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Olhar o medo nos olhos, para justificar a esperança

Bruno Reis

Aprendi com Juarez Guimarães, contra convicção antiga, que sim é possível – ainda que
para poucos – preservar simultaneamente tanto a absoluta sinceridade intelectual no
espaço público quanto o disciplinado engajamento em uma organização política. No texto
que, honrosamente, fui convidado a debater, uma vez mais Juarez nos exibe a sua habitual
– e peculiar – mistura de uma integridade intelectual sem concessões ao oportunismo e
um engajamento público explícito com uma causa política. Desta vez, num tom um pouco
acima de outras intervenções recentes, Juarez se volta com franqueza e arrebatamento
contra as opções de política econômica do governo que defende, e a cuja constituição
dedicou uma boa parte de suas energias ao longo da vida.

Contudo, modestamente, discordo. Antes de mais nada, é preciso ponderar que as razões
da orientação da política econômica de Lula são políticas, mais do que econômicas.
Quando Lula é eleito Presidente da República, o PT – com crescimento eleitoral
ininterrupto desde sua estréia em 1982 – já é grande o bastante para ser, sob alguns
parâmetros, o maior partido do Brasil (tem a maior bancada na Câmara dos Deputados, e
também o maior número de deputados estaduais espalhados por todo o país). Mas ainda
não cresceu o bastante para alcançar maioria no Congresso Nacional, e sequer a coalizão
que lidera no segundo turno – embora instável, esticada até o limite para abrigar um
bando heterogêneo de descontentes com Fernando Henrique – chega a alcançar esta
maioria.

Num cenário como esse, é razoável partir da premissa de que – na ausência de sobressaltos
e turbulências excepcionais – o tempo joga a favor do PT. Não faria sentido tentar uma
pirueta de alto risco que ameaçaria pôr tudo a perder em caso de fracasso, em vez de
ganhar tempo, consolidar a posição no governo do país e paulatinamente assenhorear-se
do poder e pôr em prática planos de alcance mais largo. E portanto uma estratégia política
paciente, que minimize riscos, configura-se como a melhor opção para o partido a médio
prazo. Em primeiro lugar, porque o partido já é poderoso o bastante para ter muito a
perder com uma eventual derrocada grave, e já desfruta de uma posição suficientemente
forte para evitar o risco desnecessário de apostas muito altas. Em segundo lugar, porque a
mera conquista da Presidência abre-lhe a perspectiva de expansão eleitoral considerável no
futuro: se perderá inevitavelmente votos na esquerda que há muito eram seus (isso sempre
acontece quando a esquerda sobe ao poder), ganhará numa extensão muito maior – com a
ajuda, por exemplo, da Rede Globo – votos conservadores de gente que nunca havia votado
no PT antes.

Se tivesse sido um Ciro ou um Garotinho o eleito, o Presidente precisaria correr riscos para
acumular capital político, numa jogada de tudo-ou-nada destinada a criar-lhe o espaço
necessário para governar – ou perder tudo. Se fosse Serra, teríamos um presidente
suficientemente encravado no centro, no establishment político já constituído em governos
anteriores, para eventualmente permitir-se maiores ousadias na reorientação da política
econômica ou mesmo no combate a elites políticas regionais há muito instaladas. Depois
do episódio da desmoralização da candidatura de Roseana Sarney no início da campanha
presidencial de 2002, com minha forte preferência por moderação política, eu costumava
brincar com o próprio Juarez que eu havia resolvido votar no Lula – em nome da
governabilidade... E que se alguém quisesse reorientações drásticas da política econômica,
ou combate aguerrido às oligarquias, era melhor votar no Serra, pois o Lula não poderia
dar-se a esses luxos.

E aqui nos aproximamos de um ponto relevante. É preciso cuidado para resistirmos à


tentação de hiper-interpretarmos em termos ideológicos ou doutrinários o significado
político de resultados eleitorais. É verdade que Lula obteve uma vitória retumbante,
daquelas que os americanos chamam de “landslide victory”: em todos os estados menos
um, em todos os estratos de renda, em todas as faixas etárias etc. Felizmente. Pois, dada a
história política do Brasil, mandatos presidenciais concluídos são antes a exceção que a
regra, e a alternância no poder, a circulação de elites implicada na ascensão de Lula
exigiria uma vitória bastante expressiva para justificar expectativas otimistas quanto a seu
desfecho. De fato, acredito que Lula precisava mesmo de um oba-oba, um efeito bola de
neve para vencer. Nas circunstâncias em que se deu a eleição, Lula foi “ungido” como
presidente, e passou a se comportar como tal, muito antes de a eleição acabar. Uma eleição
embolada desfavoreceria Lula, até mesmo pelos justificados temores que não tanto Lula,
mas antes a própria história política do Brasil despertaria em espíritos mais conservadores
na hora de digitar seu voto na maquininha. Não por acaso, Lula insistiu em aliar-se ao
inexpressivo (e pouco recomendável) PL, apenas para poder exibir em sua chapa um
empresário – ainda que desprovido de estatura política. E, ainda no início da campanha,
Lula comprometeu-se por escrito, de maneira inequívoca, com uma gestão conservadora
da economia. Agarrou-se de maneira consistente, sem um instante de vacilação, ao
figurino do Lulinha Paz e Amor, com um ar de bonomia conciliatória que o colocou
permanentemente acima das disputas “menores” em que se digladiavam os demais
postulantes.

