Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Eu não sabia antevê-lo àquela altura, mas aquela reunião e aquela eleição
permaneceriam emblemáticas de minha carreira como adjunto. Pelos dez anos
subseqüentes, eu me debateria insoluvelmente entre imperativos e impulsos
contraditórios, dividido penosamente entre minha auto-percepção como intelectual pelo
menos potencialmente produtivo, os deveres administrativos junto à instituição que –
afinal – me pagava os salários, e a absorção instintiva e irresistível da paternidade. Eu,
que havia sido até ali acima de tudo um estudante, precocemente admitido na carreira
docente aos 28 anos enquanto finalizava os créditos de meu doutorado, chegava enfim –
tardiamente – à vida adulta. A história do meu período como adjunto é, sob vários
aspectos, a história do meu amadurecimento. Amadurecimento profissional, sem
dúvida; mas, acima de tudo, amadurecimento pessoal.
Meu querido colega Juarez Guimarães costuma dizer – meio jocosamente, meio a sério
– que a idade da maturidade são os 37 anos. Tendo-me tornado adjunto aos 32, e
encontrando-me agora às portas dos 43, o meu trigésimo-sétimo aniversário situa-se
quase exatamente no meio desse decênio (e, veremos adiante, divide-o de fato em dois
períodos bastante distintos).
Durante os quase quatro anos letivos transcorridos desde a minha admissão como
professor assistente, em fevereiro de 1994, eu havia acima de tudo me ocupado em
terminar a tese (escrita entre janeiro de 1996 e agosto de 1997), e me absorvido em
ganhar confiança na sala de aula. Hoje vejo como um luxo inimaginável deixar-me
absorver quase inteiramente, como de fato o fiz em 1994 e 1995, com as aulas que dava.
Mas, nesses primeiros anos, de fato não conseguia me permitir entrar em sala de aula
sem hiperprepará-la antes, detalhando por escrito o roteiro de cada exposição e
mergulhando em pesquisa bibliográfica sobre o tema de cada sessão. Era de fato um
prazer, e aprendi muito nesse período. Aprendi pelo investimento exploratório feito, é
claro, mas também pela cristalização de idéias que o mero esforço de verbalização
sistemática em sala de aula propicia ao professor. O aprendizado desse período
encontra-se exposto na minha tese de doutorado: embora ela tivesse sido concebida
inicialmente como um estudo empírico, transformou-se irresistivelmente num esforço
de exposição sistemática de idéias por um jovem professor em busca de sua própria
identidade intelectual. Mas, tese de doutorado à parte, minha produção intelectual, nessa
época, conheceu o início de um longo período de paralisia.
Até ser admitido na carreira docente da UFMG, na virada de 1993 para 1994, eu era um
doutorando precocemente produtivo, para os padrões da época. Pelas boas graças de
Luiz Werneck Vianna (cujo seminário sobre estudos marxistas contemporâneos eu
passara a freqüentar em meados de meu primeiro ano no Iuperj) eu vi pela primeira vez
meu nome impresso como autor de um texto acadêmico, publicado na “Série Estudos”,
interna ao Instituto, no início de 1990 – apenas um ano depois de minha admissão como
mestrando em ciência política. No mesmo ano, Werneck me solicitou também um
comentário a ser publicado na revista Presença, que ele então editava. No ano seguinte,
aos 26 anos, eu estreava na revista Dados, com um artigo sobre classes sociais e ação
coletiva que foi recentemente, mais de quinze anos depois, foi (mal) traduzido para o
espanhol e publicado no México. Também em 1991 publiquei uma resenha de um livro
de Claus Offe na revista Pesquisa e Planejamento Econômico, do IPEA – igualmente
traduzida para o espanhol e publicada, ainda em 1993, por um veículo de divulgação
científica do governo alemão. Quando fui admitido no quadro docente da UFMG, já
tinha submetido dois novos artigos, afinal publicados, um em 1994, pela revista Nova
Economia, do Cedeplar/UFMG, e outro em 1995, novamente pela revista Dados, do
Iuperj. Ainda em 1994, em meu primeiro ano como docente, tive outro trabalho aceito
como capítulo de um livro que o DCP fez publicar, organizado por Antonio Mitre, em
memória de nosso saudoso Carlos Eduardo Baesse. Embora eu jamais tenha me
acostumado inteiramente com a idéia de textos publicados, materializados de forma
vinculada a meu próprio nome (há algo de mistificador nisso...), a verdade é que a
publicação rotineira começava a parecer natural. Apesar da necessidade que então se
impunha de me retrair um pouco para mergulhar na tese, eu não podia imaginar que
minha admissão à Universidade inauguraria um interregno de novas publicações que
duraria até 2001, e que a produção acumulada até ali constituiria, até hoje, metade de
minha produção publicada. Mas foi o que se deu, de fato.
Meu perfil de estudante tido por talentoso, capaz de absorver, processar e, digamos,
regurgitar inteligentemente algumas considerações sobre a literatura a que eu era
eventualmente exposto favoreceu, num primeiro momento, minha produtividade – mas
mostrou-se pateticamente insuficiente para lidar de maneira eficiente com as exigências
cotidianas das responsabilidades administrativas que a universidade pública nos impõe,
particularmente quando sobrepostas às responsabilidades familiares da paternidade.
Esse novo contexto exigia de mim uma condução muito mais ativa e seletiva de minha
agenda e meus compromissos, e portanto uma maturidade profissional que eu
simplesmente não tinha – e penosamente venho construindo nesses anos.
Até o fim de 1997, quando fui eleito coordenador, eu estava lecionando apenas a
terceira disciplina, todas optativas, no Mestrado, e havia me ocupado rotineiramente de
uma ou duas turmas semestrais de Política I no Ciclo Básico de Ciências Humanas –
além de uma turma de Introdução à Teoria Política no curso noturno de História no
segundo semestre de 1996. Não havia ainda lecionado na graduação em Ciências
Sociais – o que só faria, pela primeira vez, no primeiro semestre de 1998, com uma
disciplina optativa baseada em minha tese. Desde março de 1995, era representante
titular dos professores assistentes na Câmara Departamental do DCP, então ainda
existente. De fato, membro nato, pois – se não me falha a memória – éramos apenas
dois assistentes no Departamento, e a Câmara tinha duas vagas para a representação dos
assistentes. Entre abril de 1995 e abril de 1997, havia exercido uma suplência também
na representação dos professores assistentes junto à Congregação da Fafich, e assistido
a uma ou duas reuniões, sob a direção de Magda Neves. Era também suplente, desde
maio de 1995, da representação do DCP no Colegiado do Curso de Graduação em
Ciências Sociais, onde permaneceria – com participação ocasional – até maio de 1999,
após uma recondução, sob as coordenações sucessivas de Stael Rocha de Santana, Vera
Alice Cardoso Silva e Geraldo Élvio Magalhães. Desde novembro de 1995, havia sido
feito titular do Colegiado do Curso de Mestrado em Ciência Política, sob a coordenação
de Leonardo Avritzer, a quem eu agora sucederia. Havia orientado duas monografias de
graduação, ambas logo em 1994 (e, sugestivamente, ambas em Economia, onde eu
mesmo havia me formado apenas sete anos antes); uma bolsa de iniciação científica,
que consistiu apenas num roteiro de leituras em teoria política, feito em 1995, com
Geraldo Márcio Timóteo; e duas monografia PET: uma no curso de Ciências Sociais, de
Maria Abadia Silva, em 1995, e a outra novamente na FACE, agora no curso de
Administração, de Alexandre Mendes Cunha, que terminou, para minha alegria,
premiado na Semana de Iniciação Científica em 1996. Havia participado de três bancas
em defesas de tese de mestrado (a primeira delas, novamente, na Economia, em 1996, a
convite de Afonso Henriques Borges Ferreira); de igualmente três bancas de
monografias de graduação (quase ocioso esclarecer, a primeira delas também na
Economia, em 1994, a convite de William Ricardo de Sá); de uma banca para seleção de
bolsistas PET em 1994, duas bancas para professor substituto no DCP e, um mês antes
de minha eleição como coordenador, da primeira de minhas muitas participações em
bancas de seleção de candidatos a admissão no mestrado (em companhia de Vera Alice
Cardoso e Juarez Guimarães). Houve também uma malograda candidatura a subchefe
do Departamento em 1995, em chapa encabeçada por Mônica Mata Machado, derrotada
por Margarida Vieira e Michel Le Ven na única disputa pela chefia do DCP que
testemunhei até hoje. Ao encerrar-se o meu período como assistente, eu apenas havia
falado em público fora da sala de aula uma única vez, certa noite de 1994, para um
plenário quase vazio na Câmara Municipal de Caeté, a convite de Gustavo Gazzinelli, a
quem conhecera no comando do DCE em meus tempos de graduação, numa mesa
redonda dedicada às perspectivas políticas do Plano Real, em companhia de Hugo
Cerqueira, meu contemporâneo no curso de Economia, hoje professor da FACE.
Seja como for, desde bastante cedo, quando eu apenas começava a graduação, e tratava
de acompanhar o noticiário econômico (totalmente absorvido pelo problema da inflação
naqueles meados dos anos 1980), espantava-me na macroeconomia a sua pretensão de
não apenas compreender, mas sobretudo lidar com o universo econômico a partir de
grandes números que representavam agregações em larga escala de uma infinidade de
pequenas ações cotidianas cumpridas rotineiramente, muitas vezes distraidamente, por
cada um de nós. Convivendo com um processo já antigo de inflação crônica que apenas
começava então a se tornar agudo, eu ficava perplexo não com os sucessivos reveses da
política econômica daquele tempo, como talvez se possa imaginar, mas, ao contrário,
com o fato de que, bem ou mal, o governo pudesse de fato influir nos acontecimentos
(e, muito particularmente, na velocidade em que subiria o índice de preços) a partir do
manejo de alguns – relativamente poucos – instrumentos de política econômica: tarifas,
juros, câmbio, emissão de moeda, gastos diretos, para não mencionar a pura e simples
coerção estatal através da qual se impõem diversos mecanismos de controle de preços,
inclusive a política salarial e os direitos sociais e trabalhistas. Particularmente o
problema da inflação sempre me pareceu o mais interessante: constituído por oscilações
variadas dos preços de uma infinidade de minúsculas transações cotidianas
empreendidas por virtualmente todos os habitantes do país, o índice no entanto aparecia
como um dado para quase todos os agentes tomados individualmente – e apenas o
governo, por uma complexa pilotagem de uns poucos agregados macroeconômicos,
parecia ser (embora cada vez menos) capaz de influir em seu comportamento.
Estimulado por um rápido curso de metodologia das ciências sociais, lecionado em
1986 por Renan Springer de Freitas para alunos da Graduação em Economia, obtive
junto ao CNPq, ao final de minha graduação, uma bolsa de aperfeiçoamento para o
desenvolvimento de um projeto pomposamente denominado “Racionalidade Individual,
Contexto Institucional e Capitalismo: um plano de estudos”, em que eu pretendia
justamente atacar minhas perplexidades básicas sobre essa interação micro-macro,
debruçando-me sobre a apropriação feita pela ciência política e pela sociologia do
arsenal metodológico típico da ciência econômica, consubstanciada na lógica da ação
coletiva à Olson, no uso da teoria dos jogos – enfim, na “teoria” da escolha racional.1
Cheguei ao Iuperj em 1989, armado dos rudimentos dessa literatura, e prossegui nessa
linha de estudos durante o Mestrado em Ciência Política, integrando-me ao Laboratório
de Estudos Marxistas Contemporâneos (constituído sob a coordenação de Werneck
Vianna a partir da leitura de Making Sense of Marx, publicado por Jon Elster em 1985) e
freqüentando uma disciplina de introdução à teoria dos jogos oferecida por Maria
Regina Soares de Lima no primeiro semestre de 1990. Dessas duas atividades resultou
um trabalho sobre classes sociais e ação coletiva que – concluído no início de 1991 – foi
publicado na Dados e teve papel importante na definição dos rumos tomados por meu
doutorado.2 A aproximação com o tema das classes sociais a partir de Olson – e da
caracterização das classes como “grupos latentes” típicos – propiciou-me um retorno à
antiga curiosidade em relação ao fenômeno da inflação, agora associado ao tema do
conflito distributivo e dos efeitos supra-intencionais (“macro”) da dinâmica da
agregação de interesses individuais infinitesimais (“micro”), no enquadramento típico
da rational choice.
Ainda hoje entendo que esse argumento é basicamente correto (e ele se manteve
presente na tese), mas entre a defesa do projeto e a redação da tese operou-se um
progressivo deslocamento de ênfase. Preliminarmente, é preciso salientar que o
argumento incorpora dois níveis de análise: o primeiro – digamos, o plano “econômico-
formal” da análise – reside na especificação da estrutura lógica da situação típica dos
atores individuais imersos no conflito distributivo a partir da utilização de certas
estruturas de interação bastante elementares da teoria dos jogos (assim, afirma-se que o
conflito distributivo poderia ser genericamente descrito como um dilema do prisioneiro,
uma solução cooperativa estável deveria envolver sua transformação num stag hunt
etc.); o segundo plano – digamos, “socio-histórico” – está incorporado no recurso a
Huntington, e todo o substrato sociológico implicitamente presente em seu argumento
sobre as raízes da fragilidade institucional de países submetidos a processos acelerados
de modernização. Em sua forma original, o projeto defendido ao final de 1991 conferia
clara ênfase à composição do plano econômico do argumento, e o recurso a Huntington
servia apenas para fornecer – um tanto impressionisticamente – certas características
4
A partir do trabalho de Robert Putnam, Making Democracy Work, de 1993, que vincula o bom
desempenho institucional à existência de redes estáveis de cooperação no interior da sociedade, essa
relação ganhou fundamentação empírica muito mais sólida.
básicas do contexto nacional dentro do qual a inflação havia prosperado, e que tornava
sua remoção particularmente penosa.
Nos anos imediatamente seguintes, todavia, foi bastante fácil perceber que vários
colegas tinham tido a mesma idéia que eu, e a configuração do problema inflacionário
como um dilema do prisioneiro típico, com equilíbrio subótimo, começou a se tornar
um lugar comum – e, o que é “pior”, eventualmente configurado de maneira
formalmente mais rigorosa ou empiricamente mais fundamentada do que eu seria capaz
de fazer.5 Por outro lado, os aspectos do argumento até ali deixados em segundo plano
começavam a dar sinais de que mereceriam mais atenção. Contemplando a literatura, às
voltas com a redação da tese, era forte a sensação de estarmos todos basicamente
perdidos, tateando no escuro diante do objeto constituído pelas relações entre o sistema
político e o sistema econômico; ou entre democracia e mercados; ou, ainda, mais
especificamente, entre o processo de democratização e o desafio do ajuste estrutural das
economias. O “núcleo duro” dos argumentos residia quase sempre nos aspectos
econômicos, apoiando-se no recurso à teoria econômica – e foi inevitável a sensação de
que nossas principais lacunas estavam a demandar reflexão em teoria política.
5
O trabalho foi levado a cabo também por economistas, mas não só. Gustavo Franco, “Inércia e
Coordenação”, talvez seja até hoje o mais freqüentemente citado, mas Edward Amadeo, “O Desafio da
Estabilização no Brasil”, pp. 1-2, também classificou a nossa inflação como um “problema de ação
coletiva”. Para mencionar um não-economista, William Smith, “Reestruturação Neoliberal e Cenários de
Consolidação Democrática na América Latina”, pp. 211-6, também incluiu o comportamento free-rider
em políticas de estabilização em sua interpretação da lógica macroeconômica na América Latina.
