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Fotografias de Dámaso – aproximações sobre uma trajetória nos diferentes campos da sociedade

riograndense nos anos 1930 e 19401

Dámaso Rocha poderia ter sido um dos tantos personagens anônimos que passaram pelo
Ministério Público do RS2. No entanto, entre os dezesseis indivíduos nomeados para o cargo de
promotor público pelo governo de Flores da Cunha em 1934, foi o que obteve certa ascendência e
prestígio sobre seus colegas. Além de ocupar a segunda promotoria de Porto Alegre, logrou destaque
como editor da Revista do Ministério Público, uma publicação criada pela e para a instituição em 1941.
Importante espaço de convergência dos interesses do Ministério Público, certamente a revista foi um
dos ingredientes que se somaram ao seu prestígio político, que o levou ser eleito deputado federal
constituinte pelo PSD em 1946.
Ainda assim, com poucas informações disponíveis sobre ele, buscávamos novas fontes. Em
nossa prospecção, conseguimos localizar com seus descendentes um pequeno acervo de fotografias de
Dámaso Rocha3. É um acervo com mais de 100 fotografias, as quais a maior parte registra sua passagem
na Câmara Federal e como diretor da Caixa Econômica Federal no RS. Mas percebemos uma pequena
série de fotografias (vinte e cinco) que contemplam os anos anteriores a sua deputação, que nos
serviram de análise4.
Embora ainda não tenham sido identificadas devidamente, visto que pouquíssimas possuem
algum tipo de identificação (exceto o ano), essa seleção permite apontar para a complexidade da
trajetória de Dámaso Rocha nos anos 1930 e 1940. Numa perspectiva de intertextualidade, elas sugerem
outros campos de atuação ou de interesse desse indivíduo, que marcam uma época de transição dos anos
1930 com o embate entre a especialização dos meios jurídicos e a cultura do bacharelismo, onde havia
uma indistinção entre os campos do Direito, da Política e da Literatura5.
No entanto, não são mera ilustrações desse processo. As fotografias são um produto cultural,
fruto de um investimento social de produção de sentidos, moldadas pelos valores de seu contexto
histórico e que funcionam como representação e documento do real (MAUAD, 2004: 26-27, 31-32).
Nesse sentido, elas demarcaram uma intenção de seu detentor em preservar momentos de sua trajetória

1
Paper exigido como conclusão da disciplina “Imagens Contemporâneas: fotografia, vídeo e cinema na pesquisa
histórica” ministrada pela Prof.ª Dr.ª Ana Maria Mauad entre os dias 16 a 19.11.2009. Autor Marcelo Vianna. O
trabalho, devido ao espaço exíguo, tomou a liberdade de fugir de algumas normas formais de apresentação.
2
Dámaso Rocha nasceu em Porto Alegre no ano de 1909. Além de uma trajetória no Ministério Público, também foi
militante católico do PRL, pertenceu a Dissidência que contribuiu para renúncia de Flores da Cunha em setembro de
1937. Em 1946, foi eleito Deputado Federal pelo PSD. Em 1951, foi nomeado Diretor da Caixa Econômica Federal e
depois membro de seu conselho. Faleceu em 1963 vitimado por um ataque cardíaco.
3
Em outubro de 2008, após uma carta de apresentação e contatos telefônicos, a sra. Vera Rocha e o sr. Gilberto Rocha,
filhos de Dámaso Rocha, gentilmente receberam-nos para uma pequena entrevista e uma consulta no acervo de
fotografias.
4
Aqui fazemos uma construção arbitrária de uma série, já que investimos de um sentido próprio a nossa problemática –
seguimos aqui Ana Maria Mauad (2004: 26) e Maria Moreira Leite (2001: 37)
5
Nesse sentido, o movimento de autonomização do Judiciário, da advocacia e do Ministério Público, criando uma
carreira mais técnica-jurídica e menos política. Um exemplo é a tese de ENGELMANN, Fabiano. Diversificação do
espaço jurídico e lutas pela definição do Direito no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: UFRGS, 2004.
através de recortes dessas experiências. Elas não eram flagrantes, mas confraternizações cerimoniais
onde se percebe o trabalho profissional do fotógrafo: acompanhado da assinatura do estúdio fotográfico
(em decadência) ou com a presença da fotografia jornalística (em ascensão), fez-se como produtor de
um instrumento de afirmação de Dámaso Rocha como promotor, bacharel, poeta, jornalista.
Protagonista ou não, era participante de uma parcela da elite jurídica ou política do RS, constituindo
uma pequena biografia visual – e como tal, nos limites observados por Pierre Bourdieu, uma
“apresentação oficial de si” (BOURDIEU, 2001: 80).

