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O Contrato

Em uma obra anterior (Princípios de vida sana), explicamos como a possibilidade de


manifestar um comportamento anômalo é o atributo que leva emparelhada a crescente liberdade
de ação e escolha. Propusemos ali a analogia do computador para explicar a progressiva
complexidade e diferença dos comportamentos dos seres vivos e indicamos como será impossível
encontrar um verme neurótico, posto que os organismos inferiores comportam-se conforme
programas de ação prefixados biologicamente; e daí que todos os animais de uma família ou
espécie matem idênticas formas de comportamento, enquanto que, pelo contrário, pode ser
relativamente freqüente o fato de toparmos com seres humanos que manifestam comportamentos
completamente desajustados, porque o repertório comportamental do homem depende mais de
programas adquiridos por aprendizado mediante o contato social com as pessoas de seu
ambiente do que da programação biológica inicial com a qual todos nascemos, cuja função é
garantir a sobrevivência nas primeiras etapas da vida. Enfim, a possibilidade de desajuste é a
contrapartida da liberdade, do mesmo modo que o fracasso constitui o necessário reverso do
êxito.
Na obra citada, examinamos detidamente e constamos em detalhes cada uma das
principais idéias irracionais que compõem o programa neurotizante a que todo ser humano está
exposto através da educação, muitas vezes alienante, que nossa sociedade se empenha em
integrar como um membro útil e produtivo da coletividade de consumidores. Porque, resumindo, o
que pode chegar a converter-nos em perfeitos desequilibrados é o fato de “aprender” a observar a
realidade conforme o critério dos outros, ofuscando-nos com idéias ilusórias, absurdas,
catastróficas ou autodepreciativas.
Um verme jamais se queixará de como é dura a vida que lhe coube viver. Limita-se a
escavar seu buraco na terra sem questionar como é “terrível” suportar dia após dia uma existência
tão rastejante. Quer dizer, limita-se a cumprir rigorosamente sua programação biológica básica e
não sente outro tipo de necessidade que não sejam as relacionadas com a simples sobrevivência.
Evidentemente não acredito que, com isso, o pobre bicho sinta-se muito feliz, mas tampouco
excessivamente desgraçado.
O homem, pelo contrário, consegue fabricar suas próprias neuroses criando artificialmente
determinados tipo de “necessidades” que, na verdade, são simples preferências pessoas, desejos
de melhoria das próprias circunstâncias vitais ou elementos agradáveis, desejáveis para alcançar
maior bem-estar, mas dificilmente necessário para sobrevivência. No momento em que se perde
de vista a diferença entre o necessário (imprescindível, vital) e o desejável (agradável, mas não
imprescindível), pode se começar a gerar um grande acúmulo de tensões com as quais se vai
amargurando a vida. Assim, desde o careca que necessitar de um lustroso topete para ser feliz ou
o obeso que insiste em que “necessita” diminuir a cintura, passando pelo trabalhador médio
obcecado em conseguir mais dinheiro ou o eterno descontente com a sorte, amargurado pela idéia
de que “deveria” ter nascido em outra família, outra sociedade ou outra época....muitos se
empenham em ignorar aquilo que possuem, cobiçando de maneira doentia o que não têm.
Não se trata de propor um conformismo estéril e uma passividade diante das circunstâncias
que couberam a cada um; pelo contrário, penso que um dos deveres de todo ser humano é a luta
pela própria felicidade. O que é inútil no lamento dos inconformados neuróticos é que, em vez de
apoiar-se em seu próprio ponto de partida vital para dirigir suas energias para os objetivos
realistas que lhes permitam desfrutar de uma existência mais feliz, empenham-se em queimar
suas forças lamentando-se daquilo que “o destino” lhes negou e convertendo-se em autênticos
especialistas na arte de amargurar a vida.
Outro modo muito eficaz de converter-se em neurótico, que complementa a criação de
“necessidades”, é a tendência para “terribilizar” definindo o “horrível” ou o “catastrófico” cada um
dos acontecimentos negativos inevitáveis com os quais se depara ao longo de sua existência vital
(morte de entes queridos, doenças, contratempos e desilusões), em vez de assumi-los como
regras do jogo que todos temos que aceitar, por pouco que nos agradem. Nesse sentido, é muito
útil tentar forjar-se uma filosofia pessoal de caráter existencial (com forte dose de realismo),
através dela, conseguir aceitar os reveses que inexoravelmente nos aguardam em nosso caminho
vital, permitindo que se possa desfrutar calamidades que ainda estão por acontecer, dos breves
momentos de prazer que, de quando em quando, encontramos em nossa trajetória de vida.