Mesmo melhorias e refinamentos não tardaram a surgir: Leslie Elliott Armijo, “Inflation and
Insouciance”, contesta diretamente a caracterização de Franco da inflação como um problema de ação
coletiva, e destaca as conseqüências perversas do fato de que nem todos os atores importantes desejam a
estabilização; e William Ricardo de Sá, “Jogos Inflacionários e Jogos de Estabilização”, mostra que os
problemas relacionados à estabilização vão muito além da presença de “caronas”.
deslocar sistemas de dominação vigentes, em alguns casos, há vários séculos. Em
termos clássicos, os novos sistemas políticos, criados às vezes de maneira um tanto
abrupta, se vêem em dificuldades para lograr o reconhecimento de sua autoridade por
todos os cidadãos – assim, a crise política deflagrada pelo processo de modernização
não encontra solução automática na mera instauração de novas regras.
Pareceu-me claro que a questão decisiva era compreender as razões porque alguns
estados conseguiam reunir a autoridade necessária para governar e outros não.
Compreender a lógica que prendia alguns países no interior do ciclo perverso de
instabilidade institucional crônica, violência cotidiana e espasmos periódicos de franco
autoritarismo, sob estados que pareciam ser simultaneamente hiperdimensionados e
débeis, centralizadores e ineficazes. Identificar condições favoráveis à operação eficaz
de normas democráticas impessoalmente formuladas. Compreender os mecanismos
pelos quais as mesmas instituições podem funcionar melhor em alguns lugares que em
outros. Em suma, compreender alguns mecanismos condicionantes da carência daquilo
que à época se convencionou chamar de “governança”, para em seguida identificar
algumas conseqüências econômicas presumíveis dessa falta. Traduzindo para o jargão
de quarenta anos atrás, perseguir as conseqüências econômicas do “pretorianismo de
massas” definido por Huntington.
A tese ficou afinal dividida em quatro capítulos, acrescidos de uma breve conclusão. O
primeiro realizava o esforço de caracterizar de maneira tão clara e simples quanto me
foi possível o processo de modernização, evitando os equívocos mais comumente
apontados em seu uso, de modo a me propiciar uma “entrada” segura para o
desenvolvimento posterior do argumento. O segundo capítulo prosseguiu averiguando
as implicações da simples existência da modernização para as condições de exercício do
poder político. Fundamentalmente, sua tendência à centralização burocrática em estados
nacionais (e posterior internacionalização), bem como a paralela e paradoxal tendência à
democratização do exercício desse mesmo poder, que teve sua capacidade de coagir
enormemente ampliada ao longo do processo. Esses dois primeiros capítulos
compuseram a primeira parte do trabalho, que tomava a dimensão econômica – ou, mais
propriamente, material – do processo como variável independente e se perguntava sobre
seus impactos na organização institucional da sociedade, principalmente no que toca às
instituições políticas.
O último capítulo voltava-se sobre o caso brasileiro, buscando detectar a maneira como
os temas discutidos no restante do trabalho se manifestavam em nosso contexto, certas
vicissitudes características do nosso próprio processo de modernização, e os principais
desafios que se podiam previsivelmente divisar para os desdobramentos desse processo
num futuro próximo. Em linhas gerais, parecia-me que as restrições à operação de
critérios mercantis de alocação de recursos, em nosso caso, prendiam-se menos a
cuidados igualitários ou redistributivos, e mais a uma organização ainda um tanto
aristocrática, semi-estamental da sociedade brasileira – o que tornava o estado antes
veículo de perpetuação de desigualdades e privilégios que promotor de mecanismos
compensatórios às falhas de mercado. Eu me esforçava por evitar os termos
ideologicamente correntes dessa matéria, que presume um trade-off entre estado e
mercado, e tratava de postular que – ao contrário – a dependência recíproca entre ambos
no longo prazo tornava a expansão da competição no mercado e a impessoalização
institucional da operação do estado mutuamente dependentes, ao fim e ao cabo.10
9
Acrescido de uma valiosa (pelo menos para mim...) nota preliminar sobre o tratamento dado por Weber
ao conceito de “mercado”, esse capítulo foi depois publicado em artigo de certa repercussão na Revista
Brasileira de Ciências Sociais (anexo 1.3).
10
Com algumas pequenas reformulações, o capítulo dedicado ao Brasil foi mais tarde (em 2001)
encaminhado para publicação em nossa revista Teoria & Sociedade (anexo 1.1).
Acredito que este diagnóstico se mantém, e que mesmo a ascensão e sucesso de Lula o
corroboram, proselitismos ideológicos à parte. Uma política como o Bolsa-Família, por
exemplo, é perfeitamente consistente com uma concepção mercantilizadora das relações
sociais (o chamado “imposto de renda negativo” costuma ser endossado pelos
economistas mais liberais), menos tutelar, aristocrática, caritativa que a idéia de dar
comida aos pobres. Mais do que qualquer transformação da organização “estrutural” da
economia, Lula é um presidente empenhado em aumentar o padrão de consumo dos
mais pobres.11
1998-1999:
desventuras de um coordenador neófito
Após um primeiro semestre isento de encargos didáticos que o DCP me concedera para
que concluísse a tese de doutorado, minha indicação para a coordenação do mestrado
em dezembro, em sucessão a Leo Avritzer, já estava acertada desde a metade de 1997.
Com menos de quatro anos de casa, esse era um cenário que me atemorizava um pouco,
mas entendi o chamado como uma compensação justa pela dispensa de encargos que o
DCP me havia proporcionado. E decidi encarar o desafio com a lealdade que eu entendo
dever à instituição em que trabalho. De fato, já em novembro eu aceitei convites para
me vincular a duas iniciativas de natureza distinta das que me haviam ocupado até ali.
Primeiro, Solange Simões me convidou para, em nome do DCP, juntar-me a ela e a
Leonardo Fígoli para, sob a coordenação deste último, integrar a coordenação do
Laboratório de Metodologia de Ciências Sociais, criado poucos anos antes. Interessado
em metodologia, aceitei alegremente, vendo abrir-se uma porta para intensificar meu
contato com o Departamento de Sociologia e Antropologia (SOA), com que
compartilhamos a responsabilidade pelo Curso de Graduação em Ciências Sociais. Com
o tempo, a rotina do LMCS foi assumida basicamente por Leo Fígoli, mas a
convivência e o trabalho durante os primeiros tempos foi intensa, e propiciou-me com
Solange um contato que me tem rendido até hoje colaboração intermitente e distante,
porém estimulante e promissora.
Foi um desastre.
Contudo, minha rotina mudaria drasticamente a partir dali, e o fato é que – com boas ou
más razões – eu não fui capaz, naquele momento, de manter o comando sobre minha
vida profissional. Para além das agruras da coordenação, e do sentimento de vazio
intelectual experimentado após o intenso esforço de conclusão da tese, somados à
expectativa da inédita paternidade após oito anos de casamento, afinal consumada em
abril com a chegada da Laurinha, na mesma semana em que a deflagração de uma longa
greve me propiciou uma pouco usual (mas intensamente aproveitada) licença-
paternidade – tudo isso conduziu-me para longe das atividades intelectuais que haviam
ocupado quase exclusivamente a minha vida até os 32 anos de idade.
De fato, é preciso admitir que, mais do que a uma efetiva sobrecarga de trabalho, meus
males se deviam antes à minha habitual dispersão, com a qual eu apenas começava a
aprender a conviver sob uma rotina mais exigente. Aprendizado que segue,
penosamente, até os dias de hoje – mas, que tem sido sim, não obstante, um
aprendizado. Desapontado com a Coordenação, naquela época terminei por achar uma
válvula de escape temporária no lançamento, em novembro de 1998, de nosso Boletim
de Análise de Conjuntura Política, idealizado por José Eisenberg.
Claro, nem tudo foram problemas. Os anos de minha coordenação coincidiram com a
chegada de José Eisenberg ao DCP. Polêmico, irreverente, arrogante às vezes,
autoconfiante – e imaturo também, à sua maneira –, José Eisenberg agitou o
Departamento enquanto esteve por aqui. Foi meu subcoordenador durante a maior parte
do mandato, e hoje não estou bem certo se ele me ajudava ou se criava ainda mais
problemas. Mas era onipresente, e, empreendedor, assumiu rapidamente liderança
institucional que foi positiva enquanto durou, embora tendesse com demasiada
freqüência a incompatibilizar-se com colegas – e já estava em rota de colisão com
vários deles quando deixou o DCP, pouco depois da virada da década. Concebeu e geriu
o CEVEP (Centro Virtual de Estudos Políticos), que rapidamente disponibilizou no site
do DCP uma série bastante impressionante de produtos – particularmente se
considerarmos que àquela época a internet apenas engatinhava. O CEVEP morreu assim
que Eisenberg deixou o Departamento, mas o Conjuntura Política teve ainda uma
sobrevida sob o comando de Carlos Ranulfo Melo, e – mais do que qualquer outra
atividade do Centro – foi bem-sucedido em ampliar expressivamente a exposição
nacional do DCP.
A Congregação sob Vera Alice era, para o bem ou para o mal, uma experiência
envolvente. Cada liderança tem um estilo, que se manifesta de várias formas – mas em
poucas arenas esse estilo é tão visível quanto na forma como essa liderança conduz um
órgão colegiado. Sob a direção de Vera Alice, as reuniões da Congregação da Fafich
eram longas – e, em certas épocas do ano, chegavam a ter periodicidade semanal.
Embora isto certamente ajudasse a agravar minhas agruras daquela época, por outro
lado aumentava a exposição mútua dos membros da Congregação, e intensificou de
maneira positiva meus laços com a comunidade da Fafich. Como um docente outsider,
oriundo da FACE, até ali eu me identificava estritamente como professor do DCP, e a
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas era pouco mais que o lugar onde por acaso
ficava o meu Departamento. Isso começou a mudar naqueles anos, na Congregação e –
em escala menor – no colegiado informal de coordenadores de pós-graduação que vez
por outra tentava atuar concertadamente em prol da Faculdade, a que me referi antes.
É quase desnecessário dizer que, como de fato costuma acontecer com todo mundo, eu
mal sabia o que eram essas coisas. A função no comitê assessor da PRPq, que exerci de
setembro de 1998 a setembro de 2000, foi uma decepção. Talvez o único mérito da
experiência tenha sido a ocasião de travar contato com Paulo Sérgio Lacerda Beirão, na
época Pró-Reitor de Pesquisa. Estive com ele poucas vezes durante aquele período, mas
desde então guardo por ele uma simpatia gratuita, que seria inexplicável não fosse o
Beirão, até onde percebo, de fato querido por todos. Hoje é um colega no Conselho
Universitário, a quem sempre escuto com atenção, e cuja fala aguardo com expectativa.
Quanto ao trabalho no comitê assessor, consistia apenas em ir semestralmente à
Reitoria, apanhar uma pilha de projetos de bolsas de iniciação científica (PIBIC e
PROBIC), verificar – no mérito – a admissibilidade de cada um, e depois pontuar,
segundo uma tabela de pontuação pronta, os currículos dos orientadores proponentes.
Com base na pontuação de cada um, os projetos eram ranqueados – e ponto final.
Desconheço se o procedimento continua o mesmo (acredito que não), mas de fato
sentia-me um robô, pontuando currículos de colegas, e ficava imaginando se não
haveria um jeito de um programa de computador fazer aquilo sozinho. Ainda mais que a
pontuação de quase todos aqueles colegas era bem superior à minha...
Cheguei a temer que o projeto fosse desqualificado no mérito, como inadequado para a
iniciação científica, mas não foi o caso. Meu currículo é que não alcançou pontuação
suficiente para ser contemplado com uma bolsa. Como eu era do comitê e conhecia os
critérios, isso não chegou a ser uma surpresa – mas foi a ducha de água fria que bastou
para desmobilizar o time. Quase um ano depois, recebi um telefonema da PRPq me
informando que alguém havia desistido da bolsa, e que meu projeto era o primeiro
excedente. Porém, naquela época os projetos seguiam com o nome do bolsista já
designado – e, àquela altura, minha querida Valéria Paiva, a quem a bolsa se destinava,
já havia sido contemplada com alguma outra bolsa na Universidade. Como Cepik e eu
estávamos ambos no início de 2001 já com as cabeças em outros assuntos, agradeci a
atenção da PRPq e passei a bolsa adiante. Provavelmente terá sido melhor assim.
Lembro-me de que, designado para lecionar pela primeira vez uma obrigatória na
Graduação, numa época em que a Política I ainda era parte do Ciclo Básico, resisti em
seguir a rotina da época e começar por Maquiavel. Até por causa de uma disciplina
sobre a República de Platão que eu freqüentara com César Guimarães no Iuperj em
1990, eu me sentia incapaz de enquadrar devidamente a disciplina sem recuar até Platão
e Aristóteles – mesmo ao preço de efetuar depois um salto de quase dois mil anos
diretamente até Maquiavel. Não faltou quem me advertisse que os meninos não iam
entender nada, não iam gostar, que não ia dar tempo etc. Mas sempre achei, e continuo
achando, que o tempo, numa disciplina, é moldado pelo professor, e que um mesmo
conteúdo pode, em princípio, tanto ser exposto em duas horas quanto ocupar um
semestre inteiro. Não está escrito em pedra que você tem que levar x aulas para ensinar
sobre determinado autor. É sempre uma questão de se fazerem as inevitáveis escolhas
entre cobertura e profundidade, escolher seu enquadramento, a narrativa que irá
constituir a sua disciplina, e viver com as conseqüências, assumindo responsabilidade
pelas opções feitas. O resto é o costume, e nossas inércias. (Essa a grande importância
de professores jovens – e já percebo que estou deixando de sê-lo.)
Pois bem. Comecei a disciplina com duas semanas de Platão, recomendei que lessem
alguns livros selecionados da República, e o resultado, para minha surpresa, foi
espetacular. Muitos liam bem mais do que eu havia sugerido, e perguntavam por coisas
de que nem mesmo eu me lembrava mais. Diverti-me muito naquelas aulas, acredito
que eles também, e mantivemos o vínculo posteriormente, até mesmo na forma de um
roteiro de leituras sobre teoria e método que persegui no ano seguinte com um grupo
deles (anexo 10.2).
Qualquer que tenha sido a razão, o fato é que eu estabeleci um vínculo forte e imediato
com aqueles estudantes, que até hoje se manifesta num carinho muito particular pela
Graduação em Ciências Sociais. De maneira particular, Jorge Roque, Fernando Cardoso
e – muito especialmente – Valéria Paiva se tornaram, cada um à sua maneira, amigos,
camaradas, interlocutores mais ou menos regulares, com os quais até hoje mantenho –
dadas as restrições da correria habitual – contato afetuoso, ainda que menos regular do
que gostaria. Valéria cursou várias disciplinas comigo, tornou-se interlocutora habitual,
e veio mesmo, bem mais tarde, perto de sua formatura, a receber uma bolsa de iniciação
científica sob a minha orientação – agora para um projeto de pesquisa propriamente
dito, no âmbito do “Hubble Social”. Tentei também orientar-lhe algumas leituras de
textos metodológicos de Weber, mas suas leituras rapidamente superaram as minhas, e
eu me esforçava simplesmente por ser-lhe um interlocutor interessante. Assim ocorreu
também no que toca à sua monografia de graduação, defendida em fevereiro de 2003.
O período compreendido entre 2000 e 2001 constitui uma espécie de limbo profissional.
Já livre das exigências da coordenação de um curso de pós-graduação, convencido de
que eu não servia mesmo pra isso, mas ainda – no rescaldo da experiência – desprovido
de uma agenda específica de pesquisas que me motivasse, deixei-me, serenamente,
absorver por minhas atividades didáticas. Diferentemente dos primeiros anos de
docência, contudo, desta vez a absorção dizia respeito menos às aulas, e sobretudo às
orientações. Dão-se nessa época as defesas das primeiras dissertações orientadas por
mim: Eduardo Carvalho de Castro e Juliana Estrella Valladares (ambos oriundos de
graduações na FACE...) inauguraram a fila, em maio e dezembro de 2000,
respectivamente.