Tudo isso contribuiu, sim, para a sua vitória, e deve qualificar de maneira importante a
idéia de que ela tenha significado de maneira inequívoca uma rejeição eleitoral do modelo
econômico em vigor sob Fernando Henrique Cardoso. Poderá ser alegado que Lula já era
favorito nas pesquisas antes de emitir qualquer desses sinais mais ostensivos de
moderação, mas o próprio Lula já havia àquela altura experimentado por diversas vezes a
enorme distância que separa o favoritismo da vitória. A moderação por ele exibida durante
a campanha foi crucial para erigir em torno de si a blindagem necessária para evitar que
algum adversário atropelasse na reta final da campanha, e assim permitir a formação da
onda que o levou à vitória incontestável de que ele tanto precisava. Por exemplo, quando
Ciro Gomes subiu nas pesquisas em meados de 2002, setores conservadores intuíram com
razão que experimentar Lula comportava claramente um risco menor do que a incógnita
representada por Ciro – aspecto eloqüentemente ilustrado por editorial do Estadão
publicado naqueles dias.

Para além das decisões estratégicas tomadas por Lula, vale acrescentar aqui que o sucesso
de José Serra em impor-se no embate com Tasso Jereissati pela candidatura do PSDB
favoreceu de maneira importante – talvez decisivamente, dadas as circunstâncias – a
candidatura de Lula à Presidência. Para além do fato secundário de tratar-se de um nome
“interno” demais ao governo FH, um ministro crucial de um governo já desgastado por oito
anos no poder, a debilidade crucial da candidatura de Serra residia na fratura que ela
produzia na coalizão de Fernando Henrique, trocando o relativamente coeso e organizado
PFL pela federação de caciques agrupada no PMDB. Ainda no primeiro turno, a maioria
dos diretórios estaduais do PMDB já apoiava Lula. Fosse Tasso o candidato, de saída
mantinha-se a coalizão com o PFL e imobilizava-se Ciro Gomes. E, depois, quando
ocorresse com ele a ocasional ascensão que Ciro experimentou, dificilmente se poderia
esperar que recuasse abruptamente como Ciro – já que teria a seu lado, além do governo, a

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integridade dos recursos eleitorais do PFL, a começar pelos do Maranhão e da Bahia,
mobilizados em favor de Lula contra Serra. A eleição se tornaria mais indefinida, o que por
si só já complicaria as perspectivas de vitória de Lula.

É um fato raramente notado que Fernando Henrique Cardoso foi o único candidato à
presidência do Brasil desde Dutra em 1946 a obter mais de 50% dos votos válidos no
primeiro turno da eleição. E ele o fez duas vezes. Nem Getúlio em 1950, nem Jânio em
1960 teriam conseguido evitar um segundo turno se ele existisse na época. Isso não
necessariamente quer dizer, é claro, que FH fosse melhor presidente que qualquer outro.
Mas sim indica que ele estava solidamente instalado na Presidência. Que ele liderava uma
coalizão política extremamente forte, plasmada pela estabilização monetária bem-
sucedida, a congregar um amplo – e poderoso – espectro de apoio na classe política e na
sociedade, capaz de atravessar as clivagens básicas herdadas do regime militar (Marco
Maciel era o seu vice) e de captar com muita eficiência, por duas vezes, os votos necessários
para guindar tranqüilamente à Presidência um político até então relativamente
desconhecido do eleitorado. Não é à toa que ele pôde tornar-se, junto com Juscelino
Kubitschek, um dos dois únicos presidentes civis do Brasil que, tendo sido eleitos
democraticamente em pleito competitivo, cumpriram integralmente os respectivos
mandatos e passaram a Presidência a sucessores igualmente eleitos de maneira
democrática. A ironia, afinal um tanto emblemática, e que acaba mesmo por coroar o êxito
institucional de seus mandatos, é que ambos passaram a faixa a opositores.