Finalmente, a última estratégia de quem se empenha em criar tensões e angústias consiste


em recorrer às “desvalorizações” próprias ou dos outros, aplicando rótulos negativos a si mesmo
ou aos outros, julgando continuamente as pessoas por pequenos atos isolados, e não pela
totalidade de seu comportamento ou pelas circunstâncias que as levaram a agir de uma forma que
não se encaixa com seus o seu modo pessoal de ver as coisas, ou comparando-se
constantemente com os outros, em uma competição estéril para ver quem “é mais...”. Quando
chega ao convencimento de que aqueles que o rodeiam são seres malvados ou estúpidos,
convertem-se em vítimas da ansiedade, do rancor ou da atitude de defesa paranóica, que induz
quem a experimenta a manter-se sempre em guarda, esperando o próximo ataque pessoal, ou
uma competição contínua na qual tem que demonstrar em todos os momentos que ele é sempre o
melhor, que está por cima dos outros. Se a desvalorização está dirigida para si próprio, então o
resultado costuma ser invariavelmente uma dolorosa depressão imobilizadora na qual quem a
experimenta chega a convencer-se de que já não vale a pena se esforçar em lutar para encontrar
um sentido para a própria existência, com o que se deixa arrastar para um poço cada vez mais
profundo de desespero, desânimo e tristeza.
Ante o programa mental errôneo caracterizado pelos três tipos de crenças ou atitudes vitais
que acabamos de comentar (criação de necessidades, terribilizações e desvalorizações), o mais
saudável emocionalmente consiste em assumir a realidade da existência que nos coube a sorte de
viver, aprender a distinguir as regras do jogo e esforçar-se em agir conforme elas, tentando, ao
mesmo tempo, desfrutar ao máximo a partida.
Na escola e na família, ou através dos MCS, tentam nos impor regras do que “deve ser”, as
utópicas normas de comportamento social para uma harmoniosa convivência na comunidade
humana. No entanto, ninguém nunca nos explicou claramente o que de fato significa viver, o que
comporta estar sujeito aos pesos e limitações da condição humana, o que “é” realmente a vida e
quais são suas leis, não as que “deveriam” ser ou as que gostaríamos que fossem.
Imagine que, ao chegar ao mundo, você teve que assinar um contrato com cláusulas
específicas de que hoje não lembra mais. Se, ao deparar-se com um contratempo ou uma
situação dolorosa você se empenha em que essa situação deveria eliminada ou que deveria
acontecer de acordo com as condições que você gostaria de ditar nesse preciso momento, apenas
conseguirá gerar em si mesmo (a) uma crescente angústia, um rancor ou desespero que
manterão você paralisado (a) e com a sensação de ser um joguete ou capricho do “destino”. Se,
ao contrário, você se esforçar em buscar um sentido para essa mesma situação partindo das
condições iniciais do contrato da existência humana, os sentimentos dolorosos de ansiedade, de
desconforto ou tristeza não ultrapassarão os limites toleráveis, já que surgirão a partir de uma
valorização adequada da realidade e não dos doentios “quero”, “necessito”, “não suporto”, mais
próprios de um caráter infantil que de uma pessoa amadurecida. Além disso, tais sentimentos
cumpririam uma função de saudável motivação, estimulando-o a sair da própria situação dolorosa
em vez de colaborar para aprofundar na vivência da dor acrescentando uma carga a mais de
sofrimento psíquico.

O contrato da existência humana

1. Pelo fato de ter nascido, você já faz parte da vida. É um ser vivente com pleno direito a
participar do “todo vital”. Poderá sentir a vida através de você, porque você é vida; poderá
colaborar com a vida, porque a vida se manifesta em você.