Houve nessa época uma personagem memorável, que ocupou parcela considerável de
minha vida acadêmica durante o período que vai do início de 2000 até dezembro de
2002. Rosmália Ferreira Santos foi peculiar em múltiplos sentidos. Conhecemo-nos
durante uma disciplina que lecionei num curso de especialização da Unimontes, em dois
fins de semana em Montes Claros, em março e abril de 1999. Talentosa, inteligente
como poucos, atrevida como ninguém mais (ainda que ocasionalmente confusa,
sobretudo no início do processo), candidatou-se ao nosso mestrado no fim do ano e,
provavelmente para surpresa dela mesma, passou (a banca foi a minha segunda, e teve
ainda Fátima Anastasia e José Eisenberg). Daí por diante me elegeu como orientador e
passou a exigir de mim orientação de fato, muito além da mera elaboração da
dissertação – que, por sinal, desenvolveu com grande autonomia, sem poupar de críticas
o próprio orientador, como observou meu ex-professor João Antônio de Paula,
admirado, durante a defesa. Cedi, meio divertido e meio intimidado, e discutimos
detalhadamente cada texto que ela produziu durante seu primeiro ano no mestrado. Foi
oneroso, num sentido mais superficial, quanto ao tempo empenhado. Mas preciso
admitir que a convivência com ela, severamente exigente e vigilantemente crítica, foi
um aprendizado também para o mestre, que foi forçado a aprimorar seu próprio auto-
conhecimento, para estar à altura da tarefa de tentar instruir aquela pupila ao mesmo
tempo tão interessada em exibir suas próprias qualidades intelectuais, tão sedenta por
aprender, e tão refratária a qualquer mistificação. Houve choques, e não foram poucos,
nem pequenos (ela permanece sendo a única estudante que já me fez perder a paciência
em sala de aula...). Mas acredito que se cimentaram com o tempo, para além de
idealizações recíprocas, a compreensão e o respeito mútuos num plano bastante
horizontal e fraterno. E os textos, sem dúvida, eram bons.
Na verdade, tudo se deu de maneira bastante casual. Quando a greve foi decretada,
preocupava-me – mais que a greve – o relativo esvaziamento do processo de sucessão
na diretoria da Fafich, que teria lugar nos meses seguintes. Com a notícia do início da
greve, temi pelo pior, já que era bastante provável que tivéssemos de eleger o diretor
ainda durante a greve – e nada estava encaminhado. Durante a complicada assembléia
que decidiu pela adesão da Fafich à greve (embora reservando-se expressamente o
direito de retirar-se dela se uma assembléia de professores da Fafich assim decidisse – e
com a exceção da Filosofia, que já havia decidido em assembléia departamental ficar de
fora da greve), pedi a palavra para falar também deste outro assunto, e convoquei uma
reunião das pessoas interessadas em discutir a sucessão na diretoria. A iniciativa era
bem ingênua, e foi, provavelmente, bastante inócua. Houve, de fato, um par de reuniões,
com uma dúzia de pessoas cada, e lembro que nelas teve certo protagonismo meu antigo
mestre Ricardo Fenati, da Filosofia, ex-vice-diretor da casa – e também João Pinto
Furtado, da História, que dali a alguns meses terminaria eleito, ele mesmo, para o
primeiro de seus dois mandatos consecutivos como Diretor da Fafich.
Seja como for, o detalhe relevante dessa história foi que, como puxador dessas reuniões,
fiquei como o “proprietário” de uma lista de endereços de e-mail. Quando, ao cabo de
umas duas semanas de greve, eu soube – como era previsível – que a última assembléia
semanal da Fafich não acontecera por ninguém comparecera, nem pensei duas vezes
antes de usar a lista para anunciar que eu proporia a saída unilateral da Fafich da greve
na assembléia da semana seguinte. Houve um certo rebuliço, e à assembléia seguinte de
fato compareceram algumas dezenas de professores. Perdi, mas talvez a proposta tivesse
ganho, se os professores da Filosofia não se tivessem declarado impedidos de votar.
Mas deixei claro que, de minha parte, estaria lá todas as semanas, e que recolocaria em
cada uma delas a minha proposta. Fui sistematicamente derrotado até o início de
novembro, mas consegui de fato fazer com que uma assembléia de professores da
Faculdade se reunisse, bem ou mal, quase toda semana. Em um par de ocasiões, fui
mesmo compelido pelos colegas e pelas circunstâncias a comparecer a contragosto a
duas assembléias gerais da UFMG, no auditório da Reitoria, cuja legitimidade eu
denunciava – e que me propiciaram, em seu costume da unanimidade, o teste do voto
solitário. Encorajado por Otávio Dulci, a certa altura tentei romper o isolamento em que
se encontravam os que compartilhavam a minha opinião na Fafich reproduzindo para
colegas Brasil afora o teor de algumas das mensagens que havia trocado na polêmica
interna. Minha caixa de correio explodiu de mensagens, e eu me senti na
responsabilidade de não deixar a peteca cair.
Escrevi dezenas de páginas, presumo. Minha opinião sobre o ciclo de greves que
começou no início da década de 1980 é muito enfaticamente negativa.
Independentemente dos detalhes que configuravam as circunstâncias em que se
deflagraram cada uma delas, e do drama específico dos acontecimentos que se
desdobraram no interior de cada uma, elas me pareciam muito claramente
autodestrutivas no longo prazo, no que toca ao alegado objetivo de defesa da
universidade pública. Muito fundamentalmente, parecia-me completamente
esquizofrênico o caldo de cultura vigente nas universidades públicas durante o círculo
vicioso grevista que prevaleceu durante vinte anos (menos mal que, pelo menos por
enquanto, deixou de prevalecer na UFMG depois de 2001): a universidade tinha de ser
pública, tinha de ser gratuita, tinha de ter qualidade, tinha de ampliar vagas, e ao mesmo
tempo fazíamos questão de viver às turras com todos os governos eleitos neste país –
encarregados, naturalmente, de manter a universidade funcionando... Suicida, não?
Empenhei-me on-line a um ponto que achei que teria uma úlcera (foi quase com
desapontamento que eu ouvi do meu médico, no fim do ano, a informação de que minha
saúde estava perfeita). Virei noites, e passei por períodos de uma ansiedade medonha –
que ainda foi agravada com o choque do 11 de Setembro, no meio da greve. Mas
preciso dizer que fui tratado com cortesia por todos aqueles com quem cheguei a
debater, e fui tremendamente encorajado por muitos que se reconheciam nos meus
pontos de vista. Ao fim, a empreitada foi sem dúvida pessoalmente compensadora,
ainda que politicamente inócua. Provavelmente teria sido mais fácil furar (ou ignorar) a
greve, ficando em casa e aproveitando o tempo pra outra finalidade, preparando-me
minimamente para os semestres posteriores, quando adviria fatalmente a completa
desorganização de nossos calendários. Desde a greve anterior, em 1998, já havia, de
fato, prometido a mim mesmo adotar mais ou menos essa postura quando viesse a greve
seguinte. Mas meu temperamento torna difícil deixar de cumprir à risca o preceito de
perfilar-me com uma decisão coletiva, mesmo tendo sido voto vencido na deliberação.
No caso de 2001 (assim como em 1998), eu já havia denunciado as assembléias gerais,
e anunciei várias vezes que não me constrangia desobedecê-las. Mas até para legitimar
essa postura, havia também declarado que me pautaria pelas decisões das assembléias
da Fafich. E me obriguei, assim, a mantê-las funcionando... Para além de qualquer ônus,
porém, a greve de 2001 me propiciou alguma têmpera para controvérsias públicas, e
confiança em minhas posições.
Em meados de 2001, esgotados por dois anos de trabalho ininterrupto, eles passaram a
bola de volta para os departamentos, em busca de quem os substituísse. O Departamento
de Sociologia e Antropologia designou Eduardo Vargas. Procurado, como sempre
vacilei, e interpus como condição para aceitar o encargo que meu amigo Marco Cepik
compartilhasse comigo a representação do DCP nessa tarefa, no mínimo como uma
espécie de adjunto meu. De longe o meu amigo mais próximo na época, vizinho de
porta e igualmente assíduo na rotina departamental, Marco Cepik era meu cúmplice
fundamental, parceiro e encorajador incorrigível para todas as horas. Eu estava
habituado à companhia dele, e a perspectiva de dividir com ele esse encargo deve ter
feito a coisa toda tornar-se mais palatável. Infelizmente, um ano depois Cepik já estava
de malas prontas para voltar para Porto Alegre, e eu – comprometido com Eduardo
Vargas – permaneceria co-editor da Teoria & Sociedade até 2005.
Hoje eu me inclino por acreditar que foi de fato um erro aceitar a função de co-editor,
em vez de simplesmente deixar a revista extinguir-se, se fosse o caso. Acredito que foi
sobretudo a consideração pelo esforço de Mitre e Tânia que me fez inclinar-me por
aceitar. Queridos amigos, dos raros entre nós que preservam a rotina de receber os
colegas em casa, ambos fazem muito – bem mais do que imaginam – pela qualidade da
vida social e profissional em seus respectivos departamentos. Depois do empenho deles,
eu não poderia simplesmente me recusar a colaborar.
Mas, desta vez pelo menos, de fato fizemos um bom trabalho. Se Mitre e Tânia haviam
salvo a revista da extinção, conferindo um fluxo rotineiro mínimo à sua operação,
Eduardo e eu a levamos à frente, obtendo financiamento do CNPq, e realizando uma
reforma gráfica que enquadrou a revista mais apropriadamente nos parâmetros habituais
das publicações profissionais existentes. Mudamos o serviço gráfico para uma editora
do Rio de Janeiro que nos produzia maior tiragem a um preço menor, e nos propiciava
maior circulação fora de Belo Horizonte. Ampliamos a abrangência profissional e
geográfica de seus colaboradores, tanto autores quanto pareceristas. E iniciamos a
publicação de alguns números especiais – que a certa altura ameaçaram engolir os
números regulares, mas que logramos manter dentro de certos parâmetros minimamente
objetivos. Eduardo era de fato o editor-chefe, encarregando-se do plano administrativo:
contato com editora, CNPq, financiamento etc. E eu atuava principalmente na cozinha
mais estritamente acadêmica: pareceristas, cartas, recusas, comunicação com autores
etc. Podemos nos orgulhar de haver-se evitado que a revista se tornasse apenas um
veículo para publicações da casa. Foi um prazer colaborar com Eduardo Vargas, tanto
por seu empenho quanto por sua isenção e correção pessoal durante todo o período.
Uma vez decidido que encaminharíamos determinada contribuição a parecer (em vez de
simplesmente agradecer e devolvê-la, delicadamente, ao autor), quebrávamos as cabeças
para escolher pareceristas cujas opiniões não conseguíssemos prever inteiramente –
evitando a todo custo que uma missão institucional viesse a ser apropriada por nós
mediante influência indevida sobre o perfil dos trabalhos publicados. Mas falhamos em
dar à revista a periodicidade necessária à sua admissão na Scielo. Acredito que a razão
para isso é simples: a edição da revista permaneceu o tempo todo – e permanece até
hoje – estritamente amadora. Durante a maior parte do tempo em que estive lá, a revista
era constituída por Eduardo Vargas, eu e um estagiário da Graduação em Ciências
Sociais, cujo pagamento era precariamente viabilizado por grupos de pesquisa ligados
aos departamentos – principalmente pelo CRISP, sob a condução de Cláudio Beato.
BU e ProGrad
Talvez isso soe desabonador para a Chefe da Biblioteca – mas nada poderia estar mais
longe da minha intenção. Pois Vilma Carvalho de Souza é a mais competente e
abnegada servidora (docentes incluídos) que eu encontrei nos quatorze anos de carreira
vividos desde a minha admissão em 1994. Nunca convivi com outra chefe na Biblioteca
da Fafich, mas vi a qualidade dos serviços da Biblioteca da minha faculdade melhorar a
cada ano ao longo de todo este período. Em mais de uma ocasião, soube que Vilma
comprara, com dinheiro do próprio bolso, livros que continham textos indicados em
editais de concursos internos da Fafich, apenas para não expor a Biblioteca ao embaraço
de não contar em seu acervo com obras indicadas por editais da própria casa. Pelo
menos uma vez, tratava-se de livro publicado pela própria UFMG.
Marco Cepik pode testemunhar que – em meus primeiros anos na UFMG, em meio a
devaneios sobre minhas aptidões (principalmente quando pensava a respeito do que é
que eu poderia, afinal, fazer de “útil”) – eventualmente cultivei a fantasia borgeana de
vir a ser, um dia, diretor de biblioteca. O contato com a atuação da Vilma, contudo,
rapidamente me persuadiu de que eu nunca poderia estar à altura dela. Tratei de me
comprazer, portanto, em tratar de ser útil a ela – isso foi certamente parte do cenário de
minhas atribuições enquanto eu exercia meu malfadado mandato como Coordenador do
Mestrado em Ciência Política.
Assim, diferentemente das hesitações habituais, reagi com naturalidade, quase com
alegria, quando Vera Alice me consultou sobre o lugar de suplente no Conselho Diretor
da Biblioteca Universitária. Levei um bom tempo, no entanto, para entender do que se
tratava. A princípio, achei que se tratava de algum órgão responsável pela gestão da
Biblioteca Central. Precisei ir à internet pra me informar sobre o organograma, e assim
descobrir que as bibliotecas das diversas unidades da UFMG subordinavam-se
tecnicamente a um órgão suplementar chamado Biblioteca Universitária, órgão este que
contava, à época, com um Conselho Técnico composto por pessoal do sistema de
bibliotecas, e um Conselho Diretor, enxuto, composto por quatro docentes e um
representante do pessoal técnico-administrativo do sistema – ambos presididos pelo
Diretor (habitualmente, pela Diretora) da Biblioteca Universitária.
Foi para uma suplência desse último Conselho que o meu nome foi indicado. E, nessa
condição, acredito que participei de apenas uma única reunião, se não me engano uma
reunião conjunta dos dois Conselhos, cuja pauta girava em torno da elaboração –
solicitada pelo Reitor, Francisco César de Sá Barreto – de um novo regimento para a
Biblioteca Universitária.
Eu deveria ter imaginado que aquela pauta era premonitória. Pois, meses depois, meu
titular (realmente não sei quem era, acho apenas que era alguém da FAE) teve de se
afastar para uma temporada no exterior, e eu fui efetivado como titular em setembro de
2001. Durante quase seis anos a partir dali, me vi mais ou menos permanentemente às
voltas com a tarefa de conceber, elaborar e depois tentar implementar um novo
regimento para o Sistema de Bibliotecas da UFMG.
Antes, porém, fui confrontado com uma das maiores ironias de minha história na
UFMG até aqui. Pois quando assumi meu posto como titular do Conselho Diretor, a
Biblioteca Universitária andava às voltas com a eleição de seu diretor. Após a
publicação de um primeiro edital, nenhuma chapa havia sido inscrita. Havia
preocupação no sistema quanto às repercussões de um eventual fiasco na eleição, com
certo temor difuso de eventual reversão da prerrogativa de eleição do diretor pelo
pessoal da Biblioteca. E nova chamada foi feita. Eu era exatamente o sujeito que sempre
foi cético a respeito das virtudes do sistema de eleição direta para o preenchimento de
cargos na Universidade – Reitor inclusive. Confrontado com a crise na B.U., na
condição de co-responsável por sua gestão, numa situação em que eu apenas
precariamente compreendia o que eu estava fazendo ali, e ainda por cima identificado
pelos demais como o professor de ciência política de plantão, percebi rapidamente que
eu era o cara que deveria dizer alguma coisa ali.
Ao longo dos meus seis anos de envolvimento formal com o Sistema de Bibliotecas,
ocasionalmente tive a impressão de que as pessoas de fora guardam certa desconfiança
em relação à Biblioteca Universitária, de um ponto de vista administrativo, como um
foco relativamente mais propenso a certo corporativismo estreito. Acredito que isso
guarde relação com o fato de a B.U. ser um órgão peculiar na UFMG, desprovido de
discentes ou docentes próprios, e assim ter o seu quadro profissional composto
exclusivamente por servidores técnico-administrativos. Devo dizer que, de minha parte,
não identifiquei ali nem mais nem menos corporativismo do que em qualquer outro
lugar da Universidade. Pelo contrário, encontrei um corpo técnico bastante
especializado, com grande conhecimento de causa e dedicação às suas
responsabilidades. Como qualquer outro lugar, é afetado por certa inércia burocrática
que tende a eternizar o status quo. Mas isso – como é fácil constatar – afeta igualmente
a todos nós, em todas as partes.