Sem dúvida, uma das mais caras “apresentações” de Dámaso Rocha foi como um literato.
Algumas das fotografias revelam sua incursão nesse campo: uma delas está identificada como “Rio,
1944” (IMAGEM A) e retrata um jantar entre personalidades políticas e literata: Olegário Mariano,
Gilberto Marinho, Aderbal França e Antônio de Sousa Júnior6. Dámaso Rocha e os três companheiros
de mesa observam Olegário Mariano folhear um manuscrito. Embora a fotografia original apenas
identifique os participantes, não é desprezível seus significados – produzida na sede da ABI, ela captou
a leitura de um membro da Academia Brasileira de Letras aparentemente atenta de uma obra inédita de
Dámaso Rocha intitulada “Sorriso Interior”.
Autor de dois livros de poesia no início dos anos 1930 lançados pela Editora Globo – “O canto
que eu ouvi” (1931) e “Festa de luz e de cor” (1933) –, Dámaso era mais um dos que poderiam ser
situados entre os talentosos e os que saíam “à rua num empenho despropositado de se agarrar ao rabo da
glória”, na opinião do escritor Ciro Martins (2000: 16)7. Promotores públicos contemporâneos de
Dámaso Rocha aventuraram-se no mesmo caminho, como José Barros Vasconcelos (que chegou a
publicar na Revista do Globo alguns poemas sem grande repercussão) ou Cláudio de Toledo Mércio
(livro de poesia intitulado “Bagaço” - 1936). Somavam-se aos bacharéis que exploravam o campo
intelectual literário, influenciados pela cultura bacharelesca e a sua “vontade de intervir no mundo”
(GRIJÓ, 1998) mas também sensibilizados pelos movimentos modernistas da década de 1920, com
resultados diferenciados e que em boa parte permaneceram anônimos ou de pouca relevância.
Um diferencial apresentado pela fotografia estava na capacidade de Dámaso inserir-se nos meios
intelectuais. Walter Spalding, em artigo no Correio do Povo em 15.01.1962, reconhecia a passagem de
um garoto de calças curtas para um homem de inteligência brilhante e que logo começou a circular nas
rodas intelectuais. Assim, Dámaso Rocha estava diante um “imortal”, possivelmente pelos contatos
políticos de Gilberto Marinho e intermediado pelo colega colaborador da Revista Globo De Sousa

6
Olegário Mariano (1889-1958) foi um poeta, escritor e diplomata que foi eleito para a Academia Brasileira de Letras
em 1926; Gilberto Marinho (1909-1985) foi político nascido no RS, colaborador do Diário de Notícias, mas seguiu
carreira política no Rio de Janeiro, onde chegou a ser eleito senador entre 1955 a 1970; Augusto Gonçalves de Sousa
Júnior (1896-1945) foi escritor e redator de diversas revistas e jornais riograndenses, além de ter sido deputado estadual
pelo PRL em 1935 e ter se mantido fiel a Flores da Cunha, o que lhe rendeu certo isolamento no Estado Novo; não
encontramos informações sobre Aderbal França.
7
Ciro Martins foi o autor da “Trilogia do Gaúcho a Pé” e foi um dos expoentes da Literatura regionalista da Geração de
1930.
Júnior. Mas o manuscrito “Sorriso Interior” continuou inédito – obviamente a fotografia não revelou a
opinião de Olegário. Segundo Gilberto Rocha, Walter Spalding acabou recolhendo a obra após o
falecimento de Dámaso em 1963 para uma posterior publicação, mas ela nunca veio a tona.

Imagem A - Jantar na Associação Brasileira de Imprensa RJ (1944)

Outra fotografia que representa o trânsito de Dámaso Rocha entre intelectuais é uma ainda não
identificada – embora sua aparência sugira início dos anos 1930 – mas que tem a presença de Érico
Veríssimo (IMAGEM B). Ela abre um convite à interpretação: Veríssimo era persona non grata para
setores católicos riograndenses, incluindo uma parcela de seus intelectuais 8. E a formação de Dámaso
foi pautada por essa geração de intelectuais católicos que tomaria a Faculdade de Direito de Porto
Alegre a partir dos anos 1920.
Dámaso bacharelou-se na Faculdade em 1932 e teve sua trajetória política e intelectual ligada ao
grupo, integrando a Liga Eleitoral Católica e dirigindo jornais Diário de Notícias e A Nação, submetidos
a linha católica. No entanto, cabe dizer que não encontramos o apoio de Dámaso aos manifestos
lançados à época. A própria fotografia sugere uma convivência “pacífica” anterior – uma reunião de
amigos literatos em uma residência (ainda por pesquisar), onde chegam a faltar assentos e uma
prateleira de livros se faz presente ao fundo. Pode ser um indicador de que talvez construíssem suas

8
Em 1943 Veríssimo sofreu fortes críticas dos setores católicos da sociedade riograndense, acusado de corruptor da
juventude através de suas obras. Uma divisão entre a intelectualidade seguiu-se, com publicações de manifestos pró e
contra Veríssimo; quase toda a intelectualidade católica se colocou contra o escritor, que havia iniciado um processo
judicial contra seu detrator inicial, o padre Fritzen (GERTZ, 2005: 138-140). Dámaso Rocha, comprometido com os
dois lados, não assinou.
trajetórias intelectuais em comum pela Editora Globo, onde Érico e Dámaso tiveram obras publicadas, e
isso levasse Dámaso ao respeito com o primeiro. Mas ainda não possuímos muitos elementos para
especular.