Essa primeira cláusula leva implícito que, pelo simples fato de estar vivo, você é valioso e
não necessita demonstrar seu valor de nenhuma forma. Simplesmente é, existe: é você.
Não tem sentido, portanto, empenhar-se em procurar uma definição para rotular a própria
identidade recorrendo ao trabalho ou à função que desempenha no seio da sociedade. O fato de
dizer “eu sou professor” ou “eu sou mão de família” não acrescentará nada de novo à forma
própria de ser, uma vez que, simplesmente, somos, sem necessidade de predicados.
Tampouco será muito coerente determinar um valor à nossa pessoa de acordo com a
quantidade ou qualidade daquilo que produzimos ou realizamos, nem, muito menos, por
comparação com os produtos das outras pessoas com quem nos relacionamos. A
autovalorização, a auto-estima depende, em última instância, de nós mesmos, independentemente
de critérios arbitrários de categorização social.

2. Sua vida transcorrerá durante um tempo concreto e em uma época histórica determinada.

Isso quer dizer que somos únicos e exclusivos. Qualquer outra interpretação aberta à
possibilidade de existências anteriores ou futuras reencarnações estará negando o fato de que,
pelo menos em cada uma delas, você foi ou será instigado a tornar-se presente no mundo de uma
forma radicalmente única; vale dizer, qualquer visão sobre a realidade da passagem da vida
humana pela terra não poderá negar o fato da singularidade do ser pessoal. Ademais, se você
tivesse existido anteriormente sob a forma de uma identidade corporal diferente, isso significaria,
na verdade, que esse ser tinha que ser forçosamente alguém diferente de você, com outra
realidade histórica; ou seja, não era você, e sim outro.
Como dizia o poeta: “Você pode contribuir com um verso ao grandioso poema da vida”. Sua
contribuição apóia-se em existir, em ser você mesmo, único, autêntico e inimitável, de maneira
que apenas você pode realizar sua pessoal contribuição ao emaranhado da existência em seu
próprio tempo em suas concretíssimas circunstâncias.

3. Ao longo de sua existência, você se deparará com obstáculos e problemas: doenças,


reveses da sorte, acidentes e outros imprevistos.

É bom saber de antemão que uma das condições do contrato nos adverte das dificuldades
que nos esperam ao longo de nossa trajetória vital. Sobretudo se isso nos serve para
compreender que as dificuldades não são catástrofes horrorosas, mas apenas condições
inevitáveis no transcurso de nossa existência, que sempre poderemos aproveitar para colocar em
nossa capacidade de iniciativa na resolução daqueles problemas que somos capazes de resolver
ou para temperar nosso ânimo encontrando maior fortaleza na serena aceitação daquilo que é
inevitável.
Porém, o fato de nos depararmos com dificuldades em nossa vida, passando até por
calamidades, não quer dizer que nossa existência toda seja uma calamidade. O desafio apóia-se
precisamente em reservar forças para sobrepor-se aos obstáculos e para, apesar deles,
empenhar-se em encontrar o sentido da própria existência.

4. Como ser humano, você é, por definição, imperfeito e contraditório; sujeito a limitações e
erros.

A aceitação do desafio deve principiar pelo reconhecimento da realidade implícita na


condição humana, e isso pressupõe admitir que, apesar de sermos possuidores de uma mente
racional capaz de iluminar os mais extravagantes raciocínio e de dar solução aos mais complexos
problemas tecnológicos, também nos movimentamos por instintos atávicos, por impulsos mais
próximos à irracionalidade de nossos companheiros zoológicos da evolução do que da
espiritualidade que deveria caracterizar-nos como seres humanos.
Além disso, nos momentos em que precisamos tomar decisões para traçar o caminho que
pessoalmente propusemo-nos a empreender em nossa vida, nos depararmos com a carência de
capacidade reflexiva para compreendê-lo completamente e antecipar o futuro. Por isso, em cada
momento, devemos fazer nossas escolhas partindo dos limitados dados de que dispomos nesse
preciso instante e em meio à luta entre nossa parte racional e nosso componente instintivo. O
resultado inevitável é que, com freqüência, incorreremos em erros.
Mas os erros não são catástrofes irremediáveis, e sim situações presumíveis que temos
que enfrentar. Por isso, o melhor é aprender a esperá-los e tentar tirar deles a experiência
necessária para poder evitá-los no futuro.
Do mesmo modo, da imperfeita natureza humana, depreende-se que, em algumas vezes,
os impulsos vitais podem prevalecer sobre o próprio domínio racional, chegando a incitar ações
das quais podemos nos arrepender depois. Portanto, é fundamental que aprendamos a perdoar a
nós mesmos e aos outros. Com efeito, de tudo o que foi exposto, deduz-se que não somos anjos,
mas tampouco seres demoníacos; e tanto os outros como nós mesmos trabalhamos a cada
momento impelidos por nossa natureza humana, por definição, basicamente imperfeita e falível.

