicas e, com base nisso, ele oferecia a seguinte explicagao As pessoas que se apaixonam. Ble escreveu: “Quando era menino, ea me apaixonel por uma garota um pouco estrabica, e por muito tempo depois disso, sempre que via alguém com estrabismo, eu me apaixonava por ela... Assim, se amamos aiguém sem saber por que, podemos assumir que essa pessoa, de algum modo, € seme- jhante aquela pessoa que amamos anteriormente, mesmo que nao saibamos exatamente motivo” (Descartes, apud Buckley, 2004, p. 107-108) Sua tinica ligacdo amorosa duradoura foi um romance de trés anos com uma mulher holandesa, Helene Jans, que lhe deu uma filha, Francine. Descartes adorava essa crian¢a © ficou com 0 coragdo partido quando ela morreu em seus bracos aos 5 anos de idade. Um bidgrafo escreveu que Descartes ficou desconsolado, passando pelos “mais profundos sentimentos de arrependimento que jamais sentiu em sua vida" (apud Rodis-Lewis, 1998, p. 141). Descartes continuou solteiro até o final de sua vida. Descartes tinha profundo interesse em aplicar 0 conhecimento cientifico as questOes pré- ticas. Pesquisava meios para evitar 0 embranquecimento dos cabelos ¢ tentou aperieisoar as manobras de uma cadeira de rodas para deficientes fisicos. Ele também antecipou a nocao de condicionamento em cachortos, cerca de 200 anos antes de Pavlov ter refinado seu conceito (veja no Capitulo 9). De acordo com um bidgrafo, Descartes, em 1630, contou a um amigo que “depois de chicotear um cachorto seis ou oito vezes ao som de um violino, seu simples som jé faz 0 cachorro chorar € tremer de medo” (apud Watson, 2002, p. 168). Durante o periodo em que serviu 0 exército, Descartes teve varios sonhos que muda- ram sua vida. Conforme seu relato, passou o dia 10 de novembro sozinho em um quarto com aquecedor, mergulhado em pensamentos sobre a matemitica e a ciéncia Acabou adormecendo e, no sonho, que mais tarde ele mesmo interpretou, foi repreendido pela sua ociosidade. O “espirito da verdade” invadiu a sua mente e convenceu-o a dedicar © trabalho da sua vida A proposta de aplicagao dos principios matemiaticos a todas as ciéncias, produzindo, assim, o conhecimento inquestionavel. Resolveu duvidar de tudo, 34 HistORIA DA PSICOLOGIA MODERNA principalmente dos dogmas e das doutrinas do passado e aceitar como verdade apenas 0 que tivesse absoluta certeza. De volta a Paris, mais uma vez achou a vida dispersiva demais, resolveu vender as Pry priedades herdadas do pai e mudou-se para uma casa de campo na Holanda. Sua necessidade certsolamento era tamanha que, em 20 anos, morou em 13 cidades ¢ em 24 casas diferentes, mantendo em segredo 0 endereco, revelando-o apenas para os amigos mals intlmos, com quem mantinha correspondéncia frequente. Parece que sua tinica exigencia ¢* ficar proximo de uma igreja catélica romana e de uma universidade. De acordo com um Didgrafo, o lema de Descartes era: “Vive bem aquele que vive bem escondido” (Gaukroger, 1995, p. 16). Um biégrafo mais recente descreveu Descarte nessa fase de sua vida como uma pessoa de grande autoestima e de enorme ambicéo... um homenzinho orgulhoso, nervoso, egoista. Dogmatico a respeito de seus pontos de vista, considerava todos os que iecordevan dele como equivocados ou simplorios. Era descontiado, facilmente ofendia- se e ficava entaivecido e demorava para se acalmar, Insistia que ndo se deixava afetar pelos ataques pessoals, mas jamais esquecia um insulto, um menosprezo ou uma ofensa (Watson, 2002, p. 165-188) Descartes escreveu muitos trabalhos relacionados com a matematica € a filosofia, € sua crescente fama chamou a atenc&o da jovem princesa Cristina, da Suécia, na época com 20 anos, que Ihe pediu para ministrar aulas de filosofia. Embora relutasse muito em abrir mao da liberdade e da privacidade, ¢ temesse acabar falecendo na Suécia, sempre teve grande respeito pelas prerrogativas reais. Em 7 de setembro de 1649, Descarte subiu a bordo de um navio, “vestido com seu terno verde e novo, com colarinho branco, luvas enfeitadas de renda, peruca encaracolada, © botas com bico virado para cima,” preparado para a viagem de um ‘més para Estocolmo (Watson, 2002, p. 