Claro. Além do José Serra, do desgaste natural dos oito anos de FHC, e da estrutura,
organização e militância do PT, que sempre fizeram de Lula um contendor de peso pela
Presidência, é preciso reconhecer que o desempenho frustrante da economia sob Fernando
Henrique foi ingrediente crucial do desgaste de sua popularidade ao longo do segundo
mandato – abrindo a porta a um desafio afinal bem-sucedido de um oposicionista
tarimbado em busca da Presidência. Mas, se os resultados da presidência FH se haviam
revelado afinal decepcionantes, eles passaram longe da turbulência de seus antecessores
imediatos – e o Presidente tendeu a obter de parcelas expressivas da população, ao longo
de todo o período, uma avaliação comparativamente favorável em relação a seus
antecessores: particularmente, como é óbvio, no que toca ao controle da inflação. A
recuperação relativamente rápida de sua imagem, que temos testemunhado, é forte sinal
disso (em mais uma semelhança com o caso de JK: sistematicamente tratado como ladrão
durante o mandato, canonizado como encarnação de nossos “anos dourados” após deixar a
Presidência).

Ao fim, a ironia trágica em que Lula se viu afinal enredado deriva, paradoxalmente, de algo
que em outros contextos poderia ser um trunfo para um governante oriundo da oposição a
seu antecessor: o mau estado em que se encontravam vários dos principais indicadores
econômicos ao se encerrar o governo de Fernando Henrique, com dólar hipervalorizado,
fuga de ativos e – o mais importante de tudo – inflação em alta bastante expressiva. Pois,
embora estes indicadores se tivessem deteriorado nas mãos de Fernando Henrique,
permanecia bastante disseminada a percepção do então Presidente como uma espécie de
“mal menor”, e a perspectiva da ascensão de Lula projetava sobre muitos (dentro e fora do
Brasil) a sombra da volta da inflação – e até mesmo da instabilidade política. Se o embate
entre o medo e a esperança foi tão vocalizado durante a campanha, não foi por outro
motivo: o medo, afinal, existia. E se no horário eleitoral gratuito Lula tratou de acenar
entusiasticamente com a esperança, nos bastidores da mesma campanha e na “Carta ao
Povo Brasileiro” o que se buscou foi basicamente controlar a propagação do medo,
sobretudo junto a alguns atores econômicos cruciais.

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Nessa tarefa, um homem da sua equipe ganhou rapidamente visibilidade: Antonio Palocci,
coordenador do programa de governo, prefeito licenciado de Ribeirão Preto, que fôra
chamado a integrar a equipe após o assassinato de Celso Daniel. A virtude de Palocci me
parece ser sobretudo a de exibir sangue-frio sob pressão: neófito na política federal,
designado para pilotar um dos maiores cortes de gastos governamentais da história do
país, sob fogo cerrado de seus próprios aliados, numa conjuntura de recessão econômica e
desemprego em alta, não se ouviu da boca do Palocci, ao longo de todos esses meses, uma
mísera declaração que criasse embaraços ao governo de Lula. Nenhuma manchete se criou,
nenhuma crise prosperou em virtude de alguma frase infeliz, algum deslize verbal do
Ministro da Fazenda. Algo que infelizmente não se pode dizer do comportamento do
tarimbado José Dirceu, por exemplo, quando os holofotes se voltaram para ele nas
semanas que se seguiram ao caso Waldomiro Diniz.

Sabemos portanto como, no cenário de sua ascensão, Lula foi forçado a ser mais realista
que o rei, e a praticar uma ortodoxia que nunca seria esperada dele, e nunca seria cobrada
de um candidato mais ao centro. Mas, como sempre diz o próprio Juarez, cautela demais
também é um risco – se os indicadores de crescimento e emprego não melhorarem,
sobrevirá cedo ou tarde um desastre político. E é verdade. Mas, neste momento exato, há
vários sinais de que a estratégia começa a render os primeiros frutos: o desemprego afinal
recuou cerca de um ponto percentual na última mensuração pelo IBGE, metas de
cobertura do Bolsa-Família foram superadas em cinco capitais, o balanço de pagamentos
tem tido desempenho excepcional, e se insinua no horizonte para este ano a conjunção a
que recentemente aludia Henrique Meirelles na Veja: pela primeira vez em muitas
décadas, estamos diante da perspectiva de crescimento sem inflação ou endividamento
público. Certo, isso talvez não seja por si só a garantia de prosperidade e justiça que todos
queremos. Mas, no quadro das nossas agruras fiscais e do comprometimento da
capacidade de investimento público no Brasil já há mais de 20 anos, ninguém pode
duvidar de que se trata de uma boa notícia. Tudo correndo bem, é bastante provável que
haja alguma reorientação paulatina da política econômica: cenário novo, política nova. Ou
mesmo que alguma parte das boas medidas que preconiza o Juarez em vários temas acabe
implementada – o que seria importante particularmente no que toca às necessidades
prementes de regulamentação do mercado de crédito e da atuação do Banco Central. Só
que será em vão que alguns esperarão que qualquer reorientação venha a ser anunciada, ou
mesmo admitida, pelo Ministro da Fazenda. Pelo simples fato de que qualquer anúncio
dessa natureza propiciaria movimentação especulativa que debilitaria a posição do
governo. Ele vai continuar a declarar, com o mesmo tom de voz monocórdio de sempre, as
platitudes habituais: que o governo está fazendo o que sempre fez, não cogita mudanças,
apenas reage adaptativamente às circunstâncias etc. etc. etc.