O sentido em que a ausência de docentes afeta a B.U. faz-se de fato sentir em aspecto
bastante distinto. E deriva do fato de que, até onde consegui perceber, a direção da B.U.
tende a sentir-se relativamente intimidada em instâncias como um Conselho de
Diretores, por exemplo, ao ter de operar num fórum constituído quase exclusivamente
de docentes. Infelizmente, a natureza bastante estamental da Universidade se revela em
uma lastimável presunção tácita, desprovida de fundamento formal, de que docentes são
hierarquicamente superiores aos demais. E isso, de fato, corrói o peso político que a
Biblioteca Universitária poderia (e deveria) ter.
Foi pela porta da Pró-Reitoria de Graduação que iniciei de fato minha vivência da
Reitoria. Nosso mandato iniciou-se ainda sob a gestão de Nagib Cotrim Árabe, no
mandato de César Sá Barreto, mas – exceto por minha atuação como parecerista ad hoc
para as bolsas de graduação no início de 2002 – transcorreu, em sua maior parte, sob
Cristina Augustin, no mandato da Reitora Ana Lúcia Gazzolla.
Menos mal que o zelo de meu colega Vinhosa me tenha poupado dessa experiência: a
Câmara de Graduação, por si só, já preenchia fortemente as atribuições mesmo de um
suplente, e a atuação ali se ramificaria em várias outras direções ao longo dos anos
seguintes. A mais emblemática dessas ramificações foi o Comitê Acadêmico da Copeve,
onde fui parar como representante da ProGrad, designado pela Pró-Reitora, Cristina
Augustin. No dia em que fui designado, tinha lugar na Fafich, à mesma hora, um
seminário sobre o projeto de pesquisa a que até hoje me esforço por me vincular de
maneira mais intensiva, o “Hubble Social” (ver adiante), com a presença de várias
pessoas de fora da Universidade. Foi a única vez em que, solicitado pelo Vinhosa,
cogitei seriamente enforcar a reunião. Afinal prevaleceu o peso do dever funcional, mas
lembro-me de partir inconformado rumo à Reitoria, por perder evento tão importante
para a pesquisa em que estava envolvido de tantas maneiras, àquela altura. Pois bem,
como se não bastasse, por mal dos meus pecados naquele dia constava da pauta da
Câmara a designação do representante da ProGrad na Copeve, que estava vaga já havia
anos. Quando chegamos a esse ponto, a Pró-Reitora perguntou à Câmara se alguém se
habilitava. Ante o silêncio, ela virou-se pra mim e disparou (eu estava bem à sua
direita): “Bruno! Você não quer ir para a Copeve, não?” Eu até tentei me evadir: “Bem,
professora, eu nunca mexi com vestibular...” “Ótimo!”, ela encerrou, naquele estilo
meio irresistível, anotou alguma coisa, e chamou o próximo ponto da pauta. Como
minha designação só foi confirmada pelo Conselho Universitário (ou CEPE, não sei
mais) quase um ano depois, meu mandato de três anos acabou sendo de quatro. De fato,
não foi particularmente oneroso, e serviu para enxergar por dentro uma máquina tão sui
generis quanto a Copeve. Mas a verdade é que, proveniente de um Departamento
desprovido de envolvimento direto com o Vestibular, eu freqüentemente me sentia um
peixe fora d’água, com pouca utilidade no Conselho. Talvez a melhor coisa de ter
atuado na Copeve terá sido ter podido conhecer Antônio Emílio Angueth, então o chefe
ali.
Para Einstein, 1905 foi o ano em que, em um par de artigos, ele realizou a fantasia
egocêntrica juvenil, comum a tantos de nós, de resolver uma série de problemas,
formular outros, chamar a atenção do mundo e dividir a história entre antes e depois de
si.
Para mim, 2002 foi o ano em que meu precário engajamento num projeto institucional
de pesquisa em minha faculdade me levou a um período de três meses em Ann Arbor, na
Universidade de Michigan, e em que dois amigos, José Eisenberg e Fernando Lattman-
Weltman, tiveram a mesma idéia: convidar-me a participar do Encontro Anual da
ANPOCS – onde, pelo canal menos previsível, criei vínculos que duram até hoje. Seja
como for, foi o bastante para dividir pelo menos minha própria vida profissional entre
antes e depois de 2002. Justamente o ano em que eu completei meus 37 anos, para
corroboração do Juarez.
BH e Hubble
O projeto de pesquisa que me levou a Michigan foi o chamado “Hubble Social”,
conduzido na Fafich sob a liderança e a iniciativa de Neuma Aguiar, do Departamento
de Sociologia e Antropologia. Admitida na UFMG em fins de 1996, em concurso para
uma vaga de professora titular, Neuma (a quem eu conhecera superficialmente no
Iuperj, anos antes) chegou com a proposta de que a Fafich abrigasse um programa de
treinamento intensivo em metodologia quantitativa para ciências sociais, nos moldes
(ainda que em menor escala) do programa internacional de referência na área, mantido
desde os anos 1950 na Universidade de Michigan, nos Estados Unidos. A idéia foi
recebida com um misto de surpresa, ceticismo e entusiasmo, mas a maior parte dos
colegas foi receptiva, e Neuma – com sua admirável capacidade de ação – foi em frente.
Apenas dois anos depois, um programa de seis semanas de duração (nosso querido
“MQ”) já recebia inscrições para sua primeira edição, que teve lugar na Fafich, da
última semana de junho à primeira semana de agosto de 1999. (Não me acostumo à
idéia de que já nos aproximamos de sua décima edição...) Assim como já havia
acontecido 30 anos antes, na própria criação do DCP, o apoio da Fundação Ford, então
chefiada no Brasil por Eddie Telles, foi decisivo.
Nos primeiros anos, tentei engajar-me nele como estudante: freqüentei disciplinas de
matemática, amostragem, regressão linear e logística, análise espacial etc. Contudo,
assim como médicos são maus pacientes, aprendi rapidamente que professores são
péssimos alunos – pelo menos quando são alunos na mesma casa em que lecionam.
Requisitado para múltiplos compromissos ao mesmo tempo em que tentava acompanhar
as disciplinas, abandonei a maior parte delas antes do fim, e aproveitei apenas
parcialmente o privilégio do acesso a um programa dessa natureza em casa.
Eu já havia trabalhado antes, entre 1991 e 1992, numa elaboração de questionário, como
assistente da pesquisa “Pacto Social e Democracia no Brasil”, coordenada por meu
próprio pai. Mas, afora essa experiência, não dispunha de treinamento formal em
elaboração de questionários. Não obstante, sentia-me à vontade com Solange, que
parecia apreciar as discussões comigo. Quando, no âmbito da colaboração com
Michigan, apresentou-se ocasião para minha ida para treinamento no programa de verão
(deles) em 2002, privilegiei as disciplinas dedicadas à montagem do questionário, mais
que à análise dos dados: “Desenho de Questionário”, “Cognição, Comunicação e
Análise de Survey” e “Avaliação de Desenho de Pesquisa” foram as minhas escolhidas
para o Summer Institute, entre junho e julho de 2002. Complementarmente, tratei de
viabilizar também minha inscrição no Summer Program mantido quase
simultaneamente na mesma Universidade, entre julho e agosto, pelo Consórcio Inter-
Universitário de Pesquisa Política e Social (ICPSR).
Retrospectivamente, a inciativa de constituir aquele grupo PAD é uma das coisas de que
mais me orgulho em minha vida na Universidade. Mas foi penoso. Zelar para que cada
um dos nove bolsistas se acertasse minimamente numa rotina satisfatória com o seu
orientador não foi fácil, e ocasionalmente exigiu de mim alguma criatividade na sintonia
fina. E a sala para os bolsistas, com que eu cheguei a sonhar no início, logo se mostrou
totalmente impossível. Com a aproximação do fim do ano, confesso que eu me
preocupava com o relatório que seríamos capazes de produzir. Sem motivo: marquei um
seminário final para o início de dezembro, em que cada bolsista deveria apresentar um
trabalho. Cuidei de aplacar a ansiedade deles, dizendo que bastava alinhavar umas dez
páginas de análise do respectivo módulo e estaria ótimo. O reultado foi um relatório de
cerca de duzentas páginas, de qualidade bem superior à que eu esperava, e que dava um
testemunho bastante impressionante do rendimento do projeto na formação daqueles
estudantes. Ao acertar-se que eu assumiria, em março de 2004, a coordenação da
graduação, passei de bom grado, com a sensação do dever cumprido, a coordenação do
grupo para Jorge Alexandre Neves, do SOA. O PAD completaria o triênio que o edital
lhe permitia e funcionou ainda em 2004 e 2005. A maior parte daqueles bolsistas foi
depois absorvida com sucesso em programas de pós-graduação Brasil afora.
Na volta, uma semana em Buenos Aires com a esposa, e a escala em Porto Alegre:
Cepik me convence a pedir bolsa ao CNPq, na forma de um projeto guarda-chuva para
minhas múltiplas atividades: assim, acrescentei a rationale de Durban a um artigo sobre
capital social e confiança escrito no início do ano sob inspiração dos debates em torno
da PRMBH, recém-publicado. E tinha ali de fato um roteiro decente de prospecção
científica – cujo preenchimento, claro, fica sempre aquém do esperado quando o
concebemos.
Tudo isso terá certamente produzido efeitos sobre os rumos do projeto por mim
proposto ao CNPq. Para o bem e para o mal, presumo. O certo é que, embora eu
descortine hoje um horizonte de trabalho e de produção intelectual para os próximos
anos com muito mais clareza e maturidade do que era capaz em 2003, essas novas
circunstâncias fizeram o projeto concebido então tomar rumos imprevisíveis, com
prejuízo para a rapidez da produção de resultados – ainda que, vá lá, não
necessariamente para a sua qualidade.
Os efeitos dessa roda-viva teriam sido, porém, muito mais graves, não fosse o
excepcional trabalho dos bolsistas que tive o privilégio de orientar durante o triênio,
contemplados sucessivamente com bolsas de iniciação científica pelo CNPq. Fabrício
Mendes Fialho, André Drumond Mello Silva, Natália Salgado Bueno e, mais
recentemente, Tatiana Marcelino Goulart têm sido muito mais que auxiliares: são
colaboradores sem cujo concurso todo o meu trabalho dos últimos anos apresentaria
resultado ainda mais precário. Embora tenham sido sucessivamente contemplados com
a única bolsa disponível (Natália era, afinal, bolsista PET durante a maior parte do
tempo), de fato os três primeiros colaboraram comigo durante todo o período, e seu
entusiasmo, competência e seriedade profissional permitiram-me funcionar a maior
parte do tempo simplesmente como o parceiro “sênior” de uma equipe de pesquisa cujos
integrantes possuíam interesses profissionais complementares, porém autônomos, e
contribuíam de moto próprio para os rumos da pesquisa desenvolvida sob a rubrica da
minha bolsa de produtividade em pesquisa junto ao CNPq.
Trilhando as pegadas de meu artigo “Capital Social e Confiança: questões de teoria e
método”, publicado em novembro de 2003 pela Revista de Sociologia e Política, da
UFPR (no 21), Fabrício Fialho – originário da primeira leva de bolsistas do PAD, em
2003 – apropriou-se com autoridade do tema do capital social, dedicando-lhe uma
monografia de graduação que se ocupa de modo abrangente e arguto em discutir a
forma como aparece o tema na literatura corrente. Sociólogo de rara qualidade, tem
sido, também, um auxiliar direto imprescindível e incansável, que inúmeras vezes
socorreu-me de apuros diversos. Mais recentemente, já após sua admissão ao mestrado
em 2006, Fabrício tornou-se colaborador direto também em trabalhos cuja autoria
dividimos com Mario Fuks, buscando firmar parceria em assuntos de participação
política e opinião pública que – devido sobretudo a meus embaraços de agenda – ainda
não produziu os frutos esperados (ver anexo 3.2). Prepara-se, agora, para defender sua
dissertação de mestrado, sobre problemas relativos à operacionalização empírica do
conceito de participação política, ao mesmo tempo em que tenta viabilizar um estágio
de alguns meses na Universidade da Cidade do Cabo, com Jeremy Seekings, com o
propósito de estreitar os laços que unem os participantes do Hubble Social. André
Drumond trouxe à consideração do grupo o tema da raça como objeto empírico
pertinente para a investigação dos temas contemplados no projeto, e desde então temos
a ele dedicado boa parte do trabalho produzido, mesmo depois que ele já tinha se
distanciado do grupo, rumo a outros trabalhos. Natália Bueno simplesmente tomou para
si a agenda de pesquisa parcimoniosamente esboçada na rationale que fiz para Durban a
pedido de Solange (“The Assessment of Political Inequality in a Comparative Survey:
Some Preliminary Notes”). Traduzidas e aproveitadas logo depois em meu projeto
submetido ao CNPq, essas notas tornaram-se – para minha surpresa – referência
constante das preocupações acadêmicas de Natália, o que muito ajudou o grupo a
amadurecer teórica e empiricamente a problemática ali esboçada. Neste momento, não
obstante sua partida para mestrado em ciência política na USP sob a orientação de
Adrián Gurza Lavalle, Natália e eu ainda temos nos encontrado regularmente para
fazermos os últimos ajustes num paper escrito em co-autoria (“Deliberação,
Representação e Desigualdade Política”) que, apresentado no Congresso da ALACIP em
2006, será brevemente submetido por nós para publicação na RBCS (ver anexo 3.1).
Foi, de longe, meu pior e mais doloroso fiasco pessoal: como é que se explica uma coisa
dessas em casa? Quase mil reais mensais pela janela, por causa de um protocolo bobo,
fácil de ser feito a qualquer momento... Foi Danielle Fernandes, generosa, quem me
ofereceu a solução. Renarde Nobre estava se afastando da tutoria do nosso programa
PET do curso de ciências sociais, e ainda não havia um substituto. Ela insistia para que
eu me oferecesse, e eu realmente não tinha alternativa. Confessei aos bolsistas, depois,
que era pela grana que eu estava indo... Porém, de fato, tenho afeição especial pelo PET
(fui eu mesmo bolsista na FACE em 1984), e a tutoria tem sido um prazer, à parte os
inevitáveis pequenos aborrecimentos burocráticos. Assumi em maio de 2007, e pretendo
cumprir aproximadamente três anos, antes de me candidatar novamente a alguma bolsa
de produtividade junto ao CNPq: nem tão rápido que pareça estar fugindo, nem tão
devagar que pareça provocação...
Coordenador, de novo...
No dia seguinte, Vera Alice bateu à porta do meu gabinete. Falou-me de ótimas razões
particulares para não assumir. E me deu ótimas razões, bem objetivas, pelas quais
deveria ser eu o coordenador: eu era suplente da Câmara de Graduação já havia mais de
dois anos, e tinha trânsito e acesso próprio junto à ProGrad; era o professor do DCP com
melhor trânsito e inserção no SOA; e era, ao mesmo tempo, popular e respeitado entre
os alunos da graduação, tanto como professor quanto por iniciativas quanto o PAD. Foi
nocaute no primeiro assalto. Eu percebi instantaneamente que não tinha nada a alegar
em contrário. Eu poderia, é claro, simplesmente bater o pé. Dizer não quero e pronto.