290). Sua aparéncia, no entanto, nao agradou a corte real. A rainha insistia em ter suas aulas as 5 da manh, em uma biblioteca pobremente aquecida, du- rante um inverno extremamente rigoroso. Descartes escreveu aum amigo, dizendo: “Nao me sinto feliz aqui e a tinica coisa que desejo é paz e tranquilidade” (apud Rodis-Lewis, 1998, p. 196). Para outro amigo ele escreveu: “Acho que no inverno 8 pensamentos das pessoas daqui congelam, como a agua” (apud Watson, 2002, p. 304). Cada vez mais fragil Descartes suportou as madrugadas € O frio intenso por quase quatro meses até contrair pneumonia. Faleceu em. 11 de fevereiro de 1650. ‘Um interessante relato pés-morte de um homem que, como veremos mais adiante, dedicou boa parte do tempo a estudar © problema da relacao entre a mente € © corpo diz respeito ao ocorrido com o proprio corpo. Apds 16 anos da morte de Descartes, seus amigos decidiram que os despojos deveriam retornar a Franca, Enviaram a Suécia um caixao que, no entanto, era pequeno demais para conter os restos mortais. Assim, as autoridades suecas decidiram cortar a cabega e enterré-la até que outras providéncias fossem tomadas. Enquanto os restos mortais de Descartes eram preparados para a viagem de retorno casa, o embaixador francés na Suécia resolveu guardar um souvenir cortou-lhe o dedo indicador direito. © corpo, agora sem a cabeca e sem um dedo, foi sepultado em Paris em meio a muita pompa e cerimOnia. Algum tempo depois, um oficial do exército sueco desenterrou o cranio de Descartes e guardou-o de lembranga. Durante 150 anos, ele pas- sou de um colecionador sueco para outro até ser finalmente enterrado em Paris. Os cadernos € os manuscritos de Descartes foram enviados para Paris depois da sua morte. Mas 0 navio afundou pouco antes de atracar e os papéis ficaram submersos por CAPITULO 2 AS INFLUENCIAS FILOSOFICAS NA PSICOLOGIA 35 exes dias, O trabalho de restauragao levou 17 anos para tornar possivel a publicacao des- ses documentos. As Contribuicées de Descartes: o Mecanicismo eo Problema Mente-corpo © trabalho mais importante de Descartes para 0 desenvolvimento da psicologia moderna si a tentativa de resolver o problema mente-corpo, uma questdo controversa durante séculos. Ao longo de varios perfodos, os intelectuais discutiam como a mente — ou as qua- sdades mentais — podia ser diferenciada do corpo e de todas as demais qualidades fisicas. 4 questao basica, simples, porém enganosa, é esta: a mente € 0 Corpo, isto ¢, 0 universo ‘ental e o mundo material sao de naturezas distintas? Por milhares de anos os intelectuais acotaram posturas dualistas, com 0 argumento de que a mente (a alma ou 0 espirito) € > corpo sao de naturezas diferentes. Entretanto, a aceitagao da posiciio dualista levanta sutras questdes: se a mente ¢ 0 corpo sdo de naturezas diferentes, qual ¢ a relacdo existente entre eles? Como interagem? Sao independentes ou influenciam-se mutuamente? Problema mente-corpo: a questao da distingao entre as qualidades mentais e fisicas ‘Antes de Descartes, a teoria predominante afirmava ser a interagdo entre a mente © corpo essencialmente unilateral. A mente era capaz de exercer grande influéncia sobre 0 corpo, enquanto este exercia pouco efeito sobre a mente. Um historiador sugeriu = seguinte analogia para a explicagdo dessa visdo: a relacao entre o corpo ¢ a mente é semelhante Aquela entre a marionete € seu manejador. A mente € como 0 manipulador puxando as cordas do corpo. Descartes aceitava essa posicao; na sua visdo, a mente e o corpo eram realmente com- sostos de diferentes esséncias. Todavia, ele se desviou da tradicao ao redefinir essa rela- .o. Na teoria da interacao mente-corpo de Descartes, a mente influencia o corpo, mas a “nfluéncia deste sobre a mente era maior do que se acreditava. A relagao nao era apenas snilateral, mas miitua. Essa proposta, considerada radical no século XVII, teve grande percussao na psicologia. Depois da publicacdo da teoria de Descartes, varios estudiosos contemporaneos che- <2cam a conclusdo de que nao podiam mais sustentar a no¢do convencional da mente

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