5. Não poderá jamais contar com o apoio unânime nem com a compreensão e o apreço de
todas as pessoas importantes para você.

Essa é afetivamente uma das cláusulas mais esquecidas em nossas ações cotidianas.
Gostaríamos de poder contar em todos os momentos com o aplauso de todos os que nos rodeiam;
mas essa é uma pretensão vã, já que a realidade das relações sociais implica que, enquanto
alguns não chegarão a compreender as motivações pessoais que estão na base desse ou daquele
comportamento, outros manterão interesse opostos aos nossos, com o que se declararão implícita
ou explicitamente contra nossa maneira de proceder; e, finalmente, a esmagadora maioria estará
tão absorta em seus próprios assuntos e problemas que dificilmente disporá de tempo para se
ocupar com os nossos.
A leitura positiva que convém fazer dessa cláusula é, em linhas gerais, a seguinte: “Aprenda
a apreciar e valorizar-se, tome suas próprias decisões, decida seus caminhos e tenha a coragem e
a sabedoria de prescindir do critério dos outros”. Se você tiver bem claro que é único e exclusivo e
que possui somente esta vida que lhe coube viver, faça a si mesmo o favor de vivê-la de acordo
com seus próprios critérios; não permita que sejam os outros que lhe ditem as diretrizes que deve
seguir.

6. A morte é o único acontecimento futuro certo. Por isso, para enfrentar a angústia do não-
ser, deve-se buscar um sentido particular para a vida; esse caminho somente você poderá
encontrar; ninguém mais pode mostrar-lhe seu próprio caminho.

Parafraseando V. Frankl, o sentido da morte é avivar nossa própria responsabilidade


existencial frente à vida; o fato de saber que nossa vida terá forçosamente um fim nos estimula a
realizar, no limitado tempo que nos pertence, aquilo que, se fôssemos eternos, adiaríamos durante
séculos ou milênios... ou não chegaríamos a realizar jamais. Quer dizer: a consciência de nos
sabermos mortais, definitivamente nos investe de responsabilidade. Responsabilidade de
colocarmos-nos em marcha para encher nosso tempo com aquilo que livremente tenhamos
decidido realizar; responsabilidade de converter-nos nesse espaço de vida em nos mesmos, para
sempre.
Assim, pois, o significado dessa cláusula, longe de ter tom angustiante, é basicamente
esperançoso: de um lado, vem garantir nossa pessoal liberdade, ao deixar completamente em
nossas mãos o sentido que queiramos dar à nossa existência; do outro, implica na possibilidade
de nos aproximar da eternidade no decorrer de nossa limitada vida, mediante a possibilidade de
converter em realidade cada uma de nossas ações pessoais, que, por serem simples
possibilidades, adquirem existência real, permanecendo para sempre em nossa história pessoal,
já que não se pode eliminar o que teve lugar uma vez – sejam obras concretas e tangíveis ou
simples sentimentos, emoções afetos carentes de uma materialidade visível.
De certo modo, nos imortalizamos em nossas ações ou na realização de nossos valores,
independentemente dos possíveis produtos materiais derivados deles ou da existência de
testemunhas ou consignatários dos mesmos, já que, conforme a cláusula primeira, não
necessitamos dos outros para referendar valor à nossa existência.
Assumimos as proposições logoterapêuticas de V. Frankl, afirmamos que é possível dar
sentido à própria vida realizando uma ação ou executando uma obra; também por meio das
experiências pessoais, amando o outro, por exemplo; ou, finalmente, mediante a aceitação do
sofrimento inevitável e da realização de valores de criação e valores vivenciais.
Em resumidas contas, no compito da vida o que deve permanecer não é o consolo da
lembrança dos seres que nos amaram, pois se nos amaram foi porque conseguimos dar um
sentido pessoalmente significativo ao curso de nossa vida. E isso só será possível se gastarmos o
nosso tempo de ser realizando o que nos torna mais plenamente humanos.

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