Dane-se. Procurem outro. Não quero nem saber. Quero agora é ser pesquisador do
CNPq, a Universidade que se vire. Em suma, alguma criancice dessas. Mas esse não sou
eu. Diante do pedido da Vera, ou eu dava a ela de volta, com razões tão objetivas quanto
as dela, algum outro nome do DCP, ou então eu estava obrigado a aceitar. Tive de
admitir a possibilidade, falei que ia pensar, que íamos esperar um pouco pra ver o que
acontecia etc., mas intimamente eu estava tratando de me preparar para aceitar o fato,
inconcebível 24 horas antes, de que eu seria no ano seguinte o novo coordenador de
nossa graduação em ciências sociais.
Foi um contrapé. Eu tinha acabado de voltar à “ativa”, com dois artigos publicados em
periódicos naquele ano de 2003, e me via de novo sugado para uma responsabilidade
para a qual me sentia apenas precariamente preparado, e que certamente me drenaria as
energias durante o biênio seguinte. Quando o meu nome circulou, Fátima Anastasia –
num gesto pelo qual lhe agradeço – me procurou, disse que eu não tinha jeito pra essas
coisas, todos sabemos, e que eu não deveria aceitar. Agradeci, mas disse a ela que
simplesmente recusar não era uma opção: precisávamos encontrar um nome alternativo.
Fora isso, não tinha alegria com a perspectiva da coordenação, mas encarava como uma
responsabilidade que alguém tinha de exercer, e a Vera tinha levantado razões que me
tornavam opção natural.
Desde então, adotei pra mim o seguinte critério: a Universidade me paga os salários, e
funções administrativas têm de ser exercidas, segundo a regra atual, por nós, da carreira
docente. Então, não posso em princípio rejeitar liminarmente a idéia de nenhum encargo
específico. Mas estabeleci que não aceitarei reconduções, e nunca mais voltarei a
exercer alguma função que já tenha exercido antes, salvo alguma atuação em órgão
colegiado de que a minha eventual função venha a me fazer membro nato. Assim eu me
tornei avaliador institucional do INEP em 2006, e assim eu aceitei integrar a Comissão
de Sistematização do PDI na Diretoria de Avaliação Institucional de Reitoria em 2007.
Segundo o mesmo critério, aceitei a minha indicação por minha chefe Marlise Matos
para ser suplente de Paulo Henrique Ozório Coelho na representação da Fafich junto ao
Conselho Universitário. Da mesma forma, aceitei ser conduzido a titular pela
Congregação, e assim pleiteei assento na própria Congregação para melhor representá-
la. Mas não tenho qualquer intenção aceitar reconduções ou indicações futuras para o
Conselho Universitário. Élvio, encarregado oficial e ad aeternum da Sociologia para
uma série de encargos, se diverte com esse critério, e fica apostando comigo por quanto
tempo será que eu conseguirei sustentá-lo. De minha parte, tenho tratado de observá-lo,
e já renunciei por causa disso a uma indicação apressadamente consumada.
No fim das contas, de fato, um encargo como uma coordenação de curso é algo que
compromete inequivocamente a produtividade de pesquisa de um docente. Mas tenho
de admitir que o biênio 2004/2005 na graduação me foi bem mais leve que 1998/1999
no mestrado. Bem entendido, eu diria que a rotina cotidiana é mais pesada na
graduação; se o coordenador deixar de despachar de modo praticamente diário, o
serviço se acumula rapidamente, com conseqüências desastrosas. Mas eu me atreveria a
dizer que você tem menos dor de cabeça, menos dissabores, que na pós-graduação.
Parte disso se deve a uma maior padronização rotineira do fluxo de serviços da
secretaria: com quatrocentos alunos, não poderia mesmo ser diferente. Mas acredito
também que o fato de não comandar despesas (ou apenas despesas muito reduzidas)
alivia enormemente a pressão sobre o coordenador: os aborrecimentos em torno de
autorização e planejamentos de gastos estão entre as minhas piores lembranças da época
do mestrado.
Para minha surpresa, até logrei organizar um pouco algumas coisas, reduzindo
consideravelmente, com a ajuda da Cida e principalmente da Mônica, a confusão em
torno do acerto da matrícula a cada semestre. Contribuiu para isso minha inclinação por
fazer valer, de maneira um pouco mais estrita, as Normas Gerais da Graduação quanto
às matrículas, restringindo bastante os casos em havia disposição para flexibilizar as
regras e abrir exceções: adiar obrigatórias deixou de ser uma possibilidade
rotineiramente aberta para os alunos, e modificar a matrícula já feita, só por motivo de
força maior. Achei que haveria choro, ranger de dentes e imprecações, mas nem tanto.
Só é preciso paciência por parte do coordenador. Com cinco minutos de audiência e
explicações educadas, os estudantes invariavelmente se sentiam atendidos, mesmo que o
pleito em questão tivesse de ser negado. Alguns dos meus alunos mais antigos, mais
próximos, ocasionalmente se queixaram de que talvez eu tivesse sendo um tanto
burocrático, não? Mas quando eu retrucava que alguém tinha de ficar sem almoçar para
que lhes fosse facultado matricular-se e rematricular-se várias vezes durante o período
do acerto, eles tendiam a concordar – e pediam então que a oferta das optativas viesse
acompanhada de maiores informações, e eu procurava atendê-los, por minha vez,
pedindo aos colegas detalhamento crescente das disciplinas.
Em suma, foi até trabalhoso, sem dúvida, mas foi tranqüilo. E me deu uma visão
operacional da gestão de um curso de graduação que melhorou muito a qualidade da
apreensão que eu tinha dos temas da Câmara de Graduação. Na virada de 2004 para
2005, quando Cristina Augustin intensificou os trabalhos em busca de um fecho para a
atualização das Normas Gerais da Graduação, eu acabei sendo um dos mais falantes nas
reuniões, principalmente quando o tema era flexibilização curricular e formação
complementar.
A flexibilização
Sou um entusiasta da flexibilização desde que essa era uma idéia vaga sobre a qual
conversava com o Élvio nos corredores da Fafich, em meados dos anos 1990, recém-
admitido à carreira docente. Considero primorosa a resolução do CEPE que em 1998
disciplinou a matéria. Mas a implementação é crítica para o sucesso da iniciativa, e a
ProGrad nunca chegou a ter uma estratégia amadurecida para isso. Pior, diferentes
lugares da universidade entenderam coisas diferentes sob a designação da flexibilização.
Pior ainda: essas coisas diferentes ocasionalmente eram contraditórias entre si, e as
diversas iniciativas não raro sabotavam-se mutuamente. O melhor exemplo veio das
Engenharias. Naquela época, começou a generalizar-se por lá (até por determinação de
novas diretrizes curriculares vindas de Brasília) a presença de certa “carga de humanas”,
obrigatória, nas matrizes curriculares. O pessoal de lá começou a chamar essa iniciativa
de flexibilização, e a tal carga de humanas de formação complementar. E a ProGrad
sancionou a interpretação, sem dar-se conta de que essas diretrizes eram não apenas
distintas, mas eram mesmo (como se diz no futebol) uma “bola nas costas” da política
de flexibilização que a UFMG tentava implementar. Pelo simples fato de que em vez de
favorecer a adoção de currículos enxutos no que concerne a atividades obrigatórias e
propriamente flexíveis, aumentava a rigidez curricular com uma exigência a mais, de
natureza obrigatória. (E isso apenas no que toca ao aspecto formal, pra não entrar no
mérito de que – a meu juízo – a diretriz é profundamente equivocada por imaginar que
uma carga horária cursada em ciências humanas torna alguém um cidadão melhor ou
algo parecido. Essa é uma ilusão freqüente, que eu lamento constatar ser bastante
disseminada na universidade, mas faz uma caricatura lastimável da formação em
ciências humanas.)
Insisti nesse ponto inúmeras vezes, com uma veemência que estava a ponto de me
tornar uma espécie de desafeto do coordenador da Engenharia Civil, Roberto Márcio,
até que um dia a gente se encontrasse só os dois no saguão da Reitoria, por acaso, e aí
pudesse conversar um pouco com calma. Não tenho dúvida de que a intenção por trás
da “carga de humanas” é a melhor possível, mas tenho a convicção de que ela recorre ao
instrumento errado. No que toca aos propósitos por eles buscados, muito mais eficaz do
que forçar os estudantes de engenharia a assistir aulas de sociologia em que não estão
interessados seria, a meu juízo, instituir séries de conferências sobre temas variados,
valendo créditos mediante algum tipo de avaliação de aproveitamento. Caberia aos
colegiados dos cursos decidir se isso deveria ser obrigatório ou não, mas em todo caso é
muito melhor que matriculá-los em disciplinas de humanas que, afinal, querem formar
profissionais da área de humanas, e não – por favor – “bons cidadãos”. O estudante de
Engenharia deverá ser sempre perfeitamente bem-vindo em qualquer disciplina da
Universidade, no âmbito de uma política de flexibilização – mas somente quando ele
optar livremente por isso, em busca de uma genuína formação complementar por ele
escolhida.
O caso da Engenharia, porém, é apenas um exemplo – ainda que talvez o mais evidente.
A impressão que eu tenho é que, no entusiasmo pela flexibilização, por um tempo a
Câmara de Graduação pareceu acreditar que qualquer forma de “flexibilização” era
bem-vinda, e essa falta de clareza conceitual comprometeu, infelizmente, uma
implementação expedita da política. Isso ficou claríssimo quando Cristina Augustin
começou a reunir a Câmara toda sucessivamente (titulares e suplentes), para reuniões de
dia inteiro em locais como a Estação Ecológica do Campus ou o Museu de História
Natural no Horto (chegamos mesmo a nos deslocar todos para Diamantina e Tiradentes
em dois fins de semana), com o propósito de finalizar a adaptação das Normas Gerais
da Graduação ao novo marco. As primeiras reuniões foram penosíssimas, pois havia
várias compreensões diferentes, em cada ponto que dizia respeito à flexibilização.
Chegamos a passar um dia inteiro no Horto às voltas com um único artigo (longo, é
verdade), que dispunha justamente sobre a formação complementar.
Além de Antônio Emílio, Jacyntho Lins Brandão foi outra pessoa que conheci e aprendi
a admirar na Câmara de Graduação, e nessas reuniões sobre as Normas. Eu sempre tinha
votado “à direita” (que me perdoem meus candidatos...) nas eleições da Universidade, e
muito confortavelmente. Votara em Sá Barreto em 1997, e em Ana Lúcia em 2001.
Quando Jacyntho se lançou candidato e me convidou a aparecer nas reuniões pra
conversar, em questão de dias eu tinha um candidato a Reitor, e me vi pela primeira vez
(e talvez a última) engajado nos bastidores de uma campanha na Universidade. Digo
talvez a última porque, Jacyntho que me perdoe, mas realmente detesto o nosso
procedimento, desde 1985. Recentemente, até escrevi um pequeno mas veemente artigo
sobre isso em nosso Boletim da UFMG (anexo 6.6).
ABCP
Metodologia
12
Uma elaboração mais extensa das minhas opiniões sobre o treinamento metodológico na formação pós-
graduada em ciência política pode ser encontrada em Araujo & Reis (2005), “A Formação do Pós-
Graduando em Ciência Política”, que apareceu em coletânea preparada pela ANPOCS sobre a pós-
graduação em ciências sociais no Brasil.
seria atendido por nosso programa intensivo, muito melhor do que qualquer disciplina
obrigatória seria capaz de fazer.
Pois bem. Tateei um bocado em busca da forma exata desse meio-termo. Comecei por ir
em busca de uma série de temas teórico-metodológicos que me pareceram salientes:
após a aula preliminar sobre filosofia da ciência (que ainda está lá, afinal), vinham, por
exemplo, análise multivariada (no contexto de uma discussão sobre surveys), a
discussão de aspectos lógicos relevantes para a validação ou invalidação de resultados
em nosso trabalho, elementos (rudimentares, é claro) de estatística, problemas
metodológicos associados à escala temporal envolvida (“médio alcance” x “macro-
história”) etc. Tudo isso seguido por uma série de temas de natureza, digamos, meta-
teórica: a discussão da validação da explicação funcional, elementos da controvérsia em
torno da técnica da escolha racional em particular e da teorização formal de maneira
geral; e, mais rapidamente, discussões de método sobre análise comparativa e
comportamento eleitoral.
Depois de uns dois anos lecionando 60 horas-aula, a redução da carga horária para 45
horas (na prática, sua redução pela metade, já que nessa passagem ela caiu de 30 para 15
sessões) me fez ter que me virar pra acomodar minha montagem no novo formato.
Algumas coisas acabaram indo ao mar (aulas específicas sobre análise comparativa e
sobre aspectos técnicos do modelo espacial, por exemplo), mas a feição geral do curso
continuou fundamentalmente a mesma: um curso, afinal, sobre a lógica da validação
científica – e cada vez mais centrado na discussão do desenho da pesquisa, sobretudo
após a incorporação mais explícita, nos últimos anos, da discussão sobre desenho quasi-
experimental de pesquisa, tipos de validação e ameaças à validade.
No afã de montar algo realmente útil para os alunos submetidos à pressão de redigir
uma dissertação de mestrado, procurei sempre montar uma disciplina que se mantivesse
equidistante dos extremos, e perseguisse ao mesmo tempo os temas metodológicos que
me pareciam mais relevantes e/ou aqueles que eu me sentisse mais apto a enfrentar com
alguma qualidade (anexo 10.4, para uma versão recente do programa). O grande
problema era a avaliação. Eu tentava convencer os alunos a produzirem um texto que
fosse não um projeto (que é uma peça sempre “defensiva”, sempre uma defesa de uma
dada estratégia pré-escolhida), mas uma discussão sobre prós e contras de diferentes
projetos possíveis, diferentes possibilidades de perseguição da problemática escolhida
numa dissertação de mestrado. Afinal, eles estavam no primeiro semestre do mestrado,
e, pelo cronograma oficial, tinham ainda mais de seis meses para submeterem um
projeto a homologação pelo Colegiado. Mas não adiantava: por mais que eu me
esmerasse em explicar o que queria, o que eu recebia era, sempre, uma primeira versão
do projeto da dissertação.
O primeiro convite veio de José Eisenberg. Ele havia deixado o DCP rumo ao Iuperj
poucos anos antes (em 2000, creio), e antes disso éramos interlocutores habituais,
freqüentes e bastante amigáveis, ainda que com opiniões quase sempre divergentes.
Tínhamos a saudável disposição mútua de concordarmos em discordar sobre quase
tudo. E comprazíamo-nos com isso. Após sua ida para o Iuperj, Eisenberg tornou-se,
junto com Cícero Araújo, da USP (que se tornaria um de meus mais queridos parceiros
nos anos subseqüentes), coordenador de um GT na Anpocs sobre “República e
Cidadania”, que operou no biênio 2002/2003. Antes, porém, em 2001, teve lugar um
seminário temático com o mesmo título, que – como costuma acontecer – antecipou e
preparou o terreno para o GT subseqüente. No esquema comparativamente mais
informal (leia-se, menos informatizado) em que esses GTs operavam na época, coube-
me em 2001 a coordenação de uma das mesas do GT pelo simples fato de que eu estava
por ali para assistir à sessão, conversando, antes do início, com meu amigo coordenador.
Na mesa, debatida por Wanderley Guilherme dos Santos (coordenador pára-quedista,
fiquei aflito, mas não consegui me atrever a interrompê-lo quando estourou o seu
tempo...), o próprio Eisenberg apresentou um trabalho, intitulado “Para além dos
interesses: notas republicanas sobre a ética das virtudes”, cujo argumento me pareceu
ter implicações francamente autoritárias. Pois (como ainda hoje se pode recuperar do
seu resumo, em http://www.anpocs.org.br/encontro/2001/01st18.htm#12) ele
condicionava “a legitimidade de uma ordem política que se pretenda democrática” ao
“esclarecimento e articulação de virtudes cívicas que resultem em modelos de caráter
para o cidadão”, subordinando assim a legitimidade política dos interesses a um
inespecificado grau de virtude cívica, presumo, do interessado. Talvez eu seja
convencional demais, mas a tese simplesmente chocava minhas intuições mais básicas
sobre a política. Quando abriu-se o debate, não resisti à tentação de polemizar um pouco
(embora atendo-me ao teor de sua exposição, e evitando, de fato, pautar o debate pelos
adjetivos aqui utilizados), e alinhei reservas. Depois de alguma troca de ponderações, a
certa altura Eisenberg concluiu, enfático, com algo mais ou menos nesses termos: “a
ênfase específica na liberdade e nos direitos é algo que retarda, mais que favorece, a
emancipação humana”. Dei-me por satisfeito. Tínhamos concordado, mais uma vez, em
discordar.