Imagem B - Fotografia sem identificação - Da esquerda para direita, 1.º Érico Veríssimo; 4.º
Dámaso Rocha (início anos 1930?)

Ela nos leva a outra fotografia, que segue o estilo “flagrante de rua”. Ela pode ser ligada ao
campo jurídico, mas pode ser redimensionada em sua interpretação como uma convergência dos campos
político e intelectual literário (IMAGEM C). Nomeada “São Paulo – 1942”, nela transitam lado a lado
César Salgado (presidente da Associação do Ministério Público de São Paulo) e Dámaso Rocha. Ela
sugere proximidade, como se conversassem durante a caminhada (não se sabe se havia outros).
Essa fotografia seguramente foi feita durante o 1.º Congresso Nacional do MP, realizado em São
Paulo em junho de 1942. Organizado pelo Ministério Público de São Paulo, Dámaso Rocha foi
escolhido para representar o Procurador-Geral do Estado do RS. A proximidade da fotografia mostra
que sua escolha não foi à toa: José César Salgado era um católico conservador como Dámaso, ao ponto
de pertencer ao secretariado nacional da canonização de José de Anchieta e dirigir por anos a revista dos
antigos alunos da Cia. Jesuíta. Não sem surpresa era também cultivava um hábito literário (era um
poeta): suas obras intituladas “Ceia dos Promotores” e o “Decálogo do Promotor Público” (baseado nos
Dez Mandamentos) falam por si9. Em um contexto onde os dois Ministérios Públicos buscavam uma
atuação pioneira em prol de sua autonomia institucional, um indivíduo com o perfil de Dámaso Rocha
era mais do que indicado – bacharel, poeta, intelectual, católico – para fortalecer uma possível relação
entre as duas instituições. Sem dúvida atuar como um mediador era forma de aumentar seu prestígio.

9
Justitia, v.51, p.23-30; v.105, p.9; Justitia, v. 178.
Imagem C - José César Salgado (presidente da
Associação do MPSP) e Dámaso Rocha
(representante do MPRS) caminham por rua
paulistana (junho de 1942)
Por fim, cabe esclarecer que as fotografias ainda foram muito pouco exploradas. A grosso modo,
elas revelam um indivíduo com capacidade de incursão em diferentes campos, como o intelectual
literário; o desafio é compreender como se valeu desses atributos como um dos recursos disponíveis
para sua trajetória política ou jurídica, por exemplo. As fotografias deixam margem a boas
interpretações e a futura identificação de outros personagens nelas presentes permitirão lançar luzes
sobre as estratégias empregadas não só por Dámaso Rocha, mas por outros jovens bacharéis
contemporâneos dos anos 1930 e 1940.

Bibliografia

BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas. 3.ª ed. Campinas: Papirus, 1996.


GERTZ, René E. O Estado Novo no Rio Grande do Sul. Passo Fundo: UPF, 2005.
GRIJÓ, Luiz Alberto. Origens sociais, estratégias de ascensão e recursos da Geração de 1907. Porto
Alegre: UFRGS, 1998 (dissertação de mestrado PPG Ciência Política).
LEITE, Míriam Moreira. Retratos de Família. Leitura da Fotografia Histórica. 3.ª ed. São Paulo:
EDUSP, 2001.
MARTINS, Ciro. Nunca me considerei um escritor regionalista. In: MESINA, Léa; APPEL, Myrna Bier
(org.). A Geração de 30 no Rio Grande do Sul – Literatura e Artes Plásticas. Porto Alegre: UFRGS,
2000.
MAUAD, Ana Maria. Através da imagem: possibilidades técnico-metodológicas para o uso da
fotografia como recurso didático, uma experiência acadêmica. In.: Primeiros Escritos. Niterói. n.1, 15
p.1-9. Jun-ago 1994. (versão on-line <http://www.historia.uff.br/primeirosescritos/sites/
www.historia.uff.br.primeirosescritos/files/pe01-2.pdf >. Acessado em 10.05.2009).
________.. Fotografia e História – possibilidades de análise. In: CLAVATTA, Maria; ALVES, Nilda
(orgs.). A Leitura de Imagens na Pesquisa Social. São Paulo: Cortez, 2004. p.19-36.
MONTEIRO, Charles. História, fotografia e cidade: reflexões teórico-metodológicas sobre o campo
de pesquisa. In: Métis – História&Cultura. Caxias do Sul. v.5, n.9, p.11-23, jan-jun 2006.

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