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Muitíssimo honrado com o convite feito pela turma, quis falar esta noite
– dada a natureza do rito que aqui vivemos – algo que dissesse respeito tanto
ao exercício da nossa profissão quanto à felicidade que todos nós tratamos de
perseguir e esperamos alcançar em nossa existência.
É claro, porém, que a sentença não chega a dizer que somente será feliz
aquele que sofrer injustiças (o que seria um claro absurdo), mas algo mais
sutil: que aquele que pratica injustiças é ainda mais infeliz do que aquele que a
sofre. A frase continua contra-intuitiva, mas já parece merecer um exame mais
cuidadoso.
Pois todos nós, ao longo da vida, várias vezes nos deparamos admirados
com a serenidade tranqüila dos homens justos. Daquela pessoa cujo equilíbrio
nem o pior dos revezes parece capaz de abalar. Que pode até inflamar-se,
determinada, na consecução de um propósito, mas que preserva zelosa
consistência interior, que lhe propicia a paz necessária para dormir tranqüila
todas as noites, aguardando sem sobressaltos o drama do dia seguinte.
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conhecerá mais um dia de paz, não importa quanto sucesso alcance
continuadamente em seus cálculos.
Assim, a pessoa feliz será aquela que preferirá sempre se manter fiel a si
mesma e à sua regra de conduta, mesmo ao preço de expor-se ao risco de
sofrer com a injustiça alheia.
E falo aqui de dever profissional num duplo sentido. Não apenas numa
defesa unilateral, arrogante talvez, do recurso corriqueiro ao senso crítico (que
se deve sempre exercer), mas também num sentido mais fundamental,
sobretudo auto-crítico. Refiro-me ao dever profissional do rigor no método,
condição necessária para todo exercício ético da nossa profissão.
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Já aprendemos a duras penas que o estabelecimento da verdade será
sempre precário, contingente. Mas nem por isso podemos abdicar da sua
busca. Ela nos define. E, exatamente por sua precariedade, se a busca da
verdade é nosso único compromisso, nossa primeira obrigação é a dúvida. A
começar pela dúvida quanto a nossas próprias crenças, juízos, premissas,
valores – e sem descurar da dúvida quanto às razões que nos acostumamos a
apresentar para sustentá-los.
Não vou me apressar aqui a oferecer saídas para esse dilema. (Talvez
elas não existam mesmo, e tenhamos de viver com isso.) Em vez disso, quero
apenas sublinhar que, tomada a sério essa dificuldade, não tem mais qualquer
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cabimento a figura do cientista social demiurgo, do intelectual arrogante a
formular novos mundos na cabeça e a liderar a sua implantação sobre o
mundo existente.
Contudo, nesse mundo tão complexo que nos foi dado viver, quando a
estrutura da sociedade tende a tornar-se tão opaca ao homem ocupado a cada
dia em manter-se vivo e a promover a felicidade daqueles que ama,
poderemos certamente ajudar nossas coletividades a contornarem muitos
males, a evitarem os caminhos das grandes catástrofes, a promoverem da
melhor forma possível os nossos sonhos. Mas apenas se dotados do devido
escrúpulo e do árduo rigor a que ele nos obriga. Da modéstia quanto a nossas
habilidades e da humilde disposição para servir o gênero humano que dela
decorre.
Sejam felizes.
Muito obrigado.