Durante o mesmo segundo semestre de 2001 (não posso dizer na mesma época, porque
estávamos em greve no momento da Anpocs...), eu lecionava no mestrado uma
disciplina optativa sobre “Participação Política e Democracia Deliberativa” (anexo
10.6), que me havia sensibilizado para alguns riscos da desqualificação dos interesses.
Ouvir o Eisenberg reforçou essa cautela e cristalizou uma posição geral, digamos,
conservadora quanto a isso. Concebi naquele momento um artigo sobre democracia
deliberativa que procuraria apontar como ela tampouco se livra de problemas de
representação, produz tensões com o ideal participativo e – na falta da presunção da
unanimidade em algum ponto – absorve consigo todos os mesmos paradoxos que a
social choice aponta na decisão por voto. Depois de ouvir o Eisenberg, porém,
preocupava-me, sobretudo, a relativa desqualificação da legitimidade política do
interesse pessoal, que aparecia com clareza, por exemplo, também em textos de Joshua
Cohen. Provocado por essas teses, propus, no final de 2001, um paper sobre o tema,
mas enunciado em termos bem vagos, ao Marcelo Jasmin, então coordenador da área de
teoria na ABCP (eu nunca poderia imaginar então que eu viria a sucedê-lo dali a quatro
anos). Felizmente, a viagem para os EUA abortou o paper (seu resumo me parece hoje
patentemente imaturo), e foi somente a colaboração com Natália Bueno por ocasião de
um Encontro da ALACIP em 2006(!) que me fez afinal escrevê-lo. Neste momento, ele
ainda(!!) se encontra sob revisão (interrompida para a redação deste memorial), com
vistas a submissão para publicação na Revista Brasileira de Ciências Sociais, embora a
versão inicial incluída no CD do Encontro da Alacip já circule há algum tempo por aí.
Realmente, eu exagero.
Farejei encrenca. Era bastante óbvio que, como bom amigo, o meu caro Zé me armava
uma arapuca. Mas era também o tipo de arapuca que deveríamos ter a obrigação de
armar uns para os outros como acadêmicos. Eu tinha, afinal, objetado publicamente ao
paper dele no ano anterior; manifestado explícitas reservas quanto à ênfase em virtudes;
e ele, conseqüentemente, me oferecia o desafio de pensar não apenas sobre democracia,
mas mais especificamente sobre justiça, com todas as suas ressonâncias normativas
mais óbvias, sem conferir protagonismo teórico e conceitual a virtudes. Eu não tinha
mais como tergiversar, pois a própria dinâmica do debate implicitamente em curso (por
debaixo de todas as cordiais e sinceras amabilidades) durante o telefonema me
empurravam rumo a uma afirmação enfática do meu ponto. E, ademais, eu nunca tinha
ido a trabalho na Anpocs: não estava, portanto, em condições de me esconder, nem se
quisesse.
13
2º semestre de 1998 no mestrado (anexo 10.7), 1º de 1999 na graduação (anexo 10.8).
De fato, não queria. Fiquei felicíssimo com o convite. Após certo desconcerto inicial,
naquela noite mesmo (18 de março) escrevi a ele falando em “tentar brincar com as
virtudes da apatia, ou, num registro mais prudente, pelo menos com o ‘direito à apatia’
como conquista inalienável da civilização... ”. Imaginando amadurecer mais o resumo
antes de enviar (a matéria, afinal, era delicada sob múltiplos aspectos), procrastinei
como sempre. Próximo do prazo dado (15 de abril), enviei-lhe afinal um resumo: “Ir
para casa em paz: a economia das virtudes, e a apatia como direito” (anexo 1.6).
Apatia política, embora pouco estudada, era um tema sobre o qual eu tivera ocasião de
refletir, ainda que indiretamente, no esforço de orientação de Gildene Cristina Tomé,
que acabara de defender sua dissertação de mestrado, em dezembro de 2001. No início
da orientação, interessada genericamente em participação política, Gildene me fizera ver
como o campo era fundamente cindido entre estudos de comportamento eleitoral e a
literatura sobre movimentos sociais – com prejuízo para ambos que me pareceu então
evidente. Com a evolução da dissertação, sua curiosidade também sobre o reverso da
participação, a apatia (poder-se-ia dizer, mais precisamente, a abstenção) me levou a
algumas cogitações vagas na matéria. Casualmente, portanto, eu estava com algumas
idéias na cabeça sobre apatia: fundamentalmente, eu havia aprendido a respeitar a tese
de S. M. Lipset, segundo a qual certo grau de apatia política, mesmo não tendo de ser
vista como um bem em si mesma (e o sistema deve estar apto a processar devidamente
todas as pressões que surgirem), podia ser vista, dentro de certos limites, como sintoma
de que as coisas “vão bem”, e que as pessoas estão podendo ocupar-se mais ou menos
tranqüilamente de suas vidas no plano privado, interpelando assim com menor
intensidade, ou menor freqüência, o sistema político.
Exatamente nos dias em que concluí meu resumo, teve lugar um seminário, na Fafich,
promovido pelo grupo dos então chamados “repúblicos”. Preso a outros compromissos
(eis a rotina universitária...), não pude acompanhar senão uma interessante (como de
costume) exposição de Cícero Araújo, que se perguntava se a idéia do estabelecimento
de uma relação de clientela entre atores políticos não comportaria considerável poder de
vilificação da ordem política, pelo menos do ponto de vista de “um ideal republicano
elevado”. Como eu já andava fermentando coisas sobre o assunto, e minha própria tese
associava o mercado à democracia (embora não necessariamente à “república”), isso me
provocou, e escrevi ao Cícero depois, abrindo uma camaradagem que prospera até hoje:
“Não posso responder pelo ideal republicano elevado, mas parece-me que o clientelismo
constituirá um problema se operar de forma a caracterizar uma instrumentalização
unidirecional de uma parcela da população por outra, ou mesmo por uma pessoa (o
‘adulador da multidão’). Certamente, não podemos fechar os olhos para o fato de que
freqüentemente a relação se estabelecerá nestes termos. Mas nem por isso me parece
que o problema resida na relação de clientela em si mesma. Se, alternativamente, ela se
configura como genuína troca (horizontal, digamos) de ‘serviços’ entre atores ou setores
sociais distintos, não vejo porque seria ela necessariamente nefasta. Pelo contrário: se
houver motivos para ceticismo quanto às perspectivas de elevado envolvimento pessoal
recíproco entre os membros de uma politeia, então a troca de natureza mercantil (a
barganha em torno de interesses próprios, desconectada de qualquer confraternização
entre os participantes) tenderá a se constituir em elemento irrecusável de integração da
ordem política. Se acompanhamos Weber na caracterização da comunidade de mercado
como a forma por excelência de ‘socialização entre estranhos’, então faz perfeito
sentido pensar numa centralidade crescente da troca (portanto, de relações, em alguma
medida, clientelísticas) na estruturação da vida política, à medida que ‘crescem os
números’ e passamos a uma sociedade cada vez mais impessoal.”
Nas semanas seguintes troquei idéias sobre o republicanismo em geral e esse tópico
particular em reiteradas ocasiões, sobretudo com minha colega Marta Assumpção
Rodrigues, então no DCP. O debate com Eisenberg no ano anterior já me havia
cristalizado algumas reservas em relação pelo menos a algumas ramificações possíveis
do ponto de vista dito “republicano”, mas o esforço de desovar o resumo reforçara ainda
mais um ceticismo que eu já cultivava desde antes. Nas conversas com Marta, pude
elaborar e amadurecer um pouco mais ainda minhas próprias razões e detalhar – sob
forte encorajamento dela – a primeira parte, batizada de “histórico-sociológica”, do
argumento do paper. Embora eu não tenha ido para estudar teoria política, os três meses
passados em Ann Arbor, logo em seguida, me propiciaram o estímulo intelectual
necessário para decantar o argumento – e, sobretudo, me ofereceram (no curso de teoria
dos jogos dado por Mark Fey) notícia do teorema do “Swing Voter Curse”. Após o
espanto com a pertinência do resultado para o argumento que eu então ruminava, decidi
– não obstante as ponderações céticas de James Johnson, quanto ao impacto potencial
de um argumento formal junto a republicanos – que o incorporaria ao texto, na forma de
uma seção adicional, que expôs o que eu chamei o “argumento analítico-filosófico”.
Voltei de Ann Arbor, na segunda quinzena de agosto, com o artigo não redigido, mas
formalmente estruturado, pronto na cabeça. Tanto que, muito embora a série de
compromissos pendentes em decorrência de minha ausência do Brasil (incluída minha
estréia como professor de teoria dos jogos no MQ) tenha-me impedido de mergulhar
imediatamente nele, pude escrevê-lo num único fôlego, em dez dias, no início de
outubro – bem a tempo de levá-lo para ser lido na Anpocs. Lido, sim. Dada a
heterodoxia da construção e do argumento, percebi rapidamente que me perderia
completamente se tentasse expô-lo livremente sem um roteiro rígido. E percebi que esse
roteiro rígido deveria ser o próprio texto, que assim terminou – de maneira apenas
parcialmente consciente – redigido num estilo bem mais oral do que normalmente
acontece.
Embora o debate tenha sido frustrante (sempre o relógio, e também a impaciência das
pessoas por prosseguir a conversa com cerveja na piscina – agravada num grupo
formado por tantos amigos), pude perceber que o impacto foi grande. Durante dias,
pessoas que eu não conhecia me cumprimentavam, menos pelo mérito intrínseco do
argumento que pela quebra da rotina, a novidade etc. E embora (pra variar...) o artigo
fosse permanecer inédito ainda por cinco anos,14 ele circulou mais que qualquer outro
trabalho meu, até onde consigo estimar. Não que isso queira dizer qualquer coisa – mas
pelo menos Marcus André Melo, presente à leitura, teve a generosidade de adotá-lo
regularmente na UFPE, e agora ele apareceu “linkado” com certo destaque no
prestigioso site Bookforum (http://www.bookforum.com/online/2319), dando
testemunho da pertinência da estratégia da ABCP de publicar a revista em inglês.
Foi uma grande ironia. Após anos atormentado com a necessidade de eleger – entre
muitos interesses dispersos – um objeto em que eu me especializasse de modo a um dia
poder comparecer como igual em debates profissionais, acabei jogado no meio de certa
ribalta – conquanto modesta – de maneira totalmente fortuita, à revelia de qualquer
plano, escrevendo sobre tema de que jamais havia cogitado seriamente até meses antes.
A ironia se completa com o fato de que a leitura do artigo naquela tarde foi o último
contato intelectual formal que tive com José Eisenberg especificamente, ou com a
agenda de trabalho do grupo dos “republicanos” de um modo geral. A exceção
14
E ainda permanece inédito em português. Em 2007, ele acabou publicado em inglês (“Going Home in
Peace”), no primeiro número da revista eletrônica Brazilian Political Science Review, publicada pela
ABCP.
importante é minha ligação sempre mais forte, profissional e afetiva, com Cícero Araújo
– mas com ele colaborei no malfadado comitê da Capes para a avaliação dos programas
de pós-graduação em ciência política em 2004, no artigo sobre a formação do pós-
graduando em ciência política escrito sob os auspícios da Anpocs em 2005 (anexo 2), e
como uma espécie de “adjunto” por mim designado (e a quem recorro em todos os
apertos) para o exercício da coordenação da área de teoria política na ABCP, pela qual
respondo desde 2005. Quase sempre assuntos institucionais, portanto, bem mais que
interlocução intelectual genuína.
Controles Democráticos
Aceitei, claro (como eu já disse, não estava em posição de ficar recusando convites
dessa natureza), e acreditei, satisfeito, que estava assim cumprindo uma obrigação
profissional e, além disso, travando contato ligeiro com pessoas que eu veria apenas
muito ocasionalmente. E continuava pensando assim quando, na saída da sessão onde li
o meu artigo, dizia ao pessoal do GT República que infelizmente não poderia aparecer
no dia seguinte porque atuaria como debatedor num outro grupo na tarde seguinte.
Naquele momento, em contraste com o sentimento de satisfação pessoal que eu
experimentava em relação a meu texto, eu estava inseguro e um pouco ansioso quanto à
minha atuação como debatedor no dia seguinte: os papers me pareceram muito variados
entre si, eu não conhecia ninguém a não ser o próprio Fernando, eu não encontrava
senão tenuemente um fio da meada para minha própria intervenção, e – sobretudo – me
exasperava perder a tarde seguinte do GT República (onde eu poderia enfim saborear
um pouquinho os presumíveis ecos do meu próprio trabalho), para desempenhar um
papel precário, com forte sensação de improvisação, junto a um grupo de pessoas que
eu não conhecia, e que apenas raramente voltaria a me encontrar.
Como se dizia antigamente, ledo engano. Fui acolhido com uma generosidade
desconcertante. Encontrei entre aquelas pessoas uma camaradagem cordial, calorosa,
mais desarmada, espontânea e receptiva ao debate – e à crítica – que em qualquer outro
ambiente que eu já tivesse freqüentado. Ali, naquele dia, travei ou intensifiquei contato
com o próprio Fernando Lattman-Weltman; com o outro coordenador, Cláudio Couto;
com a outra debatedora da sessão, Inês Patrício; e com Paulo D’Ávila, autor de um dos
papers debatidos, que veio a se revelar – para minha grande supresa – o meu primeiro
leitor, ao me falar da importância que tivera em sua tese um artigo meu, publicado na
Dados em 1995, pelo qual eu tinha na época (e tenho até hoje) sentimentos
ambivalentes. Era um grupo incomparavelmente mais obscuro que o primeiro, liderado
que era não por Iuperj e USP, mas por CPDOC, PUC-SP, PUC-RJ e UFF. Mas fui
imediatamente seduzido e absorvido, e dele não me livrei até hoje. Convidado,
compareci a uma reunião do grupo no CPDOC (FGV-RJ), já em março do ano seguinte,
a propósito de uma visita de Adam Przeworski. Apresentei trabalho no Encontro de
2003, debatido por Rogério Arantes (então na PUC-SP, hoje de malas prontas para a
USP: desde o ano passado coordena comigo o grupo, e é um dos mais queridos amigos
e colaboradores que tenho na profissão). Eu havia prometido alguma análise sobre
dados da PRMBH, mas acabei levando à sessão um paper apoiado no projeto que eu
submetera ao CNPq naqueles dias, com vistas a uma bolsa de produtividade em
pesquisa (anexo 1.4).
Daí o nosso esforço de recuar, em 2007, até algumas matrizes disciplinares que
conformam nossa própria tradição disciplinar para reunir elementos necessários a essa
reflexão: a sociologia conforma originariamente a própria identidade da ciência política
acadêmica que se plasmou ao longo do século vinte; a economia, contudo, tem-se
configurado nas últimas décadas uma formidável desafiante, aspirante inequívoca a um
protagonismo conceitual relevante; e o direito, por sua vez, conforma a materialização
última do incontornável plano normativo de toda reflexão conseqüente sobre política.
Se nos incomoda o que nos parece ser uma contaminação normativa excessiva do
quadro conceitual da área, isso não se deve, absolutamente, a uma rejeição da
legitimidade ou da centralidade desse plano na análise. Pelo contrário, é a própria
reflexão normativa que se prejudica caso o esforço de diagnóstico empírico fique
obscurecido por imprecisões conceituais.
Nosso propósito com a mesa, portanto, foi ocasionar reflexão conceitual sobre os
desafios e dilemas da ciência política contemporânea, à luz dos diferentes
enquadramentos propiciados pelas matrizes intelectuais que tradicionalmente alimentam
a disciplina. Pois a tendência eufemística do jargão corrente da disciplina nos reforça
uma imprecisão conceitual que termina por mascarar similitudes ou mesmo obscurecer
distinções relevantes. Não é difícil exemplificar. Nossa disposição desfavorável diante
da expressão “corporativismo” nos induz a uma artificial contraposição sua à expressão
“pluralismo”, que de fato mascara paralelismos importantes que tornam problemática a
distinção precisa entre os dois conceitos quando entendidos como estruturas
institucionais de intermediação de interesses (B. Reis, 1995). “Clientelismo” é outro
termo com fortes ressonâncias negativas, contudo difícil de caracterizar analiticamente
em contraste com qualquer relação de representação ou barganha, inerentes à própria
atividade política, mesmo virtuosa (o tema, central para as atividades do grupo, foi
apropriado em 2007 no âmbito do grupo por Paulo D’Ávila, em seu paper “Assimetrias
Políticas, Clientelismo e Democracia: uma discussão conceitual”). Os exemplos
poderiam prosseguir bem longamente, e de fato temos recorrentemente “tropeçado”
neles a cada paper discutido em nossos GTs e STs ao longo dos últimos cinco anos.
Forçados, pela própria ementa do GT que operou no biênio 2005-2006, a buscar uma
apropriação minimamente sistemática do problema geral do exercício do poder político
e seu controle, freqüentemente nos surpreendemos em meio a um esforço de
reconstrução do enquadramento conceitual de bons trabalhos trazidos ao grupo, com o
propósito de buscar, por detrás de conceitos de ressonâncias normativas relativamente
compartilhadas, os significados empíricos precisos – não raro obscuros.
Encorajados também por minha inflexão rumo a uma apropriação explícita do tema das
instituições, o grupo decidiu que já era tempo de assumir que o problema dos controles
democráticos, afinal, resolve-se em larga medida no âmbito das instituições políticas, e
incorporá-las a seu título para o biênio 2008/2009, quando o grupo – caso aprovado pelo
Comitê Acadêmico da Anpocs – se chamará “Controles Democráticos e Instituições
Políticas”, ainda sob a coordenação conjunta de Rogério Arantes e eu.
Como se pode facilmente constatar, o engajamento na ANPOCS alargou
consideravelmente o foco de minhas preocupações, numa direção mais abstrata e
conceitual que o diapasão vazado no meu projeto de 2003. Esse é um efeito curioso, já
que o grupo tem um claro viés empírico. Talvez isso tenha decorrido de certa divisão de
trabalho interna, onde eu tendi a desempenhar o papel de “teórico” da turma. Além de
minhas possíveis aptidões, este efeito foi favorecido também por duas razões
circunstancias: minha designação como coordenador da área temática de teoria política
pela ABCP e minha atuação, desde 2000, como responsável pela disciplina obrigatória
de Metodologia no mestrado em ciência política da UFMG.
Mas antes de estar em Caxambu no memorável (para mim) outubro de 2002, cumpri
meu trimestre em Ann Arbor, no programa de verão da Universidade de Michigan. Lá,
paradoxalmente, vivi “de perto” a desvalorização cambial brasileira. Partindo do Brasil
no final de maio para ficar fora até a segunda quinzena de agosto, planejávamos que em
julho minha esposa e filha fossem se juntar a mim para umas férias diferentes. Fomos
derrubados pelo câmbio, contudo: em quarenta dias, o preço da viagem em reais havia
dobrado, e minha filha de quatro anos tirou um passaporte que nunca chegou a usar. É
possível, porém, que minha ansiedade com essa história tenha intensificado meu
interesse por tudo que cercava a eleição presidencial de 2002.
De fato, durante meus únicos três meses de experiência profissional no exterior, o Brasil
esteve onipresente no horizonte de minhas preocupações pessoais, tanto
profissionalmente quanto em meus parcos momentos de socialização pessoal com os
colegas que lá estavam. De saída, a campanha presidencial despertava ocasional
interesse ou curiosidade de interlocutores. Pude perceber que a imagem que a maioria
dos estrangeiros tinha da eventual ascensão do Lula era a de um governo situado em
algum ponto entre o Chile de Allende e a Nicarágua sandinista, e eu me esforçava por
explicar-lhes que, em matéria de esquerdismo, Lula e o petismo assemelhavam-se, no
máximo, aos socialistas franceses na época da ascensão de Mitterrand – e olhe lá...
Além disso, deu-se a coincidência de que meu desembarque no aeroporto de Chicago
aconteceu no exato momento em que a França era derrotada por Senegal no jogo de
abertura da Copa do Mundo de 2002. E aí, era fatal: todos aqueles a quem eu era
apresentado me perguntavam imediatamente sobre a Copa do Mundo, sobre Ronaldo,
Rivaldo, Romário e (os mais bem informados) Ronaldinho – e juravam que, à falta do
próprio país de origem, torciam “sempre” pelo Brasil. So kind. Foi gozado acompanhar
uma Copa do Mundo de fora do Brasil – e foi, sobretudo, estranho ganhar a Copa do
Mundo fora do Brasil: depois do fiasco de Oliver Kahn, da consagração de Ronaldo,
taça, volta olímpica etc., lembro-me de sair pra caminhar por um parque próximo na boa
companhia de um colega sul-africano (que, naturalmente, torcera pelo Brasil),
conversando sobre política, desigualdade, Apartheid, Mandela, Lula, e poder admirar-
me do silêncio e do sossego impecável de uma radiosa manhã de verão em Ann Arbor,
imaginando (meio aliviado, meio ressentido) a bagunça, a barulheira e a alegria que
deveriam estar percorrendo, naquele exato instante, o Brasil inteiro com um domingo
inteiro de comemorações pela frente.
Copa do Mundo, campanha eleitoral e especulação cambial foram motivos mais do que
suficientes para me deixar plugado no Brasil diariamente, pela internet. Mas é preciso
admitir que a perspectiva bastante concreta da vitória de Lula naquela eleição ajudou a
tornar a campanha ainda mais interessante. Essa perspectiva se havia delineado com
bastante clareza ainda no primeiro semestre de 2002, quando uma ação da Polícia
Federal contra Roseana Sarney, até ali bem posicionada nas pesquisas, gerou uma
cizânia nas hostes governistas, a partir da suspeita de que José Serra estivesse envolvido
no episódio, com o propósito deliberado de expor e enfraquecer Roseana. Passei a
brincar com meus colegas que aquele Serra era um celerado, e que, como bom
conservador, eu teria que votar no Lula, em nome da governabilidade. Brincadeiras à
parte, era claro que a fragmentação da coalizão de apoio ao governo de Fernando
Henrique abria um flanco por onde Lula não apenas poderia ganhar, mas começava
mesmo a pintar como favorito.
Going Hi-Tech
Mas eu havia ido a Michigan não para pensar sobre o Brasil, decerto. Tinha ido,
fundamentalmente, treinar-me como pesquisador de survey. De fato, cursei disciplinas
sobre desenho de questionários (Pamela Campanelli) e aspectos cognitivos e
comunicacionais da dinâmica da entrevista e da interpretação dos seus resultados
(Norbert Schwarz e Michael Schober), que procurei utilizar aqui não apenas na minha
colaboração regular junto à própria PRMBH, mas também lecionando disciplina
específica, na graduação, sobre desenho de questionários, já no segundo semestre de
2002 (anexo 10.9). Mas o que de fato me rendeu crescimento profissional foi a
“esticada” que dei rumo às disciplinas de técnicas formais de teorização, no programa
do ICPSR: teoria dos jogos (Mark Fey), escolha racional (James Johnson) e sistemas
complexos (Rick Riolo, Scott E. Page, Ken Kollman) – além, é claro, da disciplina
sobre desenhos de pesquisa, com Bill Yeaton.
De saída, as 80 horas de aula que assisti sobre teoria dos jogos e escolha racional em
Michigan foram imediatamente condensadas em 10 horas de um curso introdutório
sobre o tema (sobretudo teoria dos jogos) que comecei a lecionar no MQ uma semana
depois da minha volta (anexo 10.10). Felizmente, o enquadramento conceitual que eu
dava ao objeto sobreviveu à viagem, não obstante o grande aprendizado técnico e
intensiva exposição a literatura bem mais abundante e diversificada. Assim,
relativamente à disciplina optativa que eu havia lecionado na graduação sobre a mesma
matéria no segundo semestre de 2000 (anexo 10.11), o programa foi dramaticamente
modificado, mas minhas opiniões e idéias básicas, não. Fui tremendamente ajudado
também pelas duas monitoras que tive no período: Luciana Farias Santana (2002 a
2004) e Natália Bueno (2006 e 2007). Cada uma a seu estilo, ambas me possibilitaram
manter o ritmo, próprio de um curso intensivo, de um trabalho a ser avaliado por dia,
evitando que eu me perdesse irremediavelmente em minha confusão habitual, soterrado
por uma pilha de trabalhos não corrigidos ao fim da semana.
Certamente, não terá sido coincidência: acredito que esta tenha sido a mais bem-
sucedida disciplina que já dei na vida... Talvez isto se deva, em parte, também à
rarefação do debate metodologicamente orientado sobre essa matéria no Brasil, mas
julguei – sinceramente – que todos os trabalhos que recebi estavam aptos a serem
publicados. Há muitos mal-entendidos graves sobre o tema que prosperam em literatura
publicada entre nós nessa área, e constatei que eu havia sido bem-sucedido em pelo
menos fazer com que os meus alunos evitassem esses. Cada um a seu estilo, acredito
que todos os trabalhos (não eram muitos: uns sete, se não me engano...) traziam
contribuições interessantes – e, mesmo quando modestas, poderiam ser trazidas para o
conhecimento do público e poderiam ser úteis em adensar a rarefeita literatura
disponível em português. Muito contente, escrevi um e-mail coletivo, saudando-os e
dizendo que estavam todos obrigados a pelo menos tentar publicar o trabalho.
Simplesmente, porém, não acreditaram: que eu saiba, nenhum deles tomou
providências. Quando, muitos meses depois, reclamei com um deles, ouvi de volta:
“Uai, era sério?...”
Talvez em decorrência dos ecos de minha disciplina no MQ, em 2004 Gláucio Soares,
então presidente da ABCP, convidou-me a dar uma aula sobre escolha racional no
âmbito de um curso sobre “Teorias Políticas Contemporâneas e as Pesquisas que elas
Orientaram” que teria lugar no Rio de Janeiro como parte das atividades do Encontro da
ABCP que teve lugar na PUC-Rio em julho daquele ano. Devo ter agradado, porque
dois meses depois recebi em casa um telefonema da secretária-executiva da Anpocs,
Maria Arminda Arruda, convidando-me a repetir no Encontro de Caxambu, em outubro,
a aula da ABCP, no mini-curso que a Anpocs abrigaria, com aulas das três áreas que
integram a Associação. Tratava-se de uma substituição, em virtude de impedimento de
Maria Teresa Sadek, que falaria sobre Maquiavel. Só posso especular o que terá passado
pela cabeça dos estudantes – que, após pagarem inscrição para ouvirem sobre
Maquiavel, encontraram uma aula mais metodológica que teórica, sobre uma técnica
formal meio exótica, dada por um desconhecido... Mas eles foram gentis.
Por fim, animado por pedidos de alunos, no primeiro semestre de 2006 criei coragem e
levei novamente a disciplina para a graduação – só que agora com o perfil mais técnico
que conferi ao meu ensino da matéria depois de 2002, e que hesitava em empregar com
graduandos: bibliografia quase toda em inglês, expressões matemáticas freqüentando
assiduamente o quadro negro... Eu temia um desastre: ou procura insuficiente, ou
debandada geral. Com a insistência de alguns deles, porém, percebi que tudo o que eu
precisava fazer era evitar intimidá-los. A matéria, com esse perfil, era (ou é), que eu
saiba, praticamente inexistente na graduação brasileira em ciências sociais. Se é assim,
qualquer exposição dos estudantes a ela já é uma vantagem comparativamente à
paisagem profissional em que eles estão se formando. A escolha era clara: eu poderia
pôr a perder esta oportunidade atemorizando os alunos com provas cheias de cálculos
difíceis, ou então eu tratar de ser criativo na avaliação, induzindo-os a praticarem a
técnica em exercícios mais ou menos regulares, e convidando-os a modelarem algum
problema de interesse teórico para eles, a ser apresentado em seminário interno da turma
ao final do semestre. Ao final, como aliás tem-se dado sistematicamente desde meu
batismo na graduação na Política II de 1999, os estudantes corresponderam: não
obstante a flagrante falta de prática da maioria deles com cálculo, a sala esteve sempre
cheia, e pude atestar um elevado interesse da turma, assim como um nível de
aprendizado que me pareceu bastante satisfatório.
Por fim, o último objeto de estudo em Ann Arbor foi o que mais me despertou o
interesse, aquele sobre o qual eu estive mais excitado, o que me parece o mais
promissor a longo prazo. Mas, também (como aliás costuma acontecer), aquele que
mais me produziu frustrações e exasperação pela dificuldade em tocar adiante, de
maneira rotineiramente sustentada, alguma iniciativa conseqüente – não obstante a
abertura de contatos novos e colaborações extremamente gratificantes, ainda que
intermitentes. Trata-se do estudo, aplicado às ciências sociais, de sistemas adaptativos
não-lineares (ou sistemas complexos) por intermédio de simulações computadorizadas
baseadas em agentes.
Escrevi ao IEAT uma carta nesses termos. Obtive de volta uma sinalização muito
receptiva, mas infelizmente os contatos com Scott Page para sua possível vinda não
prosperaram, por motivos familiares. Muito gentilmente, ele se prontificou a identificar
entre colegas algum que pudesse vir, e algum tempo depois me trouxe um nome. Só que
era o nome de um físico, Mark Newman, seu colega no Centro para o Estudo de
Sistemas Complexos (CSCS), na Universidade de Michigan. Como as cátedras do IEAT
eram divididas entre as três grandes áreas, seria impraticável convencer a área de
humanas que a sua cátedra IEAT deveria ser dada a um físico. Já tínhamos chegado até
à transdisciplinaridade, mas descobri que precisaríamos da “transgrandeariedade”, e
essa ainda não havia se instalado entre nós.
Cogitei, também, de uma disciplina. Num primeiro momento, pareceu-me
imprescindível que ela fosse compartilhada com um professor do Departamento de
Ciência da Computação, do ICEX. Por intermédio de um primo que andava por lá e fez
a conexão, procurei Henrique Pacca, que havia acabado de deixar a coordenação da
Pós-Graduação em Computação. (Voltei a encontrá-lo em 2006, no Rio, em reunião na
Finep para avaliação de projetos do CT-INFRA. Soube então que ele estava na
Universidade Federal de Alagoas, para onde tinha-se mudado depois de aposentar-se na
UFMG.) Pacca foi extremamente gentil e receptivo, mas foi também franco: não
acreditava que se pudesse viabilizar a oferta de uma disciplina no curso de ciências
sociais com designação de professor do DCC para carga horária parcial fora das
obrigações regulares do Departamento. Mas devo a ele a indicação que ele fez aquele
dia mesmo: que eu procurasse seu amigo Milton Corrêa Filho, pesquisador do LNCC,
que se interessava fortemente por modelagem baseada em agentes.
Milton foi uma das melhores “coisas” desses últimos anos. Generoso, sereno, receptivo
às especulações de um cientista político confuso vinte anos mais jovem, Milton foi de
fato a principal sede e o foco dinâmico da maioria das coisas parecidas com trabalho
produtivo que eu tenha chegado a desovar nessa matéria. Convidou-me a visitá-lo no
LNCC, em Petrópolis, e viabilizou nossa ida (minha e de Ricardo Ruiz, a quem eu tinha
posto na jogada) em mais de uma ocasião. Emplacou um workshop de três dias,
dividido entre nós três, no curso de verão do LNCC, em janeiro de 2004. Durante esses
três dias, convenceu-nos a pôr o carro na frente dos bois e arriscarmos um paper para
um seminário em Lisboa, apenas exploratório, conceitual (“Multi-Agent Computational
Modeling of Interpersonal Trust and Cooperation: a conceptual exploration”, anexo
3.3), em torno de uma apropriação, num algoritmo computacional teoricamente
interpretável e operacional, do conceito de confiança interpessoal tal como utilizado por
Robert Putnam em seu célebre Making Democracy Work, de 1993 – agenda que eu tinha
proposto desde o início. O esforço derivava sobretudo da forte suspeita de que a
principal fragilidade teórica do argumento de Putnam em sobre o caso italiano decorria
de uma excessiva linearidade do modelo, que faz suas generalizações a partir de tipos
polares empiricamente implausíveis (confiança disseminada ou a falta dela) – donde a
pertinência de uma conceituação computável de “confiança”, apta a servir como base de
testes de uma modelagem não-linear do problema. A empreitada revelou-se imatura
àquela altura, e fomos recusados. Mas o paper serviu ao propósito de certo auto-
esclarecimento a que se destinava, e depois recebeu publicação como trabalho de
circulação interna no LNCC. Sobretudo, ele ainda não desdobrou-se como esperávamos
em detalhamento e operacionalização experimental subseqüente. Não por inviabilidade
intrínseca, pois a literatura é hoje abundante e crescente (veja-se, por exemplo, a
produção publicada no Journal of Artificial Societies and Social Simulation – JASSS,
acessível na internet). Mas de fato a roda-viva em que me meti (coordenação de curso
de graduação na UFMG, de GT na ANPOCS, e de área temática na ABCP) cobrou seu
preço na inviabilização da pesquisa de formato mais ambicioso, com colaboração ao
mesmo tempo multidisciplinar, inter-institucional e interestadual. Milton Corrêa acolheu
minha agenda com enorme generosidade, e tem sido um fantástico interlocutor. Mas –
exceto por surtos esporádicos – de fato tem sido difícil incorporar esta pauta a uma
rotina de trabalho sustentável.
E houve também o Grupo Redes – minha segunda experiência com o IEAT. Em janeiro
de 2005, corrigindo provas de História (questão sobre Bismarck e a unificação de
Alemanha...) para o vestibular da UFMG, encontrei no cafezinho uma professora da
Faculdade de Letras que sustentou comigo uma conversa que guardava muitas
afinidades com os meus interesses em sistemas complexos, embora tratasse,
aparentemente, de outra coisa. Era Antonieta Pereira, coordenadora do grupo “Redes”,
que se reunia regularmente já havia alguns anos, sob os auspícios do IEAT, então
dirigido por Alfredo Gontijo, do Departamento de Física (ICEX). Foi com Antonieta
que aprendi as afinidades entre análise de redes e os sistemas complexos, cujas
simulações capturam, afinal, algo que, dado seu caráter descentralizado baseado em
interações espacialmente configuradas, pode ser descrito como “dinâmica de redes”, em
contraste com a natureza topológica da análise habitualmente encontrada nos manuais
sobre análise de redes. Como legado, minha sensibilização para a análise de redes (e a
leitura de Linked, de Albert-Laszló Barabási) já seria o bastante para fazer meu
envolvimento com o grupo Redes valer a pena. Não menos relevante, porém, foi ter, ao
longo de um ano e meio, freqüentado regularmente uma nova turma de amigos: além de
Antonieta e Alfredo, conheci Beth Fleury, aproximei-me muito da Lena, do
Departamento de História, vice-diretora da Fafich durante o mandato de Vera Alice, e
descobri a existência de um visionário tão diferente e ao mesmo tempo tão parecido
comigo quanto Chico Marinho, da Belas Artes (cultuador, como eu, de Gödel, Escher,
Bach, de Douglas Hofstadter). Muitas outras pessoas compunham, de maneira mais ou
menos permanente, mais ou menos flutuante, o grupo – mas a enumeração destas basta
para dar uma idéia da diversidade da nossa fauna. Lena chegou a dizer, em certa
reunião, que o principal traço comum àquelas pessoas era que todas precisavam de
interlocução fora de seus próprios departamentos. Havia mais que isso, mas de fato as
prioridades e enquadramentos eram muito variados – e, sobretudo, incomoda-me na
paisagem em torno do assunto “redes” certa ênfase numa ressonância normativa
associada a uma idealização da rede como algo intrinsecamente horizontal, ou
descentralizado, ou anti-hierárquico. Tecnicamente, parece-me que uma rede pode ser
isso tudo e também seu contrário, e pessoalmente estou mais interessado nas
possbilidades teóricas da análise de rede, que só me parecem obscurecer-se com essa
associação tantas vezes implícita.
Seja como for, e apesar de o grupo ter-se dissolvido irreversivelmente em junho de 2006
(Antonieta se afastara no início do ano, e os demais cometeram o grave erro de me pedir
que assumisse a coordenação do grupo, não obstante minhas advertências...), a
convivência durante aqueles meses me permitiu amadurecer bastante minha apreensão
dos sistemas complexos. Alfredo me encarregou de uma exposição interna ao grupo,
uma segunda apresentação, pública, de minhas preocupações em um seminário
promovido pelo IEAT (onde pude ser debatido por meu caro José Guilherme Moreira,
também da Física, que eu conhecera nos meus tempos da ProGrad), e também me
escalou como debatedor de um conferencista visitante, num evento em que tive o prazer
de travar contato pessoal com Virgílio Almeida. Desde então ensaiamos alguma
colaboração, que infelizmente ainda não se pôde concretizar. Nessa época, cheguei a
esboçar dois artigos que almejavam realizar algum exercício conceitual relacionado a
este tema para apresentar em colóquios internacionais, mas nunca logrei obter
financiamento para comparecer, e os trabalhos ainda restam inacabados.
O primeiro foi concebido e aceito para apresentação no XVII encontro anual da Society
for the Advancement of Socio-Economics (SASE), realizado em Budapeste em junho de
2005. O tema do encontro (“What Counts? Calculation, Association, Representation”)
sugeria apropriação metodológica do tema da associação, e encorajou-me a buscar uma
aproximação do tema da “confiança” orientada por categorias sociais próprias da análise
de sistemas complexos. Inspirado também por uma disciplina lecionada em 2004 junto
ao programa de doutorado em Sociologia e Política, o resultado foi uma proposta de
trabalho intitulada “Cultural Calculations: some circularities about interpersonal trust
and political participation in complex societies”. Partindo da caracterização weberiana
do mercado como uma forma de “socialização entre estranhos” (B. Reis 2003a: 56-8),
busco questionar a pertinência de se postular a relevância teórica de comportamento
culturalmente orientado, concebido por oposição a cálculos racionais estrategicamente
orientados. Para tanto, recorro à impessoalidade requerida para a operação das redes de
larga escala tão típicas das sociedades complexas para constituir um argumento em
favor da necessidade de mecanismos de incentivos individuais de tipo mercantil para
promover coordenação em grande escala. Isto posto, contudo, as coisas deixam de
parecer tão simples quando passamos a considerar a base normativa da operação do
próprio mercado. Longe de serem algo como uma “ordem espontânea”, mercados
requerem orientações normativas específicas para operarem rotineiramente. O problema
reside em que a consideração simultânea desses dois pontos usualmente nos conduz a
circularidades entre os dois níveis de análise, a meu juízo eloqüentemente ilustradas
pelo trabalho de Putnam sobre a Itália. Em termos práticos, ao estudarmos participação
política (ou qualquer outro objeto empírico de análise política) devemos conferir
inequívoca ênfase às estruturas de incentivos com que se defrontam os atores, e
concebê-los sim como estrategicamente orientados – mas por outro lado constitui um
reducionismo grave presumir que esses incentivos podem ser adequadamente
compreendidos sem remissão a condicionantes simbólicos de toda ordem. Pois os
incentivos certamente não se reduzem a interesses materiais – e mesmo estes encontram
condicionamentos culturais. Assim, elementos “culturais” podem reter sua relevância
teórica se não forem concebidos como opostos a cálculos estratégicos, mas como parte
integrante deles. E neste ponto, novamente, talvez devêssemos refletir com maior vagar
sobre as potencialidades da técnica da simulação computacional de sistemas adaptativos
baseada em agentes, na medida em que ela poderia em princípio lidar de maneira
controlável com as não-linearidades que emergem quando tentamos manipular os dois
níveis de análise simultaneamente. O CNPq, porém, não pôde atender meu pedido de
financiamento para ir a Budapeste, e o trabalho permanece em stand-by.
Sob a perspectiva esboçada nesses trabalhos, a distinção usual entre (1) regras de
natureza normativa, concebidas como relativamente estáveis, internalizadas de algum
modo, e tipicamente portadoras de alguma noção de justiça e bem comum; e (2)
cálculos estratégicos, adaptativos, responsivos a circunstâncias cambiantes, e orientados
para a realização de objetivos auto-centrados – comporta pelo menos dois problemas
importantes. O primeiro é teórico-conceitual, e se refere à associação arbitrária do bem
comum com normas coletivas estáveis, relativamente fixas, e de estratégia e cálculo
com o auto-interesse. Pode-se pensar facilmente em normas compartilhadas que operam
em prejuízo do interesse coletivo, e assim postular a necessidade de minuciosa
consideração estratégica no esforço de modificar o status quo. Talvez não seja exagero
dizer mesmo que toda mudança social deliberadamente induzida por ação política
envolva situação análoga – ou mesmo, num registro mais corriqueiro, qualquer esforço
de se minorarem os danos de um estado de coisas socialmente dado. O segundo é
metodológico, e decorre forçosamente da admissão do primeiro problema. Ele se refere
à existência de regras de segunda ordem, já que há regras que dizem ao agente quando
aplicar tal ou qual regra (de primeira ordem), ou – talvez mais precisamente – regras
que orientam o agente quanto a exceções à aplicação de regras de primeira ordem. Se
isto faz sentido, impõe-se imediatamente a conclusão de que não há razão em princípio
para mantermos o modelo estritamente confinado a dois níveis, e pode-se naturalmente
pensar em regras de terceira ordem (sobre exceções à aplicação de exceções...), regras
de quarta ordem, e assim por diante. Sob tal enquadramento, considerações estratégicas
estão profundamente imbricadas com normas. A razão pela qual uma abordagem como
essa pareceria pouco frutífera ao longo da maior parte do século XX é bastante clara: ela
rapidamente levaria a análise a uma grande confusão de regras e meta-regras e meta-
meta-regras, sem clara distinção conceitual entre elas, ou qualquer resultado
demonstrável ao final. Hoje, porém, a difusão dos computadores aumenta
dramaticamente a nossa capacidade de manipulação (tanto experimental quanto
dedutiva) de silogismos complexos, e expressões praticamente não formalizáveis até há
pouco são hoje exprimíveis em algoritmos simples. O que torna bastante praticável a
modelagem do comportamento adaptativo sugerido pelo enquadramento conceitual aqui
esboçado, com um largo espectro de combinações concretas de regras operacionais
derivadas da operação de um conjunto limitado de regras e meta-regras (e meta-meta-
regras... mas, ainda assim, limitado). O alcance dessa nova agenda de pesquisa é
bastante concreto, e pode ser brevemente ilustrado pelos resultados encontráveis em
Skyrms (1996; 2004).
Pois bem. Aonde isso nos levaria? No que tange aos propósitos de inquirição conceitual
presentes naquele resumo de Budapeste, algumas implicações podem ser
preliminarmente levantadas – particularmente no que toca ao propósito, sempre fugidio,
de caracterização operacionalmente apropriável do conceito de cultura. De saída, o
presente enquadramento endossa a crítica feita por James Johnson (em artigo traduzido
pela Teoria & Sociedade em 2004) à maneira como a literatura sobre “cultura política”
tem se apropriado do tema ao longo dos últimos quarenta anos. Para Johnson, em vez de
uma coleção relativamente volátil de opiniões capturáveis num questionário de survey, a
cultura exprimiria antes – à maneira de Clifford Geertz – as “lentes” interpretativas
pelas quais diferentes povos examinariam e compreenderiam o mundo à sua volta. Aqui,
também, ao adotarmos uma montagem mais complexa do problema, parece
conceitualmente problemática a aproximação entre “cultura” e “opinião”. Uma noção
relevante de cultura para o arcabouço adotado aqui não será redutível a opiniões
coletáveis num survey, uma vez que seria tipicamente impossível, dentre as respostas
coletadas, discriminar entre a adesão verbal a uma regra corriqueira (que os
metodólogos chamam de efeito de “desejabilidade social”) e sua operação efetiva na
vida cotidiana. Ela se constituiria pela cristalização, em um nível agregado de análise,
de diferentes dinâmicas identificáveis de regras operando ou não ao nível dos
indivíduos. Importa dizer, neste ponto, que não é relevante o nível de análise de onde se
parte aqui: se do plano agregado, de onde se contempla uma cultura “dada” e se indaga
sobre seus efeitos na conduta das pessoas, ou se das regras adotadas no plano
individual, de onde se infeririam padrões agregados específicos, em princípios
definíveis e tipificáveis. Trata-se apenas de dois níveis de análise possíveis do mesmo
objeto empírico, e que portanto devem ser mutuamente consistentes. Idealmente,
deveríamos ser capazes de alcançar um conjunto de padrões culturais identificáveis que
viriam a compor uma taxonomia passível de análise – mas é claro que estamos muito
aquém desse desiderato. Caso se logrem avanços nessa agenda, contudo, é de se esperar
que se propiciem condições bastante mais favoráveis à compreensão de processos
complexos referentes à dinâmica da participação e da apatia política, com seus
conteúdos cognitivos e valorativos subjacentes.
Meus planos? Primeiro, permanecer disponível para o que puder aparecer, e tratar de
aproveitar, em vez de reclamar. Depois, segurar um pouquinho mais firme o timão no
que toca à agenda dos sistemas complexos. Concluído o mandato à frente do PET em
2010, cogito uma temporada como pesquisador associado no IEAT e, por volta de 2012,
talvez, enfim, um pós-doutorado – até porque minha esposa agora está com planos de
um doutorado, o que poderia viabilizar uma saída conjunta mais facilmente, com
família toda: Laurinha, hoje já com 10, que nasceu com meu doutorado; e André, hoje
com 4. Gosto de imaginar levá-los pra ver alguma parte do mundo (nem que seja Ann
Arbor...) com eles aos 14 e 8, respectivamente, minha senhora ao lado...
Ao longo desses anos, tenho malhado em ferro frio para conciliar, num equilíbrio
razoável, predicados conflitantes que me constituem. Um intelecto propenso à
abstração, confiante na capacidade de apropriação e formulação pessoal de objetos
teóricos, com capacidade de síntese que se exprime de maneira bem-sucedida nas salas
de aula e nos congressos; porém com atenção dispersiva, hesitante em especializar-se, e
continuamente – infantilmente – migrando a cada dia entre tópicos variados. Uma
personalidade confiante nas próprias opiniões, mas com uma dependência quase
patológica, senão da aprovação, seguramente da afeição de terceiros. Um Professor
Pardal, aéreo, absorto em abstrações, que suspira (talvez hipocritamente) por uma vida
sossegada, mas que, por sua própria dispersão, sente curiosidade irresistível quanto a
outras vidas, outros lugares da universidade, e aceita novos encargos mesmo com sua
imensa dificuldade em lidar diligentemente com múltiplas tarefas paralelas.
Agora, a hora é de juntar tantos fragmentos dispersos, oxalá semeados, ao longo destes
anos, e conferir-lhes um sentido. Retomar o fio, ou antes, construí-lo, afinal, rumo a
uma identidade pessoal e profissional, uma cidadania plena no mundo dos adultos, das
pessoas sérias, de onde sempre me senti patologicamente distante.