A política econômica é onde espreita o diabo. É ali, mais que em qualquer outra função
governamental, que se manifestam mais claramente os sintomas da dependência estrutural
do estado frente ao capital. Os graus de liberdade para inovação são muito estreitos. As
conseqüências dos erros, às vezes, largas e duradouras. E, portanto, a tolerância frente a
erros graves tende para zero. Tudo isso produz uma forte tendência a uma aproximação
conservadora da condução da economia. Sob democracias estáveis, são raríssimas as trocas
de governo que se fazem acompanhar de reorientações drásticas da política
macroeconômica. É muito mais fácil encontrarmos, em vez disso, mudanças de ênfases nos
assuntos externos, reorientações nas prioridades de diferentes políticas setoriais etc. (a
semelhança com os pontos que se costuma saudar como novidades do governo Lula não é
mera coincidência).

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A irônica exceção talvez sejam justamente os Estados Unidos, que são grandes o bastante
para exportarem para o mundo todo os eventuais efeitos perniciosos de seus experimentos
macroeconômicos, assim diluindo os malefícios produzidos sobre a própria economia
americana. Por sua vez, a criatividade dos social-democratas suecos foi recentemente
evocada como contra-exemplo positivo por José Luís Fiori em entrevista à Folha, em
contraste com o governo Lula. Mas, em março do ano passado, em palestra na FGV do Rio,
Adam Przeworski citava extensamente as manchetes dos jornais durante os primeiros anos
de governo social-democrata na Suécia, nos anos 30: basicamente, acusavam o novo
governo de trair seus princípios e não fazer nada de novo na política econômica... Como
muitas outras coisas grandes, processos de mudanças sociais são mais visíveis se
contemplados de longe.

Do ponto-de-vista da posição onde se encontram hoje Lula e o PT, há, entre todos os riscos
possíveis, um que decididamente eles não podem correr, se é que pretendem ter ocasião de
exercer uma influência duradoura sobre o quadro nacional: o de serem derrubados, ou
politicamente desmoralizados, em seu primeiro mandato no comando do governo federal.
Como vimos, o PT já é hoje o maior partido do país em número de deputados (estaduais e
federais), além de ocupar a Presidência da República. E continuará a crescer. O tempo,
portanto, corre a favor do partido. É claro, ele já não é o mesmo de 1980. E mudará mais.
O mero crescimento de sua representatividade já se encarrega, em larga medida, de torná-
lo mais heterogêneo. Mas permanece sendo um partido com vínculos profundos com o
movimento sindical e outras organizações políticas “de base” espalhadas por todo o
território nacional. Para usar a metáfora da “Belíndia” do Edmar Bacha, eu não me
atreveria a dizer que o PT fala com naturalidade em nome da nossa “Índia”, mas antes,
talvez, de uma “baixa Bélgica”. Ainda assim, a atuação do PT tem produzido efeito salutar
sobre a organicidade de nosso sistema de representação política, tendo mesmo produzido
certo efeito benigno sobre a organização de alguns de seus rivais.

Talvez isto soe horrorosamente conservador para muitos, mas – além de promover a
realização de nossos melhores sonhos coletivos – a política tem uma outra função, pelo
menos tão importante quanto a primeira: a de evitar a concretização de nossos piores
pesadelos. Felizmente, nunca nos contentaremos apenas com esta última, mas de fato
nosso eventual sucesso em evitarmos o pesadelo dos golpes de estado e da violência
política será condição preliminar, necessária ainda que não suficiente, para a realização de
nosso sonho comum de uma sociedade mais justa e equânime. É justo reconhecer que, sob
o aspecto da pacificação político-institucional, nosso modesto experimento institucional
ensaiado ao longo dos últimos 20 anos já é o mais bem-sucedido de nossa história.
Olhando a cena política brasileira de hoje, tenho vivido renovada esperança de que nossos
netos possam olhar para trás e dizer, com mais confiança do que nós, que seus avós
fizeram a sua parte, deram a contribuição possível, modesta que fosse, para a construção
de um país digno de todos os seus habitantes. O governo Lula (política econômica incluída)
não me tem dado motivos para desanimar dessa esperança. Pelo contrário.

(Julho de 2